Evandro Oliveira de Brito
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DILEMAS EPISTEMOLÓGICOS DE GUERREIRO RAMOS ______________
usj CENTRO UNIVERSITÁRIO MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ
DILEMAS EPISTEMOLÓGICOS DE GUERREIRO RAMOS
Evandro Oliveira de Brito
DILEMAS EPISTEMOLÓGICOS DE GUERREIRO RAMOS
São José CENTRO UNIVERSITÁRIO MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ 2012
CENTRO UNIVERSITÁRIO MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ - USJ Reitora: Elisiane C. de Souza de F. Noronha EDITORA CENTRO UNIVERSITÁRIO MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ Editor Conselheiro: Evandro Oliveira de Brito Editor assistente: Zuraide Silveira CONSELHO EDITORIAL ACADÊMICO Adarzilse Mazzuco Dallabrida Keila Villamayor Gonzalez Carolina Ribeiro Cardoso da Silva Maiara Pereira Cunha Cleber Duarte Coelho Maria Solange Coelho Felipe Gustavo Buttelli Koch Odimar Lorenset Fernando Maurício Senna Rogerio Tadeu Lacerda Gilmar Evandro Szczepanik Sandor F. Bringmann Jason de Lima e Silva Vera Regina Lúcio EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Assessoria de Comunicação USJ
CAPA: Zuraide Silveira REVISÃO: Organizador
Dados internacionais de catalogação da publicação (CIP) Catalogação no setor de editoração do USJ
B862d
Dilemas epistemológicos de Guerreiro Ramos / Evandro Oliveira de Brito – 1 ed. – São José: Centro Universitário Municipal de São José, 2012. 72 p. ISBN 978-85-66306-18-7 (e-book) Inclui bibliografia 1. Guerreiro Ramos, 1915-1982. 2. Negritude. 3. TEN. 4. Pensamento Social. I. Título. II. Brito, Evandro O. III Título. CDD 316.2
Atribuição - Uso Não-Comercial Vedada a Criação de Obras Derivadas
Para Ilka Boaventura Leite
SUMÁRIO
1. Introdução ........................................................9 2. Vida, guerra e drama ....................................13 3. O pensamento social sobre o negro no brasil................................................................27 3.1 O lugar e o problema de Guerreiro Ramos: a negritude e a identidade nacional. ..........27 3.2 Um atalho perigoso: a busca pela ancestralidade ou a busca pela integração à cultura nacional. ............................................29 3.3 A indicação de um caminho entre a busca pela ancestralidade e a busca pela integração à cultura nacional. .....................38 3.4 O lugar e o problema de guerreiro ramos: o drama de ser dois e a negritude. .............42 4. Considerações finais. ....................................53 5. As obras principais .......................................55 6. Bibliografia .....................................................57
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1. INTRODUÇÃO O sociólogo baiano de Santo Amaro da Purificação, Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982), foi um dos principais teóricos do pensamento social sobre o negro no Brasil. Sua contribuição para este campo de pesquisa é ressaltada pelos comentadores da sociologia brasileira pelo fato de Ramos ter inaugurado um novo olhar tanto para a sociologia brasileira como para os estudos das relações raciais no Brasil. Os aspectos que caracterizam a originalidade do olhar sociológico de Ramos podem ser demarcados tanto pela sua proposta epistemológica orientada para o envolvimento cada vez mais humano do pesquisador na sua pesquisa, bem como pelas aplicações desta proposta em campos da sociologia aplicada (tais como na administração pública e privada). A respeito dessa contribuição para a sociologia, nós podemos demarcar duas características fundamentais: (a) a primeira consistiu na originalidade epistemológica de sua análise, ou seja, tratava-se de um método de investigação que invertia o foco das análises acerca dos estudos sociológicos no Brasil, pois Ramos tomava como objeto de estudo os métodos de ciências sociais utilizados até então; (b) o segundo consistia na proposição de uma nova sociologia, uma sociologia em ato (ou “em manga de camisas”), pois Ramos considerava que tal atividade de investigação deveria estar caracterizada pela originalidade com que o pesquisador abordava seu objeto de estudo. Esta originalidade consistia na
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Dilemas Epistemológicos de Guerreiro Ramos
contribuição cada vez mais humana do pesquisador para com sua pesquisa, ou seja, na medida em que o método era resultante de uma contribuição original do pesquisador, também os sujeitos estudados (o objeto de pesquisa) eram tomados a partir de uma dimensão cada vez mais existencial. São estas duas características que, aplicadas principalmente à base weberiana assumida por Ramos, garantiram e garantem ainda hoje a plausibilidade e a aplicabilidade das teorias sociológicas ramosianas às organizações do setor público e privado. Os aspectos que caracterizam a originalidade do olhar sociológico de Ramos para os estudos das relações raciais no Brasil podem ser demarcados pela produção intelectual de Ramos nos três âmbitos de atuação junto ao grupo do TEN (Teatro Experimental do Negro)1: (a) Membro ativo do editorial do jornal Quilombo; (b) Coordenador do INN (Instituto Nacional do Negro) - departamento de pesquisa e estudo criado no TEN; (c) Adaptação do sociodrama ou psicodrama para as experiências dos traumas decorrentes dos conflitos raciais. Apesar de distinguirmos e ressaltarmos estes três aspectos do trabalho intelectual de Ramos, cabe ressaltar ainda que ele aplicou sua proposta metodológica de pesquisa em ciências sociais (sociologia em mangas de camisas) aos estudos da população negra do Brasil. O resultado entrou para a história das ciências sociais brasileira com o título o Problema do negro na sociologia brasileira – publicado em seu livro Introdução crítica à sociologia brasileira.
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O trabalho apresentado neste pequeno livro está divido em duas partes. A primeira consiste em apresentar um resumo da biografia de Ramos, a partir de determinada cronologia, ressaltando alguns aspectos que destacarão aquilo que Ramos denominou o drama de serdois. A segunda parte consiste em colocar esta noção (drama de ser-dois) como condição fundamental para uma interpretação coerente dos trabalhos de Ramos publicados entre 1949 – 1951 (ou seja, dos trabalhos publicados em Quilombo). Pretendemos, com isso, abrir a questão acerca do modo como Ramos formulou o conceito de negritude e tornar plausível a hipótese de que o conceito ramosiano de negritude antecipou o debate atual sobre identidade levantado por Kabengele Munanga.
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2. VIDA, GUERRA E DRAMA Nascido em 13 de setembro de 1915, Guerreiro Ramos era filho de Vítor Juvenal Ramos e de Romana Guerreiro Ramos. Há uma hipótese de que seu pai nascera livre ainda no regime escravocrata brasileiro e sua mãe, angolana, havia sido vendida pela própria família aos traficantes de escravizados2. Em função da origem humilde ressaltada pelo próprio filho, Ramos entrou no mercado de trabalho aos 11 anos, exercendo a função de lavador de frascos em uma farmácia de Salvador3. A ambição de estudar surgiria logo em seguida, quando o destino colocaria em suas mãos e livro de Marden (Alegria de Viver). Estimulado por sua mãe, Ramos frequentou o curso secundário na capital do estado, no Ginásio da Bahia, instituição frequentada pelas elites baianas4. A vocação de Ramos para a atividade intelectual, que logo o colocaria na vida acadêmica, é destacada pelo acesso que ele possuía às publicações filosóficas europeia dos anos 305. No entanto, a possibilidade de aquisição destas obras, revistas literárias e filosóficas resultava das suas primeiras atividades docentes. A partir dos 14 anos de idade Ramos tornara-se professor particular de matemática de seus colegas ricos e destinava sua renda principalmente à aquisição de obras existencialistas. Aos 17 anos de idade, ano em que ingressou como jornalismo no O Imperial, Ramos passou a dividir suas atividades de leituras com a experiência desestimulante da militância junto ao integralismo, em companhia de Rômulo Almeida. O pouco valor que ele 13
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atribuía às atividades de militância, frente ao grande valor com que destaca suas atividades de leituras dos clássicos, o levou a esgotar toda a produção literária disponível sobre o tema antes de abandoná-lo6. Com 19 anos de idade, Ramos fez uma conferência sobre Rui Barbosa no Ginásio da Bahia e precisou ser acompanhado por um professor para não ser linchado, “pois os conceitos que emitira sobre o grande homem não agradara os ouvintes” 7. A sua perspectiva de análise acerca de Rui Barbosa não foi restrita apenas à oratória, pois anos depois publicou um ensaio crítico sobre ele “que lhe valeu ódios, represálias, e ataques em quase todos os jornais de Salvador”8. O valor que Ramos atribuía às suas atividades intelectuais tem uma função interessante nos seus argumentos, pois ele tomava esta vocação como base para justificar a sua primeira participação na gestão pública como secretário assistente de educação. A.A. - Qual era a sua função na administração Landulfo Alves? G.R. - Quando Landulfo Alves se tomou interventor na Bahia, um homem chamado Rômulo Almeida foi incumbido de atrair as inteligências moças de Salvador. Varias pessoas foram recrutadas, e entre elas eu. Eu era muito jovem – completava 18 anos - quando fui nomeado assistente na Secretaria de Educação, que era chefiada pela Isaias Alves.9
As atividades de Ramos que despertaram o interesse de Rômulo Almeida consistiam fundamentalmente naquelas atividades decorrentes de sua vida como escritor adolescente, influenciado pela 14
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filosofia francesa de orientação existencial cristã. Nesta etapa de sua vida, o vinculo com o catolicismo não era apenas teórico, pois Ramos fundou o centro de cultura Católica e criou uma revista, além de fazer várias palestras. Se relevarmos o fato, como veremos adiante, de que Ramos se considerava um intelectual autodidata, torna-se muito interessante a declaração acerca da influência intelectual que o padre Béda Keckeisen exerceu sobre sua formação. Assim, diz ele: Minha formação foi católica. Fui educado, de uma certa maneira, por um padre alemão dominicano, dom Beda Keckeisen, que foi o autor do primeiro missal em português. Era em latim, e ele fez em português. Dom Béda Keckeisen foi, durante muitos anos, quase um mentor. Eu nunca tive mentor, mas ele foi um homem por quem eu tinha uma grande simpatia. Frequentei aulas de tomismo no mosteiro de São Bento, estudei profundamente o tomismo, quando tinha uns 19, 20 anos, através do Curso de filosofia do Maritain; li varias vezes aquele compendio. Conhecia quase toda a obra dele, ou o máximo que se podia conhecer. E a literatura francesa: Daniel Rops, o novelista sobre quem Afranio Colltinho escreveu um livro, François Mauriac, historiadores da literatura francesa, como Albert Daudet10.
Ramos sugere, por meio da descrição dos detalhes de seu encontro com Jaques Maritain11, que não se tratava de uma influência passiva. A recepção passiva das teorias europeias seria, alguns anos mais tarde, o critério para a rejeição das propostas metodológicas apresentadas pelos cientistas sociais brasileiros. 15
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Contrário à recepção passiva das teorias europeias, o Guerreiro deixava transparecer que a forte ligação pessoal existente entre filósofos franceses e o grupo de jovens intelectuais ao qual ele pertencia era demarcada por uma atitude reflexiva capaz de contribuir para o aprimoramento da filosofia existencial12. Contrariamente a algumas análises, que consideram esta fase da vida de Ramos como um momento de imaturidade, é fundamental reconhecer que este foi o contexto da elaboração da obra O Drama de ser dois (1937). Se por um lado, como ressalta o próprio Guerreiro, esta obra não merece consideração pelo fato de não possuir relevância acadêmica, científica ou literária, por outro lado, ela deve ser tomada como norte por todos que pretenderem compreender o sentido mais geral da produção acadêmica, científica e literária de Ramos. O Drama de ser dois consistia, como indicaremos no terceiro capítulo deste livro, no lugar a partir de onde o Guerreiro refutava, de modo específico, o pensamento social sobre o negro no Brasil elaborado até sua época e, de modo geral, as ciências sociais como um todo. Além disso, este foi também o lugar a partir de onde Ramos propôs, por um lado, as técnicas de sociodrama ou psicodrama como exemplos da sociologia do ato aplicada ao pensamento social sobre o negro no Brasil e, por outro lado, as suas últimas teorias sobre a ação administrativa aplicada à ética nas organizações. Suas considerações acerca do livro são as seguintes: Aliás, nessa ocasião eu já tinha publicado o meu primeiro livro, um livro de poemas: O drama de
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Evandro O. Brito ser dois. É um livro que não tenho mencionado, um livro embaraçoso, meio desconcertante por causa do tema, que e extremamente piegas, religioso. Mas de certa maneira, se uma pessoa fizer um estudo - não de má fé, mas de boa fé, não precisa nem ser simpático a mim, apenas ser objetivamente, de boa fé -, o livro realmente revela toda a minha história. O drama de ser dois é um livro em que eu confesso o meu desconforto permanente com o mundo secular. Nesse poema eu me descrevia como uma espécie de pessoa entre dois mundos que eu não sabia definir. E ainda hoje acho que esse e um traço fundamental do meu perfil: eu não pertenço a nada. Não pertenço a instituições, não tenho fidelidade a coisas sociais; tudo o que é social, para mim é instrumento. Eu não sou de nada, estou sempre à procura de alguma coisa que não è materializada em instituição, em linha de conduta. Ninguém pode confiar em mim em termos de socialidade, de institucionalidade, porque isso não e para mim, não são funções para mim. O meu negócio é outro. De modo que esse livro é um livro seminal! Não tem importância o mérito intrínseco. Poeticamente, não vale nada. Mas é realmente uma expressão do que eu sempre fui. Em inglês existe uma expressão: in betweenners. Estou sempre in between. Nunca estou incluído em nada. As minhas metas são a única coisa em que estou incluído, não há pessoas que me incluam. 13
Como afirmamos acima, esta pode ser a chave principal para a compreensão do modo como Ramos se vincula aos debates sobre o pensamento social do negro do Brasil. Trataremos das implicações desta consideração no último ponto. No momento, cuidemos de alguns detalhes da sua vida profissional. 17
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O prestígio que a sua capacidade intelectual lhe permitia gozar, apesar da pouca idade, também foi enfatizado nos resultados de sua atuação no início de sua vida profissional, junto à secretaria de educação. Embora Ramos tenha atribuído à sorte os benefícios obtidos (como resultado do projeto de criação da Faculdade de Filosofia da Bahia14), está fortemente sugerido que a sua competência acadêmica era manifesta e, por isso mesmo, pôde assumir a cátedra de sociologia antes mesmo de ter entrado no curso de ciências sociais. Aos 24 anos Ramos recebeu uma bolsa de estudos do governo da Bahia para estudar no Rio de Janeiro. Formou-se em ciências sociais pela Faculdade Nacional de Filosofia do Rio de Janeiro, na então Universidade do Brasil, em 1942, e bacharelou-se um ano depois pela Faculdade de Direito também na cidade do Rio de Janeiro. É interessante ressaltar o modo como Ramos referiu-se ao fato de ter sido aluno de Donald Pearson. Existe nesta referência, tal como mostra a citação abaixo, uma valorização extrema pela teoria sociológica norteamericana e, ao mesmo tempo, um desprezo explícito pelo professor tido como aquele que inaugurou técnicas de survey nos estudos em ciências sociais no Brasil. Uma coisa interessante é que um homem insignificante teve uma importância muito grande na minha formação cultural. Chama-se Donald Pearson (...) deu umas aulas sobre sociologia americana, com que eu não tinha contato. Meu contato era com Le Play, era com a sociologia francesa (...) mas a influência americana foi muito grande15.
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Ramos estendia esta desconsideração acerca do papel dos professores de graduação para ambos os cursos que frequentou e ressaltava que em 1943, após a sua formatura, foi indicado para ocupar duas cadeiras na Universidade do Brasil. No entanto, acusado secretamente de “colaboracionista” (em função de seu vínculo com a militância do integralismo quando jovem) não foi nomeado para o cargo. Em seu lugar, assumiu a cadeira de sociologia Luís Costa Pinto e a de Ciência Política para Vítor Nunes Leal. Apesar disso, um ano depois, o integralista San Thiago Dantas, diretor da Faculdade Nacional de Filosofia, o indicou para lecionar um curso no Departamento Nacional da Criança. É interessante, ainda, considerar o fato de que foi no Departamento Nacional da Criança que Ramos ganhou sua primeira projeção internacional ao publicar a Sociologia da Mortalidade Infantil16. Estes estudos, segundo o próprio Ramos, consistiram nas primeiras pesquisas no Brasil que se valeram das técnicas de survey. É possível que este seja um dos elementos que ressaltam sua rejeição à Pearson, visto que este é considerado o iniciador destas técnicas, mas há outras incompatibilidades que também podemos considerar. Por exemplo, a sociologia norte-americana, em especial a Escola de Chicago, influenciou um campo de conhecimento sociológico guiado pela neutralidade e pela objetividade. Mesmo tendo se apropriado explicitamente das técnicas de pesquisa trazidas por esta escola, Guerreiro Ramos colocou-se contrário a este tipo de sociologia, o que tornou sua crítica evidente ao propor uma “sociologia em mangas de camisa”. 19
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No final do ano de 1943, após viver um ano com a ajuda dos amigos em função da dificuldade para conseguir o primeiro emprego, Ramos foi nomeado técnico de administração do Departamento Administrativo do Serviço Público - DASP. Sua função consistia basicamente em analisar projetos de organização de departamentos, como o Departamento de Agricultura, penitenciária, polícia, e também desempenhou a chefia na seção de recrutamento de pessoal para o governo federal. Apesar do caráter meramente instrumental da função, Guerreiro continuava escrevendo para as Revistas do Serviço Público e Cultura Política. Por um lado, tinha se tornado gestor público encarregado da organização burocrática e, por outro lado, se ocupava das análises dos fundamentos sociológicos da organização pública. Estava assim preparado o terreno para a recepção singular da obra weberiana e foi neste contexto que Weber tornou sua grande influência, principalmente pela leitura da obra Economia e Sociedade. Assim, Ramos declarou que “a influência mais poderosa desde os anos 40 até hoje, em termos da minha profissão de homem da ciência social, é Max Weber”17. Entre 1949 e 1950 Ramos torna-se um dos principais ativistas do TEN. Como coordenador do departamento de estudos e pesquisa do Instituto Nacional do Negro, Ramos promoveu cursos de alfabetização, colaborou com a organização da Conferência Nacional do Negro (1949) e com o Primeiro Congresso do Negro Brasileiro (1950). Foi um dos mentores das intervenções artísticas naquela que seria considerada a fase mais importante do TEN: “instalou o 20
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Museu do Negro, encenou algumas montagens em teatros do Rio de Janeiro e realizou concursos de beleza, denominados de Rainha das Mulatas e de Boneca de Piche”18. Segundo a análise de Domingues, o grupo de ativistas do TEN primou por protagonizar ações polêmicas, as quais tinham repercussão na imprensa. “Sua finalidade era chamar a atenção da opinião pública para o problema do negro. Dentro desse espírito, promoveu o concurso de artes plásticas, em 1955, tendo como tema central Cristo Negro” 19. A partir de 1951, convidado a participar do segundo governo de Getúlio Vargas, Guerreiro passou a trabalhar na Casa Civil como assessor do presidente. Ao lado de Rômulo Almeida, Jesus Soares Pereira e Inácio Rangel, sua função consiste em elaborar projetos, redigir discursos e mensagens presidenciais. Neste contexto ocorreu tanto o aumento do interesse pela participação no legislativo, na medida em que se aproximou do PTB, como o aumento do interesse pela participação no executivo. Pois, foi nessa época, diz ele, “comecei a compreender o governo do Brasil, comecei a ver o que é a presidência da República. O governo de Getúlio foi muito importante para eu compreender o Brasil”20. Em 1952, Ramos participou tanto da fundação da Escola Brasileira de Administração Pública – EBAP (permanecendo vinculado até 1971), como da consolidação do grupo de Itatiaia21. Em 1953, em função da consolidação do grupo de estudos sobre os problemas brasileiros, o grupo remanescente das reuniões em Itatiaia cria o IBESP (Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política) juntamente com Hélio Jaguaribe, Rômulo Almeida, Inácio Rangel, Roland Corbisier. O 21
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resultado destas discussões foram editados com o nome de Cadernos de Nosso Tempo e publicados entre 1953 e 1956. No total, foram 5 volumes que expressavam de modo profundo o fenômeno social da época. Segundo Schwartzman (1979, p. 3), os colaboradores dos Cadernos foram Alberto Guerreiro Ramos, Cândido Mendes de Almeida, Carlos Luís Andrade, Ewaldo Correia Lima, Fábio Breves, Heitor Lima Rocha, Helio Jaguaribe, Hermes Lima, Ignácio Rangel, João Paulo de Almeida Magalhães, José Ribeiro de Lira, Jorge Abelardo Ramos, Moacir Félix de Oliveira e Oscar Lorenzo Fernandes. Se, de fato, o IBESP consistiu no encontro de estudiosos dos problemas nacionais, sua história não se limita a este fato. O IBESP constituiu, também, o núcleo intelectual para a criação do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB22), em 1955. Segundo Ramos, o ISEB destinava-se ao estudo das ciências sociais, da compreensão crítica da realidade brasileira e da elaboração do referencial teórico que permitisse o desenvolvimento nacional. O ISEB pretendia, assim, ser uma instância de processamento do pensamento brasileiro: Nós pretendíamos ser uma coisa equivalente – assim era a ideia original – ao Colégio de França. Uma ideia muito, muito alta. O que é o colégio de França? É um órgão que reconhece as pessoas que não têm carreira na universidade francesa, mas que são os grandes luminares, não importa que tenham título ou não. É a grande instituição de consagração. O Colégio de França foi o nosso modelo no ISEB23.
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Ramos dirigiu o departamento de sociologia do ISEB até dezembro de 1958, afastando-se por divergência políticas ao discordar do apoio do ISEB à candidatura do Marechal Henrique Lott à presidência da república. As polêmicas e suspeitas levantadas por parte de setores conservadores (como também por intelectuais ligados à Faculdade de Sociologia da USP), acerca do papel institucional e da produção intelectual do ISEB, apontavam e questionavam o apoio recebido desde sua fundação por parte dos governos Kubitschek e Goulart. Por si só, esta teia de relações já seria suficiente para comprometer a idoneidade de Ramos perante o governo militar nos anos de chumbo vindouros. No entanto, outras atividades acadêmicas e intelectuais contribuíram ainda mais para os futuros problemas. Ainda que não estivesse vinculado à ideologia comunista, Ramos não apenas estudou, mas também publicou análises sociológicas nas quais as categorias do pensamento de Marx apareceram como tema central. Este procedimento encantou os marxistas e, em 1961, foi convidado pelo Partido Comunista para ir à China e, também, à Moscou, com finalidade de realizar um estágio na União Soviética pela Academia Brasileira de Moscou. No entanto, o resultado desta inserção no mundo socialista não seguiu aquilo que era previsto pela cartilha doutrinária da ideologia comunista. As publicações de Ramos acerca do contexto sócio-político russo e chinês não agradaram o Partido Comunista. Pelo contrário, a série de artigos escritos para O Jornal, em 1962, foi entendida como manifesto de um oportunista e traidor. Como notamos nas seguintes palavras de Ramos, sua posição revelava, por um lado, a falta de fundamento 23
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teórico do próprio marxismo, encontrada nos programas de pesquisa desenvolvidos na China e, por outro lado, a limitação das pesquisas russas acerca da realidade social brasileira. Eu me irritei muito com a China. Passei três meses lá, uma chatice, uma conversa puramente ideológica. Eu ia às bibliotecas e não via nem um Marx; eles só conhecem O Capital. Um primarismo! E a conversa na União Soviética, uma chatice! Os sujeitos não entendem de Brasil. Aliás, fui muito franco e disse: “Vocês não entendem o Brasil” (...) Escrevi uma série de artigos em que eu dizia que não me via como amigo profissional da União Soviética nem da China, mas era um sujeito que admirava certas coisas. Os comunistas ficaram danados comigo: traidor, oportunista etc.24
Os anos entre 1961 e 1964 foram decisivos para consolidar sua posição de aliado à política do governo vigente e, também, sua posição oposicionista à política do governo vindouro. Em 1961, Ramos participou da Comissão de Assuntos Econômicos junto à Organização das Nações Unidas (ONU). Além disso, esse foi também o ano de seu ingresso na política partidária, por meio da filiação ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). No próximo ano, candidatou-se e foi eleito suplente a deputado federal25 pelo Estado da Guanabara na legenda formada pelo PTB e pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). Em função da licença concedida ao deputado Leonel Brizola, Ramos assumiu a cadeira entre agosto de 1963 e Abril de 1964, mês em que seus direitos políticos foram cassados pelo Ato Institucional nº 1.
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Exilou-se nos Estados Unidos em 1966 com a finalidade de prosseguir com as atividades intelectuais e acadêmicas que a pátria lhe vedara. Começou a lecionar na Universidade do Sul da Califórnia, e se tornou full professor do programa de doutorado em administração pública. Também lecionou na Yale University e foi professor visitante da Wesleyan University em 1972 e 1973. Regressou ao Brasil depois da anistia, quando lecionou cursos na Universidade Federal de Santa Catarina, mas não mais fixou residência no país. Em um debate no fórum de justiça e jurisprudência, Alberto Guerreiro Ramos Filho publicou a seguinte informação, respondendo a pergunta acerca da data e do local da morte de seu pai, aos 67 anos, em função de um câncer. O velho Guerreiro nos deixou em 6 de abril 1982, no Hospital Cedars-Sinai, em Los Angeles. Recentemente, baralhando seus arquivos pessoais deixados a mim por minha Mãe, eu li que seu óbito oficial no Consulado em Los Angeles o constata como "branco". A vida e estranha, não? Boa sorte com seus estudos, Alberto26.
As palavras de Ramos Filho, acerca da incoerência no registro de óbito de seu pai como sendo um cidadão branco, apontam novamente a questão fundamental da vida intelectual de Ramos: O drama de ser dois. De fato, trata-se do ponto central de nosso trabalho que será tratado no capítulo a seguir.
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3.
O PENSAMENTO SOCIAL SOBRE O NEGRO NO BRASIL 3.1 O lugar e o problema de Guerreiro Ramos: a negritude e a identidade nacional.
“O Velho Guerreiro, (escreveu recentemente Guerreiro Ramos Filho), me ensinou a sempre lembrar que ele era da Bahia, e tinha um grande orgulho de nossa ancestralidade Africana” 27. Apesar da beleza enunciada neste conselho paterno, a atribuição do propósito de busca da ancestralidade à Ramos é, de imediato, um escândalo acadêmico. Pois, tal busca manifesta uma contradição em relação ao consolidado integracionismo que lhe é atribuído por grande parte dos leitores de sua obra. Marco Maio (1996), por exemplo, sintetiza em um de seus trabalhos a base dos argumentos daqueles que afirmam que a posição integracionista de Ramos se consolidou em 1949, com sua vinculação ao TEN (Teatro Experimental do Negro). Em 1949 Guerreiro tornou-se diretor do Instituto Nacional do Negro, órgão do TEN que estaria voltado para a pesquisa sociológica. Nesta fase aprofunda sua análise do enfoque político-ideológico do TEN, afinado com a visão integracionista (grifo nosso) de Abdias do Nascimento. Este seria o melhor caminho para os negros ascenderem socialmente até atingirem o comportamento da classe média e superior. 28
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Dilemas Epistemológicos de Guerreiro Ramos
Estamos diante de uma bifurcação entre a busca da ancestralidade negra e a integração à cultura nacional que, análoga a uma ponta de iceberg, deve ser analisada em função da complexidade teórica existente como pano de fundo. Em outras palavras, para compreendermos o ponto (o lugar e o problema) central da teoria de Ramos não podemos considerar que Ramos tenha reduzido a busca pela ancestralidade à busca pela integração, ou o contrário. Mas, devemos perguntar pela maneira como a teoria de Ramos caracterizava de modo original cada uma destas buscas, pois Ramos definia a busca da ancestralidade como negritude e a integração como identidade nacional vazia (para emprestar o conceito de Kabengele Munanga). Retomemos a nossa proposta de exposição de modo negativo. Por um lado, não consideraremos que Ramos recusava, em um sentido específico, a explicitação dos valores da africanidade, pois ele se vale da busca pela africanidade para explicitar a negritude latente na cultura nacional. Por outro lado, consideraremos que o trabalho de Ramos vinculado ao TEN (e especialmente à Abdias do Nascimento) resultou, em certo sentido, numa proposta de integração da negritude do negro à cultura nacional, pois ele se valia da busca pela negritude para explicitar a integração do negro como sendo a própria identidade nacional (que só poderia ser tornar plena na medida em que se tornasse “vazia”). Portanto, consideramos, ao menos em termos de pergunta final, que ao assumir a perspectiva da integração, o trabalho de Ramos consistia, fundamentalmente, em um esforço epistemológico orientado pela caracterização dos elementos que envolvem o problema do multiculturalismo 28
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(analisado à luz do debate antropológico atual acerca da identidade). Assim, apenas como consequência ou resultado deste trabalho mais fundamental, nós poderemos considerar a proposta de integração do negro à cultura nacional como uma reivindicação de inclusão social, pronta e acabada, em termos econômicos e jurídicos. Analisaremos este problema em duas etapas. No primeiro momento, discutiremos o debate acerca da busca de Ramos pela integração do negro à cultura nacional e defenderemos que uma análise simplificada da integração limita a possibilidade de explicitar o ponto central da teoria de Ramos, pois tal análise descreve a integração do negro como processo de inclusão social do negro na classe média ou superior - tal como fez MAIO (1996) por exemplo. No segundo momento, abordaremos o ponto que estamos tratando com central (o lugar e o problema de Ramos) e sustentaremos, a luz da originalidade presente na formulação do conceito de negritude, que a integração do negro na cultura nacional consiste, da perspectiva epistemológica, na imanência da negritude (enquanto valores latentes nas relações sociais) na identidade nacional (enquanto conceito de Brasileiro). 3.2
Um atalho perigoso: a busca pela ancestralidade ou a busca pela integração à cultura nacional.
Ao tomarmos como referência a luta anunciada pelo TEN nas edições de O Quilombo, encontramos sete artigos assinados por Ramos29 que apresentam as teses 29
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utilizadas por aqueles que, tal como Maio (1996, p. 183), interpretam a integração do negro à cultura nacional com uma reivindicação de inclusão social em termos econômicos e jurídicos. Ora, consideramos que só é possível reduzir a proposta de integração à inclusão social, econômica e jurídica se analisarmos o trabalho de Ramos isoladamente e não considerarmos, por um lado, o propósito geral do TEN (principalmente aquele afirmado por Abdias do Nascimento) e, por outro lado, os pressupostos que constituem os fundamentos epistemológicos da análise teórica de Ramos. No entanto, as análises que procedem desta maneira e propõem tal redução, acabam por ignorar o sentido mais abrangente da proposta de Ramos, e seu grupo, acerca do pensamento social sobre o negro no Brasil. A análise acerca de alguns pontos de O Quilombo será suficiente para tornar plausível nossa interpretação. Na primeira página da primeira edição de O Quilombo (1948), Abdias do Nascimento apresentou a posição dos participantes deste projeto em um artigo denominado Nós, contendo esclarecimentos acerca de suas intenções nos seguintes termos: Nós saímos – vigorosa e altivamente – ao encontro de todos aqueles que acreditam – com ingenuidade ou malícia –, que pretendemos criar um problema no país. A discriminação de cor e de raça no Brasil é uma questão de fato. Porém a luta de QUILOMBO não é especificamente contra os que negam os nossos direitos, senão em especial para fazer lembrar ou conhecer ao próprio negro os seus direitos à vida e à cultura.
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Evandro O. Brito A cultura como intuição e acentos africanos, a arte, poesia, pensamento, ficção, música, como expressão étnica do grupo brasileiro mais pigmentado, paulatinamente vai sendo relegada ao abandono, ridicularizada pelos líderes do “branqueamento”, esquecendose esses “aristocratas” de que o pluralismo étnico, cultural, religioso, e político dá vitalidade aos organismos nacionais, sendo o próprio sangue da democracia (Gilberto Freire). Podemos dizer que o desconhecimento do negro como homem criador e receptivo vem desde 13 de maio de 1888 (Artur Ramos). Nosso caso se relaciona com todo o problema que determina o predomínio político de uma raça ou grupo étnico de maior força econômica sobre outro grupo étnico ou raça sem meios. (...) Tiram-lhe violentamente seus direitos no país que ajudou a formar e construir, como nos Estados Unidos; ou ardilosamente despojam-lhe dos meios psicológicos e mentais que o capacitariam a adquirir a consciência de sua verdadeira condição ante uma igualdade legal, como no Brasil. É transparente esta verdade histórica: o negro ganha sua liberdade não por filantropia ou bondade dos brancos, mas por sua própria luta pela insubsistência do sistema escravocrata (Caio Prado Jr.). Aqui ou em qualquer país onde tenha existido a escravidão. O negro rejeita a piedade e o filantropismo aviltantes e luta pelo seu direito ao Direito. O negro brasileiro já conquistou seu direito teórico e codificado, mas necessita o exercício ativo desse direito. Como brasileiros nós protestamos contra a existência, não só dos Ku-Klux-Klan alienígenas, como dos autóctones kucluxclan de mentalidades e
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Dilemas Epistemológicos de Guerreiro Ramos atitudes. O nosso trabalho, o esforço de QUILOMBO é para que o negro rompa o dique das resistências atuais com seu valor humano e cultural, dentro de um clima de legalidade democrática que assegura a todos os brasileiros igualdade de oportunidades e de obrigações. Os atentados a essa paridade jurídica, e de fato praticados frequentemente em nosso meio, são antidemocráticos, separatistas e lesivos à integração nacional da qual o negro é um dos principais protagonistas. Nós recusamos o “gueto”, a “linha de cor” que dia a dia vem se acentuando em nossas relações sociais tentando exilar-nos em nossa terra e em nosso espírito (Grifos nossos)30.
Um modo de compreender o pronunciamento de Abdias do Nascimento como integracionista, reduzindo o propósito do TEN manifesto em O Quilombo à inclusão social, econômica e jurídica, pode ser encontrado na análise de Petrônio Domingues. Em seu trabalho intitulado Quilombo (1948-1950): uma polifonia de vozes, Domingues analisa este pronunciamento de Abdias do Nascimento, ressaltando o fato de que era manifesto o otimismo quanto à fase democrática que o País atravessava, pois Nascimento e seu grupo acreditavam que a consolidação dos dispositivos democráticos beneficiaria a inserção da população negra no projeto de desenvolvimento nacional (Domingues, 2008, p. 261). No intuito de radicalizar a questão, podemos retomar nossa hipótese de investigação e indagar acerca do modo como Domingues pretende justificar o fato que a proposta de inserção da população negra no projeto de
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desenvolvimento nacional consistia (apenas) no integracionismo social, econômico e jurídico. Para Domingues, as teses estabelecidas pelas lideranças do TEN, e apresentadas por Nascimento no primeiro editorial do Quilombo, podem ser sistematizadas nos seguintes pontos: (a) as lideranças proclamavam o protagonismo negro e colocavam o racismo como um problema nacional; (b) as lideranças consideravam que sem o negro não haveria possibilidade de construir a nação, porém a luta contra o “preconceito de cor” deveria acontecer “dentro de um clima de legalidade democrática”; (c) as lideranças contrapunhamse ao discurso do senso comum, segundo o qual não havia problema racial no País (negros e brancos viveriam, no Brasil, em estado de fraternidade e congraçamento) e, no entanto, (c‟) contrapunha-se também a qualquer iniciativa de mobilização dos negros em grupos específicos constituiria um atentado à nossa tradição (configuraria um gesto de racismo perpetrado pelo negro, tão ou mais nefasto do que aquele praticado pelo branco); (d) as lideranças apresentavam O Quilombo como um instrumento em defesa do negro, a fim de lhe garantir o “direito ao Direito”; (e) as lideranças ressaltavam a importância da autodeterminação do negro (devendo ser senhor de seu próprio destino, este não admitiria mais qualquer forma de tutela ou comiseração do branco); (f) as lideranças assinalavam a recusa à política do “gueto” ou da “linha de cor” (Domingues, 2008, pp. 261-262). A partir das sete teses sintetizadas acima, Domingues toma como premissa principal o fato de que o Quilombo declarava explicitamente o repúdio à 33
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articulação isolada do movimento negro. Além disso, sua análise parte de uma suposta exigência de bifurcação (falácia da bifurcação) entre as perspectivas separatista e integralista e, assim, supõe poder concluir, acerca da perspectiva das lideranças do TEN, que “em vez de separatista, a perspectiva era integracionista. O afrobrasileiro deveria ser, efetivamente, incorporado ao seio da nação e não se sentir um exilado em sua própria terra” (p. 262), pois a consolidação dos dispositivos democráticos beneficiaria a inserção da população negra no projeto de desenvolvimento nacional. O trabalho de Domingues evidencia a tendência recorrente nos comentários da obra de Ramos que, valendo-se da dicotomia separatista - integralista, reduzem sua proposta a esta última e excluem, por isso mesmo, a possibilidade de explicitar o modo como Ramos dilui esta contradição. No caso específico, a analise de Domingues acerca da temática do TEN resultou no aumento das ambiguidades dos textos e divergências entre os autores, ao invés de encontrar a coerência interna nos artigos elaborados pelas lideranças. Em outras palavras, a indefinição entre separatista e integralista governa cada um dos eixos temáticos adotados por Domingues, como categorias de exposição do conteúdo de O Quilombo (política de colaboracionismo racial, democracia racial, mestiçagem, ideologia do branqueamento, “cultura negra”, movimento negro, ícones da negritude, discriminação racial, repercussão no meio negro, questão da Mulher, família, código religioso, África x EUA) 31. O exposto parece ser suficiente para indicar que, se não aceitarmos a tese de que Ramos buscava 34
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prioritariamente o integracionismo socio-econômico do negro, poderemos evitar muitas das ambiguidades que comprometeram a análise de Domingues, Maio e outros. Além disso, o fato de recusarmos tal tese recoloca, de imediato, a pergunta acerca do modo como Ramos concebe a busca pela africanidade, bem como seu conceito de “cultura negra”. Para que possamos preparar o ambiente para a análise deste ponto (que evidenciará o lugar e o problema de Ramos), exporemos ainda a dificuldade encontrada por Domingues para analisa o conceito de cultura negra, pois a suposição de busca pelo integracionismo socio-econômico do negro o impede de compreender a relação entre Ramos e Nascimento. A análise de Domingues aponta o fato de que em Quilombo “ventilou-se um discurso essencialista, como se determinadas práticas culturais fossem, por natureza, inerentes aos negros, como se fizessem parte de sua alma ou de seu código genético” (2008, p. 273). O essencialismo descrito por ele refere-se diretamente à definição de cultura apresentado por Abdias do Nascimento no referido editorial. Ora, o essencialimos é manifesto, pois a cultura havia sido descrita como a intuição e os acentos africanos como a arte, a poesia, o pensamento, a ficção, a música, que expressariam a etnia do grupo brasileiro mais pigmentado. No entanto, Domingues reconhece os limites de sua análise ao se deparar com a contradição entre o fato de que o editorial da primeira edição definia o Quilombo como “um órgão em defesa do valor cultural do negro e da cultura [...] com intuição e acentos africanos, em outras edições não foi raro encontrar tanto o valor cultural do negro quanto a cultura
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com intuição e acentos africanos serem depreciados” (2008, p. 273). Domingues parece navegar sobre as águas que escondem o iceberg submerso, olhando para a ponta emersa, ao citar a crítica de Stuart Hall ao suposto essencialismo aceito pelas lideranças do Quilombo. O essencialismo é deficiente porque naturaliza e des-historiciza a diferença, confunde o que é histórico e cultural com o que é natural, biológico e genético. No momento em que o significante „negro‟ é arrancado de seu encaixe histórico, cultural e político, e é alojado em uma categoria racial biologicamente constituída, valorizamos, pela inversão, a própria base do racismo que estamos tentando desconstruir (2003:345, apud Domingues, 2008, p. 273).
É fundamental relevarmos o fato de que Domingues pretende justificar, ao recorrer a Stuart Hall, a impossibilidade de que o Quilombo pudesse estar buscando refúgio no essencialismo, ao defender e valorizar a cultura negra32. Mas, o problema é que, de fato, alguns assuntos ligados ao mundo da chamada cultura negra foram pauta do Quilombo. Por exemplo, o samba foi caracterizado como fruto legítimo da sensibilidade do negro em uma matéria que noticiou o nascimento da associação musical Arte e Música. Além desta valoração explícita, Edison Carneiro também escreveu um artigo definindo o batuque – igualmente conhecido por pernada – como manifestação da “herança africana”. O máximo que Domingues pode fazer, diante das evidências textuais, foi afirmar que “Quilombo acolheu uma visão ora
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essencialista, ora ambígua em relação às tradições e aos valores associados à cultura negra” (2008, p. 274). Ainda segundo a análise de Domingues, Ramos é explicitamente contrário ao essencialismo que surge como uma das correntes no interior do Quilombo. Para o diagnóstico de Guerreiro Ramos, diz ele, as culturas negras seriam cada vez mais obra do passado. Exposto deste modo, Domingues parece oferecer mais um argumento para sustentar a interpretação de que Ramos e Abdias buscavam a integração do negro à sociedade nacional virando as costas para a busca da tradição. Deste modo, ele toma como evidente por si mesma a afirmação em que Ramos declara que “as chamadas culturas negras estão passando para a categoria de curiosidades históricas, tendendo, mesmo para desespero dos antropólogos e sociólogos, a ser instrumentalizadas por negros e mulatos ladinos numa espécie de indústria turística do pitoresco”33. A conclusão da análise de Domingues, acerca da irrelevância da cultura negra para as lideranças do Quilombo, como Ramos, está manifesta no fato de que a opção pelo estudo, em detrimento às experiências culturais, é vista como uma sentença. O jornal chegou a sentenciar (grifo nosso) que, para se “elevar em dignidade pessoal e coletiva”, o negro só conseguiria “com estudo e não através de carnavais, escolas de samba, terreiros de macumbas, que mesmo sendo, como de fato são legítimas manifestações da alma negra, do instinto e da sensibilidade do negro, não o ajudam a galgar posições mais elevadas nos quadros de nossa sociedade” (Domingues, 2008, p. 274).
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Finalmente, acerca da análise de Domingues, podemos considerar que a conclusão é fundamentalmente dogmática e contra textual. A análise apresentada até o momento se ocupou de apresentar evidencias textuais que indicasse, de modo negativo, que o ponto central (lugar e o problema de Ramos) não poderia ser encontrado a partir da exclusão de um dos elementos da dicotomia entre a busca da africanidade e a busca da integração do negro na cultura nacional. Mostramos, por meio da análise do trabalho de Domingues, que a tese da busca pela integração sócioeconômica do negro (também defendida por Maio e outros) resulta muito mais em ambiguidades que em esclarecimento do pensamento de Ramos, no contexto do TEN. O suposto de nossa análise está no fato de considerar, fundamentalmente, que tanto o lugar a partir de onde Ramos propõe a integração do negro, como os conceitos de negritude e cultura nacional, exigem uma análise sistêmica, sob pena de incorporar à proposta de Ramos aquilo que ele está recusando admitir: as noções naturalizadas ou essencializadas.
3.3 A indicação de um caminho entre a busca pela ancestralidade e a busca pela integração à cultura nacional. Uma voz dissonante ecoou recentemente por meio do trabalho de Muriatan Barbosa (2006), que aborda o ponto de partida para sua análise epistemológica a compreensão da práxis negra humanista de Guerreiro Ramos. A hipótese de Barbosa considera que a visão 38
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humanista do negro em Ramos pode ser compreendida como uma dialética da negritude, alicerçada sobre três prerrogativas complementares: a) a assunção da negritude pelo homem de pele escura (termo de Guerreiro), o niger sum (tese); b) a suspensão da brancura (antítese); c) uma compreensão humanística do valor objetivo da negrura e da luta negra (síntese). Assim, Barbosa concebe a visão político-filosófica de Ramos, intitulada de personalismo negro, alicerçada na percepção de que, para o homem de pele escura, a luta humanista passaria, inevitavelmente, pela assunção dialética de sua prerrogativa circunstancial como negro, tido como o único caminho para que o homem de cor (termo também do autor) pudesse se elevar ao plano da pessoa. Cuidaremos apenas de apontar, por não ser este o lugar ideal, (a) um limite, (b) um problema e (c) uma virtude do trabalho de Barbosa. (a) O limite de sua análise epistemológica está na lógica dialética utilizada para explicitar a constituição e reconstituição simbólica, bem como a passagem da auto compreensão de homem de cor ou homem branco à homem-humanidade. A lógica subjacente está limitada a um único movimento e direção (que parte da contradição rumo à unificação) e, por isso mesmo, deixa escapar todos os outros elementos constituintes das relações étnico-raciais, bem como a “abertura ontológica” resultante da finitude humana. (b) O problema está no fato de que os conteúdos constituintes das premissas lógicas não apresentam coerência e correspondência (semântica, pelo menos). Em outras palavras, o niger sum não é aquilo que constitui a tese, mas sim o constituinte da antítese. Pois, o 39
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constituinte da tese deve ser, necessariamente, a brancura a ser superada, tomada como um elemento dotado de valor não essencial (essencializado). Esta superação é o modus operandi da síntese, constituinte da noção objetiva da humanidade, que agora é (também) negra na medida em que inclui no valor humano o valor da negritude34. (c) A virtude do trabalho de Barbosa está em superar a falácia da bifurcação que envolveu o discurso da maioria dos estudiosos de Ramos, pois tais estudos trabalham sobre o pressuposto (geralmente inconsciente) de que existia para Ramos apenas duas alternativas de orientação para a temática do negro no Brasil. Por um lado, estaria a busca pela identificação étnico-racial comprometida com uma noção naturalizada do ser-negro (vinculada ao conceito - valores étnicos - de africanidade) e, por outro lado, estaria a busca pela integração do não branco à cultura nacional comprometida com uma noção essencializada do brasileiro concebido como ser humano universal (vinculada ao conceito –valores ocidentaiseuropeus). Sempre que tais noções naturalizadas e essencializadas são tomadas como pressupostos e abordadas a partir da perspectiva existentes para a ação política do negro, as duas alternativas acima descritas colocam o seguinte dilema. A primeira alternativa consiste na proposta de constituição dos valores étnicos raciais (naturalizados) e, ao mesmo tempo, na constituição de um antagonismo para com os valores europeus (também naturalizado) existentes na cultura brasileira. A segunda alternativa consiste na proposta de abandono ou esquecimento dos valores étnico raciais (e no reconhecimento da inexistência de tais valores como substância de um grupo 40
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comunitário) em função da incorporação dos valores ocidentais (reconhecidos como valores universais – valores estéticos, éticos e epistêmicos- da cultura ocidental). A partir desta disposição do problema (a falácia da bifurcação e o pressuposto da naturalização essencialização), podemos reconhecer que Barbosa se livra da areia movediça que tem engolido algumas das análises bem intencionadas elaboras pelos comentadores da obra de Ramos. Em outras palavras, a análise de Barbosa tem sua virtude no exato momento em que destoa das demais e não concebe a proposta ramosiana de integração do negro à cultura nacional como sendo uma opção pela segunda alternativa analisada acima. Assim, mesmo que reconheçamos limites e problemas nos fundamentos metodológicos da análise de Barbosa, caber reconhecer que ele analisou radicalmente o problema, na medida em que partiu da “compreensão dialética da negritude ramosiana, intitulada personalismo negro, e procurou mostrar como tal visão humanista do negro buscou responder a algumas questões candentes da práxis negra de ontem e de hoje”35. O que nos permite, ainda, reconhecer a radicalidade desta análise é também o fato de Barbosa ter sistematizado o problema enfrentado por Ramos, para descrever a noção de negritude, a partir de três perguntas que evidenciam o lugar a partir de onde este último expõe seu pensamento. Estas questões são as seguintes: “(a) como ponderar as afirmações de identidade nacional contra as variantes contrastantes de subjetividade e identificação étnicoracial?; (b) como fundamentar a ação política negra sem uma percepção essencialista da mesma?; (c) como 41
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conciliar tal visão política com a perspectiva multicultural?”36 Estas questões levantadas por Barbosa acerca do pensamento de Ramos são, é verdade, ecos de um debate global acerca do problema da identidade. Uma exposição dos critérios epistemológicos que sustentam este debate acerca do conceito de identidade vem sendo apresentado pelo Prof. Kabengele Munanga em trabalhos recentes e fornece a chave interpretativa que permite uma superação da dicotomia entre a identidade genérica do homem e a identidade particular. De modo mais específico e tomando os conceitos utilizados por Ramos, podemos considerar que se trata da dicotomia entre a identidade nacional e a negritude. O exposto até este ponto é suficiente para estabelecer os dois problemas que pretendemos analisar na teoria de Ramos nesta última parte deste trabalho: (a) o modo como Ramos apresenta a oposição entre identidade particular e identidade genérica; (b) o modo como a solução de Ramos, descrita no conceito de negritude, antecipa a colocação do problema universalparticular, descrita por Munanga como um paradigma vigente da antropologia (este último ponto será colocado apenas como uma questão a ser analisada em um trabalho futuro).
3.4 O lugar e o problema de Guerreiro Ramos: o drama de ser dois e a negritude. Trataremos, em primeiro lugar, de problematizar o conceito de negritude definido por Ramos no jornal O 42
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Quilombo, (ainda no contexto de suas atividades no TEN), à luz do modo como ele reflete sobre seu drama de ser dois na entrevista concedida nos momentos finais de sua vida. Em segundo lugar, analisaremos a proposta ramosiana de superação da dicotomia (entre a identidade nacional e a negritude) e deixaremos a pergunta acerca da possibilidade de descrição de tal superação partir dos critérios de análise propostos por Munanga nos últimos anos, ou seja, à luz do que ele considera ser o paradigma da antropologia. Tal como fizemos referência na primeira parte deste trabalho, Ramos declarou no final de sua vida que sua história consistia no drama de ser dois e já havia sido escrita em forma de poesia em uma das suas primeiras obras que levara este título37. Se, como é logicamente evidente, Ramos não podia estar fazendo referências ao registro de sua biografia, então resta indagar acerca de uma hipótese plausível que explicite o sentido atribuído por ele aos seguintes enunciados: a) O livro realmente revela toda a minha história; b) Um livro em que eu confesso o meu desconforto permanente com o mundo secular; c) Eu me descrevia como uma espécie de pessoa entre dois mundos que eu não sabia definir; d) Ainda hoje acho que esse é um traço fundamental do meu perfil: eu não pertenço a nada (não pertenço a instituições, não tenho fidelidade a coisas sociais); e) Tudo o que é social, para mim, é instrumento; f) É realmente uma expressão do que eu sempre fui; g) Em inglês existe uma expressão: in betweenners, (estou sempre in between), nunca estou incluído em nada.
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A nossa hipótese interpretativa consiste em sustentar que ser-dois indica, por um lado, aquilo que Ramos pretende definir com o conceito de negritude e, por outro lado, o modo dramático de experienciar o sentido mais radical da existência humana, justamente porque este sentido não se deixa conceituar como ser humano universal. Antes de avançarmos na explicitação desta definição, é preciso avançar um passo para evitar equívocos. Em outras palavras, importa definir negativamente a noção ramosiana de ser-dois dizendo que não se trata de se conceber, ao mesmo tempo, como homem branco e homem negro ou homem negro e cidadão brasileiro, pois isto consistiria numa auto compreensão decorrente de uma dupla concepção naturalizada - essencialização. Em outras palavras, o serdois consiste naquela experiência estética que (ainda) não pode ser conceituada. Vejamos como esta questão pode ser recolocada, a partir de uma leitura atenta das respostas de Ramos, em sua última entrevista, sobre a perseguição e o racismo que ele sofreu no Brasil. L.L. - Aproveitando a sua deixa, sua ficha no Conselho de Segurança Nacional dizia: "Alberto Guerreiro Ramos, mulato, metido a sociólogo." O senhor acha que seu insucesso social tem alguma coisa a ver com o fato de ser mulato? G.R. - Deve ter, estou convencido de que tem. O Brasil é o país mais racista do mundo, do meu ponto de vista. Há um negócio contra o preto. Isso é um país cretino, um país cretino e de cretinos. É uma coisa paradoxal, pois eu não
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Evandro O. Brito tenho nenhum problema nos Estados Unidos. Sou negro e nos Estados Unidos nunca senti a minha cor. No primeiro dia de aula eu digo, às vezes: "Como vocês estão vendo, eu sou um preto." Os sujeitos ficam chocados. É mesmo, ninguém percebe. L.L. - O senhor acha que embranqueceu, pela posição que tem? G.R. - Sou incolor, eu não tenho cor. Só se eu disser, e o cara fica assim: "Porra, e preto mesmo!" Mas no Brasil sou preto. No Congresso, quando eu fazia discursos, fulano de tal ficava danado comigo e dizia: "Eta mulato besta!" Vem logo o negócio da cor. Porque as pessoas, no fundo, acham que é mulato descarado, negro safado. É o negocio do Conselho de Segurança: mulato. É o retrato do Brasil. Na minha vida, o negocio de cor sempre ... Mas eu não vou me permitir ficar ofendido com isso, nem vou ser militante. Eu me meti no negócio do teatro e me prejudiquei, inclusive politicamente, porque eu era um sujeito bem colocado, e as pessoas passaram a dizer que eu me misturei com negro... Inclusive, uma pessoa me chamou e disse: "Você está misturado; você não é preto, você é moreno, porra!" L.L. - 0 senhor acha que essa teoria do branqueamento existe? Na medida que se ascende socialmente, muda-se de cor? G.R. - Claro que existe! O mulato aceita ser protegido. Muita gente ficou chateada comigo porque queria que eu fosse da cozinha, da copa. Mas eu entrava no grupo é era par, daí o choque: "Como é que você é par? Eu sou bemnascido." Eu também sou bem-nascido. Sou filho de pais normais, não sou espúrio, não sou bastardo. Mas na hora em que você é apontado como o teórico do partido, o sujeito reclama:
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Dilemas Epistemológicos de Guerreiro Ramos "Mas como?! Com essa cor?" Ele não diz isso. Mas é o que esta pensando: "Com essa cor você quer ser o nacional?" Eu queria ser o nacional, nada menos do que o máximo. Estou disputando nessa linha. Isso vocês não podem perceber, porque não estão dentro da minha pele. Alias, é uma coisa curiosa: o mulato percebe coisas que o branco e o preto não percebem, porque o mulato está entre os dois. A minha psicologia de mulato me da uma percepção... Mulato já é o limite, eu já sou entre os dois... Preto não confia em mim, branco não confia em mim. E mulato, você sabe, desconfia de mulato, porque mulato é malandro. Veja a minha situação como é.
Qual a relevância desta declaração para a caracterização que nos interessa, ou seja, para a determinação da noção de negritude apresentada por Ramos? De modo direto, podemos dizer que é a indicação do lugar a partir de onde Ramos a define. Em outras palavras, é a indicação da experiência subjetiva que dá sentido às demais noções objetivas que governam as relações sociais. No caso específico de Ramos, podemos dizer que a condição existencial indicada pelo modo de ser-dois governa as relações sociais e o papeis sociais que ele assume ou recusa assumir. Assim, só é possível existir vivenciando o drama (que não se pode evitar) de estar entre os dois. O drama de ser-dois torna possível, sem qualquer contradição, que Ramos diga: “sou negro no EUA, mas nunca senti a minha cor”; “sou incolor, eu não tenho cor”; “sou preto no Brasil, mulato descarado negro safado”; “fui visto como misturado com negro; foi visto como moreno”. Ser mulato é, no caso 46
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específico de Ramos, a indicação metafórica da condição existencial, própria de todo ser humano, na medida em que se recusa toda concepção naturalizada ou essencializada de si mesmo (seja como branco, seja como negro, ou mesmo como mulato etc.). Analisada a partir deste lugar, a definição de negritude apresentada por Ramos em Quilombo não se opõe à busca da integração do negro à cultura nacional, pois, como diz Ramos, “a negritude não é um fermento de ódio. Não é um cisma”. Ela é, continua ele, “uma subjetividade. Uma vivência” (Ramos, 1950, n. 10, p. 11). Concebida como vivencia do negro brasileiro, enquanto esta condição existencial de ser-dois, a negritude é também “um elemento passional que se acha inserido nas categorias clássicas da sociedade brasileira e que as enriquece de substância humana” (Ramos, 1950, n. 10, p. 11). A melhor maneira de sustentar nossa proposta de interpretação da noção ramosiana de negritude é apresentar o modo como o próprio Ramos analisa a produção artística de Abdias do Nascimento (especificamente as pinturas) em uma nota intitulada Nascimento artistic faith. Há na arte de Nascimento um sentido restaurador que dá consequência ao significado contemporâneo da cultura negra no Brasil e em toda parte. Mais frequentemente não se dá atenção à cultura negra, o que decepciona, uma vez que sua extensão equivale à cultura prevalecente no Ocidente. É uma negligência. Por exemplo, os símbolos religiosos africanos são encarados como apenas significantes em uma perspectiva evolucionista, como se fossem
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Dilemas Epistemológicos de Guerreiro Ramos um ponto datado no tempo, a se constituir puramente um sujeito de matéria ou estética para pesquisas históricas e sociológicas. A visão artística de Nascimento confronta-se de modo decisivo com este pressuposto e afirma que os símbolos religiosos podem diferir no tempo e no espaço, mas que a experiência humana que eles expressam é basicamente idêntica. Assim, a verdade dos símbolos religiosos africanos não é menos válida que a verdade dos símbolos religiosos ocidentais [...]. Abdias acredita que nenhuma pessoa e nenhuma raça específica devem ser destituídas de suas características para merecer as prerrogativas do universal. Como negro, e porque o negro tem sido o ser mais destituído dos últimos séculos, Abdias fez de sua missão tentar descobrir e explorar maneiras de trazer ao fluxo principal da História da humanidade aquilo que tem sido excluído. Assim, ele aceita sistematicamente e profundamente a sua condição circunstancial como uma perspectiva concreta sob a qual se pode alcançar o eterno. O divino, a beleza, podem ser encontrados na negritude, onde convencionalmente se enxerga a degradação. Mas o fato de a arte de Abdias ser verdadeiramente uma arte negra deriva apenas do compromisso autêntico com um acidente biográfico. Seus símbolos visam ao que está além da negritude, da brancura ou de qualquer contingência, e dizem que todos os homens podem ser reunidos na base de uma herança divina comum (Ramos, apud Barbosa, 2006).
Esta análise de Ramos, que se ocupa de descrever a experiência artística de Nascimento explicitada em suas pinturas, encontra no drama de ser-dois de Nascimento naquilo que a cultura negra, enquanto a negritude, reúne 48
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para além da contingência da negrura e da brancura. Do mesmo modo, a própria cultura negra, concebida a partir deste sentido mais autêntico reúne as emoções e experiências (ainda) não conceituadas e essencializadas. Tais experiências são, por isso mesmo, os verdadeiros portadores de sentido e valores, na medida em podem irrompem no seio do conceito de cidadania vigente na cultura nacional e inundá-lo de humanidade. Tomada como imanência da negritude, a cultura negra é tudo o que há de sentido imanente prestes a ser conceituado pela razão. Por isso mesmo, segundo Ramos, a arte negra de Abdias é um exemplo da realização da síntese entre o instinto e a razão. Não se trata mais daquela síntese lógica dialética (tese–antítese), mas do drama vivido na experiência estética do artista. Assim, diz Ramos, Os quadros de Abdias abrem as portas de um mundo no qual o instinto e a razão estão reconciliados. Conduzem-nos para além do pesadelo da vida cotidiana e nos incitam a recapturar os talentos tribais. [...] Esse tribalismo, porém, não representa o retorno a uma congelada etapa primordial episódica. Embora Abdias se apresente como artista negro, ele não alimenta a vã esperança de voltar ao passado, a uma falaciosa África original. Evidentemente, ele está comprometido com sua herança negra, porém recorre a ela para enriquecer sua experiência da história contemporânea. Sua visão é tribal, não por ser exclusivista e segregacionista, mas por ser inclusiva e compatível com as propriedades do homem global de Marshall McLuhan – um verdadeiro cidadão deste nosso mundo. A arte
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Dilemas Epistemológicos de Guerreiro Ramos de Abdias se impõe como uma característica autêntica da revolução negra de hoje. Como negro, ele se identifica com todos os esforços de libertação destacados por aqueles prejudicados pela escuridão da sua pele (Ramos, 1975, apud Barbosa, 2006).
Ora, se utilizarmos os esclarecimentos de Ramos acerca do drama constituinte da arte negra de Abdias, elimina-se imediatamente toda contradição que os cronistas insistem em apontar nos artigos de Quilombo. Além disso, torna-se compreensível porque a negritude consiste na condição de possibilidade da integração do negro na cultura nacional, pois “a negritude, como seu sortilégio, sempre esteve presente nesta cultura, exuberante de entusiasmo, ingenuidade, paixão, sensualidade, mistério, embora só hoje por efeito de uma pressão universal esteja emergindo para a lúcida consciência de sua fisionomia. É um título de glória e de orgulho para o Brasil o de ter-se constituído no berço da negritude a doce e estranha noiva de todos nós brancos e trigueiros” (Ramos, 1950, n. 10, p. 11). Por fim, é interessante ressaltar que a proclamação do mito da negritude, como linguagem do concreto e meio para a integração do negro à cultura nacional, encontram uma analogia direta com outro modo de expressão completamente metafísico. Assim, diz Ramos, vinculado aos fundamentos mais arraigados da religião católica: “humana, demasiadamente humana é a cultura brasileira, por isso que, sem desintegrar-se absorve as idiossincrasias espirituais, mais variadas. E até compõem com elas a sua vocação ecumênica a sua índole compreensiva e tolerante. A cultura brasileira é, assim, 50
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essencialmente católica, no sentido de nada do que é humano lhe é estranho” (Ramos, 1950, n. 10, p. 11).
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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS. A conclusão que chegamos neste trabalho, considerando a plausibilidade de nossa hipótese interpretativa, pode ser colocada na formulação de uma pergunta. Ramos já não estaria antecipando o conceito de identidade projeto apresentado por Munanga na seguinte formulação? A identidade-projeto - quando os atores sociais, com base no material cultural a sua disposição, constroem uma nova identidade que redefine sua posição na sociedade e, consequentemente se propõem em transformar o conjunto da estrutura social. (...) A dinâmica das identidades no decorrer desta cadeia mostra suficientemente como, do ponto de vista da teoria sócio antropológica, nenhuma dela pode ser uma essência, ou ter um valor progressivo ou regressivo em si fora do contexto histórico.38
Esta proposta de relação entre Ramos e Munanga torna-se interessante, ainda, pelo fato de que este último declarou ter chegado a este conceito de identidade movido pela necessidade de reformular a definição de negritude apresentado em 1984 em seu livro Negritude usos e sentidos. Neste trabalho, declara Munanga, a mestiçagem se colocou como uma anomalia para o paradigma da negritude pensada de modo essencialista (ainda vigente em seu trabalho de 1984). Assim, no meu movimento de fluxo e refluxo, tentei a partir da problemática da negritude, entender
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Dilemas Epistemológicos de Guerreiro Ramos as dificuldades que os afrodescendentes encontram para canalizar politicamente sua identidade cultural. Minhas tentativas explicativas esbarravam-se sempre a um obstáculo: a mestiçagem. Foi então o que me levou a situar a questão da formação da identidade negra no Brasil dentro da proposta da formação da identidade nacional. 39
As questões que se abrem a partir desta possível relação ficam para o desenvolvimento posterior deste trabalho. Basta, por enquanto, relembrar que o lugar e o problema de Ramos podem ser vistos como o drama de serdois de muitos outros trabalhos sobre o pensamento social do negro no Brasil.
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5. AS OBRAS PRINCIPAIS RAMOS, Alberto Guerreiro. Esquema de uma história de idéias (1953). _____________________. Cartilha Brasileira de Aprendiz de Sociólogo (prefácio a uma sociologia nacional) (1954). _____________________. Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro: Editorial Andes Ltda, 1957. _____________________. A Redução Sociológica Introdução ao Estudo da Razão Sociológica. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro Ltda, 1965. _____________________. Administração e Estratégia do Desenvolvimento - Elementos de uma Sociologia Especial da Administração. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1966. _____________________. Administração e Contexto Brasileiro - Esboço de uma Teoria Geral da Administração. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1983. _____________________. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1989.
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6. BIBLIOGRAFIA OLIVEIRA, Lucia Lippi. Entrevista com Guerreiro Ramos. In. Sociologia do Guerreiro, Editora UERJ, Rio de Janeiro, 1995. BARBOSA, Muryatan Santana. personalismo negro, Tempo Paulo Nov. 2006.
Guerreiro Ramos: o soc. vol.18 no.2 São
BARIANI, Edilson. Uma Intelligentisia Nacional: grupo de Itatiaia, IBESP e os Cadernos do Nosso tempo. CADERNO CRH, Salvador, v. 18, n. 44, p. 249-256, Maio./Ago. 2005. BRITO, Evandro. O. O conceito de negritude como violentação da língua manifesto num racismo anti-racista. In: IV Congreso Internacional de Etnohistoria, 1996, Lima. ACTAS DEL IV CONGRESO DE ETNOHISTORIA 1997. Lima: Fondo Editorial, 1998. v.3. p. MAIO, Marcos Chor. A Questão racial no pensamento de Guerreiro Ramos. In: MAIO, M. CHOR & SANTOR, R. Ventura. Raça, Ciência e Sociedade. RJ: Ed. Fiocruz, Centro Cultural Banco do Brasil, 1996, pp.179-193. MUNANGA, Kabengele, Construção da identidade negra no contexto da globalização. In: DELGADO, Ignácio et alii, Vozes (além) da África: tópicos sobre identidade negra, literatura e história africana, Juiz de Fora, Editora UFJF, 2006.
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Dilemas Epistemológicos de Guerreiro Ramos
MUNANGA, Kabengele, Diversidade, etnicidade, identidade e cidadania, (Palestra proferida no 1º Seminário de Formação Teórico Metodológica-SP: ANPED) no Prelo. SCHWARTZMAN, Simon (sel. e introd.). O pensamento nacionalista e os “Cadernos de Nosso Tempo”. Brasília: UNB/Câmara dos Deputados, 1979. (Biblioteca do pensamento político republicano). MALTA, Marcio e KRONEMBERGER, Thais Soares, Nem melhor nem pior, apenas divergentes: uma contribuição acerca da sociologia brasileira e polêmica entre Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos. Achegas.net – Revista de Ciências Políticas, n. 42, AGOSTO / DEZEMBRO 2009. (acesso em 15/06/2010) http://www.achegas.net/numero/42/marcio_thais_42.p df NASCIMENTO, Abdias. Quilombo, Editora 34, 2003. ____________________. Cartaz: Guerreiro Ramos. Quilombo, n. 9, p.2 (maio) 1950. In: NASCIMENTO, Abdias. Quilombo, Editora 34, 2003. ____________________. Nós. Quilombo, n. 1, p.1 (dez) 1948. In: NASCIMENTO, Abdias. Quilombo, Editora 34, 2003. SARTRE, Jean-Paul. Orpheu Negro (resumo), trad. Ironides Rodrigues, Quilombo, n. 5, (jan) 1950, p. 7.
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Evandro O. Brito
DOMINGUES, Petrônio. Quilombo (1948-1950): uma polifonia de vozes afro-brasileiras, Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 261-289, jul./dez. 2008. (Disponível em: http://www.fapa.com.br/cienciaseletras). RAMOS, Alberto Guerreiro. Contatos raciais no Brasil. Quilombo, n. 1, p.8 (dez) 1948, In: NASCIMENTO, Abdias. Quilombo, Editora 34, 2003. ____________________. Apresentação da Negritude. Quilombo, n. 10, p.11 (jul) 1950, In: NASCIMENTO, Abdias. Quilombo, Editora 34, 2003. ____________________. O problema do negro na sociologia brasileira. In: SCHWARTZMAN, Simon (sel. e introd.). O pensamento nacionalista e os “Cadernos de Nosso Tempo”. Brasília: UNB/Câmara dos Deputados, 1979. p. 39-69. (Biblioteca do pensamento político republicano).
NOTAS É interessante considerarmos, aqui, as seguintes informações apresentadas por Petrônio Domingues acerca do TEN. “O Teatro Experimental do Negro. No início da década de 1940, Abdias do Nascimento empreendeu uma mobilização pela criação de um grupo de teatro negro, para protestar contra a exclusão do afrodescendente dos palcos brasileiros ou contra sua 1
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Dilemas Epistemológicos de Guerreiro Ramos
inclusão marginal, em papéis coadjuvantes, grotescos ou caricaturais. Depois de ter lançado a ideia, passou a convocar reuniões preparatórias. A primeira teria ocorrido no Café Amarelinho, na Cinelândia – região central do Rio de Janeiro –, com Aguinaldo Camargo, Wilson Tibério, Teodorico dos Santos e José Herbel. A segunda reunião teria acontecido nas acomodações do teatro Fênix. Assim, em 13 de outubro de 1944, nascia o Teatro Experimental do Negro (TEN). Diante da ausência de peças no país que retratassem dignamente a situação do negro, o grupo decidiu encenar O Imperador Jones – peça do consagrado dramaturgo estadunidense Eugene O„Neill. Sua estreia ocorreu no dia 8 de maio de 1945, no mais importante teatro carioca: o Teatro Municipal. Imperador Jones foi o primeiro de uma série de espetáculos através dos quais o TEN conseguiu fomentar certa agitação na cena teatral do Rio de Janeiro, por quase uma década, no período da Segunda República (1945-1964). Não se restringindo às atividades culturais, o grupo adquiriu uma dimensão mais ampla de atuação no campo social, político e intelectual. Promoveu um curso de alfabetização, criou o Instituto Nacional do Negro (INN), um departamento de estudo e pesquisa sob a coordenação do sociólogo afro-brasileiro Guerreiro Ramos; colaborou com a Convenção Nacional do Negro em 1945-1946; organizou a Conferência Nacional do Negro, em 1949, e o Primeiro Congresso do Negro Brasileiro, em 1950, reunindo intelectuais como Edson Carneiro, Darcy Ribeiro e Roger Bastide. Ainda neste último ano, Abdias do Nascimento lançou sua candidatura a vereador do Rio de Janeiro, pelo Partido 60
Evandro O. Brito
Social Democrático (PSD), mas ela foi abortada. Esta foi a fase mais importante do TEN, quando instalou o Museu do Negro, encenou algumas montagens em teatros do Rio de Janeiro e realizou concursos de beleza, denominados de Rainha das Mulatas e de Boneca de Piche”. DOMINGUES, 2008, p. 263. 2 Estas informações publicadas, recentemente por seu filho, servem para montar o quebra-cabeça da vida de Guerreiro Ramos definida por ele mesmo como o “o drama de ser dois”: “O Velho Guerreiro me ensinou a sempre lembrar que ele era da Bahia, e tinha um grande orgulho de nossa ancestralidade Africana. O pai de Guerreiro, meu Avo Vitor Juvenal Ramos, nasceu escravo em 1873, mas do tal Ventre Livre. A Mãe dele nasceu na Angola, e foi por sua própria família vendida ao negreiro. Depois de sermos exilados da Pátria Amada, nenhum de nos voltou ao Brasil a não ser para visitar família. (...) Boa sorte sempre”. Alberto Guerreiro Ramosfilho- http://forum.jus.uol.com.br/21685/biografia-dealberto-guerreiro-ramos/#Comente Estas informações foram encontradas seguindo a seguinte indicação oferecida por Ramos na entrevista que deu a Abreu e Oliveira. “Existe uma revista, publicada pelo Abdias do Nascimento, Quilombo, que eu queria achar, porque nela eu escrevi sobre a minha formação. Ficou muito bonito aquele negócio. Há um número em que eu conto com uma certa poesia a viagem através das coisas, mostrando os mistérios da minha formação”. OLIVEIRA, 1995, p. 145. O curioso é que, apesar de 3
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Dilemas Epistemológicos de Guerreiro Ramos
Ramos reivindicar a autoria deste texto, a matéria foi assinada, por Abdias do Nascimento. NASCIMENTO, Abdias, Cartaz: Guerreiro Ramos. In: Quilombo, n. 9, p.2 (maio) 1950, p. 2. 4
“A.A. - Mas naquela época, em que as dificuldades encontradas por um intelectual no Rio de Janeiro para saber o que estava se passando e obter Livros eram muito grandes, como é que um jovens baiano podia ter acesso a isso tudo? G.R. - Não havia dificuldade nenhuma. Eu estava a par de tudo, assinava revistas, sabia o que estava se passando. Esta, aliás, foi a razão pela qual fui apresentado pelo Rômulo Almeida a Isaías Alves, quando ele chegou a Salvador. Vocês sabem como são essas coisas: "Aqui, uma grande inteligência, bla-bla-bla." E o Isaías foi à minha casa e perguntou: "Mas como é que você, um menino, tem uma biblioteca dessas?" Eu tinha tudo. Comprava, mandava buscar o livro. Nós falamos em Heidegger, antes de o resto do Brasil falar. Jaspers ... Lançamos isso na Bahia, tínhamos acesso direto. Antes do Rio de Janeiro falar nas coisas, nós falávamos. Éramos eu e o Afrânio Coutinho, com quem não me dou hoje: briguei com ele”. OLIVEIRA, 1995, p. 137. 5
6A.A.
– Rômulo Almeida também fazia parte deste grupo? G.R. – Não. Rômulo fazia parte do grupo (de leituras) mas não era dado a esse tipo de leitura. Era um organizador, metido com estudantes, organizou a União 62
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Baiana dos estudantes, e eu não dava nenhuma bola para isso. Eu não vivia militando, eu vivia lendo. A.A. – O senhor nunca militou em nenhum partido político? G.R. – No integralismo. Quando o integralismo começou, fui atraído por aquilo, vesti a camisa verde. A.A. – O integralismo foi muito importante na Bahia, não é? G.R. – Foi. Mas militei logo no início, depois saí, não era pra mim. Eu tinha 17 anos. Isso foi em 33, e eu ainda estava no ginásio. A.A. – O senhor chegou a ler sobre o integralismo? G.R. – Li tudo. É claro que li tudo. Escrevi na revista deles, Cadernos da Hora Presente. Essa revista deve ter saído em 32, 33, 34, 35. Há um artigo meu lá, muito interessante. Eu até gostaria de reler, porque é um artigo muito influenciado pelo Maritain”. OLIVEIRA, 1995, p. 137-138. NASCIMENTO, Abdias, Cartaz: Guerreiro Ramos. In: Quilombo, n. 9, p.2 (maio) 1950, p. 2. 7
NASCIMENTO, Abdias, Cartaz: Guerreiro Ramos. In: Quilombo, n. 9, p.2 (maio) 1950, p. 2. 8
9
OLIVEIRA, 1995, p. 133.
10
OLIVEIRA, 1995, p. 137-138.
“G. R. - Além disso, tinha ligações pessoais com Jacques Maritain. Inclusive, ele passou uma vez pela 11
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Dilemas Epistemológicos de Guerreiro Ramos
Bahia, e o seu navio encostou no porto. Nós sabíamos, pelo jornal, que o navio traria o grande filósofo Jacques Maritain. Fomos lá e mandamos chamá-lo. Naturalmente, ele não esperava que pudesse ter um contato com intelectuais na Bahia. Ele veio, e nos nós apresentamos como seus leitores. Eu me lembro até hoje: uma figura angélica, o Maritain, um rosto iluminado. Saímos pela cidade - acho que o navio ficou lá umas nove horas, uma coisa assim -, e ele ficou surpreendido com o conhecimento acurado que nós tínhamos da sua obra. Não conteve a surpresa e nos perguntou: "Mas como é possível isto?". O Afrânio Coutinho e eu éramos as principais pessoas que estavam lá. E nós dissemos que acompanhávamos aquilo, que éramos profundamente influenciados por ele”. OLIVEIRA, 1995, p. 137-138. “G. R. - Eu já escrevia regularmente em O Imparcial. Isso é interessante, escrevi dezenas e dezenas de artigos nesse jornal, era uma espécie de crítico literário. Seguia muito de perto o movimento europeu de ideias. Nessa época, nos anos 30, eu era muito influenciado pela revista francesa L' Esprit, fundada por Emmanuel Mounier, com quem mantive uma certa correspondência. Estava muito a par também de uma outra revista que se chamava L'Ordre Nouveau, dirigida por Amaud Dandier, cujo livro - não me lembro mais do título - foi de grande importância para mim”. OLIVEIRA, 1995, p. 133. 12
13
OLIVEIRA, 1995, p. 134.
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“G.R. - Participei da organização da Faculdade de Filosofia de lá, com o irmão do governador Landulfo Alves, Isaías Alves, que era secretário de Educação. E uma das ironias da minha carreira e que, corno fundador da Faculdade de Filosofia da Bahia, me tomei catedrático de sociologia sem ter nem mesmo o primeiro ano de ciências sociais. A. A. - Mas o senhor já tinha o curso de direito? G.R. - Não tinha nada, não tinha curso nenhum. Como membros da administração Landulfo Alves, fundamos com Isaías Alves a Faculdade de Filosofia. Pela lei, todas as pessoas que fundaram a faculdade tinham o direito de se tornar catedráticos. Então, eu me tornei catedrático de ciência social antes de começar o curso de ciências sociais. E isso que eu chamo de sorte. E a minha vida e cheia de coisas assim”. OLIVEIRA, 1995, p. 132. 14
15
OLIVEIRA, 1995, p. 139; 141.
A produção de Ramos foi apresentada supostamente por Abdias, em O Quilombo, nos seguintes termos. “Foi durante seis anos o professor da cadeira „problemas econômicos e sociais do Brasil‟ no departamento nacional da criança, ai realizando um trabalho pioneiro em que deu categoria sociológica ao problema da mortalidade infantil. Fruto destas investigações de sociologia articuladas com a medicina são „Aspectos sociológicos de Puericultura‟ (1944), „Uma concepção multidimensional do comportamento‟ (1944), „Um inquérito sobre quinhentos menores‟ (1944, em colaboração), „Problemas econômicos e Sociais do Brasil‟ (1949) e „Sociologia da mortalidade Infantil‟. 16
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NASCIMENTO, Abdias, Cartaz: Guerreiro Ramos. In: Quilombo, n. 9, p.2 (maio) 1950, p. 2. 17
OLIVEIRA, 1995, p. 144.
18
DOMINGUES, 2008, p. 263.
19
DOMINGUES, 2008, p. 263.
20
OLIVEIRA, 1995, p. 147.
Como esclarece os estudos de Bariani, “O grupo de Itatiaia teve início a partir de agosto de 1952, no Parque Nacional de Itatiaia (entre RJ e SP), em local cedido pelo Ministério da Agricultura, quando começou a reunir-se – ocasionalmente – um grupo de intelectuais, entre eles paulistas, cariocas, católicos, antigos integralistas, conservadores e outros de posições mais à esquerda. A tônica dos debates, inicialmente, era a discussão teórica por parte de estudiosos que tinham em comum certa configuração intelectual, influências de certos autores e um desejo de impulsionar um pensamento genuinamente brasileiro. Embora o grupo se consolide no Rio de Janeiro (e ali finque raízes), nos primórdios, intelectuais paulistas – sobretudo ligados ao IBF (Instituto Brasileiro de Filosofia) e à Revista Brasileira de Filosofia – participaram do começo das discussões em Itatiaia (em 1952). Os paulistas – Roland Corbisier, Ângelo Simões de Arruda, Almeida Salles, Paulo Edmur de Souza Queiroz, José Luiz de Almeida Nogueira Porto e Miguel Reale (também contavam com um professor italiano chamado 21
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Luigi Bagolini) – eram liderados por Vicente Ferreira da Silva (filósofo cujos seminários eram muito conhecidos na cidade de São Paulo) que, como outros pensadores, guardava certo distanciamento da institucionalização e do ensino filosófico ministrado na USP – de inspiração europeia, francesa em essência, devido às „missões‟ – e eram pejorativamente chamados por João Cruz Costa (professor uspiano) de „filósofos municipais‟. Os outros participantes (cariocas), dentre eles os que mais tarde formariam o IBESP e o ISEB e ficariam conhecidos como „isebianos históricos‟ (principalmente Guerreiro Ramos, Helio Jaguaribe, Nelson Werneck Sodré e Cândido Mendes de Almeida), tinham com os paulistas – mormente seu líder – algumas influências comuns”. Bariani (2005, p. 249) Ainda segundo Bariani, “mesmo conhecido como a antessala do ISEB, o IBESP não é o passado necessário do ISEB; talvez mesmo o ISEB não seja a realização „natural‟ do intento ibespiano. Apesar dos componentes, das influências e das análises que perduraram, o Grupo de Itatiaia e o IBESP têm uma história própria, abordagens diferenciadas e, sobretudo, uma inserção original no contexto brasileiro. Na transição para o ISEB, permaneceram nomes como Helio Jaguaribe, Nelson Werneck Sodré, Roland Corbisier, Ignácio Rangel, Cândido Mendes de Almeida, Guerreiro Ramos etc., e manteve-se a influência da análise econômica da Cepal, da aplicação do existencialismo à realidade social, a posição de engajamento... Todavia, a forma como se organizava e as funções às quais aspirava mudaram. O 22
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Dilemas Epistemológicos de Guerreiro Ramos
ISEB institucionalizou-se, alargou o espectro das análises, agregou novos temas e aventurou-se tanto no debate intelectual quanto social e politicamente, procurando uma maior inserção – seja atuando como interlocutor do Estado e de alguns governos (mormente o de Juscelino Kubitschek), seja ministrando cursos e influenciando intelectuais, estudantes, sindicalistas e representantes da sociedade civil. Como instituição de saber, atuou também como ator político, engajando-se diretamente nas questões e atracando-se na luta ideológica. Já o IBESP procurou congregar intelectuais e constituir-se também como uma intelligentsia, mas acentuando a posição mannheimiana da intersticialidade, da flutuação social dessa camada socialmente „desvinculada‟ – embora não ausente das relações de classe (Cf. Mannheim, 1972, 1974) –, funcionando menos como um ator político de posição determinada e mais como ator “ilustrado”, de posições caleidoscópicas num amplo leque de análise, procurando elaborar sínteses e, concomitantemente, identificar várias facetas da mesma questão e relacionar os interesses das classes aos projetos possíveis. Em suma, o IBESP não se notabilizou como „partido‟ político dos intelectuais, e sim como pretensa „consciência social‟ teórica dos dilemas do país. Certamente, o ISEB foi uma das formas (possíveis) de desenvolvimento radicalizado do projeto IBESP, talvez uma das mais pragmáticas; daí a derivar seu fracasso é uma outra história”. BARIANI, 2005, p. 250. 23
OLIVEIRA, 1995, p. 156-157.
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Evandro O. Brito
24
OLIVEIRA, 1995, p. 150-151.
“Em sua atividade parlamentar, Guerreiro apresentou dois projetos de lei: o que dispõe sobre o processamento e averbação de licenças de patentes de invenção no Departamento Nacional da Produção Industrial e o que dispõe sobre o exercício da profissão de técnico de administração. O autor também destaca os principais temas abordados por Guerreiro Ramos: reforma agrária, formação de um mercado interno brasileiro, trabalhismo, profissionalização do serviço público, socialismo, crítica da esquerda, legalização do Partido Comunista”. MALTA e KRONEMBERGER, 2009, p. 25. 25
RAMOS FILHO, Alberto Guerreiro, - 28/01/2009-11:03 – (http://forum.jus.uol.com.br/21685/biografia-dealberto-guerreiro-ramos/#Comente) 26
RAMOS FILHO, Alberto Guerreiro, - 28/01/2009-11:03 – (http://forum.jus.uol.com.br/21685/biografia-dealberto-guerreiro-ramos/#Comente) 27
Segundo Maio, “Em 1949 Guerreiro tornou-se diretor do Instituto Nacional do Negro, órgão do TEN que estaria voltado para a pesquisa sociológica. Nesta fase aprofunda sua análise do enfoque político-ideológico do TEN, afinado com a visão integracionista de Abdias do Nascimento. Este seria o melhor caminho para os negros ascenderem socialmente até atingirem o comportamento da classe média e superior”. MAIO, 1996, p. 183. 28
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De acordo com a edição fac-similar de Antônio Sergio Guimarães (O Quilombo – 2003), Ramos assinou sete artigos em O Quilombo: “Contatos raciais no Brasil” (nº 1, p. 8); “1º Congresso do negro brasileiro de 1949: temerário” (nº 3, p. 5) assinado juntamente com Edison Carneiroe Abdias do Nascimento; “Uma experiência de grupoterapia” (nº 4, p. 7); “Apresentação da grupoterapía” (nº 5, p. 6); “Teoria e prática do psicodrama” (nº 6, pp. 6-7); “Teoria e prática do sociodrama” (nº 7-8, p. 9); “Apresentação da negritude”, (nº 10, p. 11). 29
NASCIMENTO, Abdias, Nós. In: Quilombo, n. 1, (dez) 1948. p.1. 30
Um exemplo das ambiguidades que Domingues cria para sua própria análise está na criação da categoria „colaboracionismo racial‟ e na impossibilidade de aplicála na analise do modo como O Quilombo se manifesta no primeiro aniversário da morte do empresário Roberto Simonsen. “O jornal adotou uma política de colaboracionismo racial, de formação de uma frente de alianças com os brancos democratas. (...) No primeiro ano de aniversário da morte do empresário Roberto Simonsen, Quilombo publicou uma nota, associando-se aqueles que naquela data reverenciaram a memória desse grande homem. No final, escrevia-se que é-nos grato assinalar que Roberto Simonsen não é, apenas, um nome representativo da indústria e das classes produtoras, mas uma figura brasileira pela sua indisfarçável fidalguia espiritual e 31
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Evandro O. Brito
intelectual, e pela sua acertada, humana e patriótica visão dos nossos problemas sociais. Ora, por que um jornal de um grupo do movimento social negro homenagearia um empresário branco que jamais labutou em defesa dos afro-brasileiros? Provavelmente, por que ele era alguém preocupado com nossos problemas nacionais. E como o problema do negro era concebido como fazendo parte do problema nacional, ele, ainda que indiretamente, teria sido um aliado dos negros. No entanto, esta explicação é insuficiente. Outros indícios sugerem que Quilombo preconizava, efetivamente, uma política racial de alianças com brancos democratas e certos segmentos da sociedade civil”. Domingues (2008, pp. 267-262). Outros exemplos podem ser apontados pelo fato de sugerir, mais adiante, que Abdias e Ramos compartilhariam os mesmos princípios teóricos e as mesmas estratégias política que Gilberto Freyre, pois este havia escrito em O Quilombo. “O primeiro colaborador a difundir um discurso desse gênero nas páginas de Quilombo foi Gilberto Freyre, ao inaugurar a coluna Democracia Racial, em 1948”. “Não há exagero em dizer-se”, escrevia ele, “que no Brasil vem se definindo uma democracia étnica contra a qual não prevaleceram até hoje os esporádicos arianismos ou os líricos, embora às vezes sangrentos melanismos que, uma vez por outra, se têm manifestado entre nós” DOMINGUES, 2008, p. 269. Domingues atesta o uso da expressão “cultura negra” em quatro ocasiões. A primeira vez foi no texto de uma palestra proferida por Guerreiro Ramos, no qual, por sinal, está pluralizada como “culturas negras” (Quilombo. 32
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Dilemas Epistemológicos de Guerreiro Ramos
Rio de Janeiro, dezembro de 1948, p. 8). A segunda vez foi no artigo “Uma negra e sua equipe”, escrito por Murilo Mendes, especialmente para o jornal (Quilombo. Rio de Janeiro, junho/julho de 1950, p. 3). A terceira foi no artigo “O problema da liberdade de culto” (Quilombo. Rio de Janeiro, junho/julho de 1950, p. 4) e a quarta no artigo “O negro na música brasileira”, de Renato Almeida (Quilombo. Rio de Janeiro, junho/julho de 1950, p. 12). 33
RAMOS, 1948, p. 8.
Este é, mutatis mutandis, o diálogo lusófono e francófono que se estabelece com a publicação do texto de Jean-Paul Sartre em O Quilombo. N. 5. p. 6. Para mais detalhes acerca da apresentação Sartriana do conceito de negritude, consultar nosso trabalho BRITO (1998). 34
35 36
BARBOSA, (2006), p. ? (texto on-line). BARBOSA, (2006), p. ? (texto on-line).
“Se uma pessoa fizer um estudo - não de má fé, mas de boa fé, não precisa nem ser simpático a mim, apenas ser objetivamente, de boa fé -, o livro realmente revela toda a minha história. O drama de ser dois é um livro em que eu confesso o meu desconforto permanente com o mundo secular. Nesse poema eu me descrevia como uma espécie de pessoa entre dois mundos que eu não sabia definir. E ainda hoje acho que esse e um traço fundamental do meu perfil: eu não pertenço a nada. Não pertenço a instituições, não tenho fidelidade a coisas sociais; tudo o que e social, para mim, e instrumento. Eu não sou 37
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de nada, estou sempre à procura de alguma coisa que não è materializada em instituição, em linha de conduta. (...) De modo que esse livro e um livro seminal! Não tem importância o mérito intrínseco. Poeticamente, não vale nada. Mas é realmente uma expressão do que eu sempre fui. Em inglês existe uma expressão: in betweenners. Estou sempre in between. Nunca estou incluído em nada. As minhas metas são a única coisa em que estou incluído, não há pessoas que me incluam”. OLIVEIRA, 1995, p. 134. 38
MUNANGA, 2006, p. 20.
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MUNANGA, 2006, p. 20.
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Nesse poema ( O drama de ser dois) eu me descrevia como uma espécie de pessoa entre dois mundos que eu não sabia definir. E ainda hoje acho que esse e um traço fundamental do meu perfil: eu não pertenço a nada. Não pertenço a instituições, não tenho fidelidade a coisas sociais; tudo o que é social, para mim é instrumento.Eu não sou de nada, estou sempre à procura de alguma coisa que não è materializada em instituição, em linha de conduta.
GUERREIRO RAMOS
usj CENTRO UNIVERSITÁRIO MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ