O Fundamento da Moralidade

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EVANDRO O. BRITO

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O FUNDAMENTO DA MORALIDADE ______________  

COLEÇÃO DISSERTAÇÕES E TESES

usj CENTRO UNIVERSITÁRIO MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ



Evandro O. Brito

O FUNDAMETO DA MORALIDADE

CENTRO UNIVERSITÁRIO MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ


CENTRO UNIVERSITÁRIO MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ - USJ Reitora: Elisiani C. de Souza de F. Noronha EDITORA CENTRO UNIVERSITÁRIO MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ Editor Conselheiro: Evandro Oliveira de Brito Assessor editorial: Débora Medeiros COMISSÃO EDITORIAL ACADÊMICA Adarzilse Mazzuco Dallabrida Carolina R. Cardoso da Silva Fernando Mauricio da Silva Keila Villamayor Gonzalez Jason de Lima e Silva José Cláudio Morelli Matos Maria Solange Coelho Rogério Tadeu Lacerda Vera Regina Lúcio

EDITORA ASSISTENTE Zuraide Silveira EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Assessoria de Comunicação USJ CAPA: Zuraide Silveira REVISÃO: Adriano Picoli FICHA CATALOGRÁFICA Coordenação de Biblioteca do USJ

B862v Brito, Evandro O. O Fundamento da moralidade / Evandro O. Brito. – 1. ed. – São José: Centro Universitário Municipal de São José, 2015. 204 p. Inclui bibliografia ISBN: 978-85-66306-17-0 (e-book) 1. Franz Brentano. 2. Relação Intencional. 3. Kant, Immanuel. 4. Valores. 3. Moral. 4. Ética. I. Título. CDU: 111

Atribuição - Uso Não-Comercial Vedada a Criação de Obras Derivadas


Evandro O. Brito

O FUNDAMETO DA MORALIDADE

São José, Julho de 2015.



Para Maria Rosa da minha vida



SUMÁRIO O FUNDAMENTO DA MORALIDADE PREFÁCIO .............................................................................. 7 Primeira Parte

VALORES MORAIS E A FUNDAMENTAÇÃO KANTIANA DA METAFÍSICA DOS COSTUMES APRESENTAÇÃO ................................................................. 7 INTRODUÇÃO .................................................................... 13 I - Valor absoluto e valor moral ..................................... 13 II - Os pressupostos da moralidade .............................. 15 III - O método e a divisão do texto ................................ 21 CAPÍTULO I ......................................................................... 25 A BOA VONTADE .......................................................... 25 I – O fundamento moral da boa vontade..................... 25 II – A constituição a priori da boa vontade .................. 33 CAPITULO II ........................................................................ 43 O DEVER MORAL .......................................................... 43 I - O dever......................................................................... 43 II - O dever: A primeira proposição ............................... 46 III - O dever: A segunda proposição .............................. 49 IV - O dever: A terceira proposição ............................... 53 V – A lei e sua conformidade com a máxima da ação 69


CAPÍTULO III ....................................................................... 73 OS PRINCÍPIOS PRÁTICOS .......................................... 73 I – Estrutura e propósito da segunda seção ................. 73 II – A filosofia prática pura ou a moral a priori ........... 87 III – A determinação prática da razão .......................... 91 IV – A necessidade objetiva dos imperativos ............ 102 CAPÍTULO IV..................................................................... 127 O IMPERATIVO CATEGÓRICO ................................. 127 I – As fórmulas dos imperativos ................................. 127 II– A necessidade do imperativo categórico.............. 128 III – A objetividade do imperativo categórico........... 133 IV - A universalidade do imperativo categórico ...... 140 CONCLUSÃO..................................................................... 145 REFERÊNCIAS ................................................................... 153 I. Fontes primárias ...................................................... 153 II. Fontes secundárias .............................................. 153

Segunda Parte ÉTICA E A TEORIA DO CONHECIMENTO MORAL EM BRENTANO (1889) 1. Introdução ..................................................................... 159 2. O contexto da obra Origem do conhecimento moral .... 161 3. Conclusão ...................................................................... 168 4. Bibliografia ................................................................ 168


SENTIMENTO E COGNIÇÃO MORAL EM BRENTANO (1889–1907): UMA PROPOSTA DE INVESTIGAÇÃO 1. Apresentação ................................................................ 175 2. Brentano e a reivindicação da originalidade de sua teoria ética ................................................................................... 175 3. Um lugar para a ética brentaniana ................................ 180 4. Orientação teórica e metodológica da pesquisa ............ 183

Terceira Parte [TRADUÇÃO] Franz Brentano SOBRE O CARÁTER APRIORÍSTICO DO PRINCÍPIO ÉTICO Nota preliminar de Oskar Kraus ....................................... 193 Carta resposta de Franz Brentano ..................................... 194



O FUNDAMENTO DA MORALIDADE Prefácio A obra O Fundamento da moralidade foi elaborada para atender a chamada da Editora Centro Universitário Municipal de São José, a qual convidava os docentes do USJ interessados em participar como autores da Coleção Investigação Científica do USJ – Dissertações e Teses”. Com o compromisso de fortalecer academicamente o Centro Universitário Municipal de São José e, também, atender uma das demandas do CEE, o USJ adotou, como primeira política editorial, a proposta de divulgar a produção científica dos seus docentes por meio da publicação das suas pesquisas, ou seja, suas dissertações de mestrado e/ou suas teses de doutorado, bem como seus relatórios de pós-doutorado. Esta política visava, portanto, garantir o registro das respectivas pesquisas por meio da atribuição do ISBN (publicação impressa) e do eISBN (publicação on-line) para as dissertações, teses e relatórios que, eventualmente, se encontravam disponíveis ao público apenas nos sistemas de bibliotecas universitárias. Portanto, o objetivo fundamental foi garantir que trabalhos de tamanha envergadura e destacado fôlego, os quais foram submetidos às avalições acadêmicas rigorosas e reconhecidas pela CAPES, passassem a computar no currículo do docente como um livro publicado. O livro O Fundamento da moralidade resultou, portanto, de pesquisas científicas e foi composto por trabalhos que marcam três partes distintas e subsequentes da minha carreira acadêmica. Na primeira parte do livro, eu apresento o trabalho intitulado Valores Morais e a Fundamentação Kantiana da Metafísica dos Costumes, o qual resultou de uma investigação acerca das noções de Valor moral e Valor absoluto no contexto

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da obra kantiana Fundamentação da metafísica dos costumes. A primeira versão desse texto foi escrita como dissertação de mestrado e defendida junto ao Programa de Estudos Pósgraduados em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 2002. Ela foi publicada em 2012 com o título original, Valores Morais e a Fundamentação Kantiana da Metafísica dos Costumes, pela Bookess Editora. A segunda parte do livro está dividida em dois capítulos e possui dois trabalhos resultantes de algumas pesquisas sobre o desenvolvimento da teoria do conhecimento moral de Franz Brentano. O primeiro capítulo, intitulado Ética e a Teoria do Conhecimento Moral em Brentano (1889), foi publicado anteriormente na Revista Espaço Ética (v. 1, p. 86, 2014) e consiste na adaptação de uma pequena parte da apresentação da minha tese doutoral, intitulada O Desenvolvimento da ética na filosofia do psíquico de Franz Brentano, defendida em 2012 junto ao Programa de Estudos Pós-graduados em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Versões preliminares desta adaptação foram discutidas no Colóquio Civilização 2013 e no IV Encontro de egressos e estudantes de filosofia: a ética e o ensino de filosofia, realizado em 2012 na Universidade Estadual de Londrina, e publicada nos respectivos anais desses eventos. O segundo trabalho, intitulado Sentimento e Cognição Moral em Brentano (1889–1907): uma proposta de investigação, tratou de apresentar as linhas gerais da minha pesquisa de pós-doutorado (PNPD/Capes) em andamento, realizada junto ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria. Este trabalho inédito tem como objetivo apresentar uma proposta de investigação do desenvolvimento da teoria do conhecimento moral de Franz Brentano, tal como essa se apresentou no período compreendido entre a produção dos trabalhos Vom Ursprung sittlicher Erkenntnis (1889) e Vom Lieben und Hassen (1907). Apresentada em 1889, a teoria 8


Prefácio

brentaniana do conhecimento moral acompanhou o desenvolvimento posterior da filosofia brentaniana do psíquico, a qual lhe servia de fundamento. Este trabalho, portanto, apresentou uma estratégia de investigação para explicitar o modo como os fundamentos da teoria brentaniana do conhecimento moral foram reformulados, em seus aspectos ontológicos e epistemológicos, na medida em que Brentano reestruturou as bases da sua psicologia descritiva e inaugurou a fase conhecida como reísmo, a partir de 1905. A terceira parte do livro apresenta a tradução de uma carta de Franz Brentano enviada para Oskar Kraus de 24 de março de 1904, intitulada Sobre o caráter apriorístico do princípio ético, na qual Brentano afirma sua nova posição quanto aos fundamentos epistemológicos da ética, os quais estruturariam sua teoria do conhecimento moral. Sendo, portanto, um livro que agrega uma pesquisa sobre Kant e outras sobre Brentano, sendo este um crítico ferrenho daquele, a unidade sugerida gira em torno do problema compartilhado: o fundamento da moralidade.

Santa Maria, abril de 2015 O Autor

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O FUNDAMENTO DA MORALIDADE Primeira Parte Valores Morais e a Fundamentação Kantiana da Metafísica dos Costumes APRESENTAÇÃO Com a publicação de Valores Morais e a Fundamentação Kantiana da Metafísica dos Costumes de Evandro O. Brito, os leitores da língua portuguesa têm a sua disposição o resultado de anos de pesquisa no pensamento moral de Kant. Na presente investigação, o autor realiza um estudo detalhado e uma reconstrução do trajeto de elucidação e justificação da lei moral, do imperativo categórico, na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes de Immanuel Kant (1724-1804). Nessa empreitada, o autor discute frequentemente com alguns dos principais comentadores da obra supracitada (como Paton, Allison, Walker, O'neill, Loparic, Höffe, Herman entre outros) apontando concordâncias e discordâncias a respeito de pontos específicos ou de difícil interpretação do texto kantiano. Razão pela qual o trabalho por mim apresentado consiste em um excelente material de apoio a todo aquele que pretender iniciar sua jornada intelectual pessoal de adentrar no pensamento moral de Kant, não obstante, o texto é útil e proveitoso não apenas aos iniciantes na filosofia prática de Kant, mas também àqueles que já possuem familiaridade com o pensamento do filósofo alemão. Na presente obra, Brito realiza uma reconstrução dos principais passos da estratégia argumentativa de Kant de estabelecer o princípio supremo da moralidade nas duas

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primeiras seções da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, entre os quais é oportuno apontar a identificação da vontade boa como único bem dotado de valor incondicional e, por isso, a única alternativa viável para justificar a moralidade, o princípio fundamental da qual, para Kant, consiste em um princípio a priori, a saber, dotado de universalidade e necessidade. As marcas desse tipo de juízos, conforme já afirmara o filósofo alemão em sua obra Crítica da Razão Pura (A2). Tanto a felicidade (critério supremo da moralidade na ética utilitarista) quanto à virtude (critério moral na ética de virtudes), embora sejam bens de grande importância na grande maioria dos casos, carecem da bondade incondicional, universal e necessária, a qual somente é portadora a boa vontade, a realização da ação externamente correta de maneira desinteressada, ou seja, não motivado por inclinações egoístas. De onde resulta a distinção de Kant entre 'agir por dever' e 'agir conforme o dever', a moralidade e a legalidade das ações. A essa distinção é sempre importante lembra que é preciso incluir as ações imorais, ou o 'agir contrário ao dever'. Kant se devota prioritariamente às ações realizadas por dever, dado que as ações contrárias ao dever somente são adequadas negativamente (ou seja, informando o que o dever moral não é) e exigem para sua identificação o estabelecimento de um critério moral, tarefa a qual se devota Kant na obra em questão. No que diz respeito às ações realizadas conforme o dever, se bem que não possam ser consideradas imorais no sentido genuíno do termo, pois são realizadas apenas sob a condição de certos móbiles, são inadequados para a caracterização de atos eminentemente morais, uma vez que sua motivação é distinta daquela dos atos realizados 'por dever'. Somente aqueles atos realizados pelo móbil moral genuíno, o respeito pela lei moral, são considerados por Kant como exemplos dignos de louvor e apreciação moral. Além disso, Brito se devota a reconstruir e elucidar as principais formulações do imperativo categórico kantiano tal 8


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como apresentadas na segunda seção da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, quais sejam, a fórmula da universalidade, a fórmula da humanidade e a fórmula da autonomia da vontade. Cada uma das quais apresenta um aspecto da lei moral, a qual Kant tenta identificar e estabelecer na obra supracitada, mais próximo da intuição. A universalidade, a forma da lei; a humanidade, a matéria da lei; e a autonomia, a determinação completa das máximas. Não obstante, Brito não se dedica apenas à apresentação e à aplicação das formulações do imperativo categórico aos exemplos apresentados por Kant nessa mesma seção (dever de não suicidar-se, dever de promover os próprios talentos naturais, dever de fazer filantropia, e dever de não fazer promessas mentirosas), mas antes procura reconstruir a estrutura argumentativa dessa seção, a dividindo em suas partes principais e tentando mostrar qual a função de cada uma delas dentro da estratégia geral de Kant de identificar e estabelecer o princípio supremo da moralidade. Um elemento a ser destacado na linha de interpretação do texto apresentado é a ênfase no elemento teleológico na obra de Kant estudada, o que frequentemente abomina grande parte dos comentadores da obra de Kant, uma vez que ele é frequentemente apresentado como um defensor da ética deontológica, em contraste com a ética teleológica. Evandro O. Brito ressalta a existência desses elementos em seu estudo e evita discutir as possíveis inconsistências, não consideradas um problema para o próprio Kant, advindas de manuais de classificação das teorias morais (tais como deontológico x teleológico, consequencialista x anticonsequencialista, e assim por diante). Somente para citar um exemplo (do próprio texto kantiano e não do livro aqui prefaciado), Kant somente consegue mostrar que há alguma contradição na universalização da máxima: “Por amor de mim mesmo, admito como princípio que, se a vida, prolongando-se, me ameaça mais com desgraças do que me promete alegrias, devo 9


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encurtá-la (…) Vê-se então em breve que uma natureza, cuja lei fosse destruir a vida em virtude do mesmo sentimento cujo objetivo é suscitar a sua conservação, se contradiria a si mesma e portanto não existiria como natureza”.1 A avaliação de Kant dessa máxima imoral, ao menos na derivação com base na fórmula da universalidade está supondo que existe uma teleologia natural, da qual o ser humano é parte integrante, e, cuja função principal é manter-se vivo, por isso, um princípio subjetivo do querer (uma máxima) que advogue um curso de ação contrário a essa finalidade natural incorre em uma contradição, não pode ser pensada como uma lei universal da natureza, uma vez que a própria natureza destinou o ser humano a buscar permanecer vivo e não o contrário. Enfim, o texto de Brito tem a perspicácia de tentar incluir esses elementos teleológicos na estrutura argumentativa do texto de Kant e não simplesmente ignorá-los, a despeito de todo ônus adicional ao intérprete que tente incorporar esse tipo de elementos na busca de Kant de identificar e estabelecer o princípio da moralidade numa perspectiva prioritariamente deontológica. Não obstante, poder-se-ia afirmar que a lei moral, mesmo da perspectiva de Kant, é deontológica, não por definição, mas em função de um aspecto peculiar dos seres humanos em relação aos demais seres vivos, a saber, o ser humano é dotado de uma razão prática (ele tem Wille e Wilkür), razão pela qual seu comportamento pode conformarse com o que exige a lei moral, a despeito de possuir inclinações que na maioria das vezes podem lhe incitar para um curso de conduta diverso do que ela exige, o que leva os seres humanos a cumprir a suas obrigações como deveres e não como emanações de seu próprio ser, o que seria o caso de seres divinos, os quais são dotados de uma vontade santa. Somente o ser humano age sob a ideia ou representação de 1

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1997. P. 60 (Ak, IV, Grundlegung, 422). 10


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leis, somente o ser humano é livre para cumprir ou descumprir a lei moral. Os seres irracionais estão condenados a cumprir os incitamentos das inclinações; os seres divinos estão condenados a cumprir a lei moral; os seres humanos estão condenados a assumir a responsabilidade de usar sua própria razão, de usar a sua liberdade e buscar a autonomia da sua vontade diante dos incitamentos heterônomos das inclinações. Charles Feldhaus.

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INTRODUÇÃO I - Valor absoluto e valor moral Há um consenso sobre o fato de que Kant prescinde de uma demonstração da realidade da moralidade nos argumentos da primeira e segunda seções da Fundamentação da metafísica dos costumes. No entanto, isto não significa que Kant está pressupondo a existência efetiva da moralidade sem necessidade de qualquer demonstração, bem como uma moralidade fundada em uma causa transcendente. Para Kant, a moralidade é um fato intrínseco à própria atividade prática da razão. Deste modo, negá-la implica em negar a própria racionalidade prática, ou seja, a possibilidade do bem moral. Afirmá-la, por outro lado, consiste numa estratégia que se vale distintamente de três noções específicas de Valor. Valor Absoluto da boa vontade, valor moral do dever e valor absoluto da racionalidade são noções diferentes que têm a mesma função na obra kantiana Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Nosso trabalho consiste em explicitar o uso destas três noções na estratégia argumentativa utilizada por Kant para fundamentar a moralidade. Assim, apresentamos estes conceitos relacionados a três argumentos específicos nos quais eles exercem as mesmas funções. A saber: indicar a necessidade e universalidade da atividade prática da razão pura chamada boa vontade. O primeiro argumento delimita o âmbito da moralidade, restringindo-o exclusivamente à atividade da vontade. Trata-se da primeira frase da primeira seção do respectivo texto, onde Kant afirma que “não é possível conceber coisa alguma no mundo, ou mesmo fora do mundo, que sem restrições possa ser considerada boa, a não ser uma boa vontade”.2 2

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 53. 13


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Assim, a moralidade identifica-se à boa vontade, pois consiste na única coisa que pode ser concebida como incondicionadamente boa e dotada de valor absoluto. Este argumento retira da consciência moral ordinária a ideia de valor absoluto da boa vontade e utiliza-a para indicar que o fundamento universal e necessário da moralidade não pode ser encontrado na efetiva realização das ações ou em alguma determinação transcendente. Mas, dado que a própria boa vontade comporta um valor absoluto, seu fundamento universal e necessário deve ser encontrado em sua própria atividade, ou seja, na atividade prática da razão pura chamada boa vontade. O segundo argumento estabelece que o valor moral de uma ação praticada por dever é um efeito resultante exclusivamente da atividade volitiva que, ao querer uma ação, põe-se em contrariedade com as inclinações. Assim, a noção de valor moral do agir por dever indica que o fundamento universal e necessário da moralidade tem um caráter puro e, por isso, só pode ser conhecido a priori pela razão. Assim como no primeiro argumento, a análise do conceito de valor moral do dever é uma estratégia para explicitar a necessidade e a universalidade da moralidade indicada pela ideia de valor absoluto da boa vontade. Embora Kant assegure que o conceito de dever é um conceito mais amplo, a análise deste conceito também conduz ao reconhecimento da origem do fundamento do valor absoluto da boa vontade atribuído à moralidade. Finalmente, há ainda outra função exercida pela noção de valor absoluto. No terceiro argumento, a noção de valor absoluto está relacionada à racionalidade e tem a função de indicar que a razão possui um fim em si mesma. Assim, o valor absoluto da racionalidade indica que antes de deixar-se determinar por qualquer fim estabelecido pela inclinação e por consistir na atividade prática da razão pura, a vontade toma sua própria racionalidade como princípio determinante da ação. Em outras palavras, o valor absoluto da racionalidade indica o fato de que a atividade de querer, própria dos seres 14


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racionais, não está condicionada a nenhum outro fim que ela mesma. Desse modo, a noção de valor absoluto da racionalidade indica o princípio fundamental para que Kant possa explicitar a universalidade do imperativo categórico encontrada na autonomia da vontade dos sujeitos racionais. Portanto, nosso trabalho toma a utilização destas três noções como fio condutor da argumentação kantiana, pois entendemos que estas noções são utilizadas para explicitar a necessidade e universalidade prática do fundamento da moralidade. II - Os pressupostos da moralidade A tese3 apresentada por Kant na primeira frase da obra Fundamentação da metafísica dos costumes propõe que a moralidade existe como uma atividade prática da razão pura chamada boa vontade. Os propósitos dessa tese kantiana são explicitar o fato de que a boa vontade é evidente a toda razão comum e, também, explicitar o fato de que a boa vontade possui um fundamento prático, ou seja, necessário e universal. Ao desenvolver os argumentos que sustentam essa tese, Kant demonstra que se a moralidade comporta um estatuto universal e necessário, ainda que de modo hipotético, então ela deve ser deduzida a partir da ideia de liberdade. Esta mesma interpretação subjaz à elaboração das traduções da Fundamentação da metafísica dos costumes levadas a cabo por Ferdinand Alquié (Francês) e Antônio Pinto Carvalho (Português). Na introdução à sua tradução, Alquié destaca o fato de que a pressuposição da moralidade é essencial para que Kant possa explicitar os fundamentos dela. Pois a 3

“Não é possível conceber coisa alguma no mundo, ou mesmo fora do mundo, que sem restrições possa ser considerada boa, a não ser uma boa vontade”. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 53.

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fundamentação da moralidade consiste em apontar sua estrutura a priori. Alquié entende necessário ressaltar que o propósito kantiano está claramente apresentado no título original da obra, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. No entanto, a tradução francesa Fondements de La Métaphysique des Moeurs suprime a ideia de que se trata de estabelecer um fundamento para certo tipo de metafísica4. Esta metafísica se ocupa da própria atividade prática da razão pura e da sua espontaneidade na determinação do bem moral. Ainda segundo Alquié, é justamente na primeira seção da Fundamentação da metafísica dos costumes que Kant procura estabelecer o fato moral a título de fato da razão.5 Isto significa, diz ele, que Kant pretende mostrar que o juízo moral manifesta em nós a atividade da razão. Deste modo, a tarefa filosófica consiste em destacar o elemento moral em sua pureza, ou seja, descobrir suas condições a priori. No entanto, Alquié ressalta que não se trata da análise da natureza humana, mas da análise do juízo comum dos homens em matéria moral.6 Seguindo esta interpretação, podemos entender que todo o propósito de Kant está em explicitar a natureza universal e necessária que sustenta o juízo moral. No entanto, para que Kant possa levar a cabo esta tarefa, ele pressupõe que 4

A tradução portuguesa recebeu o título Fundamentação da metafísica dos costumes e apresenta o mesmo problema de tradução. Pois, diz Alquié, “o título Fondements de la métaphysique des moeurs tornou-se tão admitido na França que nós não pensamos em modificá-lo. Ele não traduz com exatidão o título alemão, de acordo com o qual trata-se de “estabelecer” um fundamento “para” uma tal metafísica. Pois em alemão, este título é Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. Estabelecer este fundamento é estabelecer que o fato moral existe como fato da razão, distinto de todo domínio empírico, e que ele pode ser estudado a priori, por uma verdadeira metafísica”. ALQUIÉ, F. Les Écrits de 1785, p. 224. 5 Não nos ocuparemos da interpretação de Alquié acerca do Faktum der Vernunft apresentado na Crítica da Razão Prática, pois isto está fora da nossa proposta de análise. 6 Cf. ALQUIÉ, F. Les Écrits de 1785, p. 224. 16


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a moralidade possui um caráter objetivo, tanto nos argumentos da primeira seção como nos argumentos da segunda seção da Fundamentação da metafísica dos costumes. Este pressuposto só será esclarecido na terceira seção, quando Kant deduz a moralidade a partir da ideia de liberdade. Entendemos que a moralidade é o pressuposto fundamental e o fio condutor que permite o subsequente avanço por cada um dos momentos da argumentação kantiana. No entanto, o nosso propósito consiste em explicitar como Kant utiliza dois conceitos específicos para avançar no propósito da fundamentação, a saber: „valor moral‟ e „valor absoluto‟. Entendemos que cada um destes conceitos está relacionado com uma seção específica da fundamentação, embora ambos sejam utilizados com a mesma função, ou seja, pressupor a objetividade da moralidade. Isto não significa que Kant esteja formulando uma ética dos valores ou mesmo fundamentando a moralidade nos conceitos de um valor absoluto e um valor moral. Kant apenas utiliza estes conceitos no desenvolvimento da sua argumentação até poder explicitar a natureza a priori da atividade prática da razão pura. Em outras palavras, os conceitos de valor moral e valor absoluto serão utilizados para explicitar a universalidade e a necessidade da moralidade, tendo uma função específica para a ratio cognocendi. No entanto, do ponto de vista ratio essendi, trata-se de conceitos completamente desnecessários na fundamentação da moralidade, pois esta exige exclusivamente uma demonstração da sua universalidade e necessidade. Deste modo, o objetivo do nosso trabalho consiste em pontuar o desenvolvimento argumentativo desta ratio cognocendi na primeira, bem como na segunda seção da Fundamentação da metafísica dos costumes. O primeiro capítulo deste trabalho analisa a primeira sequência de argumentos encontrados na seção I da Fundamentação da metafísica dos costumes. Nesta análise, mostraremos como Kant utiliza a noção de valor absoluto para 17


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justificar a tese de que a moralidade se reduz à atividade prática da razão pura chamada boa vontade. O segundo capítulo analisa a segunda sequência de argumentos da seção I. Nesta análise, mostraremos como Kant utiliza o conceito de „valor moral‟ para explicitar o princípio geral do dever. Em outras palavras, o nosso primeiro intuito consiste em apontar como tais pressupostos permitem a Kant explicitar o fundamento da moralidade, partindo da definição de boa vontade e concluindo com a forma da lei moral encontrada nos juízos comuns acerca da moralidade. A nossa estratégia de análise nestes dois capítulos divide a argumentação kantiana da seção I da Fundamentação da metafísica dos costumes em quatro etapas. Entendemos que os três primeiros parágrafos da primeira seção se ocupam da definição do conceito de boa vontade. Ou seja, o argumento destes três primeiros parágrafos restringe a moralidade à atividade prática da razão pura chamada boa vontade. Os quatro parágrafos seguintes (4º-7º), que constituem o segundo momento da análise, ocupam-se da ideia de valor absoluto da boa vontade7 com o intuito de apontar a finalidade intrínseca da razão pura na sua atividade prática. O terceiro momento desta análise ocorre a partir do oitavo parágrafo (8º-17º), em que Kant se propõe a examinar o conceito de valor moral do dever como forma de elucidar a ideia de valor absoluto da boa vontade8. Por fim, o quarto momento da análise kantiana explicitará, por meio da análise das ações realizadas por dever, como o princípio geral do dever está presente em toda consciência racional comum. Analisaremos detalhadamente estas quatro etapas com o propósito de explicitar a função que os conceitos de valor absoluto e valor moral exercem em cada argumento, e também de caracterizar a sua função na fundamentação da moralidade. 7 8

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 55. Ibidem, p. 57.

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O terceiro capítulo analisa a primeira sequência de argumentos da seção II da Fundamentação da metafísica dos costumes. Esta análise distingue três passos na argumentação kantiana e aponta a relevância indireta que cada um deles têm para os propósitos do nosso trabalho. O primeiro passo argumentativo (§1º-§11º) estabelece a necessidade de uma filosofia moral capaz de analisar as determinações a priori da razão. Embora este argumento não aborde explicitamente o tema da nossa investigação, ele é fundamental para a caracterização de uma metafísica dos costumes capaz de explicitar os fundamentos da moralidade indicada pela ideia de valor absoluto da boa vontade. O segundo passo argumentativo (§12º-§59º) pode ser dividido em duas partes. A primeira parte classifica os modos distintos de determinação da vontade para poder especificar exatamente o que ocorre com a vontade humana. A segunda parte analisa a determinação da vontade humana e define os modos distintos de imperativos. Esta distinção classifica os imperativos em hipotéticos e categórico. O terceiro passo demonstra, por um lado, as condições de possibilidade dos imperativos hipotéticos e, por outro lado, esclarece o motivo pelo qual não podem ser demonstradas as condições de possibilidade do imperativo categórico, cabendo apenas explicitar a sua natureza universal e necessária. Assim como o primeiro argumento, estes três passos do segundo argumento não tratam dos conceitos de valor moral e valor absoluto. Entretanto, cada um deles têm o propósito de definir a moralidade de modo negativo. Em outras palavras, estes argumentos explicitam quais são os elementos práticos que estão destituídos de valor moral, de modo que os elementos puros possam ser explicitados por contraposição. Portanto, para o êxito do nosso trabalho, o terceiro capítulo explicita detalhadamente o modo como Kant define os elementos práticos destituídos de valor moral.

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O quarto capítulo analisa o último passo do segundo argumento apresentado na seção II da Fundamentação da metafísica dos costumes. Esta análise distingue-se dos três passos argumentativos do capítulo anterior porque aborda diretamente os conceitos relevantes para o nosso trabalho. Em outras palavras, a análise apresentada no quarto capítulo aponta para o fato de que o conceito de valor absoluto da racionalidade está no cerne do procedimento kantiano de fundamentação da moralidade – pois Kant o utiliza para postular a objetividade do princípio moral do dever e, assim, explicitar sua necessidade e universalidade até poder deduzi-la da ideia de liberdade. Deste modo, Kant constrói hipoteticamente a moralidade utilizando o conceito de valor absoluto da racionalidade para indicar como o estatuto objetivo do imperativo categórico deve ser estabelecido. O quarto capítulo do nosso trabalho, portanto, pretende explicitar como a utilização deste conceito postula a ideia de fim em si mesmo para estabelecer a objetividade da atividade prática da razão pura, isto é, o fim puramente racional para toda vontade. Noutras palavras, o propósito do quarto capítulo deste trabalho é encontrar a exata utilização do conceito de valor absoluto na formulação do imperativo categórico – e, finalmente, demonstrar a sua função na construção hipotética da ideia de autonomia da vontade. Em resumo, a nossa tarefa exige que explicitemos os passos argumentativos de Kant na Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Pois este procedimento permite compreender o modo pelo qual estes conceitos são fundamentais para o desenvolvimento do argumento kantiano na fundamentação da moralidade.

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III - O método e a divisão do texto Duas observações são imprescindíveis para que possamos iniciar a análise do argumento kantiano e explicitar o uso que ele faz dos conceitos de valor absoluto da boa vontade, valor moral do dever e valor absoluto da racionalidade. A primeira observação diz respeito às divisões do texto, e a segunda diz respeito ao método kantiano de análise do conhecimento prático. A divisão do texto, apresentada pelo próprio Kant, é a seguinte: Primeira seção: passagem do conhecimento racional comum da moralidade ao conhecimento filosófico. Segunda seção: passagem da filosofia moral popular à metafísica dos costumes. Terceira seção: último passo da Metafísica dos costumes à crítica da Razão Prática.9 Esta separação do texto em três partes visa facilitar a utilização do método de investigação analítico-sintético que Kant emprega para fundamentar a moralidade. Assim, diz ele: O método que penso ser mais convincente, quando pretendemos elevar-nos analiticamente do conhecimento vulgar à determinação do princípio supremo do mesmo, e, depois, por caminho inverso, tornar a descer sinteticamente do exame deste princípio e de suas origens ao conhecimento vulgar, onde se verifica sua aplicação.10

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Ibidem, p. 51. Ibidem, p. 50 - 51.

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O procedimento analítico tem, portanto, o objetivo de explicitar em que condições o conhecimento da moralidade será universal e necessário, avançando dos conceitos comuns da moralidade aos princípios a priori. Deste modo, seguindo a análise de Zingano acerca destas duas citações, podemos dizer o seguinte: a) A primeira seção pode ser entendida como uma passagem do “reconhecimento da moralidade à consciência do seu caráter puro, descobrindo a possibilidade de universalidade e necessidade que os princípios morais exigem”11. b) A segunda seção consiste numa “crítica das tentativas empíricas e na organização do saber puro da moralidade”12 c) A terceira seção “demonstra que condições garantem a efetividade ainda que na região do dever ser e não do ser”13 Ainda segundo Zingano, nós podemos considerar que estes três passos seguem um procedimento analítico, restando apenas a demonstração da liberdade da vontade para o momento sintético14. Aceitando estas divisões do texto kantiano, podemos especificar as seções em que realizaremos a nossa tarefa. Estabelecemos, anteriormente, que o nosso primeiro objetivo consiste em explicitar a utilização dos conceitos de valor absoluto da boa vontade e valor moral do dever na análise kantiana dos juízos racionais comuns acerca da moralidade. Este objetivo será alcançado com a análise da primeira seção da 11

ZINGANO, Marcos. Razão e História em Kant, p. 38. Idem. 13 Idem. 14 Idem. 12

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O Fundamento da Moralidade

Fundamentação da metafísica dos costumes. A análise da segunda seção permitirá que alcancemos o nosso segundo objetivo, ao explicitarmos a utilização do conceito de valor absoluto da racionalidade na concepção do Imperativo Categórico. Em outras palavras, explicitaremos o modo pelo qual estes conceitos servem de pano de fundo para a explicitação da universalidade e necessidade que estabelecem o fundamento da moralidade. A terceira seção, entretanto, não será objeto de estudo neste trabalho. Assim, ela servirá apenas de pano de fundo da nossa análise.

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CAPÍTULO I A BOA VONTADE I – O fundamento moral da boa vontade O conceito de boa vontade exerce uma função essencial na Fundamentação da metafísica dos costumes. A sua análise explicita não só o fato de que a moralidade é um pressuposto kantiano, mas também o modo correto de entendermos como a moralidade é possível para Kant. Em outras palavras, o conceito de boa vontade é utilizado não apenas para fundamentar a moralidade, mas principalmente para explicitar de que modo ela deve ser estabelecida. Assim, dizer que Kant pressupõe a moralidade é indicar apenas a ponta do iceberg em que consiste o modo como ele a estabelece. A análise do conceito de boa vontade pode ser divida em duas partes. Primeiramente, Kant introduz a tese essencial para a caracterização da noção de boa vontade. Esta tese restringe toda moralidade ao âmbito da faculdade de querer compartilhada por todos os seres racionais. Em outras palavras, Kant inicia o primeiro parágrafo apresentando a tese de que somente a boa vontade é acessível sem restrições a toda consciência comum, propondo, deste modo, que apenas a boa vontade possui o estatuto universal e necessário da moralidade. Em seguida, Kant mostra que a justificação para esta tese já está indicada nos juízos comuns acerca da moralidade, ainda que de modo negativo. Assim, ele analisa três proposições encontradas nas concepções comuns acerca da boa vontade que permitem apontar a relação entre a moralidade e a atividade prática da razão pura. Em outras palavras, no intuito de justificar a tese positiva acerca da boa vontade, Kant apresenta três proposições próprias da razão comum que, embora de modo negativo, apontam a maneira pela qual o valor intrínseco absoluto da moralidade pode ser concebido na atividade volitiva 25


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

(ou o modo de querer próprio da razão pura prática) chamada boa vontade. Estas três proposições retiradas da concepção da razão comum indicam, portanto, o fato de que o valor absoluto da boa vontade se encontra na necessidade e universalidade que fundamenta a moralidade. Vejamos, detalhadamente, esta primeira tese kantiana e, em seguida, quais são as proposições que compõem o todo do argumento. Na primeira frase do texto, Kant estabelece que a boa vontade é a única coisa que pode ser concebida como incondicionadamente boa. Pois, diz ele, “não é possível conceber coisa alguma no mundo, ou mesmo fora do mundo, que sem restrições possa ser considerada boa, a não ser uma boa vontade”.15 Esta tese kantiana traz toda e qualquer concepção acerca do bem para o âmbito da atividade da própria vontade. Como consequência desta estratégia, esta tese possui duas implicações, uma positiva e outra negativa. A implicação positiva é a de que o bem moral se refere exclusivamente ao modo racional de querer. Assim, Kant entende que o valor absoluto da moralidade pertence exclusivamente ao modo de querer resultante da atividade prática da razão pura. Já a implicação negativa desta tese kantiana estabelece que, no âmbito de uma atividade volitiva chamada vontade, a existência do bem não confere o valor absoluto da moralidade a fatos e realizações empíricas. Pois, como Kant exporá, o valor absoluto da boa vontade decorre da universalidade e necessidade que a atividade prática da razão pura estabelece em função da sua natureza a priori. A análise de Alquié sobre o propósito desta tese aponta o fato de que Kant não apresenta qualquer definição explícita acerca da boa vontade. O fundamental para Kant é explicitar que aquilo que os homens concebem como bom não consiste em fato empírico, mas consiste no juízo comum dos homens acerca da moralidade. Tal juízo estabelece que a boa vontade é a 15

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 55.

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O Fundamento da Moralidade

única coisa incondicionadamente boa. Ainda segundo Alquié, este juízo difere de fatos empíricos, que estão situados no tempo e são explicados pelas suas causas. Pois, diz ele, “aos olhos de Kant, ele manifesta, no seio da experiência humana, a aparição de uma razão atemporal que pode sozinha fundar o seu valor. É por isto que a análise procura, não a causa, mas o fundamento de tal juízo. Este fundamento não é exterior à consciência moral, ele é implicado por ela”.16 Seguindo a interpretação de Alquié, podemos reconhecer que a boa vontade consiste na única via de acesso aos fundamentos da moralidade. Também reconhecemos que não se trata de buscar explicações causais para um fato empírico. Trata-se, antes, de encontrar o fundamento de um juízo comum a toda razão humana. Deste modo, a tarefa de fundamentação da moralidade baseia-se no fato de que toda possibilidade de reconhecermos algo incondicionadamente bom se restringe a esta atividade prática da razão pura chamada boa vontade. Pois apenas a boa vontade explicita o valor intrínseco absoluto decorrente da universalidade e necessidade da moralidade. Kant não apresenta, inicialmente, qualquer demonstração que prove esta maneira de conceber a moralidade. Ele apenas aponta o fato de que os juízos comuns acerca da moralidade justificam este ponto de partida, ou seja, a boa vontade possui valor intrínseco absoluto. Isto não significa que a argumentação kantiana dispense qualquer fundamentação para esta tese acerca da boa vontade. Pelo contrário, a tarefa kantiana de fundamentação da moralidade consiste justamente na explicitação das condições de possibilidade deste modo de querer que a razão comum reconhece como dotado de valor absoluto. Assim, o ponto de partida da argumentação kantiana consiste em apontar o fato

16

ALQUIÉ, F. Les Ecrits de 1785, p. 225. 27


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

de que a razão comum reconhece a necessidade e universalidade da moralidade por meio do valor absoluto da boa vontade. Kant não apresenta uma demonstração direta que justifique o ponto de partida da sua argumentação citado acima. No entanto, por meio de três proposições negativas acerca do bem moral, ele aponta o fato de que o valor absoluto da boa vontade indica que esta (a boa vontade) consiste no modo de querer universal e necessário. Deste modo, Kant entende que a razão comum identifica o bem moral ao valor absoluto da boa vontade, pois eles resultam de um modo de querer universal e necessário próprio da atividade prática da razão pura. A primeira proposição apresentada pela argumentação kantiana explicita a universalidade da boa vontade. Ela supõe que a boa vontade faz convergir o princípio da ação para fins universais. Noutras palavras, não importa qual seja a ação, sendo tal ação determinada por uma boa vontade, o seu fim não será particular, mas será um fim universal. Assim, diz Kant: A inteligência, o dom de apreender a semelhança das coisas, a faculdade de julgar, e os demais talentos do espírito, seja qual for o nome que se lhe dê, ou a coragem, a decisão, a perseverança nos propósitos, como qualidade de temperamento, são sem dúvida, sob múltiplos respeitos, coisas boas e apetecíveis; podem entanto estes dons da natureza tornarem-se extremamente maus e prejudiciais, se não for a boa vontade que deles deve servir-se e cuja especial disposição se denomina caráter. O mesmo se diga dos dons da fortuna. O poder, a riqueza, a honra, a própria saúde e o completo bem estar e satisfação do próprio estado, em resumo o que se chama felicidade, geram uma confiança em si mesmo que muitas vezes se converge em presunção, quando falta a boa 28


O Fundamento da Moralidade

vontade para moderar e fazer convergir para fins universais tanto a influência que tais dons exercem sobre a alma como também o princípio da ação17. A razão comum reconhece que nenhuma das qualidades citadas no texto kantiano pode ser considerada boa por si mesma. Para ela, há um modo de querer ligado exclusivamente à pretensão do agente que determina sua disposição de caráter. Assim, a razão comum reconhece que o bem moral de uma ação deve ser medido apenas pela intenção e não pelo resultado. Negativamente, a argumentação kantiana citada acima pressupõe que o bem moral ou valor absoluto da boa vontade decorre do fato de que este valor (que torna boa tal vontade) não depende da realização de um fim particular, mas apenas do querer que almeja fins universais. Portanto, a universalidade presente neste modo de querer é o primeiro elemento da moralidade que Kant aponta a partir da ideia de valor absoluto da boa vontade concebida pela razão comum. A segunda proposição apresentada pela argumentação kantiana explicita a natureza objetiva e incondicionada da boa vontade. Pois ela supõe que a boa vontade constitui uma parte do valor intrínseco, ou incondicionado, presente no querer de cada pessoa. Ou seja, o valor intrínseco de um sujeito depende diretamente dos princípios da boa vontade para que possa constituir-se como valor incondicionado. Assim, diz Kant: Há certas qualidades favoráveis a esta boa vontade e que podem facilitar muito sua obra, mas que, não obstante, não possuem valor intrínseco, antes pressupõe sempre uma boa vontade. É esta uma condição que limita o alto apreço em que, 17

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 53. 29


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

justificadamente, as temos, e que não permite reputá-las incondicionalmente boas. A moderação nos afetos e paixões, o domínio de si e a calma reflexão, não são apenas bons sob muitos aspectos, mas parecem constituírem até uma parte do valor intrínseco da pessoa; falta contudo ainda muito para que sem restrições possam ser considerados bons (a despeito do valor incondicionado que os antigos lhe atribuíam). Sem os princípios de uma boa vontade podem tais qualidades tornar-se extremamente más.18 Segundo a passagem acima citada, a razão comum reconhece que não pode haver valor incondicionado, bem como valor intrínseco de qualquer pessoa, que não esteja ligado exclusivamente ao modo de querer próprio da boa vontade. Negativamente, esta proposição supõe que o valor intrínseco de cada pessoa não decorre das qualidades pessoais, mas apenas dos princípios da boa vontade que governam seu querer. Pois apenas a boa vontade comporta valor intrínseco incondicionado, como afirma Kant na primeira frase da Fundamentação da metafísica dos costumes. Portanto, o valor intrínseco presente neste modo de querer é o segundo elemento da moralidade que Kant aponta na boa vontade. A terceira e última proposição apresentada pela argumentação kantiana supõe que, em si mesma, a boa vontade possui valor intrínseco absoluto. Em outras palavras, por si mesma – enquanto mero querer – possui um valor que está acima de tudo. Assim, diz Kant:

18

Ibidem, p. 54.

30


O Fundamento da Moralidade

A boa vontade é tal, não por suas obras ou realizações, não por sua aptidão para alcançar um fim proposto, mas só pelo querer; por outras palavras, é boa em si e, considerada em si mesma, deve sem comparação ser apreciada em maior estima do que tudo quanto por meio dela poderia ser cumprido unicamente em favor de alguma inclinação ou, se prefere, em favor da soma de todas as inclinações. [...] A utilidade ou a inutilidade em nada logram aumentar ou diminuir este valor.19

A razão comum reconhece, por um lado, que o valor absoluto da boa vontade não está na utilidade de algum fim particular almejado, nem mesmo no valor deste fim. Pelo contrário: a boa vontade é aquela que possui valor absoluto só pelo querer que almeja fins universais. Por outro lado, a razão comum reconhece, também, que o valor intrínseco de um sujeito não decorre de aspectos da sua personalidade. Antes, este valor intrínseco de cada um resulta exclusivamente do valor incondicionado desta capacidade de querer. Deste modo, esta terceira proposição consiste numa síntese das duas proposições anteriores. Pois ela aponta para o fato de que a razão comum reconhece o valor absoluto da boa vontade, tanto na universalidade do fim almejado apontado pela primeira proposição, como no valor intrínseco próprio do modo de querer apontado pela segunda proposição. Como afirmamos, estas três proposições kantianas acerca do valor absoluto são apresentadas de modo negativo no procedimento de análise do conceito de boa vontade. Embora sejam proposições negativas, elas utilizam a noção de valor absoluto para apontar uma estrutura sintética (universalidade – 19

Idem. 31


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

pluralidade – totalidade) que sustenta a ideia de boa vontade. Pois já aqui nos primeiros argumentos da Fundamentação da metafísica dos costumes podemos reconhecer, ainda que de modo negativo, a maneira kantiana de explicitar o princípio da moralidade. Segundo Kant, a busca do princípio da moralidade consiste num progresso realizado pela categoria da quantidade, pois ela sintetiza a unidade e a pluralidade, resultando na totalidade. Assim, diz Kant: As três maneiras por nós indicadas de representar o principio da moralidade não são, no fundo, senão outras tantas fórmulas de uma só e mesma lei, fórmulas cada uma das quais contém em si, e por si mesma, as outras duas. (...) O progresso aqui (na determinação completa do princípio da moralidade) realiza-se de algum modo por meio das categorias, indo da unidade da forma da vontade (da universalidade da mesma) à pluralidade da matéria (dos objetos, isto é, dos fins), e daqui à totalidade ou integralidade dos sistemas dos mesmos fins.20 Para Kant, o princípio da moralidade é composto das seguintes partes. Primeiramente, por uma forma que consiste na universalidade e deve possuir a natureza de uma lei universal. Em seguida, deve possuir uma matéria, ou seja, um fim que sirva para limitar todo fim puramente relativo e arbitrário. E, finalmente, uma determinação completa resultante da síntese da matéria e da forma. Deste modo, já aqui nos primeiros parágrafos da seção I, Kant sugere que o princípio da moralidade – reconhecido pela razão comum no valor absoluto da

20

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 100.

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O Fundamento da Moralidade

boa vontade, o qual deve ser explicitado pelo método analítico – possui uma estrutura sintética a priori. A ideia de valor absoluto da boa vontade é, portanto, o conceito chave que aponta tanto para a pressuposição kantiana da moralidade, quanto para a forma a priori que esta comporta. No entanto, Kant reconhece que, embora a moralidade possa ser postulada nesta primeira parte da Fundamentação, a sua natureza a priori deverá ser justificada. Por outras palavras, Kant reconhece a necessidade de justificar a moralidade de modo exclusivamente a priori. Esta é a questão principal, pois ela marca o encerramento deste primeiro argumento. Com ela, Kant passa do primeiro momento da sua análise, que investiga as concepções morais comuns acerca da boa vontade, ao segundo momento da análise, que pretende apontar a existência a priori da boa vontade.

II – A constituição a priori da boa vontade A partir do quarto parágrafo, diz Kant, será preciso examinar diretamente a ideia de valor absoluto da simples vontade.21 Como efeito, a tarefa agora é explicitar como a relação entre a simples vontade e a razão comum estabelece a subordinação da inclinação pela vontade racional. Assim, nos parágrafos quinto a oitavo, Kant apresenta um argumento teleológico que impõe a primazia da vontade, enquanto dotada de valor intrínseco absoluto decorrente do querer, sobre a inclinação. Este argumento teleológico tem o propósito de conferir à razão o domínio sobre a vontade, bem como o de introduzir alguns postulados que estabeleçam a boa vontade como atividade prática da razão pura. Pois Kant entende que sem uma elucidação detalhada, este ponto pode implicar em diversos equívocos. Assim, diz ele: 21

Ibidem, p. 55. 33


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

Há todavia nesta ideia do valor absoluto da simples vontade, neste modo de estimar prescindindo de qualquer critério de utilidade, algo de tão estranho que a despeito do completo acordo existente entre ela (ideia do valor absoluto da simples vontade) e a razão comum, pode todavia surgir uma suspeita: quem sabe se, na realidade, não se alberga aqui, no fundo, senão uma vaporosa fantasmagoria e se não será compreender falsamente a natureza em sua intenção de conferir à razão a direção de nossa vontade. Pelo que, propomo-nos examinar, desde este ponto de vista, a ideia do valor absoluto da pura vontade22. Assim, no intuito de prosseguir na tarefa de fundamentação da moralidade, Kant utiliza a noção de valor intrínseco absoluto para indicar a primazia da vontade racional sobre a inclinação e estabelecer que a vontade racional possui uma finalidade estimável acima de qualquer propósito da inclinação. O procedimento kantiano é composto de duas etapas. Primeiramente, ele distingue a natureza humana em duas partes. São elas, razão e inclinação. Estas duas partes da natureza humana são faculdades determinadoras das ações humanas. Em seguida, por meio de um argumento teleológico, Kant concede à razão a supremacia sobre a inclinação. Esta relação de subordinação é fundamental para que Kant derive duas consequências. Ambas as consequências se dão em função da finalidade (teleológica) da razão. A primeira consequência assegura que se a inclinação está subordinada à razão, o seu fim – a felicidade – também está subordinado ao 22

Ibidem, p. 54.

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O Fundamento da Moralidade

fim que a razão estabelece. A segunda consequência estabelece que a finalidade da razão é produzir uma boa vontade, não como meio para obtenção de algo, mas como realização de um fim intrínseco que ela possui em si mesma. Deste modo, Kant encerra este segundo momento da análise propondo que a finalidade da razão, enquanto busca a realização de uma boa vontade como a sua finalidade exclusiva, não almeja a felicidade, mas almeja o seu próprio fim. Vejamos detalhadamente como ele desenvolve este argumento. O primeiro passo kantiano consiste em postular que todas as partes que compõem o organismo de um ser vivo têm a função que lhe é apropriada, de modo que cada órgão está destinado a uma finalidade específica pelo fato de ser o único órgão capaz de realizá-la de modo eficiente. Assim, diz Kant, “na constituição natural de um ser organizado, ou seja, de um ser constituído em vista da vida, assentamos como princípio fundamental que não existe órgão destinado a uma função, que não seja igualmente o mais próprio e adaptado a esta função”.23 O argumento kantiano apresenta este postulado para apoiar dois pressupostos que Kant ainda não pode demonstrar. O primeiro pressuposto estabelece que a razão exerce uma atividade prática cuja finalidade não se resume na realização de um meio para a obtenção de um fim qualquer, mas busca de modo concomitante a realização de um fim que em si mesmo possa ser considerado bom. Ou seja, Kant retoma a tese desenvolvida nos quatro primeiros parágrafos e pressupõe que a finalidade prática da razão não consiste apenas em executar uma ação da maneira mais eficiente. A partir da ideia de valor absoluto da boa vontade, ele indica que a finalidade prática da razão é também fazer com que a vontade seja boa em si mesma, enquanto mero querer, como único modo de originar uma boa vontade. Deste modo, o argumento kantiano toma como primeiro pressuposto o fato de que a finalidade da 23

Ibidem, p. 55. 35


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

razão, ao executar as intenções, possui em si mesmo o propósito prático de estabelecer o bem supremo. O segundo pressuposto estabelece que a finalidade da vontade instintiva é a busca da felicidade. Em outras palavras, Kant não apresenta uma demonstração, mas toma como pressuposto o consenso existente nas concepções morais comuns de que todo ímpeto volitivo originado na inclinação tem como propósito último a felicidade. O argumento kantiano consiste numa espécie de redução ao absurdo introduzida da seguinte maneira. Ora, se num ser prendado de razão e de vontade a natureza tivesse como fim peculiar a sua conservação, o seu bem-estar, numa palavra, sua felicidade, devemos confessar que ela teria tomado muito mal suas precauções, escolhendo a razão deste ser como executora de suas intenções 24. Este argumento refuta a tese de que o propósito da natureza humana seja buscar a felicidade. Kant ressalta a concepção de que o homem é um ser dotado de razão e vontade. Esta concepção é agregada ao pressuposto indicado pela ideia de valor absoluto da boa vontade. Como vimos acima, este pressuposto impõe que a razão, na sua atividade prática, não estabelece apenas o meio para a obtenção de certos fins, mas toma a si mesma como finalidade. Assim, Kant pode refutar a ideia de que o propósito da existência humana seja a busca da felicidade. Pois, por um lado, o segundo pressuposto deste argumento estabelece que a busca da felicidade cabe à inclinação. Por outro lado, conforme o primeiro pressuposto, quem está encarregada pela natureza de executar as intenções, bem como de estabelecer o fim último que deve gerar uma boa vontade, é a razão na sua atividade prática. Portanto, Kant 24

Idem.

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O Fundamento da Moralidade

refuta a tese de que o propósito humano seja a busca da felicidade pelo fato de que a finalidade da razão humana é realizar o seu propósito (a boa vontade). Como efeito, se o propósito humano fosse buscar a felicidade, conclui Kant, “a natureza teria tomado sobre si a escolha, não só dos fins, como também dos meios, e com sábia previdência os teria confiado ao instinto”.25 Ao apresentar este argumento, o propósito kantiano não é negar o fato de que a busca da felicidade seja própria da natureza humana. Na verdade, Kant pretende estabelecer que apenas uma parte da natureza humana tem como finalidade a busca da felicidade. Assim, o argumento kantiano assegura que esta busca é própria da inclinação, e não da razão, pois a razão é ineficiente para tal propósito. Kant expressa esta conclusão afirmando que a razão não é suficientemente capaz de guiar com segurança a vontade no concernente a seus objetos e satisfação de todas as nossas necessidades. Pois, neste caso, a razão em parte concorre para multiplicar tais necessidades. Portanto, ele concluiu que o instinto natural inato a guiaria mais seguramente a este fim.26 Após estabelecer qual não é o propósito da razão, Kant retira duas consequências da formulação do argumento. A primeira consequência estabelece de modo positivo que a finalidade da razão é a de produzir uma boa vontade, não como meio para a obtenção de algo, mas como realização de um fim intrínseco em si mesma. Por outras palavras, Kant estabelece que a razão, na sua atividade prática, consiste numa potência controladora da vontade com a finalidade de conduzi-la à volição do Bem. Assim, diz Kant: Atendendo entanto a que a razão nos foi outorgada como potência prática, isto é, como 25 26

Idem. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 56. 37


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

potência que deve exercer influência sobre a vontade, é mister que sua verdadeira destinação seja produzir uma vontade boa, não como meio para conseguir algum outro fim, mas boa em si mesma; para o que a razão era absolutamente necessária, uma vez que, em tudo o mais, a natureza, na repartição de suas propriedades, procedeu de acordo com fins determinados27. A segunda consequência estabelece positivamente a subordinação do fim buscado pela inclinação ao fim buscado pela razão. Em outras palavras, ao estabelecer que a inclinação está subordinada à razão, Kant estabelece que o fim almejado pela inclinação – a felicidade – também está subordinado à finalidade da razão. Portanto, esta distribuição hierárquica decorre do pressuposto teleológico expresso na argumentação, uma vez que a natureza estabelece a finalidade de cada órgão, bem como a escala de subordinação entre eles. Deste modo, a seguinte passagem torna clara a conclusão kantiana acerca desta tese. É perfeitamente coadunável com a sabedoria da natureza o fato de a cultura da razão, indispensável para obter o primeiro destes fins que é incondicionado, limitar de muitos modos, ao menos nesta vida, a obtenção do segundo, que é sempre um fim condicionado, ou seja, a felicidade, até ao ponto de reduzir a nada a sua realização. Nisto a natureza não age contra toda finalidade, pois a razão, que reconhece que seu supremo destino prático consiste em criar uma boa vontade, não pode encontrar no cumprimento deste propósito senão satisfação a ela adequada, ou seja, 27

Idem.

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O Fundamento da Moralidade

resultante da realização de um fim que só ela determina, embora daí redunde algum prejuízo para os fins da inclinação28. Deste modo, Kant encerra este segundo momento da análise propondo que a finalidade da razão, enquanto busca a realização de uma boa vontade como sua exclusiva finalidade, não almeja a felicidade, mas consiste numa potência prática capaz de influenciar a atividade volitiva na direção do bem supremo. Concluímos, assim, a análise dos dois argumentos kantianos acerca da boa vontade apresentados nos sete primeiros parágrafos da Fundamentação da metafísica dos costumes. A nossa análise reconheceu que o propósito do primeiro argumento é indicar, por meio de proposições negativas, a natureza sintética a priori que o princípio da moralidade possui. Apontamos, também, que a argumentação kantiana pressupõe que estas proposições negativas acerca do valor absoluto da boa vontade são reconhecidas objetivamente pela razão comum. Finalmente, explicitamos que a natureza a priori da moralidade indicada nesta análise comporta uma forma, uma matéria e uma determinação completa. A forma consiste na universalidade e resulta exclusivamente do querer que almeja fins universais. A matéria, ou seja, um fim que sirva para limiar todo fim puramente relativo ou arbitrário, consiste na capacidade intrínseca de querer segundo fins universais. Finalmente, a determinação completa consiste na síntese entre matéria e forma e resulta na capacidade de estabelecer o valor intrínseco incondicionado de uma ação (o bem supremo). Em outras palavras, esta determinação completa consiste exclusivamente na atividade volitiva que em si mesma almeja fins universais. Portanto, o primeiro argumento kantiano

28

Idem. 39


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

aponta para a possível tese de que a moralidade possui uma natureza sintética a priori. Dando continuidade à tese apresenta acima, Kant inicia o segundo argumento com o propósito de estabelecer a primazia do âmbito volitivo racional (a priori) sobre o âmbito volitivo sensível (a posteriori). Assim, ele utiliza a ideia de valor absoluto da boa vontade para apresentar o postulado teleológico. Pois mesmo que a primazia da razão sobre a inclinação seja justificada por uma finalidade que lhe seja intrínseca, a argumentação kantiana se vale do consenso da razão comum acerca da ideia de valor absoluto da boa vontade para indicar a natureza teleológica das atividades volitivas racional e sensível, bem como para explicitar a determinação da primeira sobre a segunda. Em outras palavras, é justamente o consenso da razão comum acerca da ideia de valor absoluto da boa vontade que indica a primazia da atividade prática da razão pura sobre a atividade volitiva da sensibilidade, e bem assim a necessidade prática de que a simples vontade se converta numa boa vontade. Dando sequência a estas duas etapas da análise, seria razoável esperar por uma conclusão ou uma síntese decorrente destas duas teses kantianas. No entanto, Kant reconhece que a análise da ideia do valor absoluto da boa vontade não está isenta de dissimulação e erro ao realizar a tarefa de fundamentação da moral. Pois, como vimos, o desenvolvimento da argumentação consiste numa sequência de proposições negativas que impedem a apresentação de qualquer conclusão. Kant precisa evitar que “fantasmagorias” impossibilitem a explicitação da necessidade e universalidade que fundamentam a ideia de valor absoluto da boa vontade. No intuito de solucionar este problema, ele se propõe analisar o conceito de dever. Neste sentido, o propósito do segundo momento de análise estendese ao terceiro momento, ou seja, Kant analisa o conceito de dever com o intuito de elucidar a ideia de valor absoluto da boa

40


O Fundamento da Moralidade

vontade e explicitar o princípio a priori (universal e necessário) que fundamenta a moralidade. Diz ele: A fim de elucidar o conceito de uma vontade altamente estimável em si, de uma vontade boa independentemente de qualquer intenção ulterior, conceito já inerente a todo entendimento são e que precisa não tanto de ser ensinado quanto apenas de ser explicado; a fim de elucidar este conceito, que ocupa sempre o posto mais elevado na apreciação do valor completo das nossas ações e constitui a condição de tudo o mais, examinaremos o conceito de DEVER, que contém o de boa vontade, com certas restrições, é certo, e com certos entraves subjetivos, mas que, longe de o dissimularem e tornarem irreconhecível, mais o salientam por contraste e o tornam mais esplendente29. Embora Kant assegure que se trata de um conceito mais amplo, a análise do conceito de dever também conduz ao reconhecimento da origem do valor absoluto da moralidade. Em outras palavras, não há diferença entre valor absoluto da boa vontade e valor moral do dever, ao menos no que diz respeito ao conhecimento comum da moralidade analisado na Fundamentação da metafísica dos costumes. Pois estes conceitos se originam no próprio fundamento necessário e universal da moralidade. Isto significa que a análise de Kant pretende encontrar a universalidade e necessidade da moralidade capaz de originar e atribuir valor absoluto à moralidade.

29

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 57. 41



CAPITULO II O DEVER MORAL I - O dever A estratégia kantiana apresentada no desenvolvimento do argumento acerca do dever tem um duplo propósito. Primeiramente, a argumentação pretende analisar uma espécie de dever que explicita nitidamente o valor absoluto da boa vontade, ou seja, trata-se da análise do dever que comporta valor moral segundo os juízos comuns acerca da moralidade. Em seguida, a argumentação pretende apontar a origem do valor moral deste dever, ou seja, trata-se de explicitar a necessidade e universalidade prática que fundamenta um dos modos específicos de dever. Em outras palavras, a análise kantiana trata das ações praticadas por dever e cuja determinação é contrária aos propósitos da inclinação. Neste ponto da análise, procuramos seguir e aprofundar a interpretação de Henry Allison acerca do propósito da primeira seção da Fundamentação da metafísica dos costumes. Na primeira seção, diz Allison, “Kant começa com o que ele toma como sendo o entendimento pré-filosófico ordinário da moralidade (refletido na ideia de uma boa vontade como o único bem incondicionado) e procede analiticamente a partir disto para o conceito de dever e das ações motivadas pelo pensamento do dever como lócus do valor moral”. 30 Allison entende que o procedimento analítico de Kant começa com uma análise do conceito de bondade da boa vontade, explicitando-a como um bem intrínseco constituído exclusivamente pelo modo de querer (e não pelas realizações no mundo). Assim, a introdução

30

ALLISSON, H. E. Kant´s Theory of Freedom, p. 85. 43


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

do conceito de dever consiste num esforço para delinear este modo de querer que comporta valor moral.31 Aproximamo-nos, neste ponto, da interpretação de Allison. Pois reconhecemos que a análise kantiana distingue este tipo de dever (encontrado nas ações que ao serem praticadas por dever contrariam as inclinações) como forma de explicitar o querer que comporta valor moral. Entendemos que a noção de valor moral é o fio condutor neste ponto da argumentação. Pois a estratégia inicial de fundamentação da moralidade consistia em examinar a ideia do valor absoluto da pura vontade sob o ponto de vista da boa vontade incondicionada.32 No entanto, as dificuldades encontradas na busca pelo fundamento da ideia de valor absoluto de uma boa vontade presente a toda razão comum exigem que Kant analise um tipo específico de dever. Assim, a argumentação kantiana propõe que somente a análise acerca do dever pode explicitar a origem do valor moral de uma ação. Deste modo, a nossa tarefa consistirá em explicitar o modo como Kant utiliza a ideia de valor moral para indicar o fundamento da moralidade encontrado nas ações realizadas por dever. A análise kantiana acerca do conceito de dever começa no parágrafo nono e estende-se até o parágrafo décimo sétimo da primeira seção. Para esclarecer o propósito desta análise, Kant distingue três classes de ação em função das relações que elas possuem para com o dever. A primeira classe contém as ações contrárias ao dever. A segunda classe de ações contém aquelas ações praticadas em conformidade com o dever, mas cujos propósitos coincidem com os propósitos das inclinações. A última classe de ações são aquelas praticadas por causa do dever, estas contrariam os propósitos das inclinações. Kant descarta da sua análise as duas primeiras classes de ações referidas acima. Pois, para ele, a análise das ações 31 32

Cf. ALLISSON, H. E. Kant´s Theory of Freedom, p. 107. Cf. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 54.

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O Fundamento da Moralidade

contrárias ao dever não pode explicitar a origem do seu valor moral, uma vez que não possuem valor moral algum e, ainda, trata-se de ações contrárias às determinações da moralidade. Do modo similar, a análise das ações conformes com o dever, cujo propósito coincide com os propósitos da inclinação, não pode explicitar a origem do valor moral. Neste caso, o problema decorre do método kantiano de análise, uma vez que tal método não é capaz de determinar se a ação foi praticada por dever ou se foi praticada em função de alguma inclinação.33 Deste modo, Kant estabelece que a compreensão da origem do valor moral da ação exige a análise do último tipo específico de dever, ou seja, uma análise das ações praticadas por causa do dever que contrariam os propósitos da inclinação. Pois, contrariamente às outras classes de ações que explicitam os propósitos da busca da felicidade, Kant entende que as ações praticadas por dever são as únicas que explicitam o seu valor moral. Assim, o propósito da análise kantiana consistirá em explicitar o modo pelo qual este último tipo de ação constitui a origem do valor moral do dever. No desenvolvimento da análise deste conceito de dever, Kant apresenta as três proposições seguintes. 1. Para ter valor moral uma ação deve ser praticada por causa do dever.34 2. Uma ação cumprida por dever extrai o seu valor moral não do fim que por ela deva ser alcançado, mas da máxima que a determina.35

33

Isto não significa que possa haver outro método capaz de levar a cabo tal tarefa. 34 Esta proposição encontra-se no texto kantiano apenas de modo implícito. No entanto, esta é uma formulação positiva aceita pacificamente por alguns comentadores, como bem estabelecem os comentários de Wolff. Cf. WOLFF, P. R. The Autonomy of Reason, p. 64. 35 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 60. 45


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

3. O dever é a necessidade de cumprir uma ação pelo respeito à lei.36 Vejamos proposições.

detalhadamente

cada

uma

destas

três

II - O dever: A primeira proposição A primeira proposição do argumento é obtida a partir da análise de três exemplos de ações cotidianas praticadas por dever. Por intermédio destes exemplos, Kant demonstra que o valor moral das ações praticadas por dever resulta do fato de que elas não são motivadas por nenhuma inclinação, antes exclusivamente por certo modo de querer. No seu primeiro exemplo, ele explica que a ação honesta de um comerciante não pode conter valor moral se este age por meio de um cálculo interesseiro ou por meio de uma inclinação imediata. Neste caso, o comerciante, embora honesto, age com interesse em manter a sua clientela e obter mais lucro, seja no momento presente ou no momento futuro. De modo contrário, segundo o exemplo seguinte, manter a própria vida quando tudo o que se deseja é a morte consiste numa ação que comporta valor moral. Neste caso, a ação é praticada exclusivamente em função do dever, uma vez que a inclinação recusa e contraria tal determinação. Do mesmo modo, o valor moral só pode ser encontrado na prática do bem quando a ação é praticada exclusivamente por dever, ou seja, contrariando toda inclinação. Assim, diz Kant a respeito destes tipos de ações: “justamente aqui transparece o valor moral incontestavelmente mais elevado do seu caráter, resultante de ele praticar o bem, não por inclinação, mas por dever”

36

Idem.

46


O Fundamento da Moralidade

.37 De modo implícito, portanto, Kant estabelece que “para ter valor moral uma ação deve ser praticada exclusivamente por causa do dever”, ou seja, não é possível que o valor moral decorra de qualquer ação determinada pela inclinação. A análise kantiana desta primeira proposição estabelece, portanto, a relação exclusiva entre o dever e o valor moral e, ao mesmo tempo, exclui qualquer relação entre a inclinação e o valor moral. Noutras palavras, uma vez que a análise pressupôs a existência efetiva de ações que comportam valor moral, devemos reconhecer nestas ações que tal valor não está ligado aos propósitos da inclinação. De modo contrário, este valor apenas se explicita como consequência de ações praticadas por dever que contrariam o desígnio da inclinação. Encontramos neste argumento kantiano alguns elementos essenciais para o desenvolvimento do nosso trabalho. Nesta primeira proposição, Kant utiliza a noção de valor moral de uma ação, presente em todo juízo comum acerca da moralidade, para definir o tipo de dever capaz de determinar uma ação boa. Assim, a noção de valor moral é utilizada, primeiramente, para estabelecer a distinção entre ações praticadas em conformidade para com o dever e ações praticadas por dever. Em seguida, a noção de valor moral é utilizada para indicar efetivamente que “uma ação, para ter valor moral, deve ser praticada por causa do dever”. Importa fazer uma breve consideração acerca desta primeira proposição, que diz: “Para ter valor moral uma ação deve ser praticada por causa do dever”. Ao contrário das outras duas, ela não é apresentada de modo explícito no texto kantiano. No desenvolvimento da análise do dever, a primeira proposição é formulada de modo implícito entre os parágrafos oitavo e décimo terceiro. No entanto, o texto deixa evidente que a sua formulação existe. Pois, após apresentá-la de modo indireto, Kant explicitamente convida o leitor à análise da 37

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 59. 47


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

segunda proposição e, posteriormente, à análise da terceira proposição. Assim, entendemos que há uma proposição acerca do dever formulada nestes parágrafos, bem como que a sua exata formulação seja esta: “Para ter valor moral uma ação deve ser praticada por causa do dever”. Apesar de defendermos esta interpretação, sabemos que esta passagem permite algumas interpretações controversas e, por isto, exige alguns comentários. Seguindo a análise de Wolff acerca deste ponto,38 podemos avançar um exemplo. Ducan, segundo o comentário wolffiano, entende que a primeira destas três proposições não apresenta uma conexão entre a noção de valor moral e a noção de uma ação executada por causa do dever. Para Ducan, trata-se apenas de uma ampliação da tese do primeiro parágrafo, ou seja, de que “não é possível conceber coisa alguma no mundo, ou mesmo fora do mundo, que sem restrição possa ser considerada boa, a não ser uma BOA VONTADE”.39 Por outras palavras, Ducan entende que não existe uma proposição acerca do dever implícita à argumentação. Trata-se de um argumento que introduz a moralidade no âmbito da razão comum, o qual não apresenta qualquer proposição implícita ou explícita. Ainda segundo Wolff, a posição de Ducan não se sustenta pelo fato de que a primeira proposição é parte integrante da síntese que compõe a terceira proposição. Assim, diz ele em sua refutação a Ducan, “se a primeira proposição é simplesmente ampliação do bem incondicionado da boa vontade, não está claro por que Kant teria imaginado que a terceira proposição decorreria da primeira e da segunda”.40 Concordamos parcialmente com Wolff, pois entendemos que, de fato, o argumento em questão consiste

38

Cf. WOLFF, P. R. The Autonomy of Reason, p. 64-65. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 53. 40 WOLFF, P. R. The Autonomy of Reason, p. 65. 39

48


O Fundamento da Moralidade

num desenvolvimento progressivo da análise kantiana, de modo que cada uma das três proposições encerra uma etapa do desenvolvimento desta argumentação. Assim, ao apresentar implicitamente a primeira proposição, um dos propósitos de Kant consiste em estabelecer a relação exclusiva entre o valor moral de uma ação e a sua realização por causa do dever. No entanto, entendemos que a posição de Ducan não pode ser refutada totalmente. Embora ele não reconheça a formulação implícita da primeira proposição acerca do dever, a sua análise aponta outro propósito implícito neste argumento. Ou seja, Ducan aponta para o fato de que o outro propósito deste argumento kantiano é ampliar as concepções da razão comum acerca do âmbito da moralidade. Concordamos com esta consideração de Ducan, pois entendemos que, se Kant reduz a moralidade à atividade prática da razão pura chamada boa vontade, então esta ideia (somente uma ação realizada por dever comporta valor moral) pressupõe que o dever também é um modo de querer próprio da boa vontade. Portanto, ao estabelecer a primeira proposição acerca do dever, Kant esclarece que a moralidade restringida à boa vontade se expressa objetivamente nas ações praticadas por dever. Deste modo, ele parte do consenso acerca das ações que comportam valor moral e utiliza a própria noção de valor moral para especificar o tipo de dever que se vincula à boa vontade. III - O dever: A segunda proposição Ao contrário da primeira proposição, a segunda proposição é apresentada de modo explícito e estabelece a origem do valor moral da ação. Kant diz que “uma ação cumprida por dever tira o seu valor moral não do fim que por ela deve ser alcançado, mas da máxima que a determina”.41 Por outras 41

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 60. 49


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

palavras, trata-se de afirmar que o valor moral se relaciona exclusivamente com a máxima da ação. Para sustentar esta proposição, Kant introduz uma tese fundamental. Primeiramente, a argumentação kantiana distingue o princípio de determinação da vontade em princípio a priori e princípio a posteriori. Em seguida, por meio de um argumento sutil, Kant estabelece a primazia da determinação a priori sobre a determinação a posteriori. Finalmente, ele conclui a partir destes dois passos que o valor moral da ação tem uma origem exclusivamente a priori. Vejamos, então, como Kant desenvolve os detalhas deste argumento. A determinação a posteriori é o móbil material da vontade. Móbil material é, para Kant, aquilo que nos incita a agir tendo em mira a “matéria” da volição, ou seja, tendo em mira o objeto desejado.42 Nas palavras de Kant, os móbeis são “os fins que podemos ter em nossas ações, bem como os efeitos daí resultantes, considerados como fins e molas da vontade”.43 Ora, como já demonstramos na primeira proposição, a análise das ações praticadas por dever explicita que o valor moral não decorre do fim estabelecido pela inclinação, pois são exatamente estes fins que tais ações contrariam. Assim, não é o móbil material que estabelece o valor moral, pois este é apenas uma determinação a posteriori constrangida pela determinação a priori. A determinação a priori consiste, diz Kant, no princípio formal do querer em geral. Neste caso, o princípio do dever é formal enquanto impõe tão somente certo modo de querer. A determinação a priori consiste no princípio da vontade (ou modo de querer) segundo o qual a ação é produzida sem tomar em conta nenhum objeto da faculdade apetitiva.44 Ora, se esta segunda proposição afirma que o valor moral da ação se 42

Cf. Nota 54 da tradução de Carvalho em Fundamentação da metafísica dos costumes, trad., intr. e notas de António Pinto de Carvalho. P. 141. 43 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 60. 44 Cf. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 60. 50


O Fundamento da Moralidade

origina na máxima que a determina, ou seja, que a máxima é o fundamento do valor moral, então esta máxima determinante da ação, que estabelece o dever capaz de contrariar o propósito de toda inclinação, nada mais é que este princípio formal a priori destituído de toda materialidade. O ponto sutil desta proposição está no modo de conclusão apresentado no final do argumento. Kant situa a vontade entre o princípio a priori e o móbil a posteriori para estabelecer a supremacia do primeiro em relação ao segundo na determinação da vontade. Assim, diz ele: De fato, a vontade situada entre o seu princípio a priori que é formal e o seu móbil a posteriori, que é material, está como que na bifurcação de dois caminhos; e, como é necessário que alguma coisa a determine, será determinada pelo princípio formal do querer em geral, sempre que a ação se pratique por dever, pois lhe é retirado todo princípio material.45 A relação entre o princípio formal do querer em geral e um princípio material é apresentada aqui de modo muito breve e sutil. A sutileza deste argumento poderá causar algumas confusões e, por isto, merece alguns comentários. Na sua tradução da Fundamentação da metafísica dos costumes, Antônio Carvalho dedica uma nota à análise deste argumento.46 Segundo ele, Kant estabelece que o princípio do dever é formal por meio de exclusão. Ou seja, a partir da negação de que o objeto querido (ou a matéria da volição) possa ser o princípio do dever, Kant propõe que o princípio deva ser a forma, ou o modo (racional, universal) do querer. 45

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 60. Cf. Nota 55 da tradução de Carvalho em Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Intr. Notas de António Pinto de Carvalho. P. 142. 46

51


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

Ainda segundo Carvalho, o problema de tal demonstração indireta está na fraqueza que ela insere no sistema. No entanto, ele reconhece que para Kant a solução deste problema é impossível. Pois uma demonstração direta exigiria a possibilidade de demonstração da liberdade como objeto do conhecimento possível, ou seja, demonstrar diretamente que podemos agir livremente, enquanto determinados exclusivamente pela razão. Entendemos, assim como Carvalho, que a análise kantiana é uma espécie de exclusão que avança do conceito de boa vontade para o princípio formal da moralidade que comporta a sua necessidade e universalidade. No entanto, não podemos perder de vista que a proposta kantiana de fundamentação da moralidade não é demonstrar a realidade do princípio universal e necessário que fundamenta o conhecimento racional comum da moralidade. De modo contrário, Kant pretende explicitá-lo, pois supõe-se que trata de algo objetivo. Assim, esta proposta estabeleceu certos pressupostos que deveremos aceitar, ao menos para podermos analisar a argumentação. De fato, a análise do conceito de boa vontade implicou no reconhecimento do princípio formal do dever como origem do valor moral. No entanto, o desenvolvimento desta argumentação só foi possível porque pressupusemos a moralidade como objetiva, seja como ideia de valor absoluto da boa vontade, ou ainda como valor moral do dever. Em outras palavras, partimos da evidência da moralidade na boa vontade para tentarmos explicitar a sua origem. A sequência argumentativa levou-nos à análise das proposições acerca do dever. A primeira proposição estabeleceu a relação exclusiva entre dever e valor moral, excluindo qualquer influência da inclinação. A segunda proposição aprofundou um pouco mais esta análise e explicitou a natureza a priori do dever que comporta valor moral. Em outras palavras, a segunda proposição utilizou a noção de valor moral para explicitar o princípio formal encontrado na máxima da ação. Isto significa 52


O Fundamento da Moralidade

que a máxima que determina a agir em contrariedade para com a inclinação comporta o único modo de querer a priori (da razão) capaz de produzir o valor moral da ação. Pois este modo de querer é o princípio formal destituído de qualquer influência da inclinação. Assim, cabe a Kant, na terceira proposição, demonstrar como o princípio formal do dever moral é a origem do valor moral. Noutras palavras, é preciso explicitar, tanto a possibilidade universal e necessária do princípio que determina a moralidade,47 como também a maneira pela qual esta necessidade prática da lei, ou do princípio objetivo originário do valor moral, pode ser encontrada nos juízos racionais comuns da moralidade.

IV - O dever: A terceira proposição A terceira proposição é, diz Kant, “consequência das duas precedentes; eis como a formulo: o dever é a necessidade de cumprir uma ação por respeito à lei”.48 Apesar de se tratar de uma consequência das duas proposições anteriores, cabe lembrar que o propósito da argumentação kantiana é explicitar a natureza a priori capaz de atribuir valor moral a uma ação praticada por dever. Assim, Kant pretende explicitar como uma ação guiada por uma máxima contrária à inclinação se fundamenta na própria atividade prática da razão pura chamada boa vontade. Em outras palavras, a análise kantiana da terceira proposição indica como uma ação realizada por dever compartilha a mesma estrutura prática da vontade que, ao atribuir a lei prática para si mesma, quer incondicionadamente o bem. Deste modo, o desenvolvimento 47

A questão acerca da possibilidade ou impossibilidade de demonstração direta da moralidade, por meio de sua dedução do conceito de liberdade, será a última tarefa a que Kant se propõe. 48 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 60. 53


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

argumentativo desta terceira proposição tem a finalidade de explicitar que o dever também possui a forma a priori da vontade que almeja necessariamente fins universais. A argumentação kantiana pode ser dividida em dois passos distintos. O primeiro passo estabelece que a lei é o único objeto digno de respeito. O segundo passo estabelece que o sentimento de respeito consiste unicamente na consciência que temos acerca da subordinação que a lei estabelece sobre a vontade. Vejamos detalhadamente como Kant desenvolve cada um destes argumentos. Primeiramente, Kant apresenta uma distinção com o propósito de estabelecer que a lei é o único objeto digno de respeito. Esta distinção kantiana coloca, de um lado, os objetos concebidos como efeitos de uma ação almejada, os quais consistem nos resultados da atividade da vontade e, de outro lado, o objeto é concebido como princípio da ação almejada, o qual está ligado diretamente à atividade da vontade. A argumentação kantiana retira duas consequências desta distinção. Por um lado, esta distinção permite que Kant relacione os efeitos almejados em qualquer ação com os sentimentos ligados à inclinação. Por outro lado, ela também permite que Kant relacione aquele objeto que está ligado à vontade exclusivamente como princípio da ação com o sentimento de respeito. Escreve Kant: “para o objeto concebido como efeito da ação que me proponho, posso verdadeiramente sentir inclinação, nunca porém respeito, precisamente porque ele é simples efeito, e não atividade de uma vontade”.49 Assim, somente aquilo que está diretamente relacionado com a atividade da vontade pode ser digno de respeito. Esta afirmação kantiana explicita o estatuto objetivo próprio da atividade da vontade, ou seja, ela explicita que a atividade da vontade (o querer) possui o estatuto objetivo de uma lei capaz de causar um sentimento de respeito. Deste modo, Kant afirma: 49

Ibidem, p. 61.

54


O Fundamento da Moralidade

Só o que está ligado à minha vontade unicamente como princípio, e nunca como efeito, o que não serve à minha inclinação mas a domina, e ao menos a exclui totalmente da avaliação no ato de decidir, por conseguinte a simples lei por si mesma é que pode ser objeto de respeito e, portanto, ordem para mim.50 Esta citação, portanto, aponta para o fato de que a pura atividade da vontade garante o estatuto objetivo de lei à determinação da prática de uma ação contrária aos propósitos da inclinação. Em outras palavras, o estatuto objetivo da lei capaz de impor um sentimento de respeito decorre da própria atividade prática da razão pura chamada boa vontade. Trata-se da primeira consequência encontrada na síntese entre as proposições acerca do dever. A primeira proposição explicita que o valor moral do dever se encontra exclusivamente na atividade da vontade, pois decorre exclusivamente do querer. A segunda proposição acerca do dever estabelece, primeiramente, que as ações que comportam valor moral são determinadas por um princípio subjetivo do querer chamado máxima da ação. Em seguida, fica estabelecido que esta máxima consiste na determinação a priori própria da atividade prática da razão pura chamada boa vontade. Com efeito, ao determinar uma ação, tal máxima elimina completamente as influências e os fins estabelecidos pela inclinação. A primeira consequência da síntese entre estas duas proposições explicita que o objeto digno de respeito tem o estatuto de lei porque está ligado a priori à atividade da vontade. Ou seja, a argumentação kantiana confere a objetividade de uma lei prática a toda determinação subjetiva (máxima) da ação que, estando isenta de influências da inclinação, tenha a forma 50

Idem. 55


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

estabelecida pela atividade prática da razão pura chamada boa vontade. Assim, diz Kant: Se uma ação cumprida por dever elimina completamente a influência da inclinação e, com ela, todo objeto da vontade, nada resta capaz de determinar a mesma vontade, a não ser objetivamente a lei e subjetivamente um puro respeito a esta lei prática, portanto a máxima de obedecer a essa lei, embora com dano de toda minha inclinação.51 Portanto, o primeiro passo da argumentação kantiana estabelece que a objetividade da lei gera um sentimento de respeito, bem como explicita a relação de identidade entre esta lei prática e a determinação a priori da vontade. O segundo passo da argumentação kantiana estabelece que o sentimento de respeito consiste na consciência da lei. Noutras palavras, a consciência que temos acerca da objetividade de uma lei capaz de determinar a priori uma ação contrária à inclinação chama-se sentimento de respeito. Vejamos detalhadamente como Kant desenvolve este argumento, pois a definição exata do termo respeito apresentada na Fundamentação da metafísica dos costumes é fundamental para a compreensão da terceira proposição acerca do dever, bem como para podermos explicitar o modo pelo qual o princípio exclusivamente formal é indicado como origem do valor moral. Embora Kant reconheça que o respeito possa ser entendido como uma espécie de sentimento, ele nega que seja algo causado pela inclinação. No desenvolvimento argumentativo da Fundamentação da metafísica dos costumes, a noção de sentimento de respeito deve ser entendida como a 51

Idem.

56


O Fundamento da Moralidade

maneira pela qual reconhecemos imediatamente a subordinação da vontade pela lei. Em outras palavras, a terceira proposição acerca do dever utiliza a noção de sentimento de respeito como um recurso analógico para caracterizar o reconhecimento da própria atividade da vontade. Esta analogia é apresentada por Kant na seguinte passagem: O objeto do respeito é simplesmente a lei, lei que nos impomos a nós mesmos, mas que entanto é necessária em si. Enquanto lei, estamo-lhe sujeitos, sem consultar o nosso amor próprio; enquanto imposta por nós a nós mesmos é consequência da nossa vontade. Do primeiro ponto de vista oferece analogia com o temor; do segundo ponto de vista, tem analogia com a inclinação.52 Esta citação indica o duplo propósito negativo da analogia kantiana. Por um lado, a analogia kantiana pretende impedir a confusão em aproximar demasiadamente a noção de respeito ao desejo da inclinação. Pois isto implicaria em conceber o respeito como causa da lei e não como a consciência do efeito da lei sobre o sujeito. Por outro lado, a analogia kantiana também pretende impedir a confusão em aproximar a noção de respeito ao temor. Pois isto implicaria em conceber o respeito como sentimento de exclusiva submissão à lei, e não como a consciência do efeito dela sobre o sujeito. A tese positiva deste argumento estabelece que a relação existente entre o sentimento de respeito pela lei prática e a sensibilidade é apenas analógica. No entanto, é fundamental ressaltarmos que a analogia kantiana comporta dois termos contrapostos: temor e desejo (da inclinação). Noutras palavras, de um lado está o sentimento de temor decorrente de algo 52

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 62. Nota (**). 57


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

imposto contra a vontade, e de outro o desejo decorrente da vontade movida pela inclinação. O propósito kantiano não é apontar a semelhança entre temor e sentimento de respeito, nem mesmo apontar a semelhança entre desejo e sentimento de respeito. O propósito fundamental da analogia kantiana é apontar o fato de que o sentimento de respeito encontra semelhanças com a união entre aspectos ligados ao temor e aspectos ligados à inclinação. Em outras palavras, o sentimento de respeito tem semelhanças como o sentimento da submissão involuntária indicada pelo temor e, concomitantemente, com o desejo indicado pela vontade movida pela inclinação. Assim, o propósito da analogia é apontar a dupla natureza do sentimento de respeito presente na imbricação destes dois aspectos da sensibilidade. Ou seja, a analogia indica que o sentimento de respeito é a consciência da lei prática que se impõe a priori sobre a vontade do sujeito que age por dever. No entanto, a analogia também indica que o sentimento de respeito é a consciência da lei prática decorrente da vontade do próprio sujeito que age por dever. Deste modo, a argumentação kantiana apresenta a natureza do sentimento de respeito estabelecendo que se trata do efeito resultante da consciência da atividade prática da razão pura, destituído de qualquer influência da sensibilidade. Vejamos, portanto, outro esclarecimento oferecido por Kant. Conquanto o respeito seja um sentimento, não é todavia proveniente de influência estranha, mas sim, pelo contrário, sentimento espontâneo produzido por um conceito da razão, e por isso mesmo especificamente distinto dos sentimentos de primeira espécie, referentes à inclinação ou temor. O que reconheço imediatamente como lei para mim, reconheço-o como sentimento de respeito que exprime simplesmente a consciência que tenho da subordinação de minha vontade a 58


O Fundamento da Moralidade

uma lei, sem intromissão de outras influências na minha sensibilidade.53 A análise da nota acima permite reconhecer que todo o fundamento do valor moral das ações realizadas por dever se encontra na atividade prática da razão pura. E mesmo que ainda não tenha apresentado o conceito fundamental da moralidade, Kant indica que ele é causa do sentimento de respeito pela lei prática, bem como causa do valor moral das ações realizadas por dever. Portanto, a utilização da noção de sentimento de respeito explicita, de modo analógico, a ideia kantiana de liberdade positiva, ou seja, a autonomia da vontade. Pois tanto a noção de sentimento espontaneamente produzido por um conceito da razão, como a consciência que tenho da subordinação de minha vontade a uma lei prática, reafirmam a natureza prática racional da noção de sentimento de respeito. Entretanto, cabe apresentar um argumento contrário ao que pretendemos sustentar. Ralf Walter, em Kant e a lei moral, aponta para um problema contido na terceira proposição. Segundo ele, esta proposição apresenta uma ambiguidade, pois o termo „respeito‟ tanto pode significar um tipo particular de sentimento como também a consciência racional da lei moral. Pois, diz ele, “é o respeito realmente um tipo particular de sentimento, ou precisamente uma consciência da lei moral? Kant parece ambivalente”.54. No entanto, Walker propõe que duas passagens da terceira seção da Fundamentação estabelecem que o respeito seja entendido como um tipo de sentimento. A primeira citação escolhida por ele restringe-se à primeira frase de uma nota da terceira seção, na qual Kant esclarece o sentido do termo interesse. A sua transcrição literal é a seguinte:

53 54

Ibidem, p. 61. Nota (**). WALKER, Ralf. Kant e a Lei Moral, p. 24. 59


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

Interesse é aquilo pelo que a razão se torna prática, isto é, aquilo pelo que ela se torna uma causa determinando a vontade.55 A segunda citação também se encontra na terceira seção. Nestas passagens, Walker ressalta a afirmação kantiana de que a razão tem o poder de infundir um sentimento de prazer ou bem-estar ao cumprimento do dever. Este poder decorre da determinação que a razão exerce sobre a sensibilidade ao impor a esta última os seus princípios. Walker entende que Kant recua em favor da ideia de que é necessário interesse na motivação da ação; entende, ainda, que Kant propõe estar este interesse acima da consciência da lei moral. A transcrição literal desta citação é a seguinte: Para querer aquilo pelo que a razão apenas, na forma de um “dever”, prescreve para um ser racional afetado pela sensibilidade, é certamente exigido que a razão tenha o poder de infundir um sentimento de prazer ou bem-estar ao cumprimento do dever, e assim é exigida uma causalidade da razão, pela qual ela pode determinar a sensibilidade em concordância com seus princípios. Entretanto, é inteiramente impossível entender, isto é, tornar compreensível a priori, como um mero pensamento, que nada contém em si de sensível, pode produzir um sentimento de prazer. [...] Portanto, para um ser humano é inteiramente impossível explicar como e por que a universalidade da máxima como lei e, por conseguinte, a moralidade, nos deve interessar. 56 55 56

Idem. Idem.

60


O Fundamento da Moralidade

Entendemos que esta interpretação de Walker não é sustentável por três motivos. Em primeiro lugar, ele omite a definição de interesse moral apresentada na primeira seção. No final da nota em que Kant define respeito como a consciência da subordinação a uma lei está também a definição do que é interesse moral. Assim, diz Kant: “tudo quanto se designa interesse moral consiste unicamente no respeito da lei”.57 Ora, Walker não reconhece que a função da noção de sentimento moral é explicitar a ideia de autonomia da vontade por meio de uma analogia. Como consequência deste descuido, Walker não percebe a distinção entre o que é interesse puro racional, chamado por Kant de interesse imediato, e o que é interesse empírico, baseado num sentimento chamado por Kant de interesse mediato. Assim, não pode entender que o interesse moral ou o respeito pela lei se refere à natureza autônoma de determinação da vontade. Deste modo, passa despercebido a Walker a passagem esclarecedora na qual Kant diz que “a razão toma interesse imediato pela ação, só quando a validade universal da máxima desta ação é um princípio suficiente de determinação da vontade”.58 Portanto, é no mínimo infundada a posição de Walker, lá onde ele afirma que “ele [Kant] parece recuar em favor da ideia de que é necessário „interesse‟, além e acima da consciência da lei moral, se nós devemos ser motivados para a ação”.59 Pois tal afirmação revela a ignorância acerca da natureza prática da razão. Em segundo lugar, Walker retira a segunda citação kantiana do meio de um argumento sem perceber qual é a exata função desta proposição. De fato, como percebe Walker, em tal proposição Kant afirma que é humanamente impossível explicar como a moralidade nos pode interessar. No entanto, 57

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 62. Nota (**). 58 Ibidem, p. 126. Nota (*). 59 WALKER, Ralf. Kant e a Lei Moral, p. 24. 61


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

Walker não percebe que Kant vai um pouco além, ao afirmar que “a impossibilidade subjetiva de explicar a liberdade da vontade é idêntica à impossibilidade de descobrir e de fazer compreender um interesse que o homem possa tomar pelas leis morais”.60 Ora, o propósito de Kant neste argumento é justamente demonstrar que a explicação da liberdade, bem como da moralidade, está limitada pela própria finitude da natureza humana. Pois, diz ele, “a nós homens é absolutamente impossível explicar como e por que a universalidade da máxima como lei, e por conseguinte a moralidade, nos interessa”.61 No entanto, Walker não percebe que Kant se vale da impossibilidade humana de explicar a moralidade, bem como a liberdade, para exigir que o homem se coloque num ponto de vista puramente inteligível. Pois somente deste ponto de vista poderemos compreender a natureza prática do interesse moral. Deste modo, podemos complementar a citação escolhida por Walker com a frase que ele mesmo omitiu. Esta frase sintetiza o propósito da argumentação kantiana e reduz a noção de interesse moral à própria autonomia da vontade. Certo é apenas isto: que a moralidade não possui valor para nós pelo fato de interessar (pois isto é heteronomia e dependência da razão prática a respeito da sensibilidade, ou seja, a respeito de um sentimento assente como princípio, no qual caso em que nunca poderia estabelecer uma legislação moral); mas a moralidade apresenta interesse, porque tem valor para nós enquanto homens, porque deriva de nossa vontade, concebida como inteligência, portanto do nosso verdadeiro eu; ora o que pertence ao puro fenômeno é

60 61

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 126. Ibidem, p. 127.

62


O Fundamento da Moralidade

necessariamente subordinado natureza da coisa em si. 62

pela

razão

à

Deste modo, a interpretação de Walker torna-se incompreensível ao reconhecer um interesse acima e além da consciência da lei moral. Tal seria o mesmo que subordinar a razão à sensibilidade, e isto é coisa que Kant não aceita na Fundamentação da metafísica dos costumes. Em terceiro lugar, Walker não releva que em cada uma das seções Kant busca resolver problemas distintos, o que explica a sua abordagem da questão a partir de diferentes perspectivas. Deste modo, Walker não percebe a dificuldade que se impõe ao tentarmos comparar os conceitos utilizados em cada seção. Esta dificuldade decorre do fato de que cada seção trata de conceitos de natureza distinta, ou seja, enquanto a terceira seção trata dos conceitos metafísicos que levam à fundamentação da moralidade, a primeira seção analisa os conceitos racionais comuns da moralidade para explicitar seu princípio geral do dever. Como esclarece Zingano, a terceira seção trata da demonstração das condições que garantem a efetividade do dever ser. De modo distinto, a primeira seção busca apenas demonstrar a consciência do caráter puro da moralidade, explicitando a possibilidade de universalidade e necessidade que os princípios morais exigem.63 Ora, não estamos negando que haja uma relação entre os conceitos de respeito e interesse moral, apresentados na primeira seção, e os conceitos de interesse moral e interesse imediato, apresentados na terceira seção. A relação existe e, como define Kant no final da nota da primeira seção, “tudo quanto se designa interesse moral consiste unicamente no respeito à lei”. No entanto, estamos negando que a interpretação de Walker seja plausível. De fato, embora ele reconheça a relação 62 63

Ibidem, p. 24. ZINGANO, Marcos. Razão e História em Kant, p. 38. 63


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

entre tais conceitos, passou-lhe despercebido que, na primeira seção, os conceitos de respeito e interesse são analogias que têm como objetivo explicitar a própria natureza autônoma da vontade.64 Deste modo, Walker inverte a ordem kantiana de explicitar os conceitos. Ele utiliza noções próprias da razão comum, presentes na primeira seção, para interpretar conceitos que estão sendo redefinidos na terceira seção. Em outras palavras, Walker não percebe que na terceira seção as noções de sentimento moral e interesse imediato não possuem qualquer relação com a sensibilidade. Podemos, agora, precisar o que Kant entende por respeito à lei, ou seja, o que é esse sentimento de respeito decorrente da consciência da lei. Para Kant, trata-se do modo pelo qual a razão comum toma consciência do caráter puro da moralidade. Assim, o intuito kantiano de explicitar essa tomada de consciência nada mais é do que a proposta de evidenciar a possibilidade de necessidade e universalidade que os princípios morais exigem. Deste modo, devemos precisar melhor a afirmação de que “o dever é a necessidade de cumprir uma ação por respeito à lei”.65 Assim, podemos dizer que o dever é a necessidade de cumprir uma ação em função da consciência imediata da determinação da lei sobre a vontade. Havíamos proposto que a análise da terceira proposição acerca do dever exigia, primeiramente, que esclarecêssemos a noção de sentimento de respeito. Concluímos, então, que o sentimento de respeito é a consciência imediata da determinação da lei sobre a vontade. Em seguida, propusemos retornar à terceira proposição e explicitar por que o dever consiste na necessidade que impõe o cumprimento de uma ação em 64

O respeito, diz Kant, oferece analogia com o temor e com a inclinação. No primeiro caso, a noção de respeito aponta para o temor que temos da lei que se impõe sobre nós contrariando o nosso amor próprio. No segundo caso, a noção de respeito aponta para a vontade que temos de estabelecermos as nossas próprias leis. 65 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 60. 64


O Fundamento da Moralidade

função da consciência imediata da determinação da lei sobre a vontade. Assim, a nossa tarefa consistirá em apresentar o modo pelo qual a consciência desta subordinação (da vontade pela lei) explicita uma necessidade prática, ou seja, um dever ser. Deste modo, poderemos reconhecer a natureza universal e necessária que constitui os juízos morais comuns acerca da moralidade, bem como explicitar o fundamento apontado por meio dos conceitos de valor absoluto e valor moral na proposta kantiana de fundamentação da moralidade. Para que possamos entender o alcance desta terceira proposição, será fundamental relembrarmos que Kant está analisando um tipo específico de dever. Por outras palavras, toda a análise se dá sobre o dever que nos determina agir em contrariedade com as nossas próprias inclinações. Assim, trata-se daquela espécie de dever que comporta valor moral pela sua independência em relação às determinações da inclinação. Deste modo, o valor moral desta determinação não pode ter origem em qualquer princípio a posteriori. Ao contrário, o valor moral deste tipo específico de dever tem a sua origem na determinação a priori que tem o estatuto objetivo de uma lei prática, ou seja, origina-se na determinação formal constituída pelo querer em geral puramente racional. Esta determinação é analisada por Kant a partir de dois pontos distintos, ou seja, objetivo e subjetivo. O modo objetivo de análise aborda a determinação da razão sobre a vontade. Neste caso, temos uma determinação universal e necessária da razão sobre a vontade quando apenas a razão conduz a vontade. Noutras palavras, a razão determina a vontade imputando-lhe uma lei (universal e necessária). Pois, diz Kant, “o princípio objetivo (isto é, o princípio capaz de servir também subjetivamente de princípio prático para todos os seres racionais, se a razão tivesse plenos poderes sobre a faculdade apetitiva) é a lei prática”.66 66

Ibidem, p. 61. Nota (*). 65


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

O modo subjetivo de análise aborda a coação da vontade pela representação da lei da razão. Neste caso, temos a consciência da determinação universal e necessária da lei sobre a vontade finita que, desconsiderando toda influência da inclinação e todo objeto da vontade, se submete à determinação da lei da razão. Ou seja, adotamos uma máxima de ação (princípio subjetivo do querer) que atende às exigências da lei da razão desprezando todo e qualquer desígnio da inclinação. Deste modo, o princípio subjetivo que determina esse modo de querer possui a forma de uma lei da razão (universalidade e necessidade). Assim, diz Kant: Se uma ação cumprida por dever elimina completamente a influência da inclinação e, com ela, todo o objeto da vontade, nada resta capaz de determinar a mesma vontade a não ser objetivamente a lei e subjetivamente um puro respeito a essa lei prática, portanto a máxima de obedecer a essa lei, embora com dano de todas as minhas inclinações.67 Deste modo, podemos entender por que Kant utilizou este tipo específico de dever (contrário às inclinações) ao depararmos com os dois pontos-chave que só ele poderia ressaltar. Primeiramente, só o dever que determina ações contrárias aos propósitos da inclinação pode explicitar o que vem a ser um puro respeito. Em outras palavras, só este tipo de dever pode explicitar o que seja, no âmbito da razão comum, a consciência da subordinação da vontade pela lei da razão. Pois qualquer tipo de ação, seja em conformidade para com o dever ou em contrariedade com ele, não poderia apontar a

67

Ibidem, p. 61.

66


O Fundamento da Moralidade

subordinação da inclinação pela atividade prática da razão pura. Em segundo lugar, só o dever que determina ações contrárias aos propósitos da inclinação pode explicitar em que consiste a necessidade prática do querer. Isto é, só este tipo de dever pode explicitar o que seja, no âmbito subjetivo, uma determinação formal que comporta a estrutura universal e necessária de uma lei prática. Pois qualquer tipo de ação, seja em conformidade para com o dever ou em contrariedade a ele, não possui uma máxima que tenha a forma de uma lei prática. Deste modo, nenhum outro tipo de dever poderia apontar a necessidade prática, ou dever ser, que fundamenta os juízos morais acerca da moralidade. A análise do valor moral do dever explicita, assim, o princípio formal que estabelece a moralidade. Em outras palavras, este princípio formal apontado pelo dever que comporta valor moral consiste exclusivamente no modo de querer segundo a determinação da razão, pois possui a forma de uma lei prática. No entanto, Kant reconhece que estamos ainda distantes de uma fundamentação da moralidade, pois tal tarefa exigirá muito mais do que a mera análise de conceitos tomados do conhecimento moral da razão humana comum. O que conseguimos até aqui foi explicitar a regra inescusável a toda a razão humana comum. Nas palavras de Kant: Por esta forma, no conhecimento moral da razão humana comum, chegamos àquilo que é o princípio da mesma, princípio que, por certo, ela não concebe assim separado numa forma universal, mas que, no entanto, sempre tem diante dos olhos, e do qual se serve como de regra de seu juízo.68

68

Ibidem, p. 64. 67


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

Apesar de Kant ter encontrado este princípio prático por meio da análise, cabe lembrar que a moralidade foi o conteúdo pressuposto no seu método hipotético-dedutivo. Assim, devemos reconhecer que, sem apresentar um fundamento para a moralidade, Kant parece girar em círculo quando vai dos conceitos da moralidade à necessidade da lei prática e retorna desta ao dever moral que comporta valor absoluto. Cônscio deste problema, diz ele: Com efeito, a razão me constrange a um respeito imediato para com essa legislação; e se, de momento, não enxergo ainda qual seja o fundamento de tal respeito (o que pode ser objeto de pesquisa por parte do filósofo), ao menos compreendo bem que se trata aqui de apreciar um valor que sobrepuja o valor de tudo o que é exaltado pela inclinação, e que a necessidade, em que me encontro de agir por puro respeito à lei prática, constitui o que se denomina dever, perante o qual nenhum outro motivo deve ceder, visto ele ser a condição de uma vontade boa em si, cujo valor está acima de tudo69. Certamente que do ponto de vista da fundamentação da moral a tarefa está incompleta. Tal tarefa exigirá uma elaboração filosófica do problema a partir da segunda seção e só será concluída na terceira seção, na qual Kant deduz a moralidade a partir da ideia de liberdade. No entanto, devemos ressaltar que a primeira tarefa de Kant se completa sem a necessidade da apresentação dos fundamentos da moral. Pois a realização do propósito kantiano de fundamentação da moralidade exigiu primeiramente a demonstração de que o princípio da moral é 69

Idem.

68


O Fundamento da Moralidade

evidente a toda a razão comum. Em outras palavras, tratou-se de demonstrar, diz Kant, “que o bom-senso vulgar, no exercício de seu juízo prático, concorda plenamente com o princípio exposto e nunca o perde de vista”.70 É preciso, apenas, elucidar qual é a natureza deste princípio, ou seja, dessa lei prática.

V – A lei e sua conformidade com a máxima da ação A análise do valor moral do dever mostrou que apenas um tipo de ação pode ser realizada por dever. Trata-se do tipo específico de dever que determina uma ação contrariamente ao desígnio da inclinação. Pois somente este tipo específico de dever pode explicitar que a coação da vontade decorre da representação da lei. Assim, torna-se necessário que Kant especifique o modo pelo qual esta coação serve de princípio à vontade. Em outras palavras, falta explicitar qual é a forma do princípio subjetivo (máxima) em uma ação que contraria o desígnio da inclinação. Deste modo, pergunta Kant, “qual lei pode ser esta, cuja representação, sem qualquer espécie de consideração pelo efeito que dela se espera, deve determinar a vontade, para que esta possa ser denominada boa absolutamente e sem restrições?”71 Kant considera que a vontade é determinada de duas maneiras distintas e conflitantes. Uma maneira de determinação da vontade é aquela que visa certo resultado, ou seja, tem como princípio subjetivo a máxima de conseguir determinado fim estabelecido pela inclinação. A outra maneira de determinação da vontade é aquela que está despojada do propósito de atingir qualquer fim particular. Esta maneira de determinação consiste, apenas, no modo de querer independentemente do fim que venha a ser 70 71

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 62. Idem. 69


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

estabelecido pela inclinação. Neste caso, o único fim estabelecido é a “finalidade da razão”, ou seja, o bem moral. O fim que a razão estabelece sobre a vontade consiste apenas na determinação de um modo puro de querer, ou seja, a exigência de que o princípio subjetivo da ação tenha a forma de uma lei em geral. Assim, o princípio que serve à vontade determinada pela razão é a simples conformidade da máxima da ação a uma lei em geral. O tipo específico de dever que determina agir contrariamente ao desígnio da inclinação é objeto da análise porque se trata de um tipo de dever destituído de qualquer propósito de alcançar fins estabelecidos pela inclinação. Em outras palavras, a sua análise pode explicitar o que vem a ser este modo puro de querer, pois neste tipo de determinação todo propósito individual (dado pela inclinação) foi desconsiderado para dar lugar ao propósito universal (determinado no modo de querer que a razão estabelece). Este modo de querer estabelecido pela razão nada mais é do que a simples conformidade da máxima da ação a uma lei em geral, pois só neste caso o princípio subjetivo tem a forma de uma lei em geral. Segundo Kant, a verificação da possibilidade de universalização de uma máxima é algo acessível a toda razão comum, pois bastaria apenas que cada um verificasse se existe alguma contradição na vontade ao querer que sua máxima se torne uma lei universal. Esta verificação, portanto, explicita a toda razão comum que o fundamento do valor moral de uma ação cumprida por dever resulta da conformidade da máxima à lei em geral. Deste modo, podemos entender a seguinte citação de Kant. Mas que lei pode ser esta, cuja representação, sem qualquer espécie de consideração pelo efeito que dela se espera, deve determinar a vontade, para que esta possa ser denominada boa absolutamente e sem restrição? Após ter despojado a vontade de 70


O Fundamento da Moralidade

todos os impulsos capazes de nela serem suscitados pela ideia dos resultados provenientes da obediência de uma lei, nada mais resta do que a conformidade universal das ações a uma lei em geral que deva servir-lhe de princípio; noutros termos, devo portar-me sempre de modo que eu possa também querer que minha máxima se torne em lei universal. A simples conformidade com a lei em geral (sem tomar por base uma determinada lei para certas ações) é a que serve aqui de princípio à vontade, e por conseguinte deve servir-lhe igualmente de princípio, se o dever não é ilusão vã e conceito quimérico. O bom-senso vulgar, no exercício de seu juízo prático, concorda plenamente com o princípio exposto, e nunca o perde de vista.72 A análise kantiana chega a um duplo resultado. Primeiramente, ela explicita que o fundamento do valor moral de uma ação pode ser reconhecido por todo sujeito racional, bastando que se verifique a conformidade da máxima da ação a uma lei em geral. Este é o conhecimento que a razão comum pode obter acerca do princípio que determina a vontade a agir moralmente. No entanto, Kant não afirma ter demonstrado o modo pelo qual a razão comum conhece o princípio que fundamenta a moralidade, pois esta tarefa exige uma especulação filosófica. Trata-se, apenas, de conhecer a possibilidade que todo ser racional possui de conformar a máxima da ação à lei em geral e, assim, determinar-se a agir em função de um dever que comporta valor moral. Portanto, não chegamos à demonstração do princípio que fundamenta a moralidade, mas chegamos ao conhecimento de que o valor moral de uma ação decorre de um princípio objetivo. 72

Idem. 71


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

O segundo resultado consiste no fato de que a busca do princípio que fundamenta a moralidade ficou atribuída a uma especulação filosófica. Assim, caberá à análise filosófica a explicitação da natureza universal e necessária do princípio que fundamenta a moralidade. Em outras palavras, a análise filosófica consistirá em explicitar o fundamento da moralidade capaz de atribuir valor absoluto à boa vontade, bem como valor moral ao dever.

72


CAPÍTULO III OS PRINCÍPIOS PRÁTICOS I – Estrutura e propósito da segunda seção O propósito da segunda seção da Fundamentação da metafísica dos costumes não é, ainda, a demonstração dos fundamentos da moralidade. Como dissemos, esta tarefa será realizada por Kant na terceira seção, na qual ele deduz o conceito de moralidade a partir da ideia de liberdade. Por outro lado, a segunda seção não se restringe a explicitar, apenas, que o princípio geral do dever consiste na conformidade da máxima à lei moral, como ocorreu na primeira seção sob o pressuposto da objetividade da moralidade. A segunda seção, embora ainda sob o postulado da moralidade indicada pelo valor absoluto da boa vontade, explicita as condições de possibilidade do princípio de determinação (dever) que comporta valor moral. Por outras palavras, a segunda seção não consiste em uma demonstração das condições de possibilidade da determinação moral. Ela trata, apenas, de explicitar tais condições de possibilidade, ou seja, ela esclarece de que modo a determinação moral é universal e necessária, mesmo que ainda sob uma hipótese não demonstrada efetivamente. Nos comentários de Alquié acerca dos pressupostos kantianos nas duas primeiras seções da Fundamentação da metafísica dos costumes, encontramos uma interpretação de que a moralidade é mais do que um simples pressuposto dos argumentos. Segundo Alquié, trata-se de um conceito chave que permite o desenvolvimento da argumentação num domínio chamado hipotético-dedutivo. Podemos confirmar esta posição na seguinte citação:

73


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

Mas é preciso lembrar que em toda ela [primeira seção] Kant destaca as condições necessárias da moralidade sem estabelecer a sua existência de fato. Por isto ele escreve que a conformidade à lei deve servir de princípio à vontade »se o dever não é uma ilusão vã e um conceito quimérico«. Nós estamos ainda no domínio do hipotético-dedutivo. E, no curso da segunda seção, nós 73 permaneceremos ainda neste domínio. Além desta caracterização da moralidade, Alquié afirma que existe outra função realizada pela segunda seção: trata-se de apontar uma consequência inevitável decorrente da hipótese moral elaborada nesta mesma seção. Uma vez que a moral esteja estabelecida, surge imediatamente a exigência da sua demonstração. Por outras palavras, a segunda seção mostra que, após estabelecer a hipótese moral, a argumentação kantiana se depara com o fato de que se a moralidade existe, será preciso demonstrar a sua realidade. No entanto, mesmo tendo sido apontada nos argumentos da segunda seção, a demonstração da moralidade consiste numa tarefa desenvolvida na terceira seção. Como diz Alquié, Após haver determinado o que deve ser a moral »se ela existe«, devemos perguntar se ela existe precisamente, e colocar a questão da sua realidade. Nós estamos diante do problema da fundamentação transcendental do imperativo categórico. Ele é abordado na terceira seção da Fundamentação da metafísica dos costumes.74

73 74

ALQUIÉ, F. Les Ecrits de 1785, p. 227. Ibidem, p. 237.

74


O Fundamento da Moralidade

Seguimos a interpretação de Alquié, pois entendemos que esta é a dupla finalidade de Kant na segunda seção, ou seja, construir a estrutura hipotética da moralidade e apontar a necessidade da sua demonstração. No entanto, entendemos que o conceito de valor absoluto da razão (como fim em si) tem uma função específica nos argumentos apresentados nesta segunda seção da Fundamentação da metafísica dos costumes. Pois a argumentação kantiana utiliza a noção de valor absoluto da racionalidade para estabelecer que a atividade prática da razão tem um fim em si mesma. Nos próximos dois capítulos, o nosso trabalho apontará a exata utilização do conceito de valor absoluto da racionalidade nos argumentos da segunda seção. De fato, entendemos que este conceito é utilizado para estabelecer que todo ser dotado de razão e vontade está sujeito a uma determinação moral inescusável. Portanto, o conceito de valor absoluto da razão tem a função de apontar o fundamento da moralidade nos argumentos da segunda seção, assim como os conceitos de valor absoluto da boa vontade e valor moral do dever apontam a objetividade da lei moral nos argumentos da primeira seção (à medida que eles indicam que todo ser racional pode verificar a conformidade da máxima de sua ação à lei da razão). Será preciso, então, especificarmos quais são os argumentos que Kant desenvolve na segunda seção, bem como as teorias que eles pressupõem e as conclusões que eles estabelecem. Portanto, cabe explicitar cada passo da análise kantiana nesta passagem da filosofia moral popular à metafísica dos costumes. A segunda seção da Fundamentação da metafísica dos costumes pode ser dividida em três argumentos gerais. O primeiro argumento encontra-se nos onze primeiros parágrafos. O propósito deste argumento é estabelecer a necessidade de uma filosofia moral capaz de analisar as determinações a priori da razão. Ou seja, este argumento propõe que os exemplos empíricos não são objeto de análise 75


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

da filosofia moral. Pelo contrário, somente os princípios a priori que determinam a vontade devem ser tomados como objeto desta análise, independentemente da sua realização. Reconhecemos que este argumento não aborda explicitamente o tema da nossa investigação. No entanto, não podemos deixar de explicitar detalhadamente a maneira como cada passo argumentativo introduz as teses essenciais na fundamentação da moralidade indicada pela ideia de valor absoluto da boa vontade. O segundo argumento kantiano começa no décimo segundo parágrafo e estende-se até o quinquagésimo nono parágrafo. Este argumento pode ser dividido em quatro partes. Primeiramente, Kant classifica os modos distintos de determinação da vontade para poder especificar exatamente o que ocorre com a vontade humana. Em segundo lugar, ele analisa a determinação da vontade humana e define os modos distintos de imperativos. Esta distinção classifica os imperativos em hipotéticos e categórico. Em terceiro lugar, Kant demonstra, por um lado, as condições de possibilidade dos imperativos hipotéticos e, por outro lado, ele esclarece o motivo pelo qual não podem ser demonstradas as condições de possibilidade do imperativo categórico, cabendo apenas explicitar a sua natureza universal e necessária. Assim como o primeiro argumento, estas três etapas do segundo argumento não tratam dos conceitos de valor moral e valor absoluto. Entretanto, cada uma destas etapas argumentativas têm o propósito de definir a moralidade de modo negativo. Em outras palavras, este argumento explicita quais são os elementos práticos que estão destituídos de valor moral, de modo que os elementos puros possam ser explicitados. Assim, para o êxito do nosso trabalho, será fundamental explicitarmos o modo como Kant define os elementos práticos destituídos de valor moral. A quarta e última parte do segundo argumento é composta de três etapas distintas e será analisada no quarto 76


O Fundamento da Moralidade

capítulo deste trabalho. Na primeira etapa, Kant explicita a primeira fórmula do imperativo categórico, demonstrando como a forma universal do imperativo categórico pode ser deduzida do conceito de imperativo categórico em geral. Na segunda etapa, ele apresenta a fórmula material do imperativo categórico, a qual tem como conteúdo o fim em si mesmo da racionalidade humana. Pois Kant utiliza a noção de valor absoluto da racionalidade para postular que a humanidade, enquanto dotada de racionalidade, consiste no fim objetivo da razão. Ou seja, o valor absoluto da racionalidade humana, enquanto fim em si objetivo tomado como matéria do imperativo categórico, é o postulado que aponta o fundamento objetivo da moralidade. Na terceira etapa, Kant explicita a síntese entre a forma e a matéria do imperativo categórico, chegando a uma determinação moral completa que resulta na definição da autonomia da vontade. Deste modo, Kant encerra o segundo argumento explicitando, embora hipoteticamente, a natureza formal da moralidade. O terceiro argumento estende-se do sexagésimo parágrafo em diante. Embora ele não seja objeto de estudo deste trabalho, é oportuno ressaltar que ele tem a função alegórica de construir um reino no qual seja possível que as vontades autônomas dos seres racionais jamais entrem em conflito. Trata-se, portanto, da elaboração de um reino dos fins possíveis, onde cada um dos membros pode exercer livremente (autonomamente) a sua vontade. Por fim, este argumento introduz a distinção entre heteronomia e autonomia, de modo que a ideia de liberdade positiva, ou autonomia, possa ser exposta na terceira seção. Entendemos que este seja o modo como Kant desenvolve os argumentos da segunda seção da Fundamentação da metafísica dos costumes. No entanto, reconhecemos que existem algumas posições contrárias à nossa interpretação.

77


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

Assim, será oportuno apresentarmos a interpretação de Robert Wolff acerca dos propósitos kantianos nesta segunda seção75. Nas suas anotações preliminares sobre a estrutura da segunda seção da Fundamentação da metafísica dos costumes, Wolff apresenta uma comparação entre as duas seções e, em seguida, divide a segunda seção em quatro etapas argumentativas. Nesta comparação, ele mostra a diferença entre os interlocutores de cada uma das seções, embora entenda que Kant defenda uma única tese por meio de argumentos diversos. Segundo Wolff, cada uma das seções possui interlocutores distintos. Na primeira seção Kant dialoga com aqueles que compartilham as suas convicções fundamentais acerca da moral. Assim, diz ele que “os argumentos do capítulo 1 são ponderados apenas por aqueles que admitem a familiaridade com os juízos apelados por Kant”.76 Na segunda seção, Wolff entende que o diálogo kantiano é estabelecido com interlocutores que admitem o significado do discurso moral, os quais, no entanto, rejeitam o juízo aceito na primeira seção. Wolff reconhece, ainda, que a argumentação da segunda seção é muito mais complexa que a argumentação da primeira seção. No entanto, ele entende que esta complexidade decorre do fato de que os interlocutores da segunda seção são muito mais exigentes que os interlocutores da primeira seção. Pois, diz ele, “Kant implicitamente desenvolve um argumento com o qual dialoga com alguém totalmente cético em matéria moral. O homem que simplesmente nega que exista qualquer razão para louvor, culpa, ou para considerar os homens absolutamente responsáveis”.77

75

Cf. WOLFF, Robert Paul. Kant: Foundations of the Metaphysics of Morals, p. 93-94. 76 WOLFF, Robert Paul. Kant: Foundations of the Metaphysics of Morals, p. 93. 77 Idem. 78


O Fundamento da Moralidade

Embora Wolff entenda que Kant tenha um interlocutor em cada seção, ele não considera que as teses kantianas de cada uma das seções sejam diferentes. Ao contrário, ele supõe que se trata apenas de demonstrar que o imperativo categórico possui validade objetiva, ou seja, que a lei moral é válida para todos os agentes racionais. Deste modo, a análise wolffiana considera que Kant apresenta uma prova da validade do imperativo categórico na primeira seção, e restringe a segunda seção a uma confirmação mais sofisticada daquilo que já havia sido provado. Podemos confirmar esta interpretação na seguinte citação: A tese do capítulo 2 é idêntica àquela do capítulo 1, a saber, que o Imperativo Categórico é uma lei moral válida para todos os agentes racionais. Entretanto, como Kant se defronta com um interlocutor mais difícil, o seu argumento deve ser correspondentemente mais complexo, e o capítulo 2 é, portanto, muito mais difícil que o relativamente direto capítulo 1. No entanto, se Kant se tivesse restringido a uma exposição da prova da validade do Imperativo Categórico, o capítulo 2 ocuparia um terço ou um quarto da sua atual extensão. A maior parte do texto é devotada a uma variedade de elaborações, explanações e argumentos correlativos, os quais, ainda que extremamente importantes para a filosofia kantiana moral como um todo, substancialmente não avançam o argumento da fundamentação.78 Além disto, Wolff considera que, na segunda seção, Kant consegue provar o imperativo categórico exclusivamente 78

WOLFF, Robert Paul. Kant: Foundations of the Metaphysics of Morals, p. 93-94. 79


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

por meio de uma dedução a partir do conceito de imperativo categórico em geral. Ou seja, toda a demonstração do imperativo categórico tem início com a introdução da classificação dos tipos de imperativos e conclui-se inteiramente com a dedução deste a partir do conceito de imperativo categórico em geral. Deste modo, diz Wolff: Ele [Kant] apresenta a própria prova, introduzindo-a pela famosa classificação dos tipos de imperativos e concluindo com a demonstração de que o Imperativo Categórico pode ser derivado do mero conceito de um imperativo categórico em geral. Neste ponto, precisamente falando, o propósito do capítulo (2) é concluído.79 Por fim, entende ainda Wolff que toda argumentação que sucede à demonstração da dedução do imperativo categórico é irrelevante para o avanço do argumento da fundamentação. Esta interpretação wolffiana fundamenta-se, em parte, no seu modo de separar os argumentos. Segundo Wolff, a argumentação kantiana da segunda seção da Fundamentação da metafísica dos costumes pode ser dividida em quatro partes. A primeira parte consiste na introdução ao argumento principal. Como veremos, este argumento principal é desenvolvido e concluído na segunda parte e consiste na demonstração do imperativo categórico. A terceira parte apresenta alguns exemplos explicativos e deriva algumas consequências secundárias do imperativo categórico. Finalmente, a quarta parte apresenta uma revisão de toda a seção e uma classificação dos pontos estabelecidos. De modo mais objetivo, temos a seguinte divisão wolffiana:80 79 80

Idem. WOLFF, Robert Paul. Kant: Foundations of the Metaphysics of Morals, p.

80


O Fundamento da Moralidade

1 – PARTE I: Kant começa com uma discussão sobre a impossibilidade de argumentos baseados em exemplos na filosofia moral e a necessidade de uma formulação a priori. 2 – PARTE II: Em seguida, apresenta a própria prova, introduzindo-a por meio da famosa classificação dos tipos de imperativos, e concluindo com a demonstração de que o imperativo categórico pode ser derivado do mero conceito de um imperativo em geral. 3 – PARTE III: Segue-se um longo, rico e completo desenvolvimento do argumento no qual Kant oferece exemplos do Imperativo Categórico, deriva fórmulas alternativas e define noções centrais como autonomia, a pessoa como fim em si mesma e o reino dos fins. 4 – PARTE IV: Kant revisa o argumento da seção e oferece uma breve classificação da filosofia moral, baseada na distinção entre autonomia e heteronomia da vontade. A seção finaliza com um sumário que estabelece o que falta realizar. Entendemos que a interpretação de Wolff oferece algumas dificuldades que acabam comprometendo o acompanhamento e a compreensão dos argumentos do próprio Kant. Não estamos questionando a plausibilidade de tal interpretação, quando o próprio Wolff diz trata-se de uma reformulação da tese kantiana, malgré lui, com o propósito de reafirmá-la. O nosso questionamento dirige-se à possibilidade de compreensão dos argumentos kantianos, bem como à possibilidade de acompanhar o seu desenvolvimento e, ainda, perceber quais são os seus pressupostos. Deste modo, será oportuno apontarmos algumas restrições à interpretação de Wolff. O primeiro problema na interpretação wolffiana está na causa que lhe permite supor que existam interlocutores distintos nas duas primeiras seções. Esta distinção baseia-se no fato de que os interlocutores de uma seção aceitam a

94. 81


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

moralidade e os interlocutores da outra seção a rejeitam. Deste modo, os interlocutores da primeira seção aceitariam o pressuposto da moralidade, ou seja, concordariam que exista uma boa vontade dotada de valor absoluto, bem como um dever que comporta valor moral. Por sua vez, os interlocutores da segunda seção seriam céticos em relação à moral, ou seja, rejeitam a ideia de que a razão fosse capaz de determinar a vontade de maneira incondicionada, estabelecendo assim um dever ser. Concordamos com Wolff no que diz respeito à necessidade de se pressupor a moralidade para acompanhar a argumentação da primeira seção. No entanto, entendemos que este pressuposto se estende até o final da segunda seção. Pois, de acordo com Kant, o desenvolvimento do próprio conceito de liberdade como autonomia da vontade exige que se aceite a moralidade de modo universal. Assim, reconhecemos esta posição kantiana na seguinte citação retirada do último parágrafo da segunda seção: Mostramos tão somente, por meio do desenvolvimento do conceito de moralidade universalmente aceito, que uma autonomia da vontade lhe está inevitavelmente ligada, ou antes, que é o fundamento dele.81 Não estamos negando que Kant faça referências ao posicionamento filosófico dos céticos e empiristas, como sugere a argumentação wolffiana. No entanto, Wolff não aceita que Kant está recusando tais posições filosóficas e definindo a única posição capaz de fundamentar a moralidade a partir de uma análise da determinação a priori da vontade. Em outras palavras, Kant desconsidera a posição cética (aquela que zomba de toda moral), bem como a posição empirista (que 81

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 109.

82


O Fundamento da Moralidade

embora não duvide da exatidão do conceito de moralidade, considera a natureza humana impossibilitada de estabelecê-la), justamente porque elas não partem da pressuposição da natureza a priori da moralidade e, portanto, lhes passa despercebido o autêntico princípio supremo da moral. Assim, diz Kant: Portanto, se não há nenhuma princípio supremo de moralidade que não deva apoiar-se unicamente na razão pura, independente de toda a experiência, penso não ser sequer necessário perguntar se vale a pena expor estes conceitos sob forma universal (in abstrato), tais como existem a priori, juntamente com os princípios que lhes dizem respeito, dado que o conhecimento propriamente dito deve distinguir-se do conhecimento vulgar e denominar-se filosófico.82 Portanto, entendemos que a posição wolffiana não se sustenta por dois motivos. Primeiramente, o próprio Kant afirma que a pressuposição da moralidade é uma condição sine qua non da elaboração da sua estrutura hipotética. Em segundo lugar, Kant só deixará de exigir o pressuposto da moralidade depois da sua dedução a partir da ideia de liberdade. Pois teremos aí, por fim, o seu fundamento. A segunda dificuldade da interpretação wolffiana está no fato de que ele identifica as teses de ambas as seções, alterando o alcance dos argumentos kantianos em cada uma delas. Em outras palavras, Wolff entende que, em ambas as seções, Kant prova que o imperativo categórico é uma lei moral válida para todos os agentes racionais. Entendemos que, por um lado, o propósito da primeira seção é muito mais restrito. De fato, Kant não pretende demonstrar a validade incondicionada do imperativo categórico, 82

Ibidem, p. 70. 83


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

ou seja, a sua necessidade e universalidade sobre todo e qualquer modo de querer. Trata-se apenas de explicitar o conceito do imperativo categórico em geral a partir da análise específica do dever que comporta valor moral. Por outro lado, o propósito da segunda seção é um pouco mais amplo do que entende Wolff. Primeiramente, Kant não apresenta uma demonstração, mas uma construção hipotética do imperativo categórico como uma lei moral válida para todos os agentes racionais. Ademais, esta construção hipotética vai além da dedução da forma universal do imperativo categórico a partir do conceito de imperativo categórico em geral. A necessidade do imperativo categórico explícita nesta dedução é apenas o primeiro passo da construção da hipótese. Wolff não percebe que Kant dá um segundo passo ao postular a objetividade do princípio moral contida na segunda formulação do imperativo categórico, ou seja, que a racionalidade humana se percebe como um fim em si mesmo dotado de valor absoluto. Por fim, há ainda o terceiro passo que Wolff não considera. Trata-se da terceira formulação do imperativo categórico, na qual Kant explicita a universalidade da lei prática constituída pela ideia de autonomia da vontade de todo ser racional. Estes três passos, como veremos no próximo capítulo, descrevem uma e a mesma lei. No entanto, eles são fundamentais para caracterizar a diferença subjetiva que existe entre eles. Assim, diz Kant: As três maneiras, por nós indicadas, de representar o princípio da moralidade não são, no fundo, senão outras tantas fórmulas de uma só e mesma lei, fórmulas cada uma das quais contém em si, e por si mesma, as outras duas. Entretanto, existe entre elas uma diferença que, a falar da verdade é antes subjetivamente que objetivamente prática, isto é, tal que serve para aproximar (segundo um 84


O Fundamento da Moralidade

certa analogia) a ideia da razão e a intuição e, por meio desta, o sentimento.83 Entendemos que a interpretação wolffiana desconsidera, portanto, uma parte fundamental da construção da hipótese da própria moralidade. Pois ela considera irrelevante a maior parte da análise kantiana. A nossa última restrição à interpretação wolffiana refere-se à divisão dos argumentos da segunda seção. Embora Wolff tenha divido a seção em quatro partes, ele considera que apenas duas têm relevância para o propósito da fundamentação. Pois ele classifica como relevantes a exigência kantiana por uma análise das determinações a priori da vontade, bem como a dedução da forma universal do imperativo categórico a partir do conceito de um imperativo em geral. Esta reconstrução wolffiana viola o desenvolvimento da argumentação kantiana. Isto porque, além de não perceber a importância da terceira parte, em que Kant explicita os elementos fundamentais da construção hipotética da moralidade, Wolff considera irrelevante a própria explicitação da ideia de reino dos fins encontrada naquilo que ele classifica como quarta parte da seção II. Assim, ele não percebe que Kant já está apresentando os elementos constitutivos da liberdade (autonomia), bem como estruturando o chamado „ponto de vista da razão‟, a partir do qual será possível a dedução da moralidade. Entendemos, portanto, que a sequência argumentativa do texto kantiano não possui partes dispensáveis. Deste modo, classificamos os argumentos da segunda seção nas três etapas argumentativas gerais apresentadas a seguir:

83

Ibidem, p. 99. 85


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

Os três argumentos gerais da segunda seção da Fundamentação da metafísica dos costumes. A- Argumento I (§ 1-11): Estabelece a necessidade de uma filosofia moral capaz de analisar as determinações a priori da razão. Assim, somente o princípio a priori que determina a vontade deve ser tomado como objeto desta análise que pretende fundamentar a moralidade. B- Argumento II (§ 12-49): Este argumento pode ser dividido em três partes. I- Kant classifica os modos distintos de determinação da vontade como modo de especificar o que ocorre com a vontade humana. II- Kant analisa a determinação da vontade humana e define os modos distintos de imperativos. III- A terceira e última parte do argumento é composta de três etapas distintas. a) Kant explicita a primeira fórmula do imperativo categórico, demonstrando como a forma universal do imperativo categórico pode ser deduzida do conceito de imperativo categórico em geral. b) Kant apresenta a fórmula material do imperativo categórico, a qual tem como conteúdo o fim em si mesmo da racionalidade humana. c) Kant explicita a síntese entre a forma e a matéria do imperativo categórico, chegando a uma determinação moral completa, que resulta na definição da autonomia da vontade. D- Argumento III (§ 69 - até o fim): Kant elabora, de modo alegórico, um reino dos fins possíveis onde cada um dos membros pode exercer livremente (autonomamente) a sua vontade. Este argumento introduz a distinção entre heteronomia e autonomia, de modo que a ideia de liberdade positiva, ou autonomia possa ser exposta na terceira seção. Embora ele não seja objeto de estudo deste trabalho, é oportuno ressaltar que este argumento tem a função de 86


O Fundamento da Moralidade

construir um „ponto de vista‟ racional que permitirá a dedução da moralidade a partir da ideia de liberdade. Podemos passar, agora, à análise detalhada dos argumentos kantianos. No entanto, devemos ter sempre em mente que o nosso propósito aqui é apresentar o modo como Kant utiliza o conceito de valor absoluto da racionalidade para explicitar o fundamento da própria moralidade.

II – A filosofia prática pura ou a moral a priori A análise kantiana realizada na primeira seção da Fundamentação da metafísica dos costumes derivou o princípio moral a partir do uso comum da razão prática. Pois aceitamos a tese que a razão comum é capaz de reconhecer o valor absoluto da boa vontade, bem como o valor moral de uma ação praticada por dever. Em outras palavras, a seção I tratou de explicitar o elemento moral do dever nas ações praticadas por causa do dever. No entanto, a fundamentação da moralidade exige muito mais do que a explicitação do elemento moral em um caso específico em que um princípio geral possa ser reconhecido. É preciso, segundo Kant, uma especulação filosófica que seja capaz de abandonar os procedimentos de uma filosofia popular. Tal especulação filosófica deve ocupar-se dos princípios internos da ação, assim como são estabelecidos pela razão, independentemente de qualquer resultado ou determinação empírica. Deste modo, exige-se não só uma passagem do juízo moral comum ao juízo filosófico, mas também se exige uma passagem de uma filosofia popular fundada na experiência a uma metafísica que aborde os conceitos morais completamente a priori. A filosofia que se funda na experiência é completamente ineficaz nesta tarefa. Pois, segundo Kant, tal análise filosófica tem como objeto as ações exteriores. No 87


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

entanto, estas ações são totalmente irrelevantes na análise acerca dos fundamentos dos valores morais. O que realmente interessa e deve ser analisados pela metafísica84 são os princípios internos da ação. Por outras palavras, são as determinações da razão independentemente da sua efetiva realização. Para Kant, este é o modo de explicitar o fundamento daquilo que deve ser. Ou seja, Kant visa explicitar a necessidade e universalidade prática decorrentes da determinação que a razão estabelece para o cumprimento da ação. No entanto, pouco importa a tal especulação metafísica se houve um efetivo cumprimento desta determinação. Por este mesmo motivo, toda filosofia que parte da experiência está impossibilitada de analisar as determinações a priori da razão. Pois a busca dos fundamentos daquilo que É confunde a explicitação do DEVER SER. Deste modo, diz Kant: Ora, para progredir neste trabalho, avançando por gradações naturais, não simplesmente do juízo moral comum (daqui muito apreciável) ao juízo filosófico, como já foi indicado, mas de uma filosofia popular, que não vai além do que ela pode alcançar às apalpadelas por meio de exemplos, até à metafísica (que não se deixa deter por nenhuma influência empírica, e que, devendo medir todo domínio do conhecimento racional desta espécie, se ergue em todo caso, até à região das ideias, na qual os próprios exemplos nos abandonam), importa seguir e expor claramente a potência prática da razão, partindo das suas regras

84

Para Kant, a metafísica é possível apenas no âmbito prático. Esta afirmação resulta indiretamente da crítica da razão pura. Pois, ao especificar os limites da experiência possível, Kant restringe o domínio da metafísica ao mundo moral estabelecido exclusivamente pela atividade prática da razão pura. 88


O Fundamento da Moralidade

universais de determinação até ao ponto em que dela brota o conceito de dever.85 A análise filosófica deve expor, diz Kant, a potência prática da razão, ou seja, a espontaneidade da razão pura em sua atividade prática. Assim, esta passagem da filosofia popular à metafísica deve analisar as regras universais que a razão estabelece para que se chegue ao conceito de dever que determina categoricamente o agir moral. No entanto, Kant tem plena consciência de que toda a possibilidade de análise está fundada no pressuposto de que a moralidade comporta o estatuto de uma lei. Em outras palavras, devemos conceder um estatuto universal e necessário à moralidade, embora a realidade desta ainda não tenha sido demonstrada por meio da dedução a partir da ideia de liberdade. Reconhecemos este pressuposto na seguinte citação: Acrescenta-se que, a não ser que se conteste ao conceito moral toda verdade e toda relação com qualquer objeto possível, não se pode desconhecer que a lei moral possua um significado a tal ponto extenso que deva ser válida não só para os homens, mas para todos os seres racionais em geral, e isto não só debaixo das condições contingentes e com exceções, mas de maneira absolutamente necessária86. Do mesmo modo, fica explícita a exigência kantiana de que o princípio da moralidade se funda na razão pura e tem uma origem totalmente a priori. Disto decorre que todos os conceitos que dizem respeito à moralidade devem ser expostos na sua forma universal. Pois, diz Kant: 85 86

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 73. Ibidem, p. 62. 89


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Se não há nenhum autêntico princípio supremo da moralidade que não deva apoiar-se unicamente na razão pura, independentemente de toda experiência, penso não ser sequer necessário perguntar se vale a pena expor este conceito sob forma universal (“in abstracto”), tais como existem a priori, juntamente com os princípios que lhe dizem respeito, dado que o conhecimento propriamente dito deve distinguir-se do conhecimento vulgar e denominar-se filosófico.87 A metafísica é, para Kant, o único modo pelo qual podemos fundamentar a moralidade, expondo os seus princípios universais, eximindo-a de qualquer confusão ou influência egoísta. Assim, Kant apresenta a classificação dos sete pressupostos fundamentais88 da moralidade, os quais somente poderão ser esclarecidos por esta filosofia pura chamada metafísica dos costumes. Estes pressupostos estabelecem o seguinte: 1 - Todos os conceitos morais têm a sua origem completamente a priori na razão, na razão humana mais comum tanto quanto na razão que se eleva ao alto grau de especulação. 2 - Os conceitos morais não podem ser abstraídos de nenhum conhecimento empírico, por conseguinte puramente contingente. 3 – A pureza da origem dos conceitos morais é o que os tornam dignos de servirem de princípios práticos supremos. 4 – Quanto mais se acrescenta algo de empírico aos conceitos morais, tanto mais diminui a sua verdadeira influência e o valor absoluto das ações. 5 – A criação dos conceitos morais é uma exigência da mais premente necessidade do ponto de vista teórico, em que se trata tão

87 88

Idem. Cf. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 72.

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O Fundamento da Moralidade

somente de especulação. Mas é ainda da maior importância prática criar estes conceitos e estas leis, tirando-os da razão pura. 6 – É preciso determinar o âmbito de todos estes conhecimentos racionais práticos ou puros, isto é, determinar todo o poder da razão pura prática. 7 – As leis morais devem ser válidas para todo ser racional em geral, deduzindo-as do conceito universal de um ser racional em geral. Será preciso abster-se (à medida que a filosofia especulativa o permita) de fazer depender tais princípios da natureza especial da razão humana. Estes sete requisitos garantem a exposição dos fundamentos da moral, independentemente de uma antropologia, como uma filosofia pura chamada por Kant de metafísica dos costumes, a qual é apresentada na segunda seção da Fundamentação da metafísica dos costumes. Assim, diz Kant para encerrar o primeiro argumento da seção II, “importa seguir e expor claramente a potência prática da razão, partindo das suas regras universais de determinação até ao ponto em que dela brota o conceito de dever”.89

III – A determinação prática da razão O segundo argumento da seção II começa por explicitar os fundamentos da determinação da razão na atividade da vontade. A sutileza deste argumento está no fato de que, à medida que Kant desenvolve a sua explicitação, ele também introduz algumas teses, bem como alguns postulados essenciais para a explicitação do princípio da moralidade. Assim, caberá, primeiramente, especificarmos quais são estes passos, para que, em seguida, possamos analisá-los detalhadamente.

89

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 73. 91


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O primeiro passo de Kant é postular a tese de que “todas as coisas na natureza operam segundo leis”, ou seja, não há nada que não esteja submetido a uma determinação universal e necessária. Em segundo lugar, Kant estabelece que existem duas ordens distintas de determinação universal e necessária operando na natureza. O terceiro passo define a natureza dos seres que estão submetidos a estas duas classes de determinação. Assim, Kant diferencia os seres entre aqueles que possuem vontade e os que não possuem vontade, restringindo a sua análise apenas aos primeiros. O quarto passo kantiano é, ainda, uma distinção. Ele distingue os seres que possuem vontade pura, ou seja, aqueles determinados pela pura razão, dos seres que não possuem vontade pura, ou seja, aqueles determinados também pela inclinação. Finalizando o argumento e como resultado desta última distinção, Kant encontra o modo de determinação chamado imperativo. Tal imperativo consiste no modo de determinação que sujeita apenas os seres que não possuem vontade pura, ou seja, aqueles que são determinados tanto pela razão como pela inclinação. E este é o caso dos seres humanos. Esta primeira parte do segundo argumento kantiano da segunda seção, portanto, terá como objetivo explicitar de que modo o homem se encontra determinado por uma lei prática da razão, bem como estabelecer as faculdades que o condicionam a tal. Analisemos, então, detalhadamente este argumento. Kant inicia sua argumentação postulando que todos os seres da natureza se movem mediante determinações universais e necessárias, ou seja, todas as coisas operam segundo leis. Assim, diz ele: Todas as coisas na natureza operam segundo leis. Apenas um ser racional possui a faculdade de agir segundo representação das leis, isto é, segundo

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O Fundamento da Moralidade

princípios, ou, por outras palavras, só ele possui vontade.90 Este enunciado genérico estabelece o pressuposto de que existe sempre uma lei da física regulando a natureza, bem como uma lei moral regulando os costumes. No entanto, o objetivo de Kant não se restringe apenas a apontar o fato de que o modo de operar dos seres da natureza decorre de uma determinação universal e necessária, ou seja, uma lei que coordena a sua atividade ou determina como ela deva proceder. Kant pretende, com o seu segundo passo argumentativo, analisar o modo como os seres da natureza são determinados por tais leis, pressupondo que não existe um único modo de estar submetido a elas. Este pressuposto kantiano de que existem duas ordens distintas de determinação universal e necessária operando na natureza tem um objetivo específico que leva ao terceiro passo da sua argumentação. Kant distingui a natureza de cada um dos seres que estão submetidos a estes dois modos de determinação. Ao primeiro modo de determinação estão submissos os seres que não possuem vontade e, portanto, são incapazes de representar a lei ou os princípios que determinam a sua atividade. Segundo Kant, estes seres são determinados diretamente a operar segundo as leis que estabelecem o ordenamento natural. Ao segundo modo de determinação estão submissos os seres capazes de agir segundo as representações das leis ou dos princípios que determinam a sua atividade. De acordo com Kant, estes seres são determinados a atuar segundo as leis que estabelecem o ordenamento moral exclusivamente porque possuem vontade. Em outras palavras, todo ser que possui vontade está sujeito a determinadas leis, leis estas às quais os seres destituídos de vontade não estão sujeitos. Pois, diz Kant, 90

Ibidem, p. 74. 93


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

“apenas um ser racional possui a faculdade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípio, ou por outras palavras, só ele possui vontade”.91 No entanto, é fundamental não confundir o conceito kantiano de vontade com uma mera faculdade de representar leis, própria de alguns seres e não de outros. Embora Kant ainda não tenha apresentado precisamente o conceito de vontade, ele define vontade como razão prática. Pois considera que a vontade nada mais é do que a atividade da razão ao derivar as ações a partir das leis. Assim, diz ele, “uma vez que, para das leis derivar as ações, é necessária a razão, a vontade outra coisa não é senão razão prática”.92 Certamente, identificar o conceito de vontade ao conceito de razão prática não esclarece nosso problema. De fato, o conceito de razão prática também não foi formulado. Deste modo, será fundamental que nos detenhamos um pouco mais neste ponto a fim de especificar a exata função do conceito de vontade. Como afirmamos acima, Kant define vontade como razão prática para evitar algumas confusões possíveis. Isto significa que vontade deve ser entendida como a própria atividade da razão. Em outras palavras, vontade consiste na faculdade que a razão possui de derivar ações a partir de leis que ela mesma (a razão) determina. Trata-se, de modo mais preciso, da faculdade prática que a razão pura possui e por meio da qual deriva ações a partir da representação de princípios a priori estabelecidos por ela mesma. Em função da magnitude deste conceito na filosofia kantiana, reconhecemos que há aqui algumas implicações que devem ser explicitadas. Em primeiro lugar, devemos reconhecer que o conceito kantiano de vontade pressupõe a ideia de liberdade positiva antes mesmo de Kant explicitar a sua possibilidade lógica. Por outras palavras, Kant utiliza o conceito de razão prática para 91 92

Idem. Idem.

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O Fundamento da Moralidade

explicitar a natureza autônoma da vontade pura, sem relevar o fato de que tal conceito não tenha sido explicitado a partir de seus argumentos. Como veremos no próximo capítulo, o conceito de autonomia da vontade é explicitado pela primeira vez quando Kant apresenta a determinação completa da lei moral. Assim, deparamos com o problema de que, na argumentação kantiana, a lei moral é a condição de possibilidade do conhecimento da autonomia da vontade. Pois a autonomia da vontade nada mais é que a liberdade positiva. Deste modo, Kant não poderia explicitar o conceito de vontade anteriormente à explicação da lei moral. Para solucionar este problema, consideramos oportuno apontarmos a interpretação de Bernard Carnois acerca da relação entre liberdade da vontade e lei moral. Em seu livro The Coherence of Kant‟s Doctrine of Freedom, Carnois entende que a autonomia da vontade consiste numa forma de autoimposição da liberdade. No entanto, ele reconhece que há uma dificuldade na sequência argumentativa do texto kantiano. Em outras palavras, Carnois percebe que não há uma relação lógica dedutiva entre os conceitos de autonomia da vontade e lei moral, ou seja, a disposição destes conceitos viola o desenvolvimento do argumento. Com o intuito de compreender o argumento kantiano, considerando o propósito da fundamentação da moral, Carnois explicita um método de interpretação. Ele propõe que existam duas ordens possíveis de disposição dos conceitos. Um delas seria a ordem da existência e a outra seria a ordem do conhecimento. Assim, na ordem da existência a liberdade da vontade seria condição da existência, ou a ratio essendi, da lei moral. E, na ordem do conhecimento, a lei moral seria a condição para o conhecimento da liberdade. Esta distinção pode ser verificada na seguinte citação: Na ordem da existência, a liberdade é prioridade para a lei moral, como sua ratio essendi. Mas na 95


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

ordem do conhecimento, a lei moral é prioridade: ela é a ratio cognocendi da liberdade. »Ela é, assim, a lei moral, da qual nós somos imediatamente conscientes..., a qual leva-nos diretamente ao conceito de liberdade«.93 Consideramos que a interpretação de Carnois seja plausível pelo seguinte motivo. Em primeiro lugar, entendemos que, já que a moralidade é um pressuposto dos argumentos kantianos, a liberdade da vontade não pode deixar de ser pressuposta. De fato, a liberdade da vontade está compreendida na noção de moralidade. Em outras palavras, para que a moralidade não seja confundida com a legalidade (exclusiva submissão a uma lei prática) devemos ter em conta que ela compreende a autonomia da vontade. Pois a autonomia ou liberdade da vontade é a faculdade da razão para se submeter às leis práticas que ela mesma determina a priori, ou seja, a moralidade sustenta-se na liberdade positiva. Em segundo lugar, devemos reconhecer que o conceito kantiano de vontade como razão prática exclui completamente a possibilidade de ações sem uma causa ou lei que as determine. Em outras palavras, todos os seres estão condicionados a agir segundo alguma causa determinante. Certamente, esta afirmação já se encontra na primeira frase da segunda seção, onde Kant estabelece que todas as coisas na natureza operam segundo leis. No entanto, o conceito de vontade como razão prática estabelece que existem duas ordens distintas de determinação, bem como que nada escaparia a pelo menos uma delas. Retornando ao terceiro passo da argumentação, percebemos que a tese kantiana introduz uma distinção. De um lado está a determinação heterônoma que subordina os seres destituídos de razão. Pois dado que tais seres não 93

CARNOIS, Bernard. The Coherence of Kant’s Doctrine of Freedom, p. 56.

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O Fundamento da Moralidade

possuem vontade, eles não podem operar segundo a representação dos princípios da razão. Assim, estes seres operam segundo leis e princípios que os governam de fora, ou seja, existe sempre uma causa exterior que regula a sua atividade. De outro lado está a determinação autônoma que só cabe aos seres racionais. De fato, apenas um ser racional pode representar uma lei ou princípio de ação, que ele mesmo atribuiu, e guiar-se por esta determinação. Deste modo, somente um ser racional pode ser autônomo, ou seja, autor da sua própria causa ou lei, pois só ele possui vontade. A vontade é o tipo de determinação que distingue os seres racionais dos irracionais. Entendida com a faculdade prática que a razão pura possui de agir segundo representações de leis que ela mesma estabeleceu, a vontade nada mais é do que o querer puramente racional. Em outras palavras, a vontade é o querer agir segundo princípios universais e necessários. Por um lado, podemos dizer que só os seres racionais podem determinar a si mesmos a agir dessa forma. Por outro lado, seguir a determinação racional nada mais é do que seguir aquilo que a sua própria natureza racional estabelece. Portanto, a vontade é apenas querer aquilo que a razão determina como bem moral. Assim, dizer que os seres racionais são determinados pelas leis da razão será o mesmo que dizer que os seres que possuem vontade são determinados pelo seu próprio querer. Dando sequência ao desenvolvimento da sua argumentação, o quarto passo kantiano restringe a análise aos seres exclusivamente racionais, ou seja, apenas os seres que possuem vontade. Por outras palavras, interessa à análise kantiana especificar quais seres são determinados pelo seu próprio querer, bem como explicitar o modo específico deste querer que constitui a determinação autônoma própria da vontade de cada um deles. Os seres racionais, ou seja, aqueles que possuem vontade e se determinam pelo mero querer, estão divididos em 97


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dois grupos. Esta divisão baseia-se na força da determinação estabelecida pelo querer próprio destes seres. Num grupo estão os seres cujo querer consiste numa determinação infalível da vontade. Noutras palavras, a vontade destes seres consiste no fato de que a razão age unicamente segundo representação das leis propostas por ela mesma. Definido dessa maneira, este grupo de seres compõe-se apenas dos seres puramente racionais. Neste caso, a determinação da razão impõe-se de modo necessário não só objetivamente, mas também subjetivamente. Deste modo, tais seres querem incondicionadamente o bem determinado pela razão. Encontramos esta definição na seguinte citação kantiana. Quando, num ser, a razão determina infalivelmente a vontade, as ações deste ser, que são conhecidas objetivamente necessárias, são necessárias também subjetivamente; quer dizer que então a vontade é uma faculdade de escolher somente aquilo que a razão, independente de toda inclinação, reconhece como praticamente 94 necessário, isto é, como bom. Em uma nota da sua tradução da Fundamentação da metafísica dos costumes, Carvalho afirma que “em tais condições só se encontraria uma vontade perfeita, santa sob todos os respeitos, qual nunca é, na presente vida, a vontade do homem”.95 Entendemos que, embora este tipo de vontade não se relacione com a humanidade, a definição da vontade santa será fundamental para que possamos entender a natureza do querer humano, pois ela está oposta ao querer perfeito, pertencendo assim ao outro grupo de seres.

94 95

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 74. Ibidem, p. 147. Nota 90.

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O Fundamento da Moralidade

No outro grupo estão os seres cujo querer se caracteriza por um conflito entre aquilo que é determinado tanto pela razão como pela inclinação. Por outras palavras, a vontade destes seres consiste numa faculdade que a razão possui de agir (mas ela nem sempre age) segundo representação da lei proposta por ela mesma. Neste caso, há um conflito entre a determinação objetiva da razão que quer necessariamente o bem e a determinação subjetiva da razão que deseja algum fim contingente. Ao encontrar resistência diante da determinação subjetiva, a determinação objetiva se torna incapaz de efetivar a ação. No entanto, a sua capacidade estabelece o que deve ser por meio de uma coação que determina de modo imperativo. Neste caso, a vontade não consiste no querer, mas no dever que, embora incapaz de efetivar a ação, determina o critério moral de modo universal e necessário. Assim, diz Kant: Se a razão não determina suficientemente por si só a vontade, se esta é ainda subordinada a condições subjetivas (ou certos impulsos) que nem sempre concordam com as condições objetivas; numa palavra, se a vontade não é em si completamente conforme a razão (como acontece realmente com os homens), então as ações reconhecidas necessárias objetivamente são subjetivamente contingentes, e a determinação de uma tal vontade conformemente a leis objetivas é uma coação96. É desta maneira que a vontade se apresenta na natureza humana. Em outras palavras, a razão prática não é a capacidade de efetivamente derivar as ações a partir da representação da lei que ela mesma estabelece. Neste caso, a razão prática consiste numa espécie de vontade coagida a executar ações segundo a lei ou princípios representados. 96

Ibidem, p. 74. 99


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

Deste modo, a vontade humana, enquanto atividade prática da razão pura será apenas um dever. Pois a vontade será determinada sempre segundo um critério subjetivo estabelecido pela inclinação e, portanto, conflitante com o princípio universal e necessário dado pela razão chamado imperativo. Será oportuno mencionarmos as observações de Antônio Carvalho acerca deste ponto. Estas observações encontram-se numa nota à sua tradução portuguesa da Fundamentação da metafísica dos costumes.97 Segundo Carvalho, a determinação imperativa que a razão prática exerce na natureza humana resulta de duas características antagônicas existentes no homem. Por um lado, o homem vê-se determinado por princípios universais e necessários da sua própria razão. Por outro lado, enquanto determinações da vontade, estes princípios encontram resistência em princípios subjetivos determinados por causas heterônomas (alheias à própria vontade humana). O resultado deste conflito é a determinação imperativa da razão prática, ou vontade pura do homem, sobre os princípios subjetivos oriundos de determinação heterônoma. Esta posição de Carvalho pode ser reconhecida na citação a seguir. As condições para que um princípio prático assuma a forma de imperativo são duas: 1. É preciso que sejam princípios objetivos, isto é, que exprimem uma relação racional e, portanto, universal e necessária; 2. É preciso que tais princípios, enquanto determinantes de uma vontade, ou enquanto princípios práticos, encontrem resistência na força determinante de elementos subjetivos – quer estes sejam outros princípios práticos, quer meros impulsos 97

Ibidem, p. 148. Nota 92.

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O Fundamento da Moralidade

sensoriais, os quais induziram o sujeito a agir de maneira diferente da maneira indicada pelo princípio prático objetivo.98 Após apontar a natureza do conflito interno que caracteriza a vontade humana, Carvalho ressalta que a determinação da razão pura permanece com a sua necessidade prática objetiva, ainda que a ação tenha sido efetivada segundo princípios subjetivos. Por outras palavras, o imperativo que determina a ação, ou seja, aquela determinação que estabelece o dever ser, possui necessidade objetiva independentemente do seu efetivo cumprimento. Assim, diz Carvalho: Portanto, este não pode deixar de produzir no sujeito como que um sentimento de constrição interior, não pode deixar de ser apreendido como um vínculo; pelo que, apresenta-se ao sujeito sob a forma de comando de fazer ou não fazer. Comando este que, precisamente por exprimir a “necessidade objetiva” da ação, permanece válido mesmo que o sujeito, cedendo à ação determinante dos outros elementos contrastantes, não se pode regular por ele em seu comportamento efetivo.99 Seguimos a interpretação de Carvalho e consideramos que este é o ponto conclusivo da primeira parte do segundo argumento. De fato, após indicar a ordem prática de determinação, o argumento kantiano avançou da análise da vontade, como determinação autônoma dos seres racionais, à análise do imperativo, como determinação dos seres racionais finitos. Em outras palavras, partindo da análise dos seres 98 99

Idem. Idem. 101


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

racionais como tais, ou seja, dos seres determinados autonomamente por uma vontade santa, chegamos à análise da vontade dos seres racionais finitos, ou seja, aqueles que possuem uma vontade autônoma finita e, portanto, são determinados também por causas heterônomas. Por fim, explicitamos que, em função do conflito existente na própria natureza humana, a sua vontade será sempre determinada de modo imperativo, segundo princípios universais e necessários da razão. Pois a vontade consistirá sempre em um dever ser, uma vez que comporta necessidade prática objetiva.100 No intuito de fundamentar a moralidade, Kant passa a analisar “a necessidade objetiva” dos imperativos que constituem a determinação da vontade humana. Para a realização desta tarefa, Kant desenvolve uma nova cadeia argumentativa, como veremos no próximo tópico.

IV – A necessidade objetiva dos imperativos A segunda etapa deste segundo argumento analisa a natureza dos imperativos com o intuito de explicitar sua condição de possibilidade. Em outras palavras, trata-se de explicitar a necessidade e a universalidade que, de modo a priori, constituem a determinação imperativa na vontade humana. No desenvolvimento desta tarefa, Kant introduz algumas teses e alguns postulados essenciais para a conclusão do argumento e, portanto, para a fundamentação da moralidade. Antes de abordar a argumentação kantiana, cabe apresentar as etapas que a compõem. Primeiramente, Kant define „imperativo‟ como a forma de um mandamento que expressa um dever, ou seja, trata-se da fórmula que expressa a própria atividade da vontade humana. 100

A natureza objetiva é, até esta etapa da argumentação, um pressuposto.

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O Fundamento da Moralidade

O segundo passo de Kant consiste em distinguir os imperativos em função do tipo de bem que eles determinam. Assim, os imperativos serão classificados em hipotéticos e categóricos. Este segundo passo possui uma subdivisão, na qual, primeiramente, Kant especifica os imperativos em função da sua dependência a um escopo para demonstrar a necessidade prática. Neste caso, tais imperativos são definidos como princípios problemáticos, princípios assertóricos e princípios apodíticos. Em seguida, Kant redefine os imperativos pelo gênero da coação, ou seja, explicita a distinção entre os modos de determinação. Em outras palavras, os princípios problemáticos são caracterizados como regras da habilidade, os princípios assertóricos como conselhos da prudência e os princípios apodíticos como ordenação da moralidade. O terceiro passo terá duas etapas. Primeiramente, tratará de demonstrar as condições de possibilidade dos imperativos hipotéticos decorrentes de sua natureza analítica. Em seguida, tratará de esclarecer que não é possível uma demonstração das condições de possibilidade do imperativo categórico pelo fato de que eles não são juízos analíticos, mas juízos sintéticos a priori. Finalmente, o quarto passo apresentará, primeiramente, os pressupostos que devem ser admitidos acerca do imperativo categórico. Estes pressupostos são fundamentais para que Kant possa continuar a explicitação dos fundamentos da moralidade. Em seguida, Kant proporá um novo modo de explicitar as condições de possibilidade do imperativo categórico. Pois a mera análise do conceito é ineficaz quando se trata de juízos sintéticos a priori. Este argumento servirá de introdução ao argumento principal que cuidará unicamente de explicitar a universalidade e necessidade do imperativo categórico. Portanto, será preciso analisar detalhadamente cada um destes passos da argumentação kantiana para que identifiquemos quais são os fundamentos do imperativo categórico. 103


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Kant avança a sua argumentação definindo o que vem a ser mandamento da razão, imperativo e dever, bem como a função que eles exercem na atividade da vontade humana. Em outras palavras, Kant define a determinação objetiva da razão encontrada na vontade humana como um mandamento da razão. A forma ou fórmula deste mandamento da razão é definida como imperativo. E, concluindo a relação entre estas duas noções chaves, o modo de expressão deste imperativo é definido como dever. Embora estas sejam três definições positivas, elas apresentam implicações que exigem uma análise detalhada. Primeiramente, Kant define „mandamento da razão‟ como a coação da vontade decorrente da representação de um princípio objetivo. Trata-se de uma retomada daquela terceira proposição acerca do dever que analisamos no final do capítulo II. Pois a análise kantiana dos conceitos morais da razão comum define dever como a necessidade de cumprir uma ação em função da consciência imediata da determinação da lei sobre a vontade. No entanto, devemos reconhecer que Kant retoma a definição para analisá-la a partir de uma metafísica dos costumes, ou seja, toma-se agora o ponto de vista da razão prática capaz perceber a determinação universal e necessária existente na vontade humana autônoma. Em outras palavras, a análise que pretende elevar-se de uma filosofia popular à metafísica dos costumes deverá explicitar o fundamento a priori desta determinação. Portanto, a tarefa kantiana consiste em explicitar o estatuto universal e necessário desta determinação destituído de qualquer entrave subjetivo e contingente. A partir do ponto de vista da razão prática, ou seja, de uma vontade humana autônoma, o mandamento não é a consciência imediata da determinação da lei sobre a vontade, decorrente da representação de um princípio objetivo. Para uma vontade humana autônoma, o mandamento da razão é a autocoação da vontade resultante da representação de um princípio objetivo, dispensando qualquer referência a uma 104


O Fundamento da Moralidade

consciência subjetiva. Deste modo, a definição de mandamento da razão aprimora a noção de dever própria da razão comum. Pois do ponto de vista da razão comum, a consciência imediata da determinação da lei sobre a vontade baseava-se ainda numa apreciação subjetiva que, em vez de apontar para um estatuto a priori (universal e necessário), poderia sugerir a ideia errônea de uma moral inata. No entanto, tomado a partir deste ponto de vista da razão prática, o „mandamento da razão‟ é a coação da vontade decorrente da representação de um princípio objetivo, cujo estatuto pode ser explicitado a priori, ou seja, de modo universal e necessário. Kant reconhece que o estatuto a priori da determinação da vontade humana não pode estar no conteúdo ou no móbil material que a determina – mas, pelo contrário, a universalidade e necessidade desta determinação residem apenas na razão. Assim, Kant distingue entre conteúdo e forma do mandamento da razão, definindo como imperativo apenas a forma, ou a fórmula, do mandamento. Deste modo, imperativo é unicamente a parte racional ou formal da determinação existente na vontade humana. Portanto, pouco importa qual seja o conteúdo do princípio representado na vontade coagida, bem como a sua natureza material. O imperativo consiste apenas na forma, ou fórmula, desta coação da vontade decorrente exclusivamente da natureza racional do mandamento. Assim, diz Kant: A representação de um princípio objetivo, na medida em que coage a vontade, denomina-se mandamento (da razão), e a fórmula do mandamento chama-se IMPERATIVO.101 Esta definição possui, ainda, um complemento. Com efeito, falta a Kant explicitar o modo pelo qual tais imperativos 101

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 74. 105


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

são expressos, bem como esclarecer em que consiste a fórmula de um mandamento da razão. Kant afirma que o verbo dever é o único modo de expressão para todos os imperativos. Em outras palavras, o dever é o modo de expressão da forma da vontade coagida, do mesmo modo que o querer é o modo de expressão da vontade pura. Assim, esta definição kantiana de dever indica a forma da relação entre a lei objetiva da razão e a vontade humana. Deste modo, diz Kant: Todos os imperativos são expressos pelo verbo dever, e indicam, por esse modo, a relação entre uma lei objetiva da razão e uma vontade que, por sua constituição subjetiva, não é necessariamente determinada por uma lei (uma coação)102. Entendemos que Kant retoma novamente a terceira proposição acerca de dever concebida pela razão comum para reformulá-la à luz de uma metafísica dos costumes. Em outras palavras, a análise kantiana redefine o conceito de dever que a razão comum concebia como a “necessidade de cumprir uma ação por respeito à lei”. Trata-se agora do modo de expressão formal do mandamento da razão, ou seja, o dever explicita a necessidade e universalidade existente na relação entre a lei objetiva do querer em geral e a imperfeição subjetiva da vontade humana. Pois ele nada mais é do que a expressão da forma a priori (ou imperativo) do mandamento da razão. Nas palavras de Kant: Por isso, os imperativos são apenas fórmulas que exprimem as relações entre as leis objetivas do querer em geral e a imperfeição subjetiva da

102

Idem.

106


O Fundamento da Moralidade

vontade deste ou daquele ser racional, por exemplo, da vontade humana.103 Entendemos que, até aqui, o propósito deste argumento kantiano é explicitar a forma a priori (universal e necessária) da determinação que constitui a atividade da vontade humana. Em outras palavras, trata-se de demonstrar, por meio da análise do conceito da vontade humana autônoma, que há uma forma a priori do mandamento da razão, ou seja, o imperativo expresso pelo verbo dever. Pois somente o elemento formal interessa a uma fundamentação da moralidade, visto que somente ele pode explicitar a necessidade e universalidade prática da razão. Dando sequência à análise, e após estabelecer que a universalidade e a necessidade do mandamento da razão consistem na fórmula a priori do imperativo expresso pelo verbo dever, o argumento kantiano propõe explicitar quais são as diferentes formas a priori dos mandamentos da razão, ou seja, quais são os tipos distintos de imperativos. Kant distingue os imperativos (pura forma ou fórmula a priori do mandamento da razão) em duas classes, tomando como critério a capacidade que eles possuem de estabelecer preceitos práticos. Esta distinção estabelece que de um lado se encontram os imperativos que preceituam apenas hipoteticamente. Do outro lado se encontra o imperativo que preceitua categoricamente. No desenvolvimento da argumentação, Kant incorpora a distinção tradicional entre juízos hipotéticos e categóricos. De acordo com esta distinção, o juízo hipotético é aquele que afirma ou nega subordinadamente a determinada hipótese. De modo contrário, o juízo categórico é aquele que afirma ou nega incondicionadamente.104 Assim, trazidos para o âmbito da 103 104

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 75. Cf. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 75. 107


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

proposta de fundamentação da moralidade, os preceitos hipotéticos e o preceito categórico são formas do mandamento da razão (ou imperativos) que estabelecem a priori a necessidade de uma ação. No entanto, tais imperativos distinguem-se pelo fato de estarem, ou não, condicionadas a determinada hipótese. Em outras palavras, embora tanto os imperativos hipotéticos como o imperativo categórico consistam em formas (ou fórmulas) a priori do mandamento da razão, ou seja, ambos consistam na necessidade e universalidade de uma ação, eles distinguem-se pelo fato de que a natureza a priori dos imperativos hipotéticos está condicionada a um fato possível e contingente. Enquanto forma de um mandamento da razão, diz Kant, “os imperativos hipotéticos representam a necessidade de uma ação possível como meio para alcançar alguma outra coisa que se pretende (ou que, pelo menos, é possível que se pretenda)”.105 Posto de outra maneira, a necessidade e universalidade encontradas nesta fórmula chamada imperativo hipotético serão sempre condicionadas ao menos à possibilidade de se pretender outra coisa. Esta forma imperativa hipotética encontra-se em todos os casos em que o dever esteja condicionado a um querer possível, como por exemplo: se eu quero o resultado X, devo querer a ação Y (dado que é a única capaz de produzi-lo). Deste modo, reconhecemos que há uma necessidade e universalidade na natureza deste dever, ou seja, na forma deste mandamento da razão. No entanto, reconhecemos também que a necessidade formal deste dever se encontra condicionada à pretensão de algo material. A outra forma do mandamento da razão expressa pelo verbo dever é o imperativo categórico. Ao contrário dos imperativos hipotéticos que se condicionam sob a hipótese de uma volição possível, diz Kant, “o imperativo categórico seria aquele que Nota do tradutor: 94. P. 148. 105 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 75. 108


O Fundamento da Moralidade

representa uma ação como necessária por si mesma, sem relação com nenhum outro escopo, como objetivamente necessária”.106 Ou seja, o imperativo categórico consiste na única forma do mandamento da razão que, em função da sua natureza a priori, determina uma ação de modo universal e necessário destituído de qualquer entrave subjetivo. Assim, o dever ser expresso pelo imperativo categórico representa a necessidade objetiva do cumprimento de uma ação, pois se trata de uma necessidade prática e não meramente teorética, como ocorre no caso dos imperativos hipotéticos. O que há de absolutamente necessário em matéria prática é o Bem. No entanto, é fundamental relembrarmos o que isto significa para a filosofia prática kantiana. Na primeira frase da Fundamentação da metafísica dos costumes, Kant afirma que “não é possível conceber coisa alguma no mundo ou mesmo fora do mundo que sem restrição possa ser considerada boa, a não ser uma só: UMA BOA VONTADE”.107 Esta proposição apresenta a identidade entre o Bem, ou seja, aquilo que é absolutamente necessário em matéria prática, e a Vontade, ou seja, a atividade prática da razão pura. Assim, Kant restringe toda e qualquer possibilidade de fundamentação da moralidade à explicitação da atividade da Boa Vontade, ou seja, deste querer agir segundo o princípio universal e necessário determinado objetivamente pela razão. Por outras palavras, o Bem nada mais é do que o caráter universal e necessário da razão que, de modo espontâneo, determina objetivamente a si mesma. Deste modo, o conceito de Bem encontrado na análise do dever é mais um aspecto da própria espontaneidade da razão encontrado na autonomia da vontade humana. Existe uma diferença fundamental entre as formas dos mandamentos da razão, ou seja, os imperativos hipotéticos diferenciam-se do imperativo categórico de modo essencial. 106 107

Idem. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 53. 109


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

Embora ambos comportem universalidade e necessidade, apenas o imperativo categórico determina objetivamente uma ação. Em outras palavras, ao contrário dos imperativos hipotéticos, o imperativo categórico não está condicionado a qualquer entrave subjetivo que condicione a sua necessidade prática. Pois ele não determina uma ação como boa em função da possibilidade de obtenção de outra coisa. Pelo contrário, explicita Kant: “quando a ação é representada como boa em si, e portanto como necessária numa vontade conforme em si mesma à razão considerada como princípio do querer, então o imperativo é categórico”.108 Ele é, portanto, a forma do mandamento da razão que, por uma vontade autônoma, quer incondicionadamente o bem. De modo contrário, diz Kant, “quando a ação não é boa senão como meio de obter alguma outra coisa, o imperativo é hipotético”.109 A necessidade e universalidade dos imperativos hipotéticos estão sempre condicionadas à pretensão subjetiva de algum fim. Neste caso, ela só terá efetivo valor prático se tal fim for alcançado. Em outras palavras, esta ação será considerada boa somente como meio para obtenção daquilo que se pretenda. Portanto, devemos reconhecer que o aspecto subjetivo condicionante dos imperativos hipotéticos os impede de comportar objetivamente a forma universal e necessária do Bem prático. Pois, ao contrário do imperativo categórico que indica a ação moralmente boa, os imperativos hipotéticos se relacionam com a utilidade e indicam apenas que a ação é boa relativamente a um escopo possível ou real. Com o intuito de precisar uma pouco mais estas definições, Kant apresenta uma subdivisão própria dos imperativos, introduzindo novamente a terminologia dos juízos para os princípios da ação. Seguindo este critério, os imperativos hipotéticos, bem como o imperativo categórico, são explicitados em função do gênero da coação que exercem. Para 108 109

Ibidem, p. 76. Idem.

110


O Fundamento da Moralidade

a terminologia clássica acerca dos juízos, problemático é um juízo que enuncia alguma coisa como possível. Assertório é o juízo que anuncia alguma coisa como real. Apodítico é o juízo que anuncia alguma coisa como necessária. Com base neste modelo, Kant especifica a natureza da coação dos imperativos, bem como estabelece mais uma diferença entre os imperativos hipotéticos e o imperativo categórico. Ao trazer esta terminologia dos juízos para os princípios da ação, Kant associa o termo apodítico ao imperativo categórico, pois este consiste na forma universal e necessária do mandamento da razão destituída de qualquer condição hipotética subjetiva. Em outras palavras, o imperativo categórico é apodítico porque consiste no princípio prático do dever moralmente (ou praticamente) necessário. Assim, o imperativo categórico é a forma do mandamento da razão que interessa ao propósito da fundamentação da moralidade. No entanto, a análise kantiana estende-se aos imperativos hipotéticos com o propósito de explicitar o motivo pelo qual eles não interessam a uma fundamentação da moralidade, apesar de comportarem universalidade e necessidade. No desenvolvimento da argumentação, Kant associa o termo problemático, extraído do juízo que enuncia alguma coisa como possível, à forma do mandamento da razão que ordena subordinadamente à volição de um fim. Ele entende que todo fim que seja possível apenas pela força de um ser racional é também um escopo possível para qualquer vontade. Assim, ele estabelece que o imperativo hipotético condicionado à volição de um fim possível nada mais é do que uma regra da habilidade chamada imperativo da habilidade. Para Kant, habilidade é a aptidão, adquirida ou simplesmente fortificada e ampliada pela cultura, para atingir certos fins, sem que o valor destes seja ainda determinado, a não ser pelo interesse ou bel-prazer do indivíduo.110 Deste modo, o imperativo da 110

Cf. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 77111


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

habilidade consiste na forma universal e necessária do mandamento da razão que não se ocupa de saber se o escopo é racional e bom, mas só de saber o que se deve fazer para o alcançar. Portanto, chegamos ao que Kant pretende demonstrar com esta análise, ou seja, que o imperativo da habilidade não é objetivamente necessário e Bom (em si mesmo), mas depende de condições subjetivas e contingentes. Finalmente, o termo assertório é extraído da definição de juízo que enuncia alguma coisa como real. Assim, Kant associa este termo (assertório) à forma do mandamento da razão que ordena subordinadamente à volição de um fim real. Um fim real difere de um fim possível, pois Kant o define como o fim necessário para todos os seres humanos chamado felicidade. No entanto, apesar de se estender a todos os seres humanos, a felicidade é um fim concebido de maneira particular por cada um dos seres humanos. Por outras palavras, apesar da felicidade poder ser admitida como um fim necessário para todos os seres humanos, ela é ainda um fim subjetivo que deve ser estabelecido individualmente. Pois, diz Kant, “por desgraça, o conceito de felicidade é conceito tão indeterminado que, não obstante o desejo de todo homem de ser feliz, ninguém todavia consegue dizer em termos precisos e coerente o que deseja e quer”.111 Deste modo, enquanto ligada à constituição subjetiva do ser humano, a felicidade não é um fim estabelecido pela razão. Trata-se antes de compostos empíricos almejados pela inclinação e organizados pela imaginação. Ora, um conjunto de elementos empíricos só pode ser tomado como um fim subjetivo. Deste modo, um fim real é um fim subjetivo estabelecido pela inclinação. Kant estabelece que o imperativo hipotético condicionado à volição de um fim real consiste em um conselho de prudência e, por isso, é chamado de imperativo da prudência. 78. 111 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 79. 112


O Fundamento da Moralidade

Assim, a forma do mandamento da razão que está subordinado à volição de um fim real nada mais é que o conselho acerca da melhor estratégica para a obtenção deste fim. Esta atuação estratégica é chamada prudência. Kant define a prudência como a capacidade de fazer convergir fins, obtidos pela sagacidade que um homem possui de atuar sobre outros, para a sua vantagem pessoal e estável.112 As vantagens e o bemestar representam materialmente o fim real, pois são partes empíricas do conjunto ideal da felicidade. Neste caso, a razão prescreve o melhor meio para a realização das vantagens e do bem-estar pessoal. Deste modo, o imperativo da prudência também consiste numa forma universal e necessária do mandamento da razão que não se ocupa de saber se o fim real é racional e bom, mas só de saber o que se deve fazer para o alcançar. Portanto, este é o objetivo da análise kantiana acerca deste tipo de imperativo hipotético, ou seja, explicitar que embora o imperativo da prudência esteja subordinado a um fim real necessário a toda vontade humana, ele depende de condições subjetivas desta mesma vontade e, portanto, não possui uma necessidade prática objetiva em si mesmo. Após expor estas três formas do mandamento da razão, Kant explicita o fato de que, mesmo tratando-se da forma a priori (universal e necessária) do mandamento da razão, só o imperativo categórico pode comportar o estatuto de uma lei que implica em si o conceito de necessidade incondicionada, verdadeiramente objetiva e, consequentemente, válida para todos. Em outras palavras, a necessidade e universalidade prática, bem como a validade objetiva, não podem ser encontradas na forma do mandamento da razão quando estes consistem em imperativos hipotéticos. Pois, como vimos acima, tais imperativos estão sempre condicionados a hipótese da volição de um fim subjetivo e, assim, não buscam a realização 112

Cf. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 80. 113


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

exclusiva do bem, por meio de um modo incondicionado de querer. Pelo contrário, almejam exclusivamente a efetiva realização do fim proposto, sendo apenas eficientes. Kant encerra a explicitação dos tipos de formas a priori do mandamento da razão, ou seja, dos imperativos expressos pelo verbo dever, com a apresentação da seguinte comparação: De fato, só a lei implica em si o conceito de necessidade incondicionada, verdadeiramente objetiva e, consequentemente, válida para todos, e as ordenações são leis a que é mister obedecer, isto é, devem ser seguidas, mesmos quando contrariam a inclinação. Os conselhos implicam, sem dúvida, uma necessidade, mas uma necessidade só válida sob uma condição subjetiva contingente, consoante este ou aquele homem considera esta ou aquela coisa como parte de sua felicidade; ao invés, o imperativo categórico não é limitado por nenhuma condição, e como é absolutamente, embora praticamente necessário, pode propriamente ser denominado prescrição.113 A apresentação kantiana dos diferentes imperativos está completa. No entanto, existem algumas consequências implícitas que devem ser apontadas para que possamos entender o modo pelo qual Kant demonstrará as condições de possibilidade dos imperativos hipotéticos. Ao apontarmos estas consequências, seguiremos os comentários de Antônio Carvalho apresentados em uma nota à sua tradução da Fundamentação. Carvalho aponta o fato de que, na apresentação dos tipos de imperativos, duas afirmações kantianas merecem atenção especial. A primeira é aquela afirmação de que os 113

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 78.

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O Fundamento da Moralidade

imperativos hipotéticos são preceitos práticos, mas não são leis práticas. A segunda afirmação diz que os princípios hipotéticos são propriamente princípios teoréticos ou corolários dos princípios teoréticos. Para Carvalho, esta duas afirmações devem ser colocadas em conexão recíproca para que possamos evitar dúvidas ou obscuridade. Assim, além dos princípios subjetivos chamados de máximas da ação e do princípio objetivo chamado de lei prática, existe uma classe de princípios que, embora objetivos, não são leis práticas. De fato, a objetividade destes princípios é apenas teórica. Seguindo a indicação de Carvalho, podemos perceber que Kant retoma a oposição entre a máxima da ação e a lei prática concebida pela razão comum na análise das ações praticadas por causa do dever. Pois ao analisar as ações praticadas por dever, Kant demonstra que naquele caso específico o princípio subjetivo da ação chamado máxima possuía a forma duma lei prática. Portanto, visto que se tratava de uma lei prática válida universalmente para toda razão comum, não poderia deixar de ser um princípio objetivo da ação. No entanto, o propósito kantiano na segunda seção é explicitar a natureza a priori dos mandamentos da razão. Trata-se, agora, de buscar a priori as formas que estabelecem o mandamento da razão e não apenas de investigar o fundamento do tipo específico de dever que comporta valor moral. Esta análise explicita que as prescrições a priori dos mandamentos da razão, embora sejam princípios objetivos válidos de modo universal e necessário, nem sempre determinam moralmente uma ação. Apenas o imperativo categórico, enquanto forma do mandamento da razão, consiste num princípio objetivo com estatuto de lei prática. Pois apenas ele estabelece incondicionadamente o Bem. Os imperativos hipotéticos, enquanto formas do mandamento da razão, são princípios objetivos que não possuem o estatuto de lei prática, pois são apenas de regras objetivas cuja validade está 115


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

condicionada a uma determinada hipótese. Assim, eles estabelecem apenas os melhores meios para obtenção de um resultado que pode ou não ser postulado. Portanto, a sua necessidade nunca poderá ser prática, visto que não se refere a qualquer determinação moral. A apresentação da teoria dos imperativos conclui o segundo passo da argumentação. No entanto, Kant reconhece que após esta apresentação se faz necessário demonstrar as condições de possibilidade dos imperativos. Em outras palavras, diz Kant: “é preciso demonstrar como são possíveis estes imperativos”. Esta questão consiste num novo problema. Pois a diferença implícita entre a objetividade dos imperativos hipotéticos e do imperativo categórico impede que ambos sejam demonstrados por meio de um único argumento. Na verdade, a demonstração das condições de possibilidade cabe apenas aos imperativos hipotéticos. Isto porque eles são analíticos e possuem necessidade teórica. De modo contrário, Kant está impossibilitado de demonstrar as condições de possibilidade do imperativo categórico, pois ele é sintético e possui necessidade prática. Assim, o terceiro passo da argumentação kantiana trata de demonstrar as condições de possibilidade dos imperativos hipotéticos, bem como de esclarecer o motivo pelo qual não é possível a demonstração das condições de possibilidade do imperativo categórico. Dissemos que Kant se vale da definição clássica dos juízos para apresentar os diferentes tipos de imperativos ou as diferentes fórmulas (formas) do mandamento da razão. Como consequência desta estratégia, Kant entende que os imperativos são formas das proposições práticas.114 Assim, a exigência kantiana de demonstrar “como são possíveis estes diferentes tipos 114

Cf. PATON, H. J. The Categorical Imperative, p. 120. Nota 4. Especialmente a posição de Paton acerca da equivalência entre os termos kantianos „proposições‟ e „juízos‟. 116


O Fundamento da Moralidade

de imperativos” consiste em explicitar como estas proposições podem ser justificadas ou por que elas são válidas. Noutras palavras, trata-se de demonstrar que, por um lado, os imperativos hipotéticos consistem em proposições analíticas (ou juízo analítico) e são necessários apenas de modo teorético. Por outro lado, trata-se de explicitar que o imperativo categórico consiste numa proposição sintética a priori (ou juízos sintéticos a priori) e, por isto, é praticamente necessário. Antes de analisarmos o fundamento analítico ou sintético a priori dos imperativos, será preciso entendermos a distinção entre juízos analíticos e juízos sintéticos, bem como a distinção entre o conhecimento a priori e a posteriori. Será oportuno, nesta parte do nosso trabalho, atentarmos para as observações que Wolff apresenta em seu livro The Autonomy of Reason, bem como as observações apresentadas por Paton em seu livro The Categorical Imperative. Wolff aborda a questão apresentando dois pares distintos de conceitos que não podem ser confundidos. São eles: analítico - sintético; e a priori – a posteriori. Segundo Wolff, “analítico” e “sintético” são adjetivos que modificam juízos e proposições. Este par de adjetivos divide a classe de proposições exaustiva e exclusivamente em duas partes. De um lado está aquela classe de proposições cujo predicado já está contido no sujeito. Os juízos (ou proposições) que compõem esta classe são chamados juízos analíticos.115 De outro lado está aquela classe de proposições que afirma, do sujeito, um predicado impossível de ser extraído do puro conceito do mesmo sujeito. Os juízos (ou proposições) que compõem esta classe são chamados juízos sintéticos.116 Assim, 115

A proposição “todos os corpos são extensos” é um exemplo de juízo analítico, pois o conceito “extenso” pode ser encontrado no conceito “corpo” por meio de análise. Cf. PATON, H. J. The Categorical Imperative, p. 121. 116 A proposição “todos os corpos são pesados” é um exemplo de juízo sintético, pois o conceito “pesado” não pode ser encontrado no conceito “corpo” por meio de análise, dado que resulta da experiência sensível. Neste 117


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

a distinção entre estas duas classes de juízos decorre do fato de que é possível, ao menos em princípio, determinar se uma proposição é analítica ou sintética pela análise dos conceitos que a compõem. Ainda segundo as observações de Wolff, “a priori” e “a posteriori” são advérbios que modificam verbos como “conhecer”. Este par de advérbios define os dois modos nos quais os juízos (ou proposições) podem ser conhecidos. De um lado está o conhecimento de juízos que não dependem da experiência do objeto deste mesmo juízo. O conhecimento de juízos deste tipo é chamado de conhecimento a priori, pois se trata do conhecimento puramente racional de juízos universais e necessários. De outro lado está o conhecimento de juízos que recorrem à experiência do objeto. O conhecimento deste tipo de juízo é chamado de conhecimento a posteriori, pois se trata de conhecimento particular e contingente decorrente da experiência. Assim, a distinção entre estes dois modos de conhecer os juízos decorre do fato de que, ou eles são conhecimentos exclusivos da razão e são a priori, ou eles são conhecimentos também da experiência e são a posteriori. Como vimos, primeiramente Wolff dividiu os juízos em analíticos e sintéticos. Em seguida, ele reconheceu que todo e qualquer juízo é conhecido, ou de modo a priori, ou de modo a posteriori. O resultado explícito desta análise é que os juízos analíticos são conhecidos exclusivamente de modo a priori pela razão. Pois, dado que são juízos analíticos (o seu predicado já está afirmado no sujeito), a sua necessidade independe da experiência e, ainda, dado que são conhecidos a priori pela pura razão, estes juízos são necessários. No entanto, a sutileza do resultado desta distinção está no fato de que quando relacionamos os dois modos de conhecer às duas classes de caso, não encontramos a necessidade teorética, uma vez que “não há contradição em supor que um corpo astral ou um corpo ressurreto possa existir sem peso”. Cf. PATON, H. J. The Categorical Imperative, p. 121-122. 118


O Fundamento da Moralidade

juízos, encontramos uma subdivisão dos juízos sintéticos. Pois, além dos juízos sintéticos conhecidos a posteriori, encontramos uma terceira classe de juízos chamados juízos sintéticos a priori. E, ao contrario dos juízos sintéticos a posteriori, que consistem em conhecimento de juízos particulares e contingentes, os juízos sintéticos conhecidos de modo a priori, embora não tenham o predicado afirmado no sujeito, são necessários independentemente da experiência e, ainda, dado que são conhecidos a priori pela pura razão, estes juízos são universais e necessários.117 Assim, Wolff encerra a sua análise pontuando que a tarefa kantiana de fundamentação da moralidade estabelece uma similaridade entre o procedimento teórico e o procedimento prático.118 Pois, embora Kant não se proponha a demonstrar efetivamente a realidade do imperativo categórico, que é um juízo sintético a priori, a sua tarefa consiste em explicitar a sua condição de validade. Por este motivo, Kant analisa os juízos (analíticos e sintético a priori) que constituem respectivamente os imperativos hipotéticos e o imperativo categórico. Poderemos, agora, retornar à solução kantiana para a questão: “como são possíveis os diferentes tipos de imperativos?”. Seguiremos a interpretação de Wolff acerca da introdução dos juízos analíticos e juízos sintéticos a priori no âmbito prático. Pois Kant propõe que os imperativos hipotéticos, que não são leis práticas, consistem em juízos analíticos e o imperativo

117

A proposição “todo evento tem uma causa” é um exemplo de juízo sintético a priori, pois não consiste em um juízo empírico e também não consiste em um juízo analítico, pois o conceito “evento” não contém em si mesmo o conceito de “ser causado”. Cf. PATON, H. J. The Categorical Imperative, p. 122. 118 As condições de validade dos juízos sintéticos a priori, ou seja, a demonstração da sua necessidade e universalidade, foram tratadas por Kant na primeira crítica. Em tal obra, o problema de Kant não é provar que há juízos sintéticos a priori, antes provar que tais juízos podem ser conhecidos a priori. 119


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

categórico, que é a única lei prática, consiste em um juízo sintético a priori. Kant demonstra que a condição de validade dos imperativos hipotéticos decorre da sua constituição analítica. Em outras palavras, assim como nos juízos analíticos, a necessidade dos imperativos hipotéticos não é prática, mas apenas teorética. Deste modo, encontramos a seguinte analogia entre os juízos analíticos e os imperativos hipotéticos. Os juízos analíticos consistem naqueles juízos em que o predicado se encontra afirmado no sujeito. Os imperativos hipotéticos são as fórmulas (do mandamento da razão) em que a volição do meio para a realização dum determinado fim decorre da volição deste mesmo fim. Posto de outra maneira, entendemos que no caso dos juízos analíticos a concepção do sujeito implica necessariamente a concepção do predicado. Com efeito, dado que se trata de um juízo analítico, é logicamente impossível que o sujeito possa ser concebido sem o predicado. No caso dos imperativos hipotéticos, a volição do fim implica necessariamente a volição do meio para a obtenção deste fim. Pois, dado que os imperativos hipotéticos consistem em proposições analíticas trazidas para o âmbito prático, é praticamente impossível que o fim pretendido possa ser querido sem os meios que o efetivam. A sutileza da argumentação kantiana está em demonstrar que há uma contradição teorética em supor a volição do fim sem que seja suposta imediatamente a volição do meio que o efetive. Pois Kant entende que a atividade da vontade finita é sempre um dever e, no caso dos imperativos hipotéticos, quem quer os fins deve (necessariamente) querer os meios para obtê-los, uma vez que a volição dos primeiros implica a volição dos últimos. Ora, Kant conclui que a necessidade teorética dos imperativos hipotéticos demonstra a possibilidade, ou as condições de validade, destes imperativos. No entanto, é fundamental explicitarmos o que

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O Fundamento da Moralidade

está pressuposto, na argumentação kantiana, como base da sustentação desta tese. Para Kant, em todo ato de querer um determinado fim, o fim que se quer e a atividade de alcançá-lo são uma e a mesma coisa. Pois, diz ele, “representar-me uma coisa como um efeito que eu posso produzir de certo modo, e representar-me a mim mesmo, em relação a este efeito, como agindo do mesmo modo, é de fato uma e a mesma coisa”.119 Isto significa que a atividade da vontade, ou seja, a espontaneidade prática da razão, ao constituir o fim que se quer (chamado efeito), estabelece imediatamente os meios de obtê-lo (chamado causa). Deste modo, diz Kant, Quem quer os fins, quer também (na medida em que a razão tem influxo decisivo sobre as ações) os meios indisponivelmente necessários de os alcançar, e que estão em seu poder. Esta proposição é, no que diz respeito ao querer, analítica, porque o ato de querer um objeto, efeito de minha atividade, supõe já a minha causalidade, como causalidade de uma causa agente, isto é, o uso dos meios.120 Assim, representar aquilo que seria efeito de um querer é o mesmo que representar a atividade de produção deste efeito, ou seja, as ações que o efetivam. Portanto, está pressuposto na argumentação kantiana que aquilo que se quer (efeito), bem como o modo de obtê-lo (causa), resulta da própria espontaneidade prática da razão. Deste modo, Kant entende que a necessidade teorética dos imperativos hipotéticos (ou das fórmulas do mandamento da razão expressas pelo verbo dever) pode ser encontrada por meio da análise da atividade da 119 120

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 79. Idem. 121


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

vontade, ou seja, na volição de um fim.121 Pois, diz ele, “o imperativo (hipotético) extrai, do conceito da volição de um fim a ideia das ações necessárias para chegar a este fim”.122 A possibilidade dos imperativos hipotéticos, portanto, decorre da necessidade teorética que eles possuem sempre que um fim possível ou real é representado. A demonstração desta necessidade teorética está no fato de que é impossível (contraditório) querer um fim sem que se queira imediatamente o meio de obtê-lo. Deste modo, os imperativos hipotéticos, embora necessários, não possuem estatuto de leis prática. Pois não estabelecem incondicionadamente o Bem, mas restringemse exclusivamente a estabelecerem o modo mais eficiente de consecução do fim. Após apresentar a demonstração das condições de possibilidade dos imperativos hipotéticos, por meio da análise que encontra a sua necessidade teórica, Kant chega ao seu problema principal. Ele depara-se com a exigência de demonstrar as condições de possibilidade do imperativo categórico. Em outras palavras, a tarefa kantiana deve demonstrar as condições de validade do juízo que, embora sintético, possui necessidade e universalidade pelo fato de ser conhecido a priori só pela razão. No entanto, Kant está impossibilitado de realizar esta tarefa. O método de análise utilizado para demonstrar a necessidade teorética dos imperativos hipotéticos não pode ser utilizado para demonstrar a necessidade prática do imperativo categórico. Pois, embora consista num juízo universal e necessário, pelo fato de ser conhecido a priori só pela razão, o imperativo categórico é um 121

Kant reconhece que a determinação dos meios aptos para alcançar um escopo prefixado exige proposições sintéticas. No entanto, elas se referem ao princípio de realização do objeto. Este fato não refuta o propósito kantiano, pois interessa-lhe exclusivamente o ato da vontade (QUERER/DEVER) independentemente da sua efetiva realização. Cf. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 79. 122 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 79. 122


O Fundamento da Moralidade

juízo sintético. Isto significa que a simples análise do conceito de volição do fim é incapaz de explicitar a universalidade e necessidade prática deste querer que comporta estatuto de uma lei prática. Ou seja, o ato que está ligado a priori à vontade de um ser racional não pode ser encontrado por meio da análise, uma vez que tal ligação, embora necessária, consiste em uma ligação sintética. Deste modo, diz Kant: Eu, sem pressupor condições derivada de qualquer inclinação, ligo o ato à vontade; ligo-o a priori, portanto necessariamente (embora só objetivamente, ou seja, tomando como ponto de partida a ideia de uma razão dotada de plenos poderes sobre todas as causas subjetivas de determinação). Esta é, pois, uma proposição prática, que não deriva analiticamente o fato de querer uma ação de um outro querer já pressuposto (porque não temos uma vontade tão perfeita), mas o liga imediatamente ao conceito da vontade de um ser racional, como algo que nele está contido.123 Kant encerra o terceiro passo da argumentação diante da constatação de que a necessidade e universalidade do imperativo categórico não podem ser demonstradas por meio de análise. Esta constatação impõe a mudança de estratégia presente no quarto passo da argumentação kantiana. Neste quarto e último passo argumentativo, Kant reafirma que a fundamentação da moral não exige que o princípio da moralidade seja estabelecido por meio de uma demonstração. Mas esta fundamentação exige apenas a explicitação da possibilidade a priori de tal princípio. Pois,

123

Ibidem, p. 82. Nota (*). 123


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

como expusemos acima, a argumentação kantiana parte do pressuposto da objetividade da moralidade. Assim, diz Kant: A possibilidade do imperativo da moralidade é, sem dúvida, a única questão que precisa ser solucionada [...] Devemos, pois, examinar inteiramente a priori a possibilidade de um imperativo categórico, visto aqui não ser concedida a vantagem de encontrar este imperativo realizado na experiência, de sorte que não tenhamos de examinar a possibilidade dele senão para o explicitar, e não para o estabelecer.124 Isto não significa que Kant abandona o propósito de demonstrar como é possível este princípio da moralidade. Pois, de certo modo, esta questão é dissolvida na terceira seção (da Fundamentação da metafísica dos costumes), onde Kant deduz a moralidade da ideia de liberdade. O fato é que a argumentação kantiana ainda não apresentou todos os elementos formais que compõe o princípio da moralidade.125 Assim, diz Kant, “a questão de saber como seja possível um tal mandamento absoluto, mesmo quando lhe conhecemos a fórmula, exigirá ainda, de nossa parte, um esforço peculiar e difícil, do qual trataremos na derradeira seção desta obra (Fundamentação da metafísica dos costumes)”.126 Deste modo, a estratégia kantiana consiste em apresentar, primeiramente, a construção hipotética do princípio da moralidade e, em seguida, apresentar a sua dedução a partir da ideia de liberdade. Para avançar na sua tarefa, Kant estabelece os pressupostos necessários para o desenvolvimento do principal argumento da fundamentação da moralidade. Em outras 124

Ibidem, p. 81-82. Em relação ao Imperativo Categórico, podemos dizer que até aqui a argumentação kantiana se restringiu a dizer o que ele não é. 126 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 82. 125

124


O Fundamento da Moralidade

palavras, ele inicia uma nova estratégia argumentativa para explicitar a possibilidade do imperativo categórico. Assim, ele relembra que devem ser admitidas preliminarmente as seguintes teses: 1. A possibilidade do imperativo da moralidade é a única questão que precisa ser solucionada. 2. Solucionar esta questão consiste em examinar inteiramente a priori a possibilidade de um imperativo categórico. 3. O exame da possibilidade deste imperativo pretende apenas explicitá-lo, mas nunca estabelecê-lo. 4. Finalmente, importa admitir preliminarmente acerca da natureza do imperativo categórico duas teses fundamentais: a) Só o imperativo categórico tem valor de lei prática, ou seja, só ele é necessariamente incondicionado como uma lei. b) O imperativo categórico é uma proposição sintética a priori. Ao estabelecer que o imperativo categórico possui o estatuto de lei prática, Kant está postulando que tal imperativo é universal e necessário. Ao estabelecer que este imperativo consiste em uma proposição sintética a priori, Kant está postulando a sua objetividade, ou seja, trata-se de um princípio conhecido objetivamente pela razão sem pressupor qualquer condição derivada da inclinação. Após estabelecer estes pressupostos, Kant apresenta a sua nova estratégia argumentativa dizendo que ela consiste em “verificar se o conceito simples de imperativo categórico fornecesse também a fórmula do mesmo, fórmula que contivesse a proposição que só pode ser um imperativo categórico”.127 Por outras palavras, Kant retoma o conceito de imperativo em geral, encontrado na análise das ações praticadas por causa do dever (seção I), para dele extrair a forma do imperativo categórico. Este conceito reconhece 127

Idem. 125


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

nas ações que comportam valor moral a necessidade de que a máxima se conforme à Lei. Assim, interessa a Kant a fórmula que explicita a necessidade deste princípio, bem como a universalidade e objetividade da lei prática que ele estabelece. Portanto, esta nova estratégia da argumentação kantiana consiste em explicitar, por meio das fórmulas do imperativo categórico, os elementos dos pressupostos acima admitidos (1. Necessidade e universalidade da Lei) de modo que a sua possibilidade se possa tornar evidente. Em outras palavras, encontrar as fórmulas que expressam a necessidade e a universalidade do imperativo categórico é o modo kantiano de construir (explicitar) a possibilidade do princípio moral. Afirmamos acima que a argumentação deste capítulo não aborda explicitamente o tema da nossa investigação. No entanto, reconhecemos que as teses estabelecidas aqui são fundamentais para o propósito da fundamentação da moralidade por meio de uma metafísica dos costumes. Pois a argumentação kantiana apresentada neste capítulo tem o propósito de depurar os conceitos práticos, precisando quais são os conceitos a posteriori e quais são os conceitos a priori. Em outras palavras, Kant delimita o âmbito especulativo da metafísica dos costumes para, então, explicitar o fundamento universal e necessário da moralidade indicado pela ideia de valor absoluto da boa vontade. Esta é, portanto, a tarefa da quarta parte da argumentação kantiana.

126


CAPÍTULO IV O IMPERATIVO CATEGÓRICO

I – As fórmulas dos imperativos A quarta e última etapa do segundo argumento kantiano apresenta as três formulações do imperativo categórico. O nosso propósito é explicitar a utilização da noção de valor absoluto da racionalidade na segunda formulação do imperativo categórico. Com efeito, entendemos que esta noção é fundamental para caracterizar a objetividade do imperativo categórico. Assim, a noção de valor absoluto da racionalidade indica um elemento fundamental do princípio moral. Pois a objetividade da segunda fórmula do imperativo categórico consiste no elemento essencial para a sua determinação completa apresentada na terceira formulação. A primeira fórmula do imperativo categórico é obtida a partir do conceito de imperativo categórico em geral. Este conceito é indicado pela noção de valor moral, encontrada nas ações praticadas por causa do dever. Assim, a fórmula do imperativo categórico é expressa da seguinte maneira: “Procede apenas segundo aquela máxima, em virtude da qual podes querer ao mesmo tempo que ela se torne uma lei universal”.128 A função desta fórmula na argumentação é explicitar a necessidade prática do imperativo categórico. A segunda fórmula do imperativo categórico é obtida a partir do postulado de que a atividade da vontade garante aos seres racionais um valor absoluto. Assim, Kant postula que a humanidade, enquanto dotada de racionalidade, consiste no fim objetivo dotado de valor absoluto. Em outras palavras, a dignidade da racionalidade humana, enquanto fim em si 128

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 83. 127


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

objetivo tomado como matéria do imperativo categórico, é o postulado que pretende garantir hipoteticamente a objetividade da moralidade. Esta fórmula é expressa da seguinte maneira: “Procede de maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de todos os outros, sempre e ao mesmo tempo como fim em si mesmo e nunca como pura meio”.129 A função desta fórmula é explicitar que a objetividade do imperativo categórico é indicada pelo valor absoluto do fim que lhe serve de princípio. Finalmente, a terceira fórmula do imperativo categórico é obtida a partir da síntese entre a forma e a matéria do imperativo categórico. Ainda que composta pelos elementos das duas fórmulas anteriores, o imperativo categórico é definido como a ideia da vontade de todo ser racional considerada como vontade promulgadora de uma legislação universal.130 A função desta fórmula é explicitar a universalidade do imperativo categórico encontrada na autonomia da vontade dos sujeitos racionais. Deste modo, Kant encerra o segundo argumento explicitando, ainda que hipoteticamente, a natureza da moralidade. II– A necessidade do imperativo categórico A estratégia kantiana utilizada para explicitar a necessidade do imperativo categórico é a seguinte. Primeiramente, Kant compara a noção de imperativo hipotético à noção de imperativo categórico (em geral). Por meio desta comparação, ele afirma que, ao contrário dos imperativos hipotéticos – que só apresentam o seu conteúdo mediante uma condição –, o imperativo categórico apresenta o seu conteúdo imediatamente. Como resultado desta análise, Kant aponta o fato de que a 129 130

Ibidem, p. 91. Ibidem, p. 94.

128


O Fundamento da Moralidade

noção de imperativo geral do dever mostra que o seu conteúdo é a lei e, também, a necessidade de que a máxima se conforme à lei. Por outras palavras, esta noção tem como conteúdo a necessidade da máxima possuir validade universal. Assim, o que existe na noção de imperativo em geral é a necessidade da conformidade que o imperativo apresenta. Deste modo, diz Kant: Quando imagino um imperativo hipotético em geral, não sei com antecedência o que ele conterá, enquanto não me for dada a condição do mesmo. Mas, se imagino um imperativo categórico, sei imediatamente o seu conteúdo. Não contendo o imperativo, além da lei, senão a necessidade de a máxima se conformar à lei, e não contendo esta lei nenhuma condição a que esteja sujeita, nada mais resta que a universalidade de uma lei em geral, à qual a máxima da ação deve ser conforme, e é só esta conformidade que o imperativo apresenta propriamente como necessária.131 Neste momento da análise, o que interessa à argumentação kantiana é precisamente esta característica formal do imperativo em geral, que exige incondicionadamente a conformidade entre a máxima da ação e a lei prática. Kant propõe que a fórmula capaz de explicitar a necessidade do dever, expressa pelo imperativo categórico, se apresenta do seguinte modo: Procede apenas segundo aquela máxima, em virtude da qual podes querer ao mesmo tempo que ela se torne uma lei universal132. 131 132

Ibidem, p. 81-82. Ibidem, p. 83. 129


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

O fundamento desta conformidade incondicionada entre a máxima e a lei é o fato de que a razão não admite contradição na sua atividade prática. Pois também no âmbito prático a razão se regula pelo princípio da não contradição, sendo este, portanto, o princípio garantidor da necessidade. Para entendermos melhor este ponto, cabe observar a análise de Sullivan no seu livro Immanuel Kant‟s Moral Theory.133 Sullivan aponta o fato de que Kant traz o princípio do contraditório para o âmbito prático. No entanto, é preciso especificar a exata função deste princípio no âmbito teórico, bem como a sua apropriação no âmbito prático. No âmbito teórico, diz Sullivan, o princípio do contraditório atesta que “nenhum predicado contrário à coisa pode pertencer a tal coisa”, sendo assim uma condição necessária para toda existência racional. Este princípio do contraditório está, ainda, ligado ao princípio do terceiro excluído, que atesta que os juízos contraditórios não podem ser verdadeiros ou falsos ao mesmo tempo. Por outras palavras, sempre que um juízo for verdadeiro o seu contraditório será falso. Assim disposto, Sullivan conclui que o princípio do contraditório é uma lei completamente formal que impõe um requisito universal para todo uso da razão. Este requisito diz que “nenhuma autocontradição pode ser verdadeira”. Seguindo as indicações de Sullivan, entendemos que Kant supõe que o princípio da não contradição tem eficácia tanto no âmbito teórico como no âmbito prático. Em outras palavras, se no âmbito teórico o entendimento de um ser racional, mesmo que imperfeito, nunca viola o princípio da não contradição, então, no âmbito prático, o querer de um ser racional imperfeito não deve violar o princípio da não contradição. Assim, admitir uma máxima que não possa valer universalmente consistiria numa contradição da vontade, e é exatamente isto o 133

SULLIVAN, Roger J. Immanuel Kant’s Moral Theory, p. 152.

130


O Fundamento da Moralidade

que a forma do imperativo categórico proíbe de modo necessário. Pois a atividade da vontade, enquanto razão prática, consiste no modo de querer que não está submetido a qualquer condição. Portanto, a exigência incondicionada da conformidade entre a máxima e a lei, apresentada na fórmula do imperativo categórico que se baseia no princípio da não contradição, explicita a necessidade que o princípio moral do dever comporta. Kant pretende ter mostrado, por meio da primeira fórmula, a necessidade do imperativo categórico. Ou seja, a forma do imperativo categórico compõe-se da lei que determina todo ser racional a agir moralmente, bem como da necessidade incondicionada de conformar as máximas de ações à lei moral, resultante da vontade racional do próprio agente. Kant reconhece que a exposição desta fórmula só é possível mediante a pressuposição da existência da lei prática, bem como da existência deste imperativo que só pode ser conhecido pela simples razão. Em outras palavras, a necessidade explícita nesta fórmula do imperativo categórico pressupõe, tanto sua objetividade, como também a universalidade da Lei prática. Encontramos a convicção Kantiana acerca deste problema na seguinte passagem: Expusemos claramente e numa fórmula que o determina em todas as suas aplicações o conteúdo do imperativo categórico, que deve encerrar o princípio de todos os deveres (se é que há deveres em geral). Mas não logramos demonstrar a priori que tal imperativo existe realmente, que existe uma lei prática que comanda absolutamente por si mesma, sem qualquer móbil que a solicite, e que a obediência a esta lei é o dever.134

134

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 83. 131


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

Assim, Kant reconhece que a universalidade da Lei, bem como a objetividade do imperativo categórico expresso pelo dever, são pressupostos essenciais na obtenção desta característica formal (necessidade de conformidade entre a lei e as máximas) do próprio imperativo categórico. Entendemos que este não é um problema que compromete a argumentação kantiana. Cada um destes pressupostos será explicitado numa formulação específica do próprio imperativo categórico. Pois Kant apresenta a primeira fórmula do imperativo categórico para explicitar a necessidade que fundamenta a moralidade.135 Do mesmo modo, a segunda fórmula garante a objetividade da moralidade. E, finalmente, a terceira fórmula do imperativo categórico, que consiste numa síntese das duas primeiras, explicita a universalidade da moral, caracterizando-se como uma lei prática.

135

Kant apresenta outra versão desta primeira formulação do imperativo categórico que diz: “Procede como se a máxima da tua ação devesse ser erigida, por tua vontade, em LEI UNIVERSAL DA NATUREZA”. Esta versão servirá para esclarecer o significado da primeira fórmula do imperativo categórico, pois permite que Kant apresente os exemplos práticos acerca do dever. Assim, Kant pretende mostrar, por meio destes exemplos, que o dever deve ser expresso por meio de imperativos categóricos, uma vez que estes imperativos pressupõem de modo prático o princípio da não contradição. Kant resume o propósito desta explicação dizendo: “Pensamos deste modo ter conseguido, ao menos, provar que, se o dever é um conceito que tem um significado e que contém uma legislação real para as nossas ações, essa legislação deve ser expressa apenas em imperativos categóricos, e de maneira nenhuma em imperativos hipotéticos; ao mesmo tempo, e isto já é importante, expusemos claramente, e numa fórmula que o determina em todas as suas aplicações, o conteúdo do imperativo categórico, que deve encerrar o princípio de todos os deveres (se é que há deveres em geral).” Cf. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 83-87. 132


O Fundamento da Moralidade

III – A objetividade do imperativo categórico Após explicitar a necessidade do imperativo categórico, Kant reconhece que o próximo passo argumentativo deve apresentar a objetividade deste imperativo. Pois, supondo que existe o dever incondicionado que comporta valor moral, Kant explicitou que este dever é necessário. No entanto, falta explicitar de que modo este dever se aplica a todos os seres racionais. Ou seja, a argumentação deverá explicitar a objetividade do imperativo categórico. Kant dá início a esta tarefa por meio da seguinte questão: A questão, que se põe, é pois a seguinte: será uma lei necessária para todos os seres racionais, julgar sempre suas ações segundo máximas tais, que possam eles mesmos querer erigi-las em leis universais?136 Para responder a questão acerca da objetividade da lei prática, Kant vale-se de uma estratégia argumentativa diferente daquela usada para explicitar a sua necessidade. Pois, como expusemos acima, Kant explicita a necessidade do imperativo categórico por meio da forma do imperativo em geral encontrado na análise das ações praticadas por causa do dever. Agora, com o intuito de explicitar a objetividade do imperativo categórico, a argumentação kantiana retoma a teoria dos princípios, bem como estabelece algumas suposições metafísicas que, segundo Kant, são esclarecidas na última seção da Fundamentação da metafísica dos costumes. Em outras palavras, a tarefa kantiana consiste em explicitar a objetividade da ligação a priori entre o conceito de vontade de um ser racional e lei prática. Ou seja, uma vez que a vontade consiste na atividade prática da razão, trata-se de 136

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 89. 133


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

explicitar o conhecimento a priori da lei objetiva prática, e consequentemente da relação de uma vontade consigo mesma, enquanto determinada a agir unicamente pela razão.137 Esta tarefa, portanto, exige um passo na direção de uma Metafísica dos Costumes, como afirma o próprio Kant na seguinte passagem: Se tal lei existe, ela deve, antes de tudo, estar ligada (inteiramente a priori) ao conceito da vontade de um ser racional em geral. Mas para descobrir esta conexão, é mister, por mais que isso custe, dar um passo à metafísica, embora num domínio distinto da filosofia especulativa: numa palavra, em direção à Metafísica dos costumes.138 Avançar em direção à metafísica significa, para Kant, abandonar tudo o que é empírico como meio de atingir a forma a priori. No âmbito prático, avançar em direção a uma metafísica dos costumes significa abandonar tudo o que tenha qualquer relação com a inclinação, como meio de atingir a determinação a priori da razão. Assim, Kant retoma a teoria dos princípios com o intuito de especificar em que condições um princípio está destituído de qualquer relação com a inclinação, sendo portanto um princípio objetivo que determina a vontade por meio da razão. Pois, explicitar as condições de possibilidade de um princípio objetivo da ação é, para Kant, o modo de explicitar a própria objetividade do imperativo categórico. Kant relembra que vontade é a faculdade que um ser racional possui de determinar a si mesmo a agir conforme a representação de certas leis. Assim, a vontade é determinada por um princípio subjetivo chamado fim, que pode ser 137 138

Idem. Idem.

134


O Fundamento da Moralidade

estabelecido tanto pela inclinação como pela razão. Quando o fim é estabelecido pela inclinação, ele consiste no efeito que resulta do meio. Assim, diz Kant, “os fins que um ser racional se propõe a seu bel-prazer, como efeito de sua ação (fins materiais), são todos apenas relativos, pois somente a relação deles com a natureza especial da faculdade apetitiva do sujeito lhe conferem o valor que possuem”.139 Neste caso, temos o princípio da possibilidade da ação que fundamenta apenas os imperativos hipotéticos. Pois são fundamentos teoréticos, que não podem sustentar princípios necessários e válidos para todo ser racional, ou seja, leis práticas. Kant estabelece que apenas o fim dado pela razão pode valer igualmente para todos os seres racionais. Isto é, o valor deste fim não está relacionado com a faculdade apetitiva deste ou daquele sujeito, mas ele possui em si mesmo valor absoluto. E conforme verificamos na seguinte citação do texto kantiano, este é o requisito fundamental para que um princípio possa estabelecer o imperativo categórico. Supondo, porém, que existe alguma coisa, cuja existência em si mesma possua valor absoluto, alguma coisa que, como fim em si mesmo, possa ser um princípio de leis determinadas, então nisso e só nisso se poderá encontrar o princípio de um imperativo categórico possível. 140 Kant define que o homem, em função da sua natureza racional, é fim em si mesmo, dotado de valor absoluto.141 Por 139

Ibidem, p. 90. Ibidem, p. 90. 141 Kant apresenta este postulado do seguinte modo: “Agora digo: o homem, e em geral todo ser racional, existe com fim em si, não apenas como meio, do qual esta ou aquela vontade possa dispor ao seu talento; mas, em todos os seus atos, tanto nos que se referem a ele próprio, como nos que se refere a outros seres racionais, ele deve sempre ser considerado ao mesmo tempo como fim” 140

135


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

outras palavras, o valor absoluto presente na racionalidade humana explicita o fato de que a própria natureza racional existe como fim em si mesmo.142 Isto significa que a natureza racional do homem o impede de ser tomado exclusivamente como meio para consecução de alguma coisa, pois ela é o critério para a escolha dos meios. Por este motivo, todo o livre arbítrio encontra um limite que impede o uso exclusivo do ser racional. Assim, diz Kant, Os seres racionais não são fins simplesmente subjetivos, cuja existência, como efeito de nossa atividade, tem valor para nós; são fins objetivos, isto é, coisas cuja existência é um fim em si mesma, e justamente um fim tal que não pode ser submetido por nenhum outro, ou ao serviço do qual os fins subjetivos deveriam pôr-se simplesmente como meios, visto como sem ele nada se pode encontrar dotado de valor absoluto. 143

O valor absoluto da racionalidade indica, portanto, que a atividade prática da razão pura não pode ter exclusiva função de meio, uma vez que ela mesma se coloca como fim objetivo. Pois, diz Kant, “se todo valor fosse condicional, e portanto contingente, seria absolutamente impossível encontrar para a razão um princípio prático supremo”.144 A partir da ideia de valor absoluto da racionalidade, Kant estabelece que a razão tem a si mesma como fim objetivo. Este é o ponto principal da Segunda formulação do imperativo categórico. Pois a sequência da sua argumentação pretende estabelecer que a representação deste fim objetivo, pela (Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 91). 142 Cf. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 91. 143 Ibidem, p. 90. 144 Ibidem, p. 91. 136


O Fundamento da Moralidade

vontade, constitui o princípio objetivo de determinação válido para a vontade de todos os homens. Em outras palavras, Kant pretende explicitar que o princípio prático supremo, bem como o imperativo categórico, consiste no princípio objetivo da vontade. Assim, a definição deste princípio como fim objetivo é ponto de partida para esta tese kantiana. Pois, diz Kant: Consequentemente, se deve existir um princípio prático supremo e, no referente à vontade humana, um imperativo categórico, é preciso que este seja tal que derive da representação daquilo que, por ser um fim em si mesmo, necessariamente é um fim para todos os homens, um princípio objetivo da vontade; por esta forma, poderá servir de lei prática universal.145 Entretanto, Kant reconhece que a argumentação apresentada até aqui, onde a natureza racional existe como fim em si mesma, não implica o fato de que este fim seja concebido objetivamente pelo homem. Pois o homem é um ser racional imperfeito e, assim, não podemos deduzir que ele possua tal capacidade. A solução kantiana para este problema é a seguinte. Tomando como fundamento o fato de que a natureza racional existe como um fim em si, Kant postula que o homem concebe necessariamente a sua própria existência como um ser racional. Em outras palavras, cada homem concebe a si mesmo como fim em si e, portanto, tem a si mesmo como princípio subjetivo da atividade humana. Consequentemente, este princípio subjetivo é, ao mesmo tempo, um princípio objetivo da vontade humana pelo fato de que todos os homens, bem como todos os seres racionais, concebem necessariamente a sua existência como fim em si racional dotado de valor absoluto. 145

Idem. 137


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

De outro modo, Kant postula que todos os homens se sabem racionais e, portanto, só podem querer segundo o princípio moral da razão. Assim, diz Kant: O fundamento deste princípio é o seguinte: A natureza racional existe como fim em si mesma. O homem concebe deste modo necessariamente a sua própria existência; e, neste sentido, tal princípio é necessariamente um princípio subjetivo da atividade humana. Mas todos os outros seres concebem de igual maneira a sua existência, em consequência do princípio racional que vale também para mim. Por conseguinte, este princípio é, ao mesmo tempo, um princípio objetivo, do qual, como de um fundamento prático supremo, devem poder derivar-se todas as leis da vontade .146 Este é o postulado kantiano que pretende explicitar a objetividade da lei moral. Em outras palavras, é por meio deste postulado que Kant responde a questão colocada acima: será uma lei necessária para todos os seres racionais julgar sempre as suas ações segundo máximas tais, que possam eles mesmos querer erigi-las em leis universais? Portanto, a resposta kantiana para esta questão é afirmativa. Pois Kant utiliza a noção de valor absoluto para postular a objetividade na racionalidade humana tomada como fim em si. Assim, Kant mostra que, fundado num princípio objetivo, o imperativo categórico é necessário para todos os seres racionais e, portanto, para todos os homens. Enquanto racional, todo homem está limitado no seu livre arbítrio e só pode querer agir de modo que os demais homens nunca possam ser considerados exclusivamente um meio para a obtenção de certos fins, mas deverão ser considerados 146

Idem.

138


O Fundamento da Moralidade

também sujeitos destes fins. Ou seja, os demais homens devem poder compartilhar, tanto quanto possível, estes fins. Esta resposta permite a Kant apresentar a segunda fórmula do imperativo categórico. O imperativo prático será, pois, o seguinte: Procede de maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de todos os outros, sempre e ao mesmo tempo como um fim, e nunca como puro meio.147 Esta fórmula do imperativo categórico explicita, portanto, o fundamento objetivo que sustenta a priori o princípio moral do dever. Pois apresenta a condição suprema limitadora da liberdade de ação de todos os homens. Kant reconhece que as duas fórmulas do imperativo categórico apresentadas até aqui excluem toda e qualquer mescla de interesse baseado na inclinação. Em outras palavras, tanto a exigência da conformidade das máximas à lei universal, bem como a prerrogativa universal de fins em si que os seres racionais possuem em todo ato de querer, ou seja, estes dois modos de explicitar o imperativo categórico, não admitem qualquer relação com interesses empíricos. Pois é justamente a natureza a priori que classifica o imperativo como categórico. No entanto, diz Kant, estes imperativos eram aceitos como categóricos porque precisávamos admiti-los como tal para explicarmos o conceito de dever.148 Além disto, acrescenta Kant, embora a existência do imperativo categórico ainda não possa ser demonstrada, a fórmula do imperativo categórico deve indicar em si mesma a natureza a priori deste princípio, de modo que possa explicitar a sua universalidade. Em outras palavras, a fórmula do imperativo categórico deve indicar em si 147 148

Idem. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 94. 139


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

mesma que consiste numa renúncia a todo interesse estabelecido pela inclinação, determinando-se exclusivamente pelo motivo universal e necessário (a priori) da razão. Deste modo, diz Kant: Uma coisa não pode deixar de se fazer: a saber, que a renúncia a todo interesse no ato de querer por dever considerado como característica que distingue o imperativo categórico do imperativo hipotético, fosse indicada ao mesmo tempo no próprio imperativo, por meio de alguma determinação que lhe fosse inerente, e é justamente o que acontece na terceira fórmula do princípio.149 A terceira fórmula, portanto, pretende explicitar a universalidade do princípio moral do dever ao demonstrar que o imperativo categórico consiste na renúncia a todo interesse estabelecido pela inclinação.

IV - A universalidade do imperativo categórico A terceira formulação do imperativo categórico consiste na ideia da vontade de todo ser racional considerada como vontade promulgadora de uma legislação universal.150 Kant chega a esta formulação do imperativo categórico por meio de uma síntese das duas formulações anteriores. E explicita a universalidade do imperativo categórico, não apenas de modo negativo, demonstrando que o imperativo categórico consiste numa renúncia a todo interesse estabelecido pela inclinação, mas também de modo positivo, uma vez que a universalidade do

149 150

Idem. Idem.

140


O Fundamento da Moralidade

imperativo categórico decorre do conceito de autonomia da vontade. A ideia kantiana de uma vontade capaz de promulgar uma legislação universal encontra-se na integralização entre (1) a fórmula que explicita a necessidade prática do dever moral e (2) a fórmula que estabelece a objetividade do dever moral. Em outras palavras, Kant sintetiza (1) a necessidade de querer agir segundo máximas válidas universalmente e (2) a exigência de que os fins alcançados por estas máximas possam ser também fins de todo ser racional. Desta síntese decorre a ideia de uma vontade presente em todo ser racional que necessariamente deve exercer o seu querer por meio de máximas universalizáveis. Esta síntese encontra-se na seguinte passagem do texto kantiano: O princípio de toda legislação prática reside objetivamente na regra e na forma da universalidade que (segundo o primeiro princípio) a torna capaz de ser uma lei (que, em rigor, se poderia denominar lei da natureza), e subjetivamente reside no fim. Mas o sujeito de todos os fins (de acordo com o segundo princípio) é todo ser racional, como fim em si; donde resulta o terceiro princípio prático da vontade, como condição suprema do seu acordo com a razão prática universal, o mesmo é dizer, a ideia da vontade de todo ser racional considerada como vontade promulgadora de uma legislação universal.151 A primeira característica que este princípio estabelece para a vontade é o fato de que ela pertence universalmente a todo ser racional. Por outras palavras, todos os seres racionais possuem vontade em decorrência da sua racionalidade. A 151

Idem. 141


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

segunda característica estabelecida por este princípio para a vontade é o fato de que por meio dela o querer de todo ser racional institui uma legislação válida universalmente para a ação. Assim, é próprio da natureza racional do ser humano querer exclusivamente segundo princípios válidos para todo ser racional. Deste modo, e por exclusão, esta terceira fórmula do imperativo categórico elimina qualquer relação entre a vontade e princípios que não sejam estabelecidos exclusivamente pela razão. Ou seja, todas as máximas de ação que comportem interesses estabelecidos pela inclinação não possuem a forma de uma legislação válida universalmente e, portanto, são rejeitadas pela razão. A segunda característica implica, ainda, a ideia de uma vontade autônoma. Enquanto atividade prática da razão pura, a vontade consiste em querer exatamente aquilo que a razão estabelece como universalmente válido. No entanto, a legislação universal é promulgada pela própria vontade, ao querer que todo ser racional seja sujeito de todos os fins. Ou seja, a vontade, enquanto atividade prática da razão pura, quer sempre um fim que todo ser racional também possa querer. Neste sentido, a vontade promulga uma lei válida universalmente para a vontade de todos os seres racionais. Portanto, a vontade está submissa e, ao mesmo tempo, é autora da lei. Deste modo, diz Kant: Segundo este princípio, serão rejeitadas todas as máximas que não possam estar de acordo com a legislação universal própria da vontade. A vontade não é, pois, exclusivamente subordinada à lei; mas é-lhe subordinada de modo que deva ser considerada também como promulgadora da lei, e justamente por tal motivo deve ser subordinada à lei (...) Pelo que, o princípio, segundo o qual toda vontade humana aparece como vontade que, mediante suas máximas, institui uma legislação 142


O Fundamento da Moralidade

universal, se ostentasse consigo a prova de que sua exatidão conviria exatamente ao imperativo categórico, uma vez que, precisamente por causa da ideia de uma legislação universal, ele não se apoia em nenhum interesse e, por isso mesmo, de todos os imperativos possíveis, só ele pode ser incondicionado.152 Portanto, a terceira fórmula do imperativo categórico explicita, por meio da autonomia da vontade, a universalidade do princípio moral do dever. Pois a ideia de autonomia da vontade, enquanto atividade prática da razão pura, exclui a possibilidade de que qualquer interesse contingente e particular possa influenciar a vontade. Deste modo, apenas a razão pura, em sua atividade prática, determina a priori a vontade, garantindo a sua universalidade. Tomadas em conjunto, estas três fórmulas do imperativo categórico explicitam, portanto, a necessidade e a universalidade do imperativo categórico como modo de evidenciar sua condição de possibilidade. Como vimos, o princípio da não contradição encontrado na primeira fórmula do imperativo categórico estabelece a necessidade deste princípio moral do dever. Em seguida, para explicitar a universalidade do imperativo categórico Kant, primeiramente, utiliza a noção de valor absoluto da racionalidade para postular que a humanidade é o fim em si mesmo da razão. Este postulado estabelece a objetividade do princípio moral do dever por meio da segunda fórmula do imperativo categórico. Pois Kant postula que todo homem, enquanto dotado de racionalidade, deve ser sujeito de todo e qualquer fim proposto a uma vontade. Por outras palavras, a racionalidade humana, enquanto fim em si que serve de princípio objetivo à vontade, é o postulado que estabelece a objetividade do dever moral. Estabelecida a necessidade e a 152

Idem. 143


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

objetividade do imperativo categórico, Kant explicita a universalidade do imperativo categórico por meio de uma síntese entre a primeira e a segunda fórmula. Esta síntese entre a forma e a matéria do imperativo categórico estabelece uma determinação moral completa, pois resulta na definição da autonomia da vontade. Estas três fórmulas do imperativo categórico estabelecem que a atividade prática da razão pura consiste no querer que, em sua atividade, elege necessariamente leis para si mesmo. Uma vez que tais leis são válidas incondicionalmente para todos os seres racionais, elas são leis universais. O argumento kantiano está encerrado. Assim, entendemos que a argumentação kantiana constrói a hipótese da moralidade ao explicitar a natureza universal e necessária do imperativo categórico. Em outras palavras, Kant explicita a própria natureza universal e necessária da boa vontade (presente nos seres constituídos de razão e inclinação). Isto não significa que ele suponha ter demonstrado a realidade da moralidade. Pelo contrário, a demonstração da realidade da moralidade é uma tarefa que exige a sua dedução a partir da ideia de liberdade e não será objeto deste trabalho. O nosso intuito foi apenas o de apresentar o modo como os conceitos de valor absoluto e valor moral permitem o desenvolvimento dos argumentos da seção I e II da Fundamentação da metafísica dos costumes.

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CONCLUSÃO

I – O Fundamento do imperativo categórico Valor Absoluto da boa vontade, valor moral do dever e valor absoluto da racionalidade são noções diferentes que têm a mesma função no texto kantiano analisado acima. O nosso trabalho consistiu em explicitar o uso destas três noções na estratégia kantiana de fundamentar a moralidade. Assim, apresentamos estes conceitos relacionados a três argumentos específicos nos quais eles exercem a mesma função. A saber: indicar a necessidade e a universalidade da atividade prática da razão pura chamada boa vontade. O primeiro argumento delimita o âmbito da moralidade, restringindo-o exclusivamente à atividade prática da razão pura chamada boa vontade. Trata-se da primeira frase do texto, na qual Kant afirma que “não é possível conceber coisa alguma no mundo, ou mesmo fora do mundo, que sem restrições possa ser considerada boa, a não ser uma boa vontade”. Em outras palavras, a moralidade identifica-se com a boa vontade, pois consiste na única coisa que pode ser concebida como incondicionadamente boa e dotada de valor absoluto. Este argumento retira do senso comum a ideia de valor absoluto da boa vontade e utiliza-a para indicar que o fundamento universal e necessário da moralidade não pode ser encontrado na efetiva realização das ações ou em alguma determinação transcendente. Mas, dado que a própria boa vontade comporta um valor absoluto, o seu fundamento universal e necessário deve ser encontrado na sua própria atividade, ou seja, na atividade prática da razão pura chamada boa vontade. A ideia de que a boa vontade comporta valor absoluto permite a Kant apresentar três proposições tiradas da razão comum capaz de indicar, embora de modo negativo, o fundamento da boa vontade. A primeira proposição estabelece 145


Os Valores Morais e a Fundamentação Kantiana

que a universalidade presente no modo de querer que almeja fins universais é o primeiro elemento da moralidade apontado pelo valor absoluto da boa vontade. A Segunda proposição estabelece que o valor intrínseco de cada pessoa, decorrente apenas dos princípios da boa vontade que governam o seu querer, é o segundo elemento apontado pelo valor absoluto da boa vontade. A terceira proposição estabelece que o terceiro elemento, apontado pelo valor absoluto da boa vontade, resulta de uma síntese entre a universalidade do fim almejado (apontado pela primeira proposição) e o valor intrínseco próprio do modo querer (apontado pela segunda proposição). Assim, retiradas das concepções da razão comum, as três proposições acerca da ideia de valor absoluto da boa vontade explicitam que o fundamento da moralidade consiste, tanto no modo de querer próprio da razão pura prática que almeja sempre fins universais, como também reduz o valor intrínseco da moralidade exclusivamente à atividade de querer. Portanto, Kant sugere negativamente que o fundamento da moralidade, ou seja, a sua universalidade e necessidade, consiste num modo de querer dotado de valor intrínseco que, em sua exclusiva atividade de querer, almeja fins universais. Ou seja, nestas três proposições retiradas da concepção da razão comum, o valor absoluto da boa vontade indica a necessidade e universalidade que a moralidade lhe atribui. Deste modo, a estratégia kantiana de pressupor, por meio da ideia de valor absoluto da boa vontade, que a moralidade é um fato, visa apontar a natureza a priori da moralidade no âmbito da própria boa vontade. No entanto, Kant reconhece que não é suficiente apenas sugerir que a moralidade possui uma natureza a priori. A proposta de fundamentação exige que esta tese seja justificada. Em outras palavras, Kant reconhece que a justificação da necessidade e universalidade prática da moralidade como tal, indicada a partir da ideia de valor absoluto da boa vontade, é o modo de apresentar uma fundamentação metafísica dos costumes. Portanto, esta é a questão principal do primeiro 146


O Fundamento da Moralidade

argumento, pois é a noção de valor absoluto da boa vontade, trazida das concepções morais da razão comum, e aponta a existência de um fundamento a priori da moralidade. O segundo argumento estabelece que o valor moral de uma ação praticada por dever é um efeito resultante exclusivamente da atividade volitiva que, ao querer uma ação, põe-se em contrariedade com as inclinações. Assim, a noção de valor moral do dever indica que o fundamento universal e necessário da moralidade tem um caráter puro e, por isto, só pode ser conhecido a priori pela razão. Assim como no primeiro argumento, a análise do conceito de valor moral do dever é uma estratégia para explicitar a necessidade e a universalidade da moralidade indicada pela ideia de valor absoluto da boa vontade. Embora Kant assegure que o conceito de dever é um conceito mais amplo, a análise deste conceito também conduz ao reconhecimento da origem do fundamento do valor absoluto da boa vontade atribuído à moralidade. Em outras palavras, não há diferença entre a função da noção de valor absoluto da boa vontade e a função da noção de valor moral do dever, ao menos no que diz respeito ao fundamento da moralidade que elas indicam. Entretanto, entendemos que a noção de valor moral do dever é o fio condutor neste ponto da argumentação por dois motivos específicos. Em primeiro lugar, a noção de valor moral do dever tem a vantagem de eliminar ambiguidades encontradas na análise da ideia de valor absoluto de uma boa vontade, pois especifica o exato tipo de dever capaz de apontar o fundamento da moralidade. Em segundo lugar, a noção de valor moral do dever permite mais do que uma mera indicação negativa do fundamento moral do dever. Ela apresenta uma ocorrência positiva, na qual o valor moral de uma ação realizada por dever é o 'efeito' originado por uma determinação a priori da razão. A análise kantiana acerca do conceito de dever distingue três classes de ações. As três classes de ação são: a) 147


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ações praticadas em contrariedade para com o dever; b) ações praticadas em conformidade para com o dever, as quais também estão em conformidade com o desígnio da inclinação; c) ações praticadas por causa do dever, contrariamente ao desígnio da inclinação. No entanto, interessa a Kant apenas a última delas. Pois ele entende que o dever que comporta valor moral é aquele que determina por si só uma ação, embora tal ação possa ser determinada por alguma outra causa. Neste caso, o valor moral da ação tem a sua origem no dever e, como uma espécie de 'efeito', este valor resulta da determinação exclusiva da razão. Assim, a ação que comporta valor moral deve necessariamente ser praticada por causa do dever. Portanto, a noção de valor moral do dever é utilizada para especificar (1) que há um modo pelo qual a razão determina as ações exclusivamente a priori, o qual (2) é precisamente este modo de determinação, caracterizado pelo dever, que possui valor moral, que deve ser analisado na tarefa de fundamentação da moralidade. Além de especificar o tipo de dever que pode explicitar o fundamento da moralidade, a noção de valor moral do dever exerce ainda uma dupla função. Por um lado, a noção de valor moral do dever estabelece que uma ação cumprida por dever pode ser reconhecida por todo agente, bastando que se verifique a conformidade da máxima da ação a uma lei em geral. É, portanto, por meio do valor moral da ação cumprida por dever que toda razão comum pode reconhecer o princípio (lei prática) que determina a vontade a agir moralmente, uma vez que a noção de valor moral do dever tem a função de indicar a universalidade própria da moralidade nas concepções morais da razão comum. Por outro lado, a noção de valor moral do dever aponta a necessidade inerente à atividade da razão (mesmo a razão comum) de conformar a máxima da ação à lei em geral e, assim, determinar-se a agir exclusivamente em função do dever que contraria o desígnio da inclinação. Portanto, a noção de valor moral do dever tem a função de 148


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apontar a necessidade prática da moralidade a partir do próprio dever. Em resumo, esta utilização da noção de valor moral do dever indica na atividade da razão comum a universalidade e necessidade prática do princípio que fundamenta a moralidade. Finalmente, há ainda outra função exercida pela noção de valor absoluto. No terceiro argumento, a noção de valor absoluto está relacionada com a racionalidade, e tem a função de indicar que a própria razão possui um fim em si mesma. Em outras palavras, o valor absoluto da racionalidade indica que antes de se deixar determinar por qualquer fim estabelecido pela inclinação e por consistir na atividade prática da razão pura, a vontade toma a sua própria racionalidade com princípio determinante da ação. Pois o seu valor absoluto indica o fato de que a atividade de querer não está condicionada a nenhum outro fim que não ela mesma. Esta tese permite que Kant derive uma dupla consequência fundamental para a sua proposta de fundamentação. Primeiramente, a noção de valor absoluto da racionalidade indica que a própria racionalidade, concebida por todo homem como a sua verdadeira existência, tome a si mesma como fim na sua atividade prática. Em outras palavras, a noção de valor absoluto da racionalidade é utilizada para explicitar que, como fim em si mesmo, a humanidade (também racional) é princípio objetivo da vontade. Pois este princípio objetivo se sustenta no postulado de que todos os seres humanos concebem a si mesmos como seres racionais, ou seja, como fim em si mesmo da racionalidade. Para Kant, todos os seres humanos são sujeitos racionais de todos os fins e concebem-se objetivamente como tais. Portanto, encontramos indicada a determinação objetiva de que nenhum sujeito racional pode ser tomado exclusivamente como meio em todo ato de querer. Pois a noção de valor absoluto da racionalidade humana, tomada como fim em si mesmo, estabelece de modo objetivo que cada sujeito é também sujeito de todos os fins.

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A segunda consequência desta utilização da noção de valor absoluto da racionalidade é a possibilidade da apresentação da segunda fórmula do imperativo categórico. Pois ela estabelece que a racionalidade humana é o conteúdo material do imperativo categórico. Em outras palavras, a segunda fórmula do imperativo categórico é obtida a partir do postulado de que a atividade da vontade garante aos seres racionais finitos um valor absoluto. Kant postula que a humanidade, enquanto dotada de racionalidade, consiste no fim objetivo dotado de valor absoluto. De outro modo, a dignidade da racionalidade humana, enquanto fim em si objetivo tomado como matéria do imperativo categórico, é o postulado que pretende garantir hipoteticamente a objetividade da moralidade. Esta fórmula é expressa da seguinte maneira: “procede de maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de todos os outros, sempre e ao mesmo tempo com fim em si mesmo e nunca como puro meio”.153 A função desta fórmula é explicitar que a objetividade do imperativo categórico decorre do valor absoluto do fim que lhe serve de princípio. Assim, a noção de valor absoluto da racionalidade indica o princípio objetivo que comporá a segunda parte da síntese (a matéria) do imperativo categórico. Finalmente, a última consequência da utilização da noção de valor absoluto da racionalidade está na terceira formulação do imperativo categórico. Pois a terceira fórmula supõe os elementos das duas fórmulas anteriores para explicitar a terceira formulação, na qual o imperativo categórico é definido como a ideia da vontade de todo ser racional considerada como vontade promulgadora de uma legislação universal. Portanto, a utilização da noção de valor absoluto da racionalidade garante a objetividade do princípio dado pela razão, de modo que Kant pode, por meio da síntese entre a necessidade e a objetividade, explicitar a universalidade da moralidade. Por outras palavras, no desenvolvimento da argumentação, a noção de valor absoluto 153

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 91.

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da racionalidade indica o princ铆pio fundamental para que Kant possa explicitar a universalidade do imperativo categ贸rico encontrada na autonomia da vontade dos sujeitos racionais.

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O FUNDAMENTO DA MORALIDADE Segunda Parte Ética e a Teoria do Conhecimento Moral em Brentano (1889) 1. Introdução A obra clássica de Franz Brentano dedicada à exposição de sua teoria ética foi apresentada ao público germânico em 1889 e recebeu o título de A Origem do conhecimento moral (Vom Ursprung sittlicher Erkenntnis). O propósito dessa obra consistia em anunciar a consolidação da ética como uma ciência positiva. Nesta breve apresentação, trataremos de indicar a tese que consagra essa obra de Brentano como original, tomando por base as indicações de Émilie Durkheim (1887) e George Moore (1903). Durante quase todo o ano de 1887, dois anos antes da apresentação pública da teoria ética brentaniana, o então filósofo e futuro pai da sociologia positivista francesa, Emilie Durkheim, realizou uma pesquisa bibliográfica na Alemanha acerca do desenvolvimento de teorias que concebiam a ética como uma ciência especial dotada de métodos e princípios próprios. A pesquisa de Durkheim encontrou o debate acadêmico alemão em torno dessa nova proposta dividido em três grandes perspectivas teóricas: a proposta economista sociológica que, ao analisar a distinção entre moral e economia, afirmava que a primeira consistia na forma enquanto a segunda consistia na matéria (DURKHEIM, 1887, p. 5-16); a proposta jurídica de Rudolf von Ihering, unificadora 159


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do direito positivo e filosofia do direito (DURKHEIM, 1887, p. 17-24); e a proposta psicologista de Wilhelm Wundt (DURKHEIM, 1887, p. 25-47). Ainda segundo a análise de Durkheim, dentre as obras que se destacaram como alternativas originais, desvinculadas tanto da concepção moral kantiana como da concepção utilitarista, estava uma obra do futuro psicólogo e interlocutor de Brentano, Wilhelm Wundt (Ethik: Eine Untersuchung der Tatsachen und Gesetze des sittlichen Lebens). A relevância desse estudo, para nosso propósito, está no fato de que ele sintetiza o problema norteador das teorias morais da época. Desse modo, o contexto do problema acerca da moral enfrentado pelos pensadores alemães foi apresentado, então, por Durkheim a partir da seguinte comparação com a produção intelectual francesa: Na França só se conhecem dois tipos de moral: a dos espiritualistas e kantianos, e a dos utilitaristas. Mas surgiu recentemente na Alemanha uma escola de teóricos morais que se propôs estudar a ética como uma ciência especial, com seu método e seus princípios. As diferentes ciências filosóficas tendem cada vez mais a se afastar umas das outras e a abandonar as grandezas e hipóteses metafísicas que sempre foram a sua raiz comum. Hoje a psicologia não é materialista e nem espiritualista. Por que o mesmo não poderia ser válido para a moral? (2002, p. 5-16). O que se explicitou imediatamente a partir da investigação de Durkheim foi a relação entre a ética e a psicologia (enquanto filosofia do psíquico ou filosofia da mente). Isso se deu na medida em que a ética foi tomada como tarefa e a filosofia do psíquico foi tomada como fundamento epistemológico. Assim, o modo como Brentano, dois anos mais tarde, se vinculou a esse contexto especulativo pode ser 160


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primeiramente indicado nas ressalvas que ele mesmo apontou na apresentação do contexto que envolveu a publicação da sua teoria ética. 2. O contexto da obra Origem do conhecimento moral Em uma observação pontual encontrada no prólogo da obra de 1889, Brentano relembrou que essa publicação resultou da conferência proferida em 23 de janeiro do mesmo ano para a Sociedade Jurídica de Viena. Embora o título da conferência tivesse sido “Da sanção natural do justo e do moral” (Von der natürlichen Sanktion für recht und sittlich), no contexto da publicação, Brentano optou pela mudança de título com o intuito de apontar mais precisamente o conteúdo analisado. Seu propósito consistia em apresentar outro ponto de vista para o tema tratado, poucos anos antes na mesma academia, por Rudolf von Ihering em seu discurso intitulado “Sobre a gênese do sentimento de direito” (DURKHEIM, 2002, p. 5-16). Esse novo ponto de vista sustentado pela filosofia brentaniana do psíquico marcou explicitamente o combate ao relativismo moral, bem como explicitou os problemas teóricos, acerca do conhecimento moral, considerados relevantes no debate político e acadêmico germânico na segunda metade do século XIX. Em uma segunda observação pontual acerca da suposta apresentação pública acidental, bem como da publicação inesperada dessa obra, Brentano ressaltou enfaticamente que se tratava de um trabalho original constituído das duas características seguintes. Em primeiro lugar, esse trabalho comportava os pontos de reformulações e aperfeiçoamento de sua teoria apresentada na sua primeira grande obra intitulada Psicologia do ponto de vista empírico (Psychologie vom empirischen Standpunkt). Em segundo lugar, esse trabalho apontava para a elaboração de sua nova 161


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perspectiva epistemológica de análise dos fenômenos psíquicos, definida de modo mais preciso como Psicologia descritiva. Brentano anunciou essas duas características por meio das seguintes palavras: Erraria grandemente quem, julgando por sua causa acidental, considerasse minha conferência como uma obra passageira e momentânea. Pelo contrário, nela ofereço os frutos de uma meditação de muitos anos. De tudo que publiquei até agora, suas discussões são os produtos mais amadurecidos. Elas pertencem à esfera conceitual de uma Psicologia Descritiva, que dentro de pouco tempo espero poder dar publicidade em toda sua extensão. Então se verá – pelo tanto que me separo do tradicional e, sobre tudo, pelos aperfeiçoamentos essenciais que introduzi em minhas próprias opiniões já sustentadas em minha Psicologia do ponto de vista empírico – que meu extenso retraimento literário não obedeceu à ociosidade (BRENTANO, 1969, p. 3-4). Em outras palavras, tratava-se aqui da indicação de que a originalidade de tais reformulações possibilitou a formulação de uma teoria acerca do conhecimento moral capaz de fundamentar sua ética. Partindo de evidências textuais e históricas, é plausível compartilhar a interpretação de que, na perspectiva da ética, a originalidade dessas reformulações brentanianas estava relacionada diretamente à possibilidade de se explicitar a evidência do fenômeno psíquico de preferência, pois, tal como defendem Roderick Chisholm e seus seguidores, o fenômeno psíquico de preferência passou a ser descrito como evidente apenas nas teorias formuladas a partir de 1889 (CHISHOLM, 1969, 1-24). Assim, no que se refere à ética brentaniana, portanto, é 162


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plausível afirma a superação da teoria do sentimento moral, encontrada na Psicologia do ponto de vista empírico (1874), pela teoria da evidência do fenômeno de preferência, encontrada na Origem do conhecimento moral (1889). É imprescindível ressaltar, ainda, as considerações do filósofo inglês George Moore, pois tais considerações se referem à originalidade filosófica apresentada por Brentano na Origem do conhecimento moral. Moore não apenas corroborou a originalidade da teoria brentaniana no prefácio de seu Principia ethica, mas também resenhou a tradução inglesa dessa obra (The Origin of the Knowledge of Right and Wrong, English translation by Cecil Hague, 1902). Nesse trabalho, ele avaliou explicitamente as palavras com que o filósofo alemão radicado na Áustria proclamou sua contribuição intelectual e iniciou sua resenha com as seguintes afirmações: Esta é de longe a melhor discussão acerca dos princípios mais fundamentais da ética do que qualquer outra que eu já conheci. O próprio Brentano está plenamente consciente de que fez um grande avanço na teoria da Ética (...) e sua convicção tanto na originalidade, como no valor do seu próprio trabalho, está completamente justificada (MOORE, 1903, p. 115). O ponto relevante dessa afirmação de Moore demonstra a confiança que Brentano adquiriu para reformular suas primeiras teses. Em outras palavras, Brentano reconheceu que a proposta epistemológica apresentada inicialmente na Psicologia do ponto de vista empírico deveria passar por uma reformulação suficientemente consistente e capaz de redefinir a sua filosofia do psíquico. Tratava-se daquilo que os estudiosos de Brentano classificam como reformulação do ramo teórico de sua teoria do conhecimento, chamado psicologia no sentido mais geral (MCALISTER, 1982, p. 10). 163


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Além disso, essa reformulação também sustentaria as reformulações dos três ramos práticos da teoria do conhecimento, a saber: a estética, a lógica e a ética. Acerca dessa tripartição cabe apresentar agora uma pequena observação. Nossa análise se delineia sobre uma tese discutível, mas que não será analisada, uma vez que não é o ponto central dessa reflexão. Essa tese afirma o status filosófico da psicologia no contexto da Psicologia do ponto de vista empírico. Acerca desse ponto, adotaremos o consenso apresentado por Linda McAlister (1982, p. 10-12) e Lucie Gilson (1976, p. 68-79), de que, ao menos implicitamente, o estatuto da filosofia do psíquico, psicologia filosófica ou filosofia da mente já se encontrava estabelecido, tal como foi efetivamente explicitado por Brentano nas obras posteriores. Assim, como McAlister nos lembra, já na Psicologia do ponto de vista empírico Brentano afirmava o seguinte: Permitam-me ressaltar, sem insistir muito nisto, que a psicologia contém as raízes da estética que, em um ponto mais avançado de desenvolvimento, indubitavelmente aperfeiçoará e aprimorará o olhar do artista. Do mesmo modo, basta dizer que a importante arte da lógica, na qual uma única melhora implica mil progressos científicos, tem também a psicologia como fonte. Além disso, a psicologia tem a tarefa de constituir-se como base científica para a teoria da educação, tanto do indivíduo como da sociedade. Juntamente com a estética e a lógica, a ética e a política procedem do campo da psicologia. E, assim, a psicologia parece ser a condição fundamental do progresso da humanidade precisamente no mesmo plano daquela que constitui sua dignidade essencial (BRENTANO, 1973, p. 30). 164


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É oportuno, ainda, indicar o contraponto dessa interpretação no contexto da teoria ética brentaniana e colocar essa distinção de modo mais objetivo. No terceiro parágrafo do Grundlegung und Aufbau der Ethik, parágrafo dedicado ao esclarecimento da distinção entre filosofia teórica e prática, Brentano apresentou, tanto a distinção, como a clara relação de dependência que se instituía explicitamente entre a ciência teórica e as ciências práticas (BRENTANO, 1978, p. 6-7). Colocada do lado teórico como ciência fundamental estava a investigação filosófica do psíquico, concebida por Brentano como psicologia; e colocadas do lado prático como ciências dependentes dos fundamentos da filosofia do psíquico estavam a estética, a lógica e a ética. Brentano apresentou essa distinção nos seguintes termos: Para ser exato, a ética mantém o mesmo tipo de relação interna para com o braço teórico da filosofia, especificamente para com a psicologia, da mesma maneira que a agricultura e a medicina se relacionam com a química orgânica e a fisiologia. Mas existem outras disciplinas com o mesmo status na filosofia, a saber, estética e lógica. Cada uma tem a função de explicitar um ideal particular em sua própria perfeição psíquica. Existem três ideais, os quais correspondem aos três tipos básicos de atividades psíquicas: representações, juízos e interesses. A perfeição própria das representações é a beleza; dos juízos, a verdade; dos interesses (amor e ódio), bens morais (BRENTANO, 1978, p. 6). No intuído de compreender o que está em jogo com a apresentação dessas analogias, é interessante nos determos em outro argumento de McAlister acerca dessa tese brentaniana. 165


Ética e Teoria do Conhecimento Moral em Brentano

Em seu texto Sobre o futuro da filosofia (Über die Zukunft der Philosophie), Brentano especificou novamente a relação entre o ramo teórico e prático do conhecimento. Segundo McAlister, existe aqui outro ponto além da distinção entre o ramo teórico (que comporta a psicologia e a metafísica) e o ramo prático (que comporta a estética, a lógica e a ética). Trata-se da dependência do conhecimento prático em relação ao teórico. Desse modo, diz ela: Ele (Brentano) considera que a filosofia é composta dos dois ramos teóricos (episteme no sentido aristotélico) psicologia e metafísica e dos três ramos práticos (tecnai) lógica, ética e estética. Certamente seria falacioso argumentar diretamente que, desde que alguma coisa é verdade para uma das partes da filosofia, ou seja, psicologia, que isto é verdade para a filosofia como um todo. No entanto, na visão de Brentano, a psicologia está em posição singular. Ele a define como o estudo dos fenômenos mentais e acredita que não se pode chegar às teorias corretas em qualquer outro ramo da filosofia (exceto por acidentes fortuitos) ao menos que se parta da correta consideração do fenômeno mental (MACALISTER, 1982, p. 10). Essa tarefa filosófica que Brentano atribuiu à psicologia do final do século XIX, orientada pelos critérios positivistas e empiristas, instituiu as linhas gerais da filosofia brentaniana do psíquico. Não nos ocuparemos da apresentação das especificidades que envolvem a defesa ou o ataque a tal proposta. Interessa-nos apenas refletir sobre o fato de que, ao propor uma análise filosófica do psíquico, Brentano reivindicou para essa análise a tarefa da ontologia e da epistemologia. Assim, ao anunciar mudanças específicas 166


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radicais na descrição da atividade psíquica [por exemplo: a) o abandono da noção de objetos intencionais in-existentes e a formulação do conceito de ato intencional; b) o abandono da noção de „verdade como correspondência‟ e a formulação do conceito de „verdade como evidência‟], Brentano afirmou obter a objetividade que apenas reivindicara em 1874, por meio de seus critérios empiristas e positivistas norteadores da Psicologia do ponto de vista empírico. Nesses termos, nossa reflexão permite estabelecer que, especificamente no caso do conhecimento ético, a reformulação de 1889 propôs a destituição do estatuto fundamental atribuído ao sentimento como base dos fundamentos da moral. Trata-se, portanto, da indicação do modo como a obra Origem do conhecimento moral (1889) propôs a diluição do estatuto que Brentano atribuiu ao sentimento, na publicação da Psicologia do ponto de vista empírico (1874), ainda sob a influência de Hume e de J. S. Mill. Nesse sentido, nossa reflexão pode concordar com a seguinte reivindicação brentaniana sobre a originalidade filosófica do rompimento radical e completo com o subjetivismo ético: Ninguém determinou os princípios do conhecimento na ética como eu determino aqui, sobre a base de novas análises. Ninguém, sobretudo os que acreditaram dever outorgar ao sentimento uma participação nos fundamentos da moral, rompeu tão radical e completamente com o subjetivismo ético (BRENTANO, 1969, p, 4.). O exposto é suficiente para apresentar uma reflexão sobre o problema que envolve a formulação da tese brentaniana acerca da origem do conhecimento moral.

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3. Conclusão As conclusões da nossa reflexão acompanham a problematização apresentada por Moore em 1903. Segundo a análise de Moore, exposta em sua resenha do livro Origem do conhecimento moral, o problema é evidenciado a partir de dois pontos, pois, mesmo proclamando o rompimento com o subjetivismo ético, (1) a tese brentaniana consistia na afirmação de que “[...] o que nós sabemos, quando sabemos que uma coisa é boa em si mesma, é que o sentimento de amor dirigido a tal coisa (o prazer na tal coisa) é justo (richtig). Similarmente, que uma coisa é má, é meramente outro modo de dizer que a rejeição de tal coisa deve ser justa” (MOORE, 1903, p. 115). Além disso, (2) essa tese central apresentada por Brentano retomava os conceitos próprios das teorias éticas baseadas no sentimento moral, tal como o sentimento de prazer e desprazer arduamente criticado por ele mesmo. Indicado o problema, impõe-se a necessidade de dissolução dessa aparente contradição por meio da apresentação da teoria brentaniana acerca do conhecimento moral. Esta tarefa, no entanto, será exposta em outro trabalho. 4. Bibliografia BRENTANO, Franz. Aristoteles und seine Weltanschauung. Hamburg: Feliz Meiner, 1977. _______________. Deskriptive Psychologie. Hamburg: Feliz Meiner, 1982. _______________. Descriptive Psychology. Tradução: Benito Müller. New York: Routledge, 1995. _______________. Grundlegung und Aufbau der Ethik. Hamburg: Feliz Meiner, 1978.

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Sentimento e Cognição Moral em Brentano (1889– 1907): uma proposta de investigação 1. Apresentação Este capítulo tem como objetivo apresentar uma proposta de investigação do desenvolvimento da teoria do conhecimento moral de Franz Brentano, tal como essa se apresentou no período compreendido entre a produção dos trabalhos Vom Ursprung sittlicher Erkenntnis (1889) e Vom Lieben und Hassen (1907). As estratégias de análises que sustentam essa proposta de investigação estão divididas em duas partes. A primeira parte apresenta o contexto da reivindicação de originalidade sustentada pelo próprio Brentano para a sua teoria ética. A segunda parte apresenta e os fundamentos da proposta brentaniana. Vejamos, então, cada uma das partes que compõem a estratégia de análise constituintes da nossa proposta de investigação do desenvolvimento da teoria moral brentaniana. 2. Brentano e a reivindicação da originalidade de sua teoria ética As primeiras justificativas para o desenvolvimento de um trabalho de investigação filosófica, que resulte na produção acadêmica acerca da teoria brentaniana do conhecimento moral elaborada em seu período de maturidade, podem ser encontradas, por analogia, nas razões que o filósofo alemão Franz Brentano apresentou ao publicar tal obra em 1889, pois ele esclareceu que se tratava, especificamente, da apresentação de uma nova teoria do conhecimento moral que,

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fundada em uma filosofia empírica do psíquico, reivindicava um lugar acima da deontologia e do utilitarismo. Vejamos, inicialmente, o contexto dessa reivindicação que demarca a originalidade dessa obra. Em uma observação pontual encontrada no prólogo da edição de 1889, Brentano enfatizou que essa publicação resultou da conferência proferida em 23 de janeiro do mesmo ano para a Sociedade Jurídica de Viena. Embora o título da conferência tivesse sido “Da sanção natural do justo e do moral” (Von der natürlichen Sanktion für recht und sittlich), no contexto da publicação, Brentano optou pela mudança de título com o intuito de apontar mais precisamente o conteúdo analisado. Seu propósito consistia em apresentar outro ponto de vista para o tema tratado poucos anos antes por Rudolf von Ihering, na mesma academia, em seu discurso intitulado “Sobre a gênese do sentimento de direito”. Esse novo ponto de vista, sustentado pela filosofia brentaniana do psíquico, marcou explicitamente o combate ao relativismo moral, fundou o cognitivismo moral e, além disso, explicitou os problemas teóricos tidos como relevantes no debate político e acadêmico germânico na segunda metade do século XIX. Em uma segunda observação pontual acerca da suposta apresentação pública acidental, bem como da publicação inesperada dessa obra, Brentano ressaltou enfaticamente que se tratava de um trabalho original constituído das três características seguintes. Em primeiro lugar, esse trabalho comportava os pontos de reformulações e aperfeiçoamento de sua teoria apresentada na sua primeira grande obra intitulada Psychologie vom empirischen Standpunkt de 1874. Em segundo lugar, esse trabalho indicava a elaboração de sua nova perspectiva epistemológica de análise dos fenômenos psíquicos, definida de modo mais preciso como Psicologia descritiva.

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O Fundamento da Moralidade

Em terceiro lugar, esse trabalho consista em uma chave para se compreender o desenvolvimento das teorias de Brentano elaboradas a partir de 1889, ou seja, tratava-se de um texto chave para a compreensão de problemas e soluções pensadas no contexto de uma Psicologia descritiva, também denominada Psicognose. Em resumo, Brentano tratou, com isso, de justificar sua reivindicação de que as reformulações apresentadas na sua filosofia do psíquico possibilitaram a formulação de uma teoria original acerca do conhecimento moral capaz de fundamentar sua ética. Desse modo, nossa proposta de pesquisa, a qual tem como objeto o desenvolvimento da teoria do conhecimento moral encontrado na produção brentaniana entre a publicação dos trabalhos Vom Ursprung sittlicher Erkenntnis (1889) e Vom Lieben und Hassen (1907), justifica-se primeiramente pelo compromisso de apresentar a ética brentaniana de maturidade ao público lusófono por meio de três trabalhos acadêmicos, os quais terão por base as evidências textuais e históricas que tornam plausíveis tais reivindicações de Brentano, pois tais reivindicações estão fundadas em sua filosofia do psíquico desenvolvida na maturidade. É preciso reconhecer, no entanto, que a principal justificativa para o desenvolvimento de um trabalho filosófico, que resulte na publicação das investigações acerca da teoria brentaniana do conhecimento moral, não está na intenção do autor, mas deve estar nos resultados que ele apresentou direta e indiretamente por meio de seus trabalhos. Esse é exatamente o caso dos trabalhos brentanianos produzidos entre 1889 e 1907, pois eles fizeram de Franz Brentano um filósofo marcado pela originalidade no âmbito da ética. Em Vom Ursprung sittlicher Erkenntnis (1889), Brentano apresentou a ética como teoria do conhecimento moral, abandonando algumas das descrições fundamentais da atividade da consciência que, em 1874, definiram a ética 177


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apenas como uma teoria do sentimento moral. Essa era uma concepção original da ética desenvolvida a partir de uma nova perspectiva da filosofia do psíquico. Essa relação que a teoria brentaniana estabeleceu entre a filosofia do psíquico e a ética estava no fato de que, a partir de 1889, a descrição de atos psíquicos evidentes explicitava também de modo evidente a descrição de um fenômeno psíquico original para a ética: a preferência. Em outras palavras, a originalidade brentaniana encontrava-se na possibilidade de se explicitar a evidência do fenômeno psíquico de preferência, pois, tal como defendem Roderick Chisholm (1969, p. 1-24) e seus seguidores, o fenômeno psíquico de preferência passou a ser descrito como evidente apenas nas teorias formuladas a partir de 1889. Apresentada, portanto, em 1889, a teoria brentaniana do conhecimento moral acompanhou o desenvolvimento posterior da filosofia brentaniana do psíquico, a qual lhe servia de fundamento. Desse modo, os fundamentos da teoria brentaniana do conhecimento moral foram reformulados, em seus aspectos ontológicos e epistemológicos, na medida em que Brentano reestruturou as bases da sua psicologia descritiva e inaugurou a fase conhecida como reismo, a partir de 1905. Os traços essências, dessa fundamentação da teoria conhecimento moral, foram a presentados por Brentano em 1907 no seu trabalho intitulado Vom Lieben und Hassen. Nesse trabalho, Brentano consolidou sua ética como teoria do conhecimento moral, sustentando explicitamente a natureza a priori, mas também empírica, do conhecimento moral a partir das descrições fundamentais da atividade da consciência que, a partir de 1889, indicavam uma relação analógica para com os juízos evidentes. Assim, em seu período de maturidade, Brentano não apenas mantém a distinção entre juízos e sentimentos cegos, por um lado, e juízos e sentimentos evidentes, por outro, mas sustenta fundamentalmente sua interessante teoria do conhecimento moral fundada no 178


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conhecimento a priori e empírico dos atos psíquicos superiores de sentimento. Em outras palavras, tratava-se de uma teoria do conhecimento moral estruturada antes mesmo de 1904, a qual já fora tema das correspondências trocadas com o discípulo Oskar Kraus e publicada com o título Über den apriorische Charakter der ethischen Prinzipien. É imprescindível ressaltar, ainda, as considerações do filósofo inglês George Moore, pois elas se referem à originalidade filosófica apresentada por Brentano na Origem do conhecimento moral. Moore não apenas corroborou a originalidade da teoria brentaniana no prefácio de seu Principia ethica, mas também resenhou a tradução inglesa dessa obra publicada em 1902. Nesse trabalho, Moore (1905, p. 115) avaliou explicitamente as palavras com que o filósofo alemão radicado na Áustria proclamou sua contribuição intelectual e iniciou sua resenha com as seguintes afirmações: Esta é de longe a melhor discussão acerca dos princípios mais fundamentais da ética do que qualquer outra que eu já conheci. O próprio Brentano está plenamente consciente de que fez um grande avanço na teoria da Ética (...) e sua convicção tanto na originalidade, como no valor do seu próprio trabalho, está completamente justificada. O ponto relevante dessa afirmação de Moore demonstra o consenso acerca do valor desse trabalho filosófico de Brentano e a legitimidade da proclamação dos resultados obtidos pela ética brentaniana. Nesse sentido, a proposta de uma pesquisa, a qual tem como objeto o desenvolvimento da teoria do conhecimento moral encontrado na produção brentaniana entre a publicação dos trabalhos Vom Ursprung sittlicher Erkenntnis (1889) e Vom Lieben und Hassen (1907), também está justificada pelo fato de apresentar, ao leitor de 179


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língua portuguesa, o modo como Brentano pretendeu sustentar a originalidade filosófica desse rompimento radical e completo com o subjetivismo ético. As palavras do próprio Brentano (1969, p. 4) são as seguintes. Ninguém determinou os princípios do conhecimento na ética como eu determino aqui, sobre a base de novas análises. Ninguém, sobretudo os que acreditaram dever outorgar ao sentimento uma participação nos fundamentos da moral, rompeu tão radical e completamente com o subjetivismo ético. O exposto é suficiente para apresentar e compartilhar as justificativas que o próprio Brentano apresentou, as quais justificam também uma pesquisa sobre o desenvolvimento da referida teoria. No entanto, é interessante mencionar a tese central de Brentano acerca da origem do conhecimento moral evidente, e indicar o modo como a sua pedra angular foi fincada no momento de sua defesa na sociedade jurídica de Viena. 3. Um lugar para a ética brentaniana A teoria brentaniana de 1889 tinha como propósito sustentar que há uma regra que, em si e por si e por sua própria natureza, é cognoscível como justa e obrigatória. Tratava-se, historicamente, da oposição entre Brentano e Ihering, bem como do problema central que vinculou o debate entre a ética brentaniana e a doutrina jurídica de Ihering (DURKHEIM, 2006, p. 17). Segundo a análise apresentada por Brentano, o termo “natural” (utilizado no discurso jurídico para a classificação dos fundamentos do direito por meio da expressão „direito natural‟) comportava dois significados: (1) 180


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dado naturalmente ou inato, por oposição àquilo que se adquire por meio de dedução ou experiência na evolução histórica; (2) regra concebida em si e por si mesma como justa e obrigatória (BRENTANO, 1969, p. 7). Nessa análise, Brentano afirmou que a via para o estabelecimento da teoria acerca do conhecimento moral estava na negação do primeiro e afirmação do segundo sentido de „natureza‟, ou seja, na afirmação da regra concebida em si e por si como justa. Ainda que fosse uma bifurcação argumentativa, Brentano valeu-se dessa distinção para se opor ao relativismo que sustentava a doutrina jurídica de Ihering, pois ele considerava que tal relativismo era consequência direta da negação do sentido fundamental de „natureza‟ (como regra concebida, em si e por si mesma, como justa e obrigatória). Essa tomada de posição possuía, ainda, duas implicações. Por um lado, ela negava a noção de princípios morais inatos e, também, negava os princípios fundamentais tanto do jus naturae como do jus gentius (DURKHEIM, 2006, p. 8). Por outro lado, ela afirmava a possibilidade de se estabelecer o fundamento acerca do conhecimento do bom e do preferível a partir da descrição da estrutura psíquica. Este último é um ponto que deve ser enfatizado, pois aqui há uma indicação sutil do caminho argumentativo adotado por Brentano. A recolocação do problema moral no contexto da descrição da estrutura psíquica fazia parte da principal estratégia argumentativa de Brentano para se afastar do relativismo da teoria de Ihering. Ali estava, dizia ele, “[...] o ponto em que nos separamos de Ihering. Ao não com que Ihering responde às perguntas acerca da existência de uma verdade moral, e de uma lei moral universal e necessária, eu oponho um resoluto sim” (BRENTANO, 1969, p. 9). As perguntas que receberam essa resposta afirmativa por parte de Brentano (1969, p. 9) foram colocadas do seguinte modo:

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[1] Há uma verdade moral ensinada pela própria natureza, independente de toda autoridade eclesiástica, política e, em geral, de toda autoridade social? [2] Há uma lei moral natural no sentido de que esta lei, por sua natureza, tenha validade universal e necessária para todos os homens de todos os lugares e tempos, bem como para todas as espécies de seres dotados de pensamento e sentimento? A resposta positiva atribuída por Brentano a essas questões exige duas observações fundamentais. Seria plausível esperar que Brentano tivesse seguido dois caminhos na sua refutação à doutrina jurídica de Ihering. O primeiro deles afirmaria a verdadeira existência de uma realidade moral e exigiria que a teoria brentaniana acerca do conhecimento moral apresentasse uma fundamentação ontológica. O segundo caminho argumentativo afirmaria a validade universal e necessária dessa lei moral e exigiria a apresentação de uma fundamentação epistemológica. Essas, no entanto, não foram as questões a que a teoria brentaniana de 1889 respondeu separadamente. Desse modo, não foram questões tratadas e resolvidas em seus aspectos ontológicos ou epistemológicos. Para Brentano, a fundamentação ontológica e epistemológica, que norteava a teoria acerca do conhecimento moral, deveria ser explicitada a partir da descrição da estrutura da consciência, ou seja, por meio de uma análise filosófica do psíquico. Nesse sentido, a análise brentaniana mostrou que a questão mais fundamental desconsiderada por Ihering, e que dissolvia as duas questões acima, indagava pelo caráter cognoscível da lei moral na esfera da atividade psíquica. Por isso, Brentano (1969, p. 9) insistiu no questionamento contra a teoria moral de Ihering do seguinte modo: 182


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[3] Seu conhecimento (da lei moral válida universal e necessariamente) cai na esfera de nossas capacidades psíquicas? (...) Ao „Não‟ com que Ihering responde estas perguntas, eu oponho um resoluto „Sim‟. Quem de nós dois tem razão? Espero que a presente investigação sobre a sanção natural do moral e do justo possa esclarecer. O exposto até aqui basta para indicar a originalidade da ética reivindicada por Brentano ao estabelecer que a descrição da estrutura psíquica fosse indicada, portanto, como o critério de determinação da teoria acerca do conhecimento moral. Em outras palavras, segundo Brentano, seria uma descrição da estrutura psíquica que exporia a existência de uma sanção natural do moral e do justo. Essa seria, portanto, a novidade do trabalho filosófico de Brentano. Esta é, também, a principal justificativa para uma pesquisa, a qual tem como objeto o desenvolvimento da teoria do conhecimento moral encontrado na produção brentaniana entre a publicação dos trabalhos Vom Ursprung sittlicher Erkenntnis (1889) e Vom Lieben und Hassen (1907). Pois, ao contrário do que ocorre em língua inglesa, francesa, espanhola, por exemplo, os resultados dessa pesquisa comporão as primeiras publicações, em língua portuguesa, acerca dos estudos sobre a ética brentaniana sustentada em seu período de maturidade. 4. Orientação teórica e metodológica da pesquisa Existem duas linhas teóricas principais de interpretação da ética de Franz Brentano. A primeira delas, de tendência fenomenológica e enfraquecida atualmente, foi desenvolvida por Linda McAlister a partir de seus estudos para a elaboração de sua tese de doutorado. A segunda linha, de tendência analítica e atualmente fortalecida, foi 183


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desenvolvida por Roderick Chisholm a partir de suas traduções, edições e orientações de estudos das obras brentanianas. De fato, as pesquisas recentes fomentadas pela Franz Brentano Foundation, que desde 1999 é dirigida pelo filósofo e matemático Peter Simons, têm mostrado por meio de seus resultados a plausibilidade da linha de interpretação desenvolvida por Chisholm e, consequentemente, um distanciamento cada vez maior da linha interpretativa proposta por McAlister. Algumas considerações sobre as duas bases teóricas de interpretação são suficientes para distinguir estas duas propostas, demarcar os eixos principais da literatura sobre a ética brentaniana e, também, demarcar a posição de Chisholm como nosso horizonte interpretativo adotado para neste projeto. No prefácio de seu livro The development of Franz Brentano ethics, McAlister (1982, p. 2) afirmou que seu propósito era “[...] eliminar as imprecisões ao traçar o desenvolvimento da ética brentaniana do primeiro ao último período”. A principal estratégia de análise adotada por McAlister (1982, p. 1-2) estava no cuidado com os argumentos apresentados na obra póstuma brentaniana intitulada Grundlegung und Aufbau der Ethik. Desse modo, ela analisou a última publicação da teoria moral brentaniana da seguinte maneira: Sua última filosofia moral, que começou a evoluir em torno da virada do século e reflete as mudanças ocorridas de modo geral em seu pensamento filosófico, não foi apresentada por Brentano em publicação ou de forma acabada. No entanto, ela pode ser sistematizada a partir das referências encontradas em papers e cartas encontradas em seu Nachlass. Ela também está refletida em um trabalho postumamente publicado com o título de Fundação e construção da ética (Grundlegung und 184


O Fundamento da Moralidade

Aufbau der Ethik). A forma da edição adotada neste livro torna muito obscuro o desenvolvimento dos cursos de Brentano sobre ética, oferecidos na Universidade de Viena entre 1876 e 1894, ainda que ela seja apresentada de forma mais detalhada que na (obra) Ursprung, a primeira filosofia ética de Brentano. Pois, a Professora Mayer-Hillebrand e o Professor Kastil Alfred, que trabalhou neste material antes dela, optaram por incorporar neste primeiro texto de Brentano a sua última visão ética. Aparentemente, eles tentaram editar todas as seções do primeiro texto que não estava de acordo com esta última visão. Em resumo, eles tentaram transformar um texto antigo em um tardio, reescrevendo virtualmente algumas de suas partes. Não é preciso dizer que o livro resultou em alguma coisa confusa, pois ele dá a impressão que Brentano expôs a mesma teoria ética por toda sua vida. Essa declaração afirmou a preocupação de McAlister com as imprecisões decorrentes das mudanças no desenvolvimento da ética brentaniana. Mesmo assim, no entanto, apesar do compromisso de eliminar tais imprecisões, McAlister ignorou as reformulações propostas por Brentano para alguns conceitos fundamentais da ética até 1889. Por quê? Porque a obra Origem do conhecimento moral (1889) foi a principal fonte utilizada por McAlister para caracterizar o primeiro período da ética brentaniana. Desse modo, a limitação está no fato de que o trabalho de McAlister concebeu indistintamente a teoria do sentimento moral, proposta na Psicologia do ponto de vista empírico (1874) e a teoria do conhecimento moral, proposta na Origem de conhecimento moral (1889).

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Uma falha na estratégia de análise adotada por um grupo de comentadores da ética brentaniana, particularmente aqueles que desenvolvem a interpretação de Linda McAlister, tem sido o pouco cuidado na busca da coerência interna entre as obras brentanianas. Esse descuido tem resultado em análises que criam problemas inexistentes e recriam problemas dissolvidos. De modo mais específico, podemos considerar que tal grupo de comentadores não estabelece os seguintes pontos como critérios de análise: (a) as diferenças teóricas existentes entre as fases do desenvolvimento do pensamento brentaniano; e (b) as implicações das especificidades teóricas dessas fases no contexto da filosofia prática (a estética, a lógica e a ética). Jonas Oslon (2003, p. 138-44), por exemplo, em sua análise acerca do conceito brentaniano de prazer, essencial para a apresentação do fundamento ético, não concebe qualquer diferença nas descrições dos fenômenos psíquicos do sentimento. Segundo Oslon, esses conceitos são unívocos, sejam eles analisados no contexto da Psicologia do ponto de vista empírico, à luz da noção de objeto intencional in-existente, sejam eles analisados no contexto da Psicologia descritiva, à luz da noção de ato intencional. De outro modo, mas ainda em função de uma análise que mantém os mesmos fundamentos da interpretação para dois momentos distintos da exposição teórica da ética brentaniana até 1889, McAlister (1982, p. 133134) insistiu em sua tese doutoral, contra o próprio Brentano, que a ética brentaniana é utilitarista. Uma interpretação completamente diferente foi inaugurada pela análise apresentada por Roderick Chisholm entre 1967 e 1969. Tratava-se, de modo mais específico, de um dos seus primeiros trabalhos acerca da noção de relação intencional no contexto da terceira classe de fenômenos psíquicos (amor, ódio e preferência). Ainda que tal análise estivesse orientada por uma bifurcação entre a fase brentaniana da Psicologia do ponto de vista empírico (1874) e a fase brentaniana do Reísmo (1905), ela não excluiu a relevância 186


O Fundamento da Moralidade

das reformulações indicadas como novidades na proposta da Psicologia Descritiva. Pelo contrário, a própria teoria chisholmeana acerca do valor intrínseco tomou por base a interpretação da obra brentaniana, analisada segundo esse critério. Seguindo a linha interpretativa inaugurada por Chisholm, os recentes estudos que abordam com atenção os textos publicados e as palestras proferidas por Brentano entre 1889 – 1901 mostram que Brentano redefiniu os conceitos fundamentais da sua ética. Mulligan (2004, p. 86), por exemplo, considera que a redefinição principal da ética está na eliminação da noção de diferença de intensidade entre atividades psíquicas afetivas. Ainda, segundo Mulligan (2004, p. 83), “Brentano parece ter mudado sua noção de emoção pelo fato de ter se colocado duas questões: Qual é a relação entre dor e amor? A emoção varia em intensidade? Esses dois problemas são aspectos da questão: se, e em que sentido, emoções „espirituais‟ superiores diferem das emoções sensórias ou vitais inferiores?”.

5. Conclusão O ponto relevante para a nossa linha teórica de interpretação está no fato de que uma solução para os problemas de interpretação da ética de Brentano foi encontrada pelos seguidores de Chisholm nos textos brentanianos de 1889 – 1901. Nessas fontes, os comentadores, como Albertazzi (2006, p. 296-299), reconhecem a fundamentação da ética brentaniana como resultado da substituição das bases oferecidas na Psicologia do ponto de vista empírico pelas bases propostas pela Psicologia descritiva, etapa que antecedeu a fase do reísmo. Deste modo, nós também encontramos nessa linha de interpretação os pilares seguros, ou o ponto de apoio fundamental, para a análise do 187


Sentimento e Cognição Moral em Brentano

desenvolvimento da teoria brentaniana do conhecimento moral, em sua fase de maturidade. 6. Bibliografia ALBERTAZZI, Liliana. Immanent realism: an introduction to Brentano. Dordrecht: Springer, 2006. BRENTANO, Franz. Aristoteles und seine Weltanschauung. Hamburg: Feliz Meiner, 1977. ______. Aristóteles. Tradução: Moises S. Barrado. Barcelona: Labor, 1943. ______. Aristóteles: vida e obra. 1ª. Ed. Tradução: Evandro O. Brito. Florianópolis: Editora Bookess, 2012. ______. El origen del conocimiento moral. Tradução: Manuel G. Morentes. Madrid: Editorial Tecnos, 2002. ______. Psychologie vom empirisch Standpunkt. Erster Band, Hamburg: Feliz Meiner, 1973. ______. Psychologie vom empirisch Standpunkt. Zweiter Band, Hamburg: Feliz Meiner, 1971. ______. Psychologie vom empirisch Standpunkt. Dritter Band, Hamburg: Feliz Meiner, 1974. ______. Psicología desde un punto de vista empírico. Tradução: Hernán Scholte, Universidade Complutense, Madri. Disponível em: <http://fsmorente.filos.ucm.es/publicaciones/recursos/Brentano.pdf> . Acesso em: 20 de junho de 2012. ______. Psicología desde un punto de vista empírico. Tradução: José Gaos, Revista de Occidente, Madrid, 1935. ______. Psycologie du point de vue empirique. Tradução: Mauricio de Gardillac. Paris: Aubier, 1944. ______. L‟origene de la connaissance moral suive de la doctrine du jugement corret. Tradução: Marc de Launay et Jean-Cloude Gens, [S.I.]: Editions Gallimard, 2003.

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O FUNDAMENTO DA MORALIDADE Terceira Parte

[TRADUÇÃO]

Franz Brentano

SOBRE O CARÁTER APRIORÍSTICO DO PRINCÍPIO ÉTICO Traduzido do original alemão por Evandro O. Brito

(Uma carta para Oskar Kraus de 24 de março de 1904) NOTA PRELIMINAR DE OSKAR KRAUS Em 21 de março de 1904 escrevi, entre outro, à Brentano: “(...) por ocasião de meus estudos, chamou-me ainda atenção o seguinte. Em ética, nós nos consideramos empiristas, tomando isto cum grano salis. A origem de nossos conceitos „bom‟ e „preferível‟ situa-se na experiência psíquica interna, exatamente como os conceitos „necessidade‟ etc., e de modo análogo aos conceitos „grande‟ e „maior‟, na chamada „experiência externa‟. No entanto, a ética não se funda em conceitos, mas em conhecimentos. Esses conhecimentos (como, por exemplo, a proposição „um conhecimento odioso é impossível‟) são obtidos a partir da análise dos conceitos que estão na sua base. São também, assim, „analíticos‟ ou „a priori‟, 193


Sobre o Caráter Apriorístico do Princípio Ético

no mesmo sentido que os axiomas matemáticos. A diferença consiste apenas em que os conceitos matemáticos, especialmente os conceitos geométricos, são propriamente „conceitos ideais‟, ou ficções. Você considera isso correto? E, se não, por que não?”

CARTA RESPOSTA DE FRANZ BRENTANO Brentano respondeu assim: (…) Uma palavra sobre a pergunta, se nosso ponto de vista ético é um (ponto de vista) empírico. A resposta dependerá de como se concebe o conceito. Está fora de dúvida que as representações de bom e melhor são tomadas a partir da experiência. Porém, você observa corretamente que o análogo também vale para as ciências matemáticas, as quais nós não nomeamos ciências empíricas. É certo, contudo, que o conceito „bom‟ não precisa estar incluído naquilo que é bom, como por exemplo, no conhecimento. (Do contrário, todas as coisas deveriam conter, também, o conceito de bom, pois qualquer coisa contém algo de bom). [Nota do editor: são consideradas coisas psiquicamente em ato como tal. Mesmo (a) a dor da tortura, (b) o erro ou (c) o indivíduo ativamente criminoso está: (a‟) sendo representada; ou (b‟) em si mesmo reconhecido como evidente; ou (c‟) vendo ou, antes, percebendo. E, como tal, está participando do bem.] „Conhecimento é bom‟ não é, portanto, uma proposição que tem o caráter do princípio de não contradição e não é evidente, sem mais, a partir dos conceitos. Aqui se indica uma diferença em relação à matemática. 2 + 1 = 3 evidencia-se a partir dos conceitos. Pois, 2 + 1 é a definição analítica de 3. 194


O Fundamento da Moralidade

Contudo, você observa, a partir dos conceitos nós conhecemos que 2 + 1 é necessariamente 3 e o conceito „necessário‟ não está encerrado nos conceitos. E isto é absolutamente correto. Ou seja, a união predicativa de 3 com 2 + 1 pela cópula negativa produz em nós a rejeição dessa predicação com caráter apodítico. E isto nos conduz ao conceito de impossibilidade etc., por meio da reflexão sobre o juízo apodítico. Neles, nós temos a experiência objetiva a partir da qual é tomado, por exemplo, o conceito de impossível. Assim, nós chegamos ao juízo „2 + 1 = 3 é necessariamente verdadeiro‟, embora „necessariamente verdadeiro‟ não esteja encerrado em 2 + 1. O seguinte juízo é substancialmente diferente: „que um corpo em repouso, se nada o move, permanece em repouso e um (corpo) movido (permanece) em movimento retilíneo de velocidade constante, é necessariamente verdade‟. Ali, mas não aqui, o juízo apodítico, o qual dá lugar à abstração do conceito de impossibilidade, surge a partir dos conceitos. Está claro, então, que o conceito ‟conhecimento que não é bom‟ (‟nicht gute Erkenntnis‟) não dá lugar, do mesmo modo, a esse juízo apodítico de rejeição. E assim se faz, pois, necessária ainda outra experiência, a saber, aquela em que um amor lhe surge a partir do conceito de conhecimento, que, simplesmente porque surge assim, se apresenta como um amor caracterizado como correto. Uma essência psíquica puramente intelectual resultou de „2 + 1 não é 3‟ para a rejeição apodítica dessa proposição, mas não resultou de „conhecimento que não é bom‟ (onde pudéssemos pensar o conceito de bom dado a priori [Nota do editor. Porque, nesses casos fictícios, ele não poderia ser tomado de uma experiência.]) para ser levado à rejeição apodítica dessa proposição. No entanto, a experiência que necessitamos se dá de outro modo, completamente análogo à experiência do juízo 195


Sobre o Caráter Apriorístico do Princípio Ético

apodítico „3, o qual não é 2+1, é impossível‟. Pois também aquela,, como amor caracterizado como correto, surge a partir de conceitos, e é precisamente isso que a caracteriza como correta. E, assim, você tem toda razão quando encontra uma notável diferença, para chegar ao juízo universal, entre esses casos e aqueles que, limitadamente e no sentido próprio, são chamados de indução. Esta oferece apenas probabilidade (no melhor dos casos, de grandeza infinita), mas aqui nós temos a certeza absoluta dos juízos apodíticos. E, assim, parece-me plenamente justificado protestar contra a ideia de que o conhecimento aqui, como quer que um amor deva ser vivenciado e experienciado, seja chamado de empírico. Ou seja, ele é apriorístico, com uma rejeição substancialmente análoga do pensamento na qual os conceitos empregados são dados sem percepção e apercepção, tal como eles sempre deveriam se encontrar [Nota do editor: isso significa que deve ser rejeitado o pensamento que, pelo juízo apriorístico, não toma por base os conceitos da experiência]. Em relação a muitos outros casos, apenas um é aqui singular: que também os atos de amor tem de ser percebidos e apercebidos, e não apenas os atos de conhecimento.

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O livro O Fundamento da moralidade resultou de pesquisas científicas e foi composto por trabalhos que marcam três partes distintas e subsequentes da carreira acadêmica do autor. A primeira parte do livro apresenta o trabalho intitulado Valores Morais e a Fundamentação Kantiana da Metafísica dos Costumes escrita como dissertação de mestrado. A segunda parte do livro está dividida em dois capítulos e possui dois trabalhos resultantes de algumas pesquisas sobre o desenvolvimento da teoria do conhecimento moral de Franz Brentano. A terceira parte do livro apresenta a tradução de uma carta de Franz Brentano enviada para Oskar Kraus de 24 de março de 1904, intitulada Sobre o caráter apriorístico do princípio ético, na qual Brentano afirma sua nova posição quanto aos fundamentos epistemológicos da ética, os quais estruturariam sua teoria do conhecimento moral.

usj CENTRO UNIVERSITÁRIO MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ


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