JOSÉ CLÁUDIO MORELLI MATOS (Organizador)
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O DISCURSO DA CIVILIZAÇÃO E O DISCURSO DA BARBÁRIE ______________
COLÓQUIO CIVILIZAÇÃO 2013
usj CENTRO UNIVERSITÁRIO MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ
O DISCURSO DA CIVILIZAÇÃO E O DISCURSO DA BARBÁRIE
José Cláudio Morelli Matos (Organizador)
O DISCURSO DA CIVILIZAÇÃO E O DISCURSO DA BARBÁRIE
COLÓQUIO CIVILIZAÇÃO 2013
São José
CENTRO UNIVERSITÁRIO MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ 2014
CENTRO UNIVERSITÁRIO MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ - USJ Reitora: Elisiane C. de Souza de F. Noronha EDITORA CENTRO UNIVERSITÁRIO MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ Editor Conselheiro: Evandro Oliveira de Brito Assessor editorial: Débora Medeiros COMISSÃO EDITORIAL ACADÊMICA Adarzilse Mazzuco Dallabrida Carolina Ribeiro Cardoso da Silva Fernando Mauricio da Silva Keila Villamayor Gonzalez Jason de Lima e Silva José Cláudio Morelli Matos Maria Solange Coelho Rogério Tadeu Lacerda Vera Regina Lúcio
100 M433i
EDITORA ASSISTENTE Zuraide Silveira EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Assessoria de Comunicação USJ CAPA: Zuraide Silveira REVISÃO: Organizador FICHA CATALOGRÁFICA Coordenação de Biblioteca do USJ
O discurso da civilização e o discurso da barbárie / José Cláudio Morelli Matos (organizador) – 1 ed. – São José : Centro Universitário Municipal de São José, 2014. 177 p. ISBN 978-85-66306-06-4 (impresso) ISBN 978-85-66306-05-7 (e-book) Inclui bibliografia 1.
Filosofia. 2. Civilização. 3. Barbárie. 4. Educação I. Matos, José C. M. (org). II. Título. CDD 100
Atribuição - Uso Não-Comercial Vedada a Criação de Obras Derivadas
EXPEDIENTE O Colóquio Civilização é um evento anual, organizado pelo Programa de Extensão Civilização – UDESC. COORDENAÇÃO – Professor José Claudio Matos, Dr. Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC Centro de Ciências Humanas e da Educação – FAED Endereço: Rua Madre Benvenuta, 2007, Itacorubi. Florianópolis. SC. CEP: 88035-001 E-mail: civilização.faed@gmail.com Blog: www.projetocivilizacao.blogspot.com.br COMISSÃO ORGANIZADORA: José Claudio Matos – UDESC Fernando Maurício da Silva – FMP-UDESC Evandro Oliveira de Brito – USJ Jason de Lima e Silva – UFSC Valcionir Correa – UFSC-LEFIS BOLSISTAS 2013: Kariane Regina Laurindo Franciéli Ordovás Maria Julia de Souza Bolsistas 2014: Amanda Cristina da Silva Elis Marina Rigoni Perlini UDESC: Antônio Heronaldo de Souza - Reitor Marcus Tomais – Vice Reitor Mayco Morais Nunes – Pró-Reitor de Extensão, Cultura e Comunidade Emerson César de Campos – Diretor Geral da FAED Fábio Napoleão – Diretor de Extensão Cultura e Comunidade da FAED PARCERIAS: Laboratório de Ensino de Filosofia e Sociologia – LEFIS Faculdade Municipal de Palhoça – FMP Centro Universitário de São José - USJ
SUMÁRIO Apresentação ..............................................................9
José Cláudio Morelli Matos Filosofia, psicologia e método científico em Franz Brentano ........................................................ 11 Evandro Oliveira de Brito Vontade de música: O filósofo como compositor 25 Fernando Maurício da Silva Uma concepção de justiça, entre civilização e barbárie ......................................................... 51 Frederico A. Paschoal Discurso contra a barbárie: desafio de crítica permanente ao conceito de educação .............. 67 Gilson Luís Voloski Segurança, Estado, Liberdade ........................... 85 Guilherme Sauerbronn de Barros Sobre as noções de ‘civilizado’ e ‘bárbaro’ no contexto ficcional de Tito Andrônico: experiências do Projeto de Extensão ‘Oficina de Leitura e Interpretação de Textos’ da UDESC ................ 99 7
José Cláudio Morelli Matos Franciéli Ordovás Kariane Regina Laurindo Kayma Kanoon da Silva Keitty Rodrigues Vieira A cultura do audiovisual como estratégia comunicativa no contexto da escola: repensando os saberes escolares ..................................... 117 Juliane Di Paula Queiroz Odinino A política desde o particular contingente ......... 131 Leandro Marcelo Cisneros Selvino José Assmann A barbárie sem o discurso e o discurso filosófico na educação do humano ................................... 153 Jason de Lima e Silva Em busca do além-homem... Barbárie, civilização, cultura e educação em Nietzsche .................. 169 Vilmar Martins
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APRESENTAÇÃO O Colóquio Civilização é um evento de caráter multidisciplinar, promovido em parceira pela UDESC, USJ e a FMP, que aceita submissões de trabalhos provenientes das áreas de filosofia, arte, educação, ciências humanas e sociais aplicadas. O eixo unificador do evento é a atividade reflexiva de interpretação, e sua relação com o ensino e a cultura. Na edição de 2013, foi proposto o seguinte tema: O discurso da civilização e o discurso da barbárie. Esta dualidade se manifesta na experiência contemporânea de diversas formas, o que permite múltiplas abordagens. As próprias noções de civilização e de barbárie são objetos de uma acirrada polêmica, e sua inclusão como tema do Colóquio Civilização 2013 foi um convite à problematização dos discursos científicos, filosóficos, artísticos, sob a ótica desta dualidade. As condutas, valores e discursos que caracterizam atualmente o civilizado e o bárbaro, respectivamente, não são linhas definitivas e estabelecidas fixamente acima de qualquer dúvida. Em nossa época a comunicação, a informação e o discurso definem de forma cada vez mais preponderante o destino e a identidade individual e social. Por isso, é importante discutir qual forma de vida e de sociedade o discurso mantido por nós representa, se a civilização ou a barbárie. José Cláudio Morelli Matos
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Filosofia, psicologia e método científico em Franz Brentano Evandro Oliveira de Brito, Dr.1 Resumo: O propósito deste trabalho consiste em apresentar a recepção da filosofia positiva de Augusto Comte na filosofia do psíquico de Franz Brentano, orientado pela hipótese de que se trata de uma recepção do método de Comte, contra Comte. Esta hipótese afirma que a vinculação de Brentano ao positivismo deve ser analisada a partir do interesse brentaniano em assumir e resolver um problema epistemológico descrito pelo positivismo como limitador de qualquer psicologia científica. Em outras palavras, trataremos de explicitar que o ponto central para entendermos a recepção positivista na Psicologia do ponto de vista empírico deve ser o problema colocado pelo positivismo que ela se propôs resolver: como nós podemos lidar com os fenômenos psíquicos no contexto da filosofia positiva? Palavras chave: Intencionalidade; Positivismo; Psicologia empírica; Comte; Brentano. 1. Introdução A discussão sobre a prioridade de um método para a filosofia foi o tema norteador da principal obra do filósofo alemão Franz Brentano, publicada em 1974 com o título Psicologia do ponto de vista Bolsista Capes/PNPD, Pós-doutorando do Programa de Pósgraduação em Filosofia da UFSM e Professor efetivo do USJ. 1
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empírico. Assim, apontar os fundamentos dessa discussão, os problemas fundamentais e as soluções encontradas por Brentano em sua filosofia do psíquico, são tarefas que nos exigirão, aqui neste texto, a apresentação de três pontos fundamentais, a saber: a) As polêmicas filosóficas vigentes naquele contexto histórico. b) A recepção brentaniana de alguns conceitos ligados à alma. c) A retomada da filosofia positiva de Augusto Comte e a proposta de solução para o problema epistemológico deixado por ele. A integralização dessas três perspectivas implicará na apresentação daquilo que Brentano denominou verdadeiro método para a filosofia. 2. As polêmicas filosóficas vigentes e o contexto histórico Em 1874, ano da publicação da sua obra Psicologia do ponto de vista empírico, Brentano assumiu a cátedra de filosofia na universidade de Viena. Em uma palestra de apresentação, cujo título era Razões para o desânimo em filosofia, Brentano descreveu o prestígio negativo vivido pela filosofia de sua época, reconhecendo como a filosofia especulativa como a principal culpada. Segundo sua análise, a filosofia havia se tornado uma espécie de delírio descomprometido com toda e qualquer possibilidade de verdade, uma vez que a sua relação com a ciência não exigia a utilização do mesmo método de investigação (BRENTANO, 2008). De fato, Brentano sustentava uma das suas teses defendida na sua Habilitação, a qual afirmava que 12
A verdadeira filosofia é nula sem o método das ciências naturais. A análise de Brentano, exposta nessa apresentação de 1874, serve como um ótimo indicador do princípio adotado por ele com tese norteadora da sua filosofia do psíquico e, mais especificamente, na sua Psicologia do ponto de vista empírico. Como afirma Porta (2004, p. 109-110), tal princípio, denominado princípio da imanência, consistia em reconhecer que “só é objeto para mim, aquilo que posso conhecer de algum modo”. Como tal, o princípio da imanência fundamentava a tese de que toda imanência é epistemológica, sustentando por oposição que toda transcendência é metafísica. Em outras palavras, esse princípio oferecia o ponto arquimediano para a refutação da filosofia especulativa, em especial o hegelianismo e sua metafísica, mas também oferecia o ponto de partida para a filosofia do psíquico, caracterizada por um discurso em primeira pessoa. Orientado por este princípio e comprometido com a filosofia estruturada a partir do método das ciências naturais, o qual impõe a objetividade para todo e qualquer conhecimento, Brentano enfrentou as dificuldades que remetiam, tanto às críticas à metafísica, como a uma espécie de psicologismo. Em outras palavras, o problema de Brentano consistia em não remeter sua filosofia do psíquico, enquanto superação de uma metafísica, a um subjetivismo e, ou, um relativismo teórico, na medida em que a filosofia do psíquico poderia reduzir as leis da lógica às leis psicológicas (psicologismo lógico), mas poderia, ainda, reduzir a questão de direito à questão de fato (psicologismo 13
epistemológico) ou reduzir o sentido a objetos psíquicos (psicologismo semântico). É possível sustentar, seguindo um bom número de comentadores, que Brentano não é psicologista ao menos no sentido lógico e epistemológico. As razões que sustentam esta linha de interpretação estão implícitas nos dois pontos seguintes desse texto, os quais tratam da recepção brentaniana de alguns conceitos ligados à alma e, também, da retomada do problema epistemológico deixado por Augusto Comte. Vejamos, então, o primeiro ponto. 3. A recepção brentaniana de alguns conceitos aristotélicos ligados à noção de alma Em sua obra Psicologia do ponto de vista empírico, Brentano apresenta uma análise detalhada do conceito aristotélico de alma, psyqué, descrevendo três alternativas estudadas pelo estagirita no livro De Anima. Segundo Brentano (2008), Aristóteles investigou três possibilidades para definir a psyqué e reconheceu que a única definição capaz de apontar uma relação entre o corpo e a alma seria aquela que caracterizava as atividades do intelecto e do desejo. Ainda segundo Brentano, as definições aristotélicas de intelecto e desejo definiam essas partes da alma como atos psíquicos caracterizados pela intencionalidade. Este conceito, pedra angular na filosofia de Brentano, passou a sustentar a possibilidade da elaboração de uma filosofia do psíquico desvinculada na noção metafísica de alma como substrato substancial. Em outras palavras, a noção de intencionalidade permitiu a Brentano desenvolver uma filosofia do 14
psíquico fundada na noção de atos psíquicos, ou mentais, caracterizadores da atividade da consciência (os quais permitiam ser descritos como fenômenos psíquicos, em razão do ponto que descreveremos a seguir). Outra noção fundamental, recepcionada de Aristóteles, foi a noção de percepção interna, pensada como modo de apreensão imediato, que o ato psíquico faz de si mesmo, na medida em que se dirigi a um objeto. Em outras palavras, Brentano encontrou em Aristóteles o fundamento da sua descrição epistemológica da percepção imediata da atividade da consciência, na medida em que ela se dirige a um objeto primeiro e, imediatamente, apreende a si mesma como objeto segundo. Para Brentano (2008), trava-se de incorporar o modo aristotélico de apreensão in recto e in obliquio, capaz de garantir o conhecimento imediato da consciência. A terceira noção, recepcionada por Brentano, é de fundamental importância para a compreensão do estatuto ontológico e epistemológico das partes da consciência. Trata-se da noção aristotélica de ato, concebida na sua relação de oposição à potencia, caracterizadora do estatuto ontológico dos atos psíquicos como modo de ser real (Wirklich). Em outras palavras, e recuperando uma observação apresentada por Brentano em sua tese doutoral (Os múltiplos sentidos do ser em Aristóteles), a noção aristotélica de ato deveria ser compreendida a partir do radical do termo grego energeia, a saber, o termo ergo, o qual significa obra, atuação e realização. Para Brentano (2013), o termo alemão Wirklichkeit, o qual significa realidade, recupera o sentido grego 15
da palavra energeia, à luz do seu radical ergo. Deste modo, Brentano incorporou a noção de atos psíquicos, atribuindo o estatuto de realidade aos atos da consciência, uma vez que tais atos são caracterizados pelo modo de existência real. A última noção fundamental recepcionada por Brentano (2008), a qual está diretamente vinculada aos três primeiros pontos que acabamos de tratar, consiste no caráter in-existente dos correlatos dos atos psíquicos (os quais são descritos por Brentano como fenômenos físicos, com veremos). Em outras palavras, recorrendo à teoria aristotélica da percepção, exemplificada pela marca do carimbo na cera, Brentano encontrou o modo de descrever a in-existência intencional dos fenômenos físicos, os quais existem na consciência de um modo não real (tal como a marca do carimbo existe na cera). Caracterizados os elementos fundamentais que passaram a compor a filosofia do psíquico, podemos afirmar que tais noções foram utilizadas por Brentano com o propósito de garantir o caráter empírico de sua proposta e embasar a formulação de uma filosofia (concebida como psicologia descritiva), a qual compartilhasse o método das ciências naturais. Deste modo, o próximo passo da tarefa assumida por Brentano, consistiu em retomar os fundamentos da filosofia positiva de Augusto Comte e resolver o problema que este havia deixado para o desenvolvimento das ciências como um todo, e das ciências humanas em particular.
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4. A retomada filosofia positiva de augusto Comte e a proposta da solução para o problema deixado por ele O problema comtiano central, assumido por Brentano em sua Psicologia do ponto do vista empírico, consistia em responder a seguinte questão: “como é possível uma psicologia como ciência?”. Segundo a análise de Dieter Munch (1989), esta questão estava sustentada pela impossibilidade encontrada pelo método positivista comtiano, o qual reconhecia que a introspecção não oferecia possibilidade de realizar observações de fenômenos psíquicos. Assim, os problemas fundamentais, colocados como desafios para a filosofia brentaniana do psíquico consistiam na possibilidade de apresentação de uma definição objetiva do objeto de estudo e, o que é o caso do debate com Comte, apresentar um método seguro capaz de garantir o conhecimento do objeto. Tal como expusemos no tópico anterior, Brentano (2008) recorreu ao conceito de ato psíquico, encontrado na noção aristotélica de intelecto e desejo, para formular a noção de fenômenos psíquicos, pois estes nada mais são do que atos psíquicos compreendidos naquele sentido. Tomando essa solução como plausível, Brentano deparou-se com a necessidade de descrever o modo de apreensão de tais fenômenos. De fato, esta também foi uma tarefa que se encontrava delineada a partir do modo de apreensão imediata, descrito por Aristóteles como modo de apreensão in recto e in obliquo. No entanto, a questão aqui foi a incorporação de tais elementos filosóficos ao método científico das ciências 17
naturais, de modo que a filosofia pudesse avançar pelo suposto caminho seguro da ciência. A apresentação da recepção brentaniana das leis da enciclopédia será suficiente para elucidar a questão. Orientado pelas linhas gerais da filosofia comtiana, Brentano (2008) utiliza a lei da enciclopédia para descrever o desenvolvimento da ciência. Segundo a interpretação Brentaniana dessa lei, as ciências se desenvolvem na medida em que os seus objetos se tornam mais complexos. No entanto, uma análise detalhada mostrará que, em sua origem, encontra-se a matemática, a qual tem um fenômeno muito simples em sua origem, a saber, a relação. O desenvolvimento do estudo do objeto da matemática implicou na possibilidade do estudo de relações mais complexas, as quais poderiam ser aplicadas a fenômenos dos corpos em movimento. Nesse sentido, Brentano entendeu que o desenvolvimento da matemática implicou na possibilidade de formulação da física como ciência. Seguindo a mesma linha de raciocínio, o passo seguinte decorrente do desenvolvimento dos estudos dos fenômenos da física foi a formulação da química. Em seguida, e em decorrência do desenvolvimento da química, a fisiologia surge como uma ciência orientada para o estudo dos objetos mais complexos que a química. O próximo passo, de acordo com a interpretação brentaniana da lei da enciclopédia, consistiria no estudo dos fenômenos mais complexos que os fisiológicos e resultariam na aplicação do método positivo nos estudos de tais fenômenos, os quais Brentano define como psíquicos (a interpretação Brentaniana 18
da lei da enciclopédia diferia daquela apresentada por Comte em vários aspectos. O principal deles estava no fato de que Comte acreditava que seria uma física social, ou uma sociologia, aquela que surgiria na etapa final). A questão, no entanto, consiste em ressaltar o modo como Brentano propõe uma solução para o problema deixado por Comte e insere uma psicologia empírica onde Comte esperava uma física social ou sociologia. Ora, se o impedimento afirmado por Comte consistia na impossibilidade de observar os fenômenos psíquicos, então a orientação aristotélica de Brentano era capaz de resolver essa dificuldade a partir de um ponto de vista empírico. Em outras palavras, ao recorrer a Aristóteles, Brentano sustentou que não se tratava de observação dos fenômenos psíquicos, pois estes não podem, de fato, ser observados. Segundo Brentano, a descrição dos atos psíquicos mostra que os fenômenos psíquicos são percebidos e, ainda, que tal percepção é imediata. Deste modo, e respondendo a Comte, Brentano sustentou que o método das ciências naturais deveria ser ampliado, na medida em que deveria incorporar a percepção interna como fonte de conhecimento imediato. A filosofia do psíquico, portanto, foi concebida como uma psicologia empírica, na medida em que sua fonte se encontrava na experiência e, ainda, uma vez que consistia numa ciência de fenômenos, ela foi uma filosofia orientanda pela ampliação do objeto e método positivo comtiano. Com base nesse objeto e método, Brentano pode apresentar a clássica definição de fenômenos psíquicos e distingui-los dos fenômenos físicos. 19
Essa definição implicou na tradicional noção de representação e apresentou uma polaridade inseparável em cada ato psíquico de consciência. Em outras palavras, orientando pelo conceito de intencionalidade, Brentano definiu as representações como os atos psíquicos e não mais como ideias ou qualquer outra entidade mental. Assim, dizia ele (2008), pensar, ver, ouvir e cheirar são atos psíquicos de representar, ou seja, são representações no sentido rigoroso do termo. Por sua vez, os fenômenos representados, tais como a sereia na qual eu penso, a cor a qual eu vejo, o som o qual eu ouço e o odor o qual eu cheiro são correlatos dos atos de representar. Para Brentano, portanto, os fenômenos psíquicos são as representações, a quais são imediatamente percebidas pela consciência, na medida em que contêm em si um objeto representado, o qual existe intencionalmente, embora não seja real. Certamente que a validade da proposta metodológica de Brentano foi questionada, e muito, por seus contemporâneos, discípulos e, inclusive, por ele mesmo na fase mais madura de sua vida intelectual. No entanto, essa é possível que essa tenha sido outra das suas grandes virtudes, pois dela se derivam linha de pensamento como a fenomenologia, teoria do objeto, Gestalt etc. 5. Referências BRENTANO, Franz. Psychologie vom empirischen Standpunkt. De Gruyter, 2008. ________________. Von der mannigfachen Bedeutung des Seienden nach Aristoteles. De Gruyter, 2014. 20
________________. O conceito de verdade. Trad.: Evandro O. Brito, Florianópolis: Bookess Editora, 2013. Disponível em: http://www.bookess.com/read/17016-o-conceitode-verdade/ ________________. Aristóteles: vida e obra. Trad.: Evandro O. Brito, Florianópolis: Bookess Editora, 2012. Disponível em: http://www.amazon.com/Arist%C3%B3teles-VidaPortuguese-Editionebook/dp/B008J4DI1C/ref=sr_1_1?ie=UTF8&qid=1 342007688&sr=81&keywords=Arist%C3%B3teles+vida+e+obra _______________. O psicologismo: ou o porquê não sou um psicologista. Trad.: Evandro O. Brito. In: Revista PERI, vol. 5, n° 1, 2013. Disponível em: http://www.nexos.ufsc.br/index.php/peri/article/v iewFile/167/87 BRITO, Evandro O. Psicologia e ética: o desenvolvimento da filosofia do psíquico de Franz Brentano. Curitiba: Editora CRV, 2013. ________________. A descrição da atividade intencional da consciência na obra psicologia descritiva de Franz Brentano. Marília: Kínesis, Vol. IV, n° 07, p. 174-187, 2012. Disponível em: http://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletro nicas/Kinesis/evandrobrito174-187.pdf _________________. Franz Brentano e a descrição dos atos psíquicos intencionais: uma exposição esquemática do manuscrito Psychognosie de 1890. Recife: Ágora filosófica, Vol. I, no 1, p. 87114, 2012. Disponível em: http://www.unicap.br/ojs-
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2.3.4/index.php/agora/article/view/164/150 Acesso em: 19 mar. 2013. _________________. O Desenvolvimento da ética na filosofia do psíquico de Franz Brentano. 2012. 214 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Programa de Estudos Pós-graduados em Filosofia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012. Disponível em: http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo. php?codArquivo=14114 ________________. O desenvolvimento da ética na filosofia da mente de Franz Brentano. In: CARVALHO, M.; FIGUEIREDO, V.; (Orgs.). Filosofia contemporânea lógica, linguagem e ciência. São Paulo: ANPOF, p. 269–281, 2013. Disponível em: https://www.academia.edu/5770699/O_desenvolvi mento_da_etica_na_filosofia_da_mente_de_Franz_Br entano _________________. Considerações sobre a originalidade da obra "Origem do conhecimento moral (1889)" de Franz Brentano. Anais do IV Encontro de egressos e estudantes de filosofia [anais eletrônicos]: a ética e o ensino de filosofia, Londrina: UEL, p. 99 – 105, 2012. Disponível em : https://www.academia.edu/2916973/Consideraco es_sobre_a_originalidade_da_obra_Origem_do_conh ecimento_moral_1889_de_Franz_Brentano _________________. Franz Brentano, correspondência e verdade: uma exposição esquemática da análise de Franz Brentano apresentada no texto "Über den Begriff der Wahrheit" (1889), Revista Guairacá. V. 28, n. 1, p. 113-140, 2012. Disponível em: https://www.academia.edu/5340390/Franz_Brent 22
ano_correspondencia_e_verdade_uma_exposicao_es quematica_da_analise_de_Franz_Brentano_apresent ada_no_texto_Uber_den_Begriff_der_Wahrheit_1889 _ _________________. As implicações éticas na recepção da noção aristotélica de in-existência intencional do objeto na obra "Psicologia do ponto de vista empírico" de Franz Brentano. In: Anais do VII Colóquio Habermas: Habermas e Interlocuções e II Simpósio Nacional de Filosofia: Ética, Filosofia Política e Linguagem / Charles Feldhaus, Eder Soares Santos e José Fernandes Weber (organizadores). – Londrina: UEL, p. 272–284, 2011. Disponível em: https://www.academia.edu/1287307/As_implicaco es_eticas_na_recepcao_da_nocao_aristotelica_de_inexistencia_intencional_do_objeto_na_obra_Psicologi a_do_ponto_de_vista_empirico_de_Franz_Brentano ________________. A Psicologia como uma ciência empírica segundo Franz Brentano. Revista Paradigmas (Centro de Estudos Filosóficos de Santos), v.11, p. 6–7, 2002. Disponível em: http://www.paradigmas.com.br/parad11/p11.6.ht m MÜNCH, Dieter. Brentano and Comte. Grazer Philosophische Studien, V. 35, p. 33-54, 1989. PORTA, Mario A. G. A Polêmica em torno ao psicologismo de Bolzano a Heidegger. Síntese: Rev. De Filosofia, V. 31, nº 99: 107-131, 2004. ________________. Franz Brentano. Equivocidad del ser y objeto intencional. Kriterion
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Revista de Filosofia, Minas Gerais, vol. XLIII, nยบ. 105, p. 7-118, jan. a jun, 2002.
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Vontade de compositor
música:
O
filósofo
como
Fernando Maurício da Silva2 Resumo: A Estética, a filosofia da arte e a crítica de arte são domínios diferentes e, não obstante, a atualidade exige a reedição de seu campo de comunicação, ao menos de parte. A estética deve incluir não apenas o domínio da obra de arte e do gênio artístico, mas também da experiência artística. Quanto à música, os problemas da origem das línguas e do mito se encontram e, portanto, a investigação da experiência artística do canto imediatamente relevante para a investigação estética. Palavras-chave: música, estética, canto, experiência, Wagner, Bizet. 1. Introdução Distante estão filosofia da arte e estética, mas no último século a distancia entre critica de arte e estética se estreitou. Por isso a questão aqui levantada dirige-se à música como experiência estética e não à filosofia da arte. Queremos indicar como a estética permanece distinta da critica de arte e, não obstante, como o artista tem sido mais esteta que o filósofo. O filósofo não pode mais fazer estética sem avaliar a experiência artística tal como a epistemologia não é possível sem partir da experiência cientifica. Deste modo, queremos Mestre em Filosofia. Professor de Filosofia da Faculdade Municipal de Palhoça. 2
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retornar as origens deste problema, conduzindo uma releitura de O Caso Wagner, que a estética apresentada neste livro somente se compreende enfatizando seu subtítulo: “um problema para músicos” e não para filósofos. A estética de Nietzsche permanece atual não apenas pela sua obra filosófica, mas porque refletiu a partir da própria experiência musical e não simplesmente da obra e do gênio de grandes compositores. Comecemos pelo filósofo como compositor. Recentemente Wolfgang Bottenberg produziu algumas das composições de Nietzsche. Convidamos o leitor a preceder esta leitura pela contemplação das composições musicais nietzschianas. Nietzsche ingressou nos estudos de Filologia e Teologia no ano de 1864. Foi neste momento que realizou o maior numero de composições musicais, destacando-se sua fantasia para piano e violino. Em uma carta endereçada a sua mãe em 1865, confessa a dificuldade nos estudos musicais de contraponto e sua decisão de dedicar-se apenas à filologia. Sua carreira literária será positivamente criticada por Wagner, mas este nunca chegará a influenciar Nietzsche no campo das composições musicais, mesmo após o encontro de 1868 e inclusive com sua retomada musicista a partir de 1871. Foi a amizade com Franz Overbeck que levou Nietzsche a compor diversos duetos para piano e para orquestra, presenteando-o com a composição Nachklang einer Sylversternnacht que retrata as alegrias festivas de inverno, que anos depois, unida a composição Manfred Meditation, enviaria para Hans Von Bullow, músico conhecido de Wagner. Foram as críticas recebidas neste 26
momento que levaram Nietzsche a afirmar que não voltaria a compor. Contudo, entre 1873 e 1874, época que deu início ao afastamento de Wagner, compôs o dueto Monodie a Deux, cuja letra demorou a ser produzida até a escolha do poema de Lou Salomé, Oração à Vida (1882), que por sua vez veio a receber um arranjo de cordas por seu amigo Peter Gast, em 1887. No mesmo sentido, podemos citar Erloschene Kerze (A Criança e o candelabro que se extingue), canções com poemas românticos de Alberto Von Chamisso (1781-1838). Esta relação entre canto e música é o que pretendemos investigar. 2. O argumento de Bach: o discurso musical Levantemos duas questões: em que medida Nietzsche foi esteta como compositor e em que medida o filósofo acompanhou o compositor? A estética nietzschiana consiste em afirmar a precedência da arte grega sobre a filosofia grega socrático-platônica. Assim se desenvolve a conhecida teoria dos impulsos apolíneo e dionisíaco. Por isso O Caso Wagner traz o subtítulo “um problema para músicos”: por um lado, a experiência estética precede a conceitual; por outro lado, desde Bach o artista pretende pensar a estética autonomamente e independente do filósofo. É assim que, após o romantismo, a filosofia sempre chega após as experiências artísticas e, no século XX, os conceitos estéticos parecem insuficientes para traduzir a obra de arte. A música chegou ao estatuto de ciência: o cravo temperado de Bach ou o nascimento do sistema tonal é uma demonstração 27
musical rigorosa que nenhum filósofo teria sido capaz de conceituar por si mesmo. Não é tanto o platonismo presente em Bach que merece ser criticado, mas a forma de elevação da música como sistema. Inversamente, teríamos a decadência da estética platônica (o domínio do conceito sobre a expressão) e o renascimento ou reviravolta axiológica da arte grega com o Romantismo de Wagner. Neste caso, a experiência estética chamase expressão (se quisermos manter o conceito de Schumann). Esta reviravolta axiológica é sem dúvida uma questão estética e, entretanto, é um problema para músicos. O problema de Nietzsche não é a presença da metafísica na composição musical: de Bach à Beethoven, de Schumann à Wagner, suas criticas dirigem-se aos valores dominantes e não ao racionalismo musical. Com efeito, os gregos fundaram a história da música modal, que será substituída pelo domínio do sistema tonal até meados do século XX. Porém, se a historia da música ocidental tornou-se um culto à razão, o sistema total não é exceção, mas aperfeiçoamento: as proporções em todos os modos maiores e menores. A obra de Bach não é simplesmente cristã, mas lógica: a lógica musical na forma de perguntas e respostas, a retórica na forma da disputatio. Assim, “se não escutamos a música de Bach enquanto perfeitos e sutis conhecedores do contraponto e de todas as modalidades do estilo da fuga, (...) então seremos, enquanto ouvintes de sua música, encorajados a sentir (a fim de expressarmo-nos grandiosamente como Goethe) como se estivéssemos presentes quando Deus criou 28
o mundo” (NIETZSCHE, 2000, §149) e, entretanto, a experiência musical permanece lírica em função do valor do canto, pois “pensemos em nossas próprias experiências no âmbito da elevada música artística: o que entendemos do texto de uma missa de Palestrina, de uma cantata de Bach, de um oratório de Händel, quando não tomamos parte no canto? Somente aos que participam do canto há uma poesia lírica, há, pois, música vocal” (NIETZSCHE, 1980, 12 [1]), equilíbrio entre a lógica do movimento sonoro e a retórica do movimento vocal. Esta presença do canto na estética musical permanecerá relevante em Nietzsche, das críticas à Rousseau até as dirigidas contra Schopenhauer. Enquanto Mozart ainda permanece ligado aos valores da aristocracia da época, segundo a crítica de Wagner, a mudança do valor da música veio com a releitura da linguagem clássica: “Beethoven foi o primeiro a deixar a música falar uma nova linguagem, a linguagem até então proibida da paixão”, pois “o ouvinte podia acreditar estar ouvindo a antiga música de humor”, como a de Mozart, quando se tratava “do transcurso dramático da paixão”, “as oscilações extremas da paixão”, em que “destacava certos pontos de sua trajetória e os interpretava (...), de modo que os ouvintes pudessem adivinhar todo o percurso” (NIETZSCHE, 2007b, p.118). Amplas linhas melódicas e grandes intervalos, orquestras maiores e metais numerosos: Beethoven aproxima-se do público. Acrescentemos agora o valor do cromatismo e da dissonância e teremos os motivos para um elogio nietzschiano ao romantismo ou a prova musical da estética de Schopenhauer, como 29
na estrutura de Tristão composto por Wagner. Schopenhauer, partindo da acústica, definiu a harmonia como racional e determinada por números inteiros. A partir disso Nietzsche interpretará o drama grego como tensão entre o coro, Dioniso como o dissonante que sempre permanece, e a melodia dos protagonistas, o individuo que sempre sucumbe: o homem é melodia sobre a tensão da vontade. Contudo, somente com Wagner a dominante da tônica como solução da tensão pressentiu não ser obrigatória e a melodia admitiu uma infinitude e não resolução: a tensão tonal chega a máxima expressão ao criar-se duas dissonâncias em que uma se revolve no momento em que a outra é sustentada, cujo romantismo consiste em resolver através da contradição. O canto encontrara a grandeza de estilo. 3. O argumento de Schumann: a expressão musical Quando ouvimos as composições de Nietzsche, nos lembramos ora de Schumann ora de Chopin, compositores frequentemente elogiados na obra do filósofo. Nietzsche como compositor aproximar-se-ia do romantismo mesmo quando sua filosofia estava a pretender romper. Schumann representa o ideal romântico de unidade entre musica e literatura, sendo a Kreisleriana o grande exemplar da dialética entre estes elementos que não podem existir um sem o outro. Foram os românicos que inventaram o ideal da musica instrumental sobreposto a musica vocal, como é bem representado por Hoffmann. Mas ainda não havia ficado claro se a musica experimental poderia 30
alcançar a perfeição expressiva da musica vocal. É com Beethoven que a musica instrumental se consuma, conforme a resenha de Hoffmann sobre a Quinta Sinfonia. Trata-se de afirmar a música como arte autônoma, pois “quando se fala da música como uma arte autônoma, não se deve ter sempre em vista a música instrumental? (...) Ela é a mais romântica de todas as artes, quase se poderia dizer que é a única verdadeiramente romântica, pois apenas o infindável é o seu assunto (...). A música abre aos homens as portas de um império desconhecido, um mundo que não tem nada em comum com o mundo sensível exterior que o envolve, e no qual todos os sentimentos determinados ficam para trás, a fim de se entregarem a uma nostalgia inexprimível” (HOFFMANN, 1994, p.49). Música autônoma significa música absoluta, no sentido romântico da estética hegeliana: a música é a revelação do absoluto. Richard Wagner é o criador da expressão: a música é a expressão do absoluto, se explica pela irredutibilidade de sua expressão a qualquer outra forma de expressão, pois “é preciso admitir que a essência da música instrumental mais elevada consiste em exprimir em sons aquilo que não pode ser dito em palavras […]” (WAGNER, 1930, p.56). Hoffmann entendeu o romantismo como drama instrumental visado na forma da sinfonia. Schumann o procurou no piano romântico, que passou a ocupar o lugar de orquestra. Mais tarde Liszt o radicalizou, procurando fazer do piano uma orquestra propriamente. Assim, a “música absoluta” dirigiu-se para a sinfonia, concertos públicos e não mais de câmara, como no quarteto, 31
trio, duo ou solo, incluindo o concerto público de temas antes privados. Assim, o romantismo aproxima-se do povo, ao modificar o sentido social do gênero musical. Schopenhauer afirmou que a transformação da música em conceitos faria uma verdadeira filosofia do mundo. Mas isto implicou em um problema, já que a música parece ser independente de conceitos: os esforços de Wagner consistiram em resolver este paradoxo, entendendo que Schopenhaur não pôde investigar o problema por não ter conhecimentos musicais suficientes para analisar a Nona Sinfonia de Beethoven. Tratava-se de uma grave objeção estética aos filósofos. Wagner afirmara que é impossível estudar a obra de Beethoven sem antes resolver o problema metafísico de Schopenhauer. O primeiro critério seria separar a música da poesia, o que Wagner fez situando esta entre as artes plásticas, como Nietzsche em O Nascimento da Tragédia. Por isso O Caso Wagner é um “problema para músicos”, pois, diferente do músico, o poeta aproxima-se do pintor. O Som não pertence à visualização e, neste sentido, analisar a música não é analisar uma consciência. O que há na poética que se aproxima da música é o drama. Wagner distinguirá entre mundo da luz e mundo do som: o mundo da luz nasce na visão, mas as idéias da consciência visual distinguem-se entre vigília e sonho. A consciência interna onírica permite aproximação ao mundo dos sonhos. É somente na musica e no mundo do som que tempo e espaço não podem mais se manifestar. Apesar destas estéticas do som, quando Nietzsche passa a criticar o romantismo ataca a composição poética e a dramaticidade e ignora as inovações sonoras. 32
4. O argumento de Bizet: o drama musical Que Nietzsche tenha abandonado o romantismo não significa que deixou de acreditar na força expressiva da musica autônoma, mas apenas em sua interpretação como absoluta. Rompe com as músicas de Schumann e Wagner para aproximar-se de Bizet. E, como um contraponto, recuperou suas composições em estilo romântico, próximo à Schumann, em forma recitativa, tal como o ditirambo em Zaratustra. Apesar da Òpera Carmen ser musicalmente tradicional, é inovadora poeticamente. Haveria nisto um elogio ao apolíneo? Em caso negativo, porque Nietzsche não teria reconhecido as inovações sonoras de Wagner? É o drama de Carmen que merece ênfase: o drama é a unidade entre poesia e musica, e Carmen vai da alegria e brilho do primeiro ato para o drama e morte do final. A ópera é “brilhante, forte, aqui e ali emocionante. Um verdadeiro talento francês da ópera cômica, em nenhum momento desorientado por Wagner, ao contrário, um verdadeiro discípulo de Hector Berlioz”, de modo que “parece-me que os franceses estão num caminho bem melhor em termos de música dramática; e deram um passo adiante dos alemães em um aspecto fundamental: a paixão não é, para eles, algo a ser buscado além (como, por exemplo, em todas as paixões na obra de Wagner)” (O Caso Wagner). Ao fim do mesmo ano Nietzsche compra uma partitura de Carmen para piano e canto e envia-a com anotações para um amigo. Após a Ouverture Bizet inicia um andante moderato conhecido como “tema da morte” ou destino de 33
Carmen, composto, segundo Nietzsche, de amor, liberdade, fatalismo e morte, o que Nietzsche comenta em uma nota sobre a partitura: “Um epigrama sobre a paixão, o que de melhor se escreveu sobre esse tema desde Stendhal sobre o amor”, e acrescenta que “aqui a redução para piano é muito insuficiente”. À embriaguez e liberdade de Carmen Nietzsche irá opor a noção de amor em Wagner em função da relação romântica com o povo alemão: “Que havia acontecido? – Haviam traduzido Wagner para o alemão! O wagneriano havia se assenhoreado de Wagner! – A arte alemã! O mestre alemão! A cerveja alemã!” (Hecce Homo 1). Diante disto, devemos constatar: Nietzsche elogia a Ópera e não retira de Carmen nenhuma conclusão que a obra de Bizet não tenha por si mesmo exposto. Trata-se de Nietzsche contra os filósofos músicos (Rousseau e Schopenhauer) e contra os músicos filosofantes (Wagner). Quanto a Bizet,trata-se de afirmar o músico como pensador esteta. A opera foi inaugurada em 3 de março de 1875 em Paris e causou escândalo na plateia ao assistir a traição de Carmen contra o soldado Don José. A crítica, nos dias seguintes, chegou a afirmar que a orquestra estaria encolerizada ou alucinada. Principalmente o final da obra era imoral para a época: a cigana Carmen é deixada morta no palco ao fechar-se final das cortinas. As críticas afetaram a saúde de Bizet, que faleceu três meses depois da estreia e não conheceu a enorme reputação que viria depois. Oscar Commetant afirmou: “o estado patológico desta infeliz é, felizmente, um caso raro, mais propício para inspirar cuidados médicos do 34
que para interessar os honestos espectadores vindos ao teatro acompanhados de suas esposas e por suas filhas”. Fraçois Oswald comentou sobre a intérprete de Carmen: “Ela parece ter prazer de acentuar o lado escabroso deste papel tão cheio de riscos. Para aqueles que adoram vulgaridades esta estreia foi um prato cheio”. Em outubro do mesmo ano Carmen foi realizada na capital austríaca, com grande sucesso, então elogiada por Brahms, Wagner e Nietzsche. Somente em 1883 foi reestreada em Paris com sucesso. Uma análise rasa da Ópera a partir do jovem Nietzsche diria que há conflito de forças: (a) personagem Micaela (o apolíneo), (b) Carmen (o dionisíaco) e (c) Don José, o herói que oscila entre as duas pulsões originárias, os deveres sociais e a dança sensual de Carmen. Dá-se o desfecho trágico: José mata Carmen, no fim da ópera, incapaz de viver na intensidade trágica. O libreto da ópera Carmen é baseado na novela de Mérimée, mas recebeu muitos acréscimos, sobretudo Micaela. A conduta de Carmen enaltece a embriaguez e a alegria, afirma a liberdade de seguir o próprio destino no canto de amor na ária Habanera. Conforme o final do Ato II, temos a liberdade em valorização do instante: “Segue-nos através dos campos, vem conosco para a montanha, segue-nos e irás acostumar-te quando vires, ali, como é bela a vida errante; por país o universo, e por lei, a tua vontade, e sobretudo, o mais embriagador: A liberdade !”. Carmen, no Ato II, conhece o seu destino, sofre diante dele, embora ao final o suporta: “Vejamos, também vou tentar a minha sorte. Ouros, espadas, a morte!”. No Diálogo final, José clama a Carmen aceitar seu amor, mas 35
esta assume não mais ama-lo, mas a outro, com o que o amor passa ao ódio e os valores machistas chegam ao ápice. Don José é um militar, exprime o dever, inicialmente prometido a Micaela. Diz o Ato I, quando Micaela lhe entrega carta da mãe: “Minha mãe, eu a vejo! Sim, eu revejo minha aldeia! Oh lembranças do passado! Doces lembranças do lugar! Enchem meu coração com força e coragem!”. O apolíneo se expressa aqui como tempo passado, o dever de manter a tradição, os bons costumes, os ideais familiares, etc. Este apolíneo terá efeitos maléficos: estando Don José em conflito entre Carmen e Micaela e mediado pela presença de outro homem concorrente, enfurece-se progressivamente ao longo da Ópera até assassinar Carmen. Trata-se da passagem do amor ao ódio ou a historia do fortalecimento dos valores machistas de José (o poder sobre a mulher e o dever militar). Nos anos de 1800 os libretos de opera eram analisados politica e moralmente pela censura francesa, evitando dramatizações desfavoráveis e instigando temas ordinários vigentes. Por exemplo, As Bodas de Fígaro, de Mozart, foi criticada por ridicularizar personagens da nobreza, assim como Fidelo, de Beethoven, por ter exaltado a liberdade e a justiça nas relações de poder, tendo sido estreada em 1805 e modificada até1814. A orquestração de Carmen não se desenvolve através de complexidades harmônicas cromática, relevantes no romantismo e recurso comum em Wagner. Carmen segue uma estrutura normal das operas parisienses, tecida em modelo tradicional. Assim, não é tanto o tradicionalismo musical ou a originalidade audaciosa que Nietzsche elogia ou 36
critica, mas o valor presente no romantismo e nas demais formas dramáticas. O drama em Carmen é tradicional na medida em que se dividia entre árias e diálogos falados. Não obstante, seu poder tonificante dos afetos é o objeto do elogio de Nietzsche. Assim, O Caso Wagner é “um problema para músicos” por lidar com a elevação do valor dos afetos através da música. É a tonalidade-afetiva que interessa Nietzsche, mas não simplesmente como efeito sonoro, já que, tratando-se do tradicionalismo de Carmen, “também essa obra redime; não apenas Wagner é um redentor. (...) Em todo aspecto o clima muda. Aqui fala uma outra sensualidade, uma outra sensibilidade, uma outra serena alegria. Essa música é alegre, mas não de uma alegria francesa ou alemã. Sua alegria é africana; ela tem a fatalidade sobre si, sua felicidade é curta, repentina, sem perdão. Invejo Bizet por isso, por haver tido a coragem para essa sensibilidade, que até então não teve idioma na música cultivada da Europa – esta sensibilidade mais morena, mais queimada” (NIETZSCHE, 2009, p. 12). E Nietzsche inveja Bizet obviamente como compositor que não pretendeu inovar tanto sonoramente, mas moralmente. Wagner apresenta valores ideais em seu romantismo, como o amor sagrado superior a sensualidade e a transcendência do espirito sobre o corpo. Carmen, apesar de seguir o modelo tradicional, seria inovadora quanto ao valor do trágico. Isto se observaria em sua rejeição moral entre os franceses e mesmo inicialmente entre os alemães. É nestes termos Nietzsche critica Wagner e elogia Bizet em A Gaia Ciência (§ 279): “Essa música me parece perfeita. Aproxima-se leve, 37
sutil, com polidez, (...) maliciosa, refinada, fatalista: no entanto, permanece popular (...). Alguém já ouviu num palco entonações mais dolorosamente trágicas? E a maneira como são obtidas! Sem caretas, sem falsificação! Sem a mentira do grande estilo!” (NIETZSCHE, 2009, p. 11). Não é a inovação do estilo que Nietzsche elogia, sequer a melodia infinita ou a dissonância wagneriana, mas a coragem de expressar valores vitais. Por isso, no Prólogo de O Caso Wagner, afirmar não ser pura malicia o fato de ter elogiado Bizet a custa de Wagner. 5. O argumento de Wagner: a revolução artística Canto (Coro) e mito teriam nascidos unidos? A ópera wagneriana é vista como renascimento da cultura grega trágica. Assim dirige-se o elogio à Wagner na dedicatória de Ecce Homo: “declaro que, por convicção profunda, considero na arte a missão mais elevada e a atividade essencialmente metafísica da vida humana, no que acompanho o pensamento do artista a quem dedico este trabalho, meu nobre companheiro de armas, meu precursor neste difícil caminho”. Wagner, portanto, representou uma esperança e o precursor de tal estética. O próprio Nietzsche pretendia ser compositor, mas Wagner seria a esperança de trazer a tragédia para o palco. Nietzsche apaixonase por Wagner já na juventude quando, em 1870, Wagner edita uma homenagem a Beethoven. Sabemos que em O nascimento da Tragédia Nietzsche entende que a música de Wagner irá reconstruir a tragédia grega junto ao povo alemão 38
contra a metafísica cristã-platônica. Wagner afirmou sua predileção por Ésquilo, resgatando-o através dos mitos germânicos a partir de Eddas e A Canção dos nibelungos. Na Ópera, as imagens míticas conseguiriam protagonizar reunidas na força musical. Além disso, se Goethe é definido como poeta épico, Wagner é dramático. Siegfried e Wotan (Odin) estariam a representar os impulsos contrários do próprio Wagner: Wotan como divindade da morte e da guerra, do êxtase e da batalha, e Siegfried seu espírito amoroso e transbordante (NIETZSCHE, 2007b, p.331), que na Ópera se reconciliam através do amor da valquíria Brünnhilde. Esta psicologia de Nietzsche estaria se aproximando à estética do mito: Siegfried e Wotan reconciliando-se na Ópera tal como Apolo e Dioniso no mito, relação primeiramente observada por Wagner em A Arte e a Revolução. E será neste texto que Wagner afirmará, prevendo Nietzsche, que “a palavra audaciosa e unificadora, a intenção poética arrebatada (...) que é possível conceber [é o] drama” (WAGNER, 1930, p.40). Por isso Wagner seria o novo Ésquilo ou este o “único dramaturgo ditirambo antes de Wagner” (NIETZSCHE, 2007b, p.359), a mesma dramaturgia trágica em luta contra a banalização da arte, sem apelar ao culto da vida vulgar e ao artificio do deus ex-machina de Eurípedes. O estilo de Wagner e Ésquilo teriam em comum a vitória da totalidade sobre o individuo (o que mais tarde Nietzsche reconhecerá em Carmen) que, nas palavras de Wagner, seria uma “celebração religiosa” (WAGNER, 1930, p.69) enquanto experiência extática do povo alemão diante o mito unificador de poesia e música, um 39
retorno à cultura helênica contra a orientalização do mundo moderno, que corresponderia a perversão dos instintos dirigidos à utilidade. Seria preciso começar por “mergulhar na apatia ou na embriaguez” (NIETZSCHE, 2007b, p.355), referindo-se ao dionisíaco. Somente “com o dramaturgo, subimos os mais altos degraus do sentimento”, razão pela qual dele necessitamos para nos redimir (NIETZSCHE, 2007b, p.361) na embriaguez extática (NIETZSCHE, 2007b, p.364). Nietzsche desde cedo defendera uma revolução cultural por meio da educação artística, a arte como único meio de disciplinar os instintos (NIETZSCHE, 2004, p.55). Esta tese não poderia deixar de atestar-se miticamente: Vulcano, metalúrgico, representante da ciência e tecnologia, e Mercúrio, representante do comércio e investimento, não poderiam definir a unidade social no lugar de Apolo e Dioniso. Nietzsche não chegou a construir um projeto de inclusão da educação artística nas escolas, possivelmente por cedo ter confiado na obra de Wagner, a julgar pela IV Consideração, Nietzsche como a plateia perfeita para este “espetáculo digno de ser contemplado” (NIETZSCHE , 2007b, p.328). Wagner, partindo de Schopenhauer e, portanto, antes de Nietzsche, afirmava que a música requer uma estética diferente das demais artes, que responde a uma revolução social, contra os contratos, à tradição e à moral (O Caso Wagner, p.18). O instrumento revolucionário seria a arte trágica. Contudo, que a Ópera Crepúsculo dos Deuses termine no Ragnarök (destruição do mundo) deveria cumprir esta função trágica, mas Nietzsche a acusa de redentora da 40
sociedade. Dioniso atua por negação, conforme sua definição em Ecce Homo, mesmo que o destino seja a fatalidade: aqui estará o motivo do entusiasmo futuro diante de Bizet. Nietzsche teria fracassado como compositor, depositando suas esperanças em Wagner, ou teria feito uma experiência estética própria e pessoal? A esperança em Schopenhauer e Wagner assim se resumiu: “Só a música colocada ao lado do mundo pode nos dar uma idéia do que deve ser entendido por justificação do mundo como fenômeno estético”. Porém, admitindo uma reformulação do homem como melodia da vontade, sua “fórmula para a grandeza do homem” nos é conhecida, o “amor fati: nada querer diferente, seja para trás, seja para a frente, seja em toda a eternidade.” (NIETZSCHE, 2008, p. 51), o que não poderia corresponder a melodia infinita do romantismo. Haveria uma música ou melodia original que implica uma língua original, dionisíaca, que a música apenas se aproxima, mas o que importa é a presença de uma hierarquia axiológica: música original, poesia lírica, poesia épica, linguagem prosaica e linguagem cientifica. Esta linguagem da vontade de poder deve corresponder a uma vontade de música que alcança expressão e valor na história. Por um lado, “a música é a última planta a vir à luz, aparecendo no Outono e na estação morta de cultura a que pertence” e, por outro lado, “o século XVIII – século da rapsódia, dos ideais desfeitos e da felicidade transitória – apenas se revelou na música de Beethoven e de Rossini” (NIETZSCHE, 2004b, 195), em oposição a música como “uma irritação e uma descarga completa das emoções, (...) resto de um 41
mundo de expressões emocionais muito mais amplo, um resíduo do histrionismo dionisíaco”. Mas, “para tornar a música possível, enquanto arte especial”, a música como expressão vegetal ou mobilização orgânica, “imobilizou-se certo número de sentidos, em primeiro lugar o sentido muscular (...), de maneira que o homem não possa mais imitar e representar corporalmente tudo o que sente. Contudo, este é precisamente o verdadeiro estado normal dionisíaco e, em todos os casos, o estado primitivo; a música é a especificação desse estado, especificação lentamente adquirida, em detrimento das faculdades próximas” (NIETZSCHE, 2006). Chegamos à tese axiológica: a música impõe ao homem aquilo que a cultura proibiu sentir, pois “quando os acordes da música dum mestre desabam sobre uma humanidade assim doente e sofredora, o significado dessa música é o correto sentir, inimigo de toda a convenção, de todo isolamento artificial e de toda a falta de compreensão de homem para homem. Essa música significa o regresso à natureza e, ao mesmo tempo, uma purificação e remodelação dessa mesma natureza” (IV intempestiva). Por isso, mais que a composição sonora de Carmen, é o drama da individuação dos personagens que expressa a tensão dionisíaca superior as obrigações morais. 6. O argumento de Nietzsche: o recital “Nunca admitirei que um alemão possa saber o que é música. Os chamados músicos alemães, sobretudo os maiores, são estrangeiros” (NIETZSCHE, 2008, p.740), exceção a Liszt – assim Nietzsche escreve as primeiras críticas de 42
afastamento, afirmando não haver “diferença alguma entre as lágrimas e a música”, em oposição aos elementos que compunham a música de Wagner: “o brutal, o artificial e o inocente (idiota)” (NIETZSCHE, 2009, p.19). Se o elogio à Wagner corresponde à estética do mito unida ao “Dossiê de um psicólogo”, então que se aplique o mesmo ao próprio Nietzsche do rompimento, pois nos primeiros escritos “em todas as passagens psicologicamente decisivas, fala-se apenas de mim – pode pôr-se sem reservas o meu nome ou o de ‘Zaratustra’ onde o texto apresenta a palavra Wagner. A imagem completa do artista ditirâmbico é a imagem do poeta existente” (NIETZSCHE, 2008, p.67). Porém, uma vez que Nietzsche como compositor se mantém no gênero recitativo, mais próximo do ditirambo, assim como o escritor do Zaratustra, então deveremos também aceitar que as criticas à Wagner são sinais de ressentimento amoroso. E na medida em que Nietzsche escreve cada vez mais em estilo musical, seu espírito de compositor parece ter se mantido aceso. O desentendimento entre eles iniciou possivelmente em 1870, quando Nietzsche foi fortemente criticado por Wagner após sua conferencia Das Griechische Musikdrama, já que também no mesmo ano critica o Beethoven de Wagner. Em 1871 haveria ocorrido reservas de Nietzsche ao receber a partitura de Idílio de Siegfried. Em 1872 Wagner teria dado as costas quando Nietzsche executava Eine Sylvesternacht, obra de sua autoria, e no mesmo ano Nietzsche recusaria o convite de Wagner para ir a Bayreuth, o que o levou, no ano seguinte a ter-se desculpado textualmente pelas ofensas em seu 43
comentário a Uber Staat und Religion, de Wagner, que afirmara certa vez que “Nietzsche toca bem para um professor”. Nietzsche só retornaria a Bayreuth em 1874 e um novo desentendimento o levou a afastar-se por dois anos. Assim, quando em Ecce Homo ele expressa boas recordações do amigo, textualiza-se a importante relação sentimental entre os dois. Em todo caso, foi em 1873 que Nietzsche iniciou o projeto de escrever sobre Wagner, visando a Festspielhaums de Bayeruth, trabalho que somente foi publicado em 1876, a IV Extemporânea. Wagner escreveu sobre a relação da música e o projeto revolucionário, mas não escrevera nenhuma obra sobre a estrutura social, como Rousseau, ou uma critica como a III Consideração de Nietzsche. Contudo, as críticas contra a moral em Rousseau que encontramos em Aurora não estão distantes do problema estético. As seções 459 e 538 de Aurora associam Rousseau e Schopenhauer, que viveram como “um baixo caprichoso, que não quer corresponder à melodia”, o peso da moral comprometida com a verdade, pois, como afirma O Andarilho e sua Sombra (216), mesmo o “moralismo em sons de Beethoven é a perene louvação de Rousseau”. Esta aproximação entre Rousseau e Schopenhauer é, sem dúvida, tecida em torno do problema moral, mas não se ocuparia da vida deles por terem sido também músicos? Isto não explicaria a esperança inicial no espírito alemão que ligara Schopenhauer e Wagner e, posteriormente, o elogio entusiasta à música francesa de Bizet, contra os alemães? Assim, os ditirambos de Zaratustra e as composições 44
recitativas de Nietzsche, apesar de não pretenderem inovar sonoramente, não estariam pretendendo recuperar os valores na música? Com efeito, O Caso Wagner (§4) consiste na crítica ao Anel do Nibelungo, história de redenção do próprio Wagner diante da sociedade como fonte moral dos males, o que a Ópera retrataria no momento em que Wotan, portador da lança dos contratos, desiste de julgar os gigantes. “Como abolir a velha sociedade? Somente declarando ‘guerra aos contratos’ (à tradição, amoral)”, característica que não se encontra na própria lenda, mas em Wagner. Carmen, em oposição a esta “revolução social” estaria afirmando uma “revolução do desejo”, pois, apesar das diferenças com a novela original, inclui Micaela como elemento de tensão a não ser redimida. O elogio à Carmen confirma a “duplicidade do apolíneo e dionisíaco, da mesma maneira como a procriação depende da dualidade dos sexos” (NIETZSCHE, 2007a, p.27), tensão entre belo e sublime, entre a individuação da vontade dos personagens e melodias e a unidade da harmonia e dissonância como nos Coros gregos. E se é “Afrodite o poder que unifica os opostos”, Nietzsche permanece exigindo da música uma vontade de revolução da própria vontade. A vontade de música é expressão de valor quando é vontade de mais, único modo em que a “civilização é suspensa pela música tal como a lâmpada é pelo dia”. Por isso Nietzsche como filósofo elogia a Ópera, resultante do socratismo – inicialmente a de Wagner e posteriormente a de Bizet – e passa para o ditirambo no Zaratustra, o dançarino, mas como compositor permanece o músico recitativo, 45
resultante do drama grego. Porém, de ponta a ponta, o problema permanece sendo o valor da palavra, como previu Rousseau e tal como realizam a música retórica e coral de Bach e Handel. E se a palavra fundamental é o mito, nasce e deve retornar à música trágica. Somente no mito trágico a desarmonia mantém o prazer estético. 7. Conclusão Nietzsche acompanha Wagner em seus primeiros escritos, em que apresenta sua “estética do mito”. Sabemos que Apolo é deus da música, cortejado pelas Musas, mas também Dioniso, devido aos ditirambos. 775 a. C. foi o ano da inclusão do alfabeto e aparecimento dos poemas homéricos, fatos antecedidos pela invasão dos Dórios em 1130, que levou os Aqueus a migrarem e terem contato com Frígios e Lídios, bem como o surgimento da aulodia (canto acompanhado dos aulos), em 750, como culto a Dioniso. Esta história da música modal nos recorda que o mundo arcaico está marcado pelo canto acompanhado por cordas. Portanto, os gregos chamavam de música a poesia cantada, inicialmente o único modo de poiésis, ordenadas em conceitos quantitativos (longa-breve) e não qualitativos (grave-agudo), segundo a relação entre arsis (subida) e thésis (repouso) aplicado sobre sílabas. Esta maneira de fundar a prosa na poética e em união com a música corresponde à teoria de Rousseau e Lévi-Strauss, mas é compartilhada por Nietzsche em sua estética do mito, embora em unidade com uma crítica aos valores morais. Esta poesia coral adota uma base dórica na forma de tríades, permitindo a fácil 46
participação de todas as camadas sociais, diversificando-se pelas situações na forma de Hino, Pean, Parteneion, Treno, Encomio, Epinício, Prosodion, Himeneu e, finalmente, o Ditirambo. Apesar do mito retratar Apolo como deus da música, Nietzsche definirá sua gênese no culto a Dioniso, por pensá-la como força emocional do sofrimento e da vida, claramente acompanhando a estética de Schopenhauer e Wagner. De modo semelhante, também Lévi-Strauss afirmará que o mito jamais pode ser lido isoladamente, já que sempre faz sentido em uma totalidade, razão pela qual se funde à música. Neste sentido, Nietzsche rompe com Wagner em nome de duas realizações: seus escritos com características cada vez mais musicais e suas composições insistentemente recitativas, reunindo esteticamente a música coral de Bach e a expressividade do romantismo. Portanto, O Caso Wagner é um “problema para músicos” porque Nietzsche escreve como músico e porque esta crítica de arte serve de instrumento para a descrição de uma experiência estética dos valores. Referências NIETZSCHE, F. O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Cia de Bolso, 2007a. ____. Wagner em Bayreuth. Trad. Antônio Carlos Braga e Ciro Mioranza. São Paulo: Escala, 2007b. ____. Ecce Homo. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008.
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Uma concepção de justiça, entre civilização e barbárie Frederico A. Paschoal3 Resumo: O discurso da justiça nem sempre se coaduna com o que é alardeado ao longo da história, mas se encontra subjacente nas práticas cotidianas, uma vez que necessário à tentativa de equilíbrio social e convivência humana harmônica. Nesse passo, o conceito do que seja justo perpassa as fases em que se divide didaticamente os estágios antropológicos. O curto espaço desse estudo não nos permitirá desenvolver uma pesquisa de tal envergadura, que descortine os conceitos de justiça em cada período respectivo. Mas, nessa breve exposição, será possível suscitar a reflexão acerca do momento em que vivemos e do padrão de justiça de que dispomos, a fim de, na transcendência do senso teórico (de)limitador, podermos repensar as práticas que nos cercam, com enchanças ao pensamento crítico. Palavras-chave: Civilização; Barbárie; Justiça. Um dia, ao retornar de uma caçada, um dos cavaleiros do Rei Artur, excitado e eufórico, encontrou uma donzela e a violou. 3
Mestrando em Ciências Sociais - Universidade Federal de
São Paulo – UNIFESP.
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O crime o colocou na encruzilhada do destino: seria condenado, exceto se pudesse encontrar resposta para uma questão que a rainha e suas damas propuseram: “que mais desejam quase todas as mulheres?” Com um prazo de um ano e um dia para resolver, o cavaleiro optou por essa alternativa. E ao cabo do prazo, já desesperançado, topa com uma velha, tão feia quanto possa inventar a imaginação, que lhe propõe contar-lhe a solução, caso ele concordasse em fazer, em seguida, o que ela lhe pedisse. Contra a parede das alternativas, o cavaleiro aceita a segunda. E a velha revela-lhe o segredo: “quase todas as mulheres desejam ser soberanas, governar acima dos maridos e impor o seu modo de amar”. De posse da resposta, o cavaleiro volta à rainha e se salva. Mas a velha bruxa exige que ou ele a despose, feia como é, e ela lhe será uma esposa fiel e obediente, ou ela se transforma em uma linda jovem, porém, sempre infiel e caprichosa. De novo contra um muro de alternativas, desta vez ele decide de uma forma surpreendente: não escolheu, deixou a critério dela. “Como você permite que eu escolha e decida como quiser”, perguntou ela, “não estaria reconhecendo que quem deve mandar sou eu?” Neste momento, a bruxa não só se converte na bela jovem, como lhe é fiel e obediente.
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Esta história é um conto de Chaucer (O conto da mulher de Barth), publicada em meados do Séc. XIV, e é usada para representar o enigma da liberdade, entre a ilusão das alternativas e a recusa de escolher. Introdução Civilização é o contraponto de barbárie. Segundo a proposta de Engels, de enquadrar o desenvolvimento da sociedade ocidental em fases, expõe os conflitos da espécie humana desde os primórdios até a civilização, entrecortados pela barbárie. Sua premissa é a de que, com o refinamento da inteligência, o comportamento instintivo tende a ceder lugar à racionalidade. A partir daí, a cada idade em que se divide a história da humanidade, os humanos tentam se livrar dos comportamentos bárbaros4 para incorporar atitudes civilizatórias.5 Assim foi na Pré-história, na Antiguidade Clássica, na Idade Média, na Idade Moderna e, agora, na Contemporânea. Estar-se-ia demonstrado o constante aperfeiçoamento dialético da civilização humana. Ainda na barbárie é possível identificar traços de civilidade que, aos poucos, forjaram princípios éticos e morais. Em alguns momentos há avanços. Em outros, retrocessos. E, assim,
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Entendidos como tais, aqueles que não levam em consideração o mínimo de respeito e preservação do outro. Reconhecimento do outro como alguém merecedor de dignidade; em uma palavra: alteridade.
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costumes, valores e conhecimentos vão se aperfeiçoando. Os movimentos bárbaros de sobreposição, pela força, de um grupamento humano sobre o outro geraram, em espaços geográficos definidos, reinos e impérios. Depois, para melhor gerir política e administrativamente a superestrutura de normas, segurança, justiça, religião etc. de tais reinos, concebeu-se o Estado. Impérios e reinos deram lugar a repúblicas. O Estado, de totalitário, passou a democrático de direito. Institui-se a cidadania e seu exercício e a supremacia da sociedade civil. Seria ingenuidade, no entanto, acreditar que somente a partir do equilíbrio social se poderia verificar condições favoráveis para organização e evolução. Os conflitos são inerentes ao convívio social.6 Mas, uma noção do que seja justo é necessária para que se possa pensar em um convívio equilibrado em sociedade. Questão de método É preciso, desde logo, deixar claro, já que vamos tratar de uma concepção de justiça – e esse é um termo que comporta múltiplas acepções – que nos deteremos especificamente no que concerne a 6
Os grupos ou tribos exercem pressão quando se vêem necessitados. Se um grupo vivia perto da água e da fonte de alimento – ou seja, tinha mais conforto – outro, que não estivesse em condição semelhante, certamente se questionaria porque não lhe caberia a mesma prerrogativa, vindo, invariavelmente à utilização da força e do embate direto, a fim de exercer seu direito. Esse tipo de conflito, que se dá desde a antiguidade, pode ser comparado com a luta de classes conhecida na atualidade.
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sua aplicação no nível estatal; ou seja, sem descurar de seu valor filosófico, mas tendo em vista sua relevância jurídica – nesse sentido, ligado ao conteúdo do “justo” (equilibrado, ponderado, harmonioso) que é um valor (um elemento, um componente) necessário à tomada de decisão dentro da sociedade política. Portanto, estamos falando de conteúdo material, localizado geográfica e historicamente. E, sendo assim, adotaremos o veio evolucionista, em detrimento da vertente criacionista de cultura, evitando explicações baseadas em obscurantismo, ocultismo, crenças místicas, para adotar unicamente a explanação científica, uma vez que o Estado, no ocidente, é entendido como laico, o que comporta apenas o ponto de vista material. Dentre os primeiros escritos onde tomei contato com os termos “civilização” e “barbárie”, como representações de uma divisão temporal ou histórica, está a obra de Engels.7 É sabido que este não é exatamente um antropólogo, ainda que esse livro tangencie tal disciplina, já que tem como foco propor reflexões a partir de estudo publicado por Lewis Morgan – esse, sim, um antropólogo evolucionista. Logo, nossa porta de entrada para o tema será, naturalmente, pela antropologia. Contudo, a primeira dificuldade que deverá ser vencida é quanto ao enquadramento do conceito de justiça em um estudo antropológico, já que, por ser trabalhado como juízo valorativo de conduta – ou seja, juízo moral ou ético –, não se enquadra nos objetos tipicamente investigados pela antropologia. 7
ENGELS, 1984.
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Desde logo, podemos adiantar que, para a reflexão que ora nos propomos, tal impasse não será empecilho, pois a prospecção filosófica continuará sendo nossa estrela guia nessa jornada. A antropologia nos vem em socorro apenas para nos situar no tempo e espaço. Estágios antropológicos Morgan propõe um modelo dividido em três fases principais: antiga, intermediária e recente. São marcados por invenções. Ficou conhecido como evolucionismo cultural.8 Outro modelo conhecido é o neoevolucionismo, de Leslie Alvin White. Nesse, a partir da mesma divisão trifásica, diferencia-se os estágios pela tecnologia empregada no modo de produção social.9 Pois bem. O critério tecnológico não nos será de grande ajuda, uma vez que a justiça é expressa em relação a valores que culturalmente vigem em meio à sociedade. Logo, não há como descurar, na análise do padrão vigente de justiça, de uma certa oscilação subjetiva, algo de subconsciente coletivo. Para nos mantermos isentos de um ponto de vista meramente intuitivo e sem rigor científico, vamos procurar nos afastar de uma análise psicológica, para nos ater apenas aos fatos objetivos. Escólio histórico dos vetores de justiça A questão simbólica do poder sempre esteve relacionada, na cultura social, como elemento 8 9
ALVES; SANTOS, 2007, pp. 20-21. Idem, p. 22.
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integrante da organização, da estrutura. O símbolo é manifestação cultural com determinado significado material (como estátuas, flâmulas, bandeiras etc) e sensorial (como crenças, sentimentos, gestos etc). A carga valorativa dependerá do emissor e do receptor no ato de transmissão. Também exerce influência o contexto (histórico, geográfico) em que é transmitido. Nos albores da antiguidade, sua ideia era associada às divindades da natureza. Desde os babilônios até o apogeu da civilização grega, no século V a.C., a lei natural imperava.10 Nos tempos de Homero, a ideia de justiça levava em consideração a ordem cósmico-divina, que originava princípios e normas de conduta, um poder que traduzia ou não essas normas, e as pessoas que deveriam seguir esses princípios e normas. A ordem cósmica legitimava o poder, o tornava justo na medida em que os princípios estavam inscritos na natureza das coisas. A estabilidade do poder induzia a crença na justiça dos princípios divínos, que, em tempos de transição, perdia sua legitimidade e deixava de ser o tradutor da divindade e suas normas, levando à sua queda e substituição por novo grupo que, se se estabilizasse, tornar-se-ia, então, o novo tradutor legítimo dessa ordem legítima que estava conforme aos deuses ou à natureza. A história de Héracles e os doze trabalhos é contada como forma de demonstrar a voluntariedade divina. Hera, esposa de Zeus, 10
BARBOSA, 1990, p. 66.
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descobre que este teve um filho – Héracles – de uma união com uma mortal – Acmena. Por imposição de Hera, Aristeu, rei de Micenas, delega a Héracles um conjunto de missões quase suicidas, para saciar sua sede de vingança. Ou seja, a vontade dos deuses era justa, por isso era justo obedecê-la. Um rei justo seria aquele que recebia as revelações divinas (themistes), fazendo delas o fundamento de suas decisões (diké).11 Essa concepção situa-se no séc. VII a.C., na Grécia, e se apresenta como conservadora, legitimadora do poder. Hesíodo, por seu turno, representa um outro viés, dentro do mesmo referencial. Para a fundamentação da justiça, Höffe classifica como modelos de cooperação (Aristóteles), de conflito (contratualistas), de equidade (Rawls) e de troca ou reciprocidade.12 E seus desdobramentos, na atualidade, estariam por conta da justiça social,13 da justiça no pluralismo (traduzida pela tolerância),14 da justiça global15 e da justiça do senso comunitário.16 No entanto, não se descura, entre os autores, que a ideia moderna de justiça está, em grande parte, formulada a partir das ideias de justiça distributiva e justiça reparadora, tal como estas foram formuladas por Aristóteles.
11 12 13 14 15 16
AGUIAR, 1982, p. 30. HÖFFE, 2003, pp. 73-82. Idem, pp. 101-110. Idem, pp. 111-113. Idem, pp. 115-131. Idem, pp. 141-143.
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Problemas práticos: a “luta do povo” nos eventos de junho Nesse breve estudo, não haverá espaço para um desenvolvimento mais aprofundado. Sendo assim, optamos por provocar a reflexão do ouvinte/leitor com casos emblemáticos recentes. Assistimos aos recentes protestos e manifestações que tomaram conta das ruas das cidades do Brasil, a partir do sudeste. Inicialmente, em São Paulo, por causa do aumento na tarifa do transporte público urbano, foi visto um levante de descontentamento e indignação sem precedentes em nossa história. Estes não podem ser confundidos com um movimento, já que não há uma bandeira, uma pauta comum de reivindicações, mas que se identificam apenas no fato do descontentamento geral com os governos. Ficaram conhecidos como “black blocs”. Eles lançam luzes sobre o que refletir em relação a nosso Estado e a maneira como está estruturado constitucionalmente, a ponto de se cogitar a reforma constitucional, com a convocação de uma assembléia constituinte extraordinária (sob grave violação do pacto constituinte), ou por meio de plebiscito (ambas tentativas atabalhoadas de responder às inquietudes sem o remédio amargo das medidas antipáticas, impopulares, mas necessárias). É evidente que não estão todos os grupos de pressão social representados por essa massa. Temos claro que, em sua maioria, são integrantes da nova classe média. Eventualmente, integrantes de classes menos favorecidas ali aparecem. Outros, ainda, marginalizados, ali se encontram apenas 59
para aproveitar a ocasião e praticar pequenos delitos. Aqueles que tentaram erguer bandeiras, legitimamente constituídas por lutas históricas, foram taxados de aproveitadores. Gritos de ordem desencontrados, desinformação de como organizar uma agenda mínima, revelam a ausência de visão de mundo. Discurso sem rumo, inócuo, vazio. Reflexos de má formação política do cidadão. A educação, que lhes foi usurpada, lhes faz falta nesse momento. Ela garante a falta de agregação e a inconsistência de articulação politico-ideológica, enfraquecendo aquilo que, se organizado, poderia vir a ser um movimento capaz de gerar mudanças. Por um lado, as manifestações organizadas/alavancadas pelo Facebook questionavam os gastos (superfaturamento) com as obras vinculadas à Copa do Mundo de 2014, em relação aos recursos destinados a transportes, saúde e educação. Já as manifestações das Centrais Sindicais pedem a redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais e eliminação do fator previdenciário (que, diga-se, são pautas antigas, históricas). Mesmo numa olhada pouco detida, vemos que são pautas que vão em sentidos opostos: uma pedindo melhor distribuição dos recursos arrecadados; a outra, levando à diminuição da arrecadação (ora, elas não se perguntam “quem paga a conta?”). As manifestações de junho foram representadas, basicamente, pela classe médiamédia e a classe média-baixa (classificadas como C e D, por conta do poder aquisitivo), que são aquelas que mais sentiram os impactos da economia nos 60
últimos anos, especialmente no governo Dilma – considerado como arrogante por alguns analistas, por não dialogar com os setores sociais, limitandose à imposição de políticas paternalistas de distribuição de bolsas que não remediarão a miséria no médio e longo prazo, mas faz a alegria ilusória e momentânea da massa sem cultura (relegada, historicamente, a servir apenas como massa de manobra) –, que revela quedas do emprego formal e aumento da inflação, fatores que influem diretamente no poder aquisitivo. Já as Centrais Sindicais, que orquestraram manifestação no começo de julho, são formadas por uma classe de trabalhadores que, apesar de serem da classe média, estão em situação mais cômoda, dado terem emprego formal e reconhecida capacidade de negociação pela força de sua organização. Há quem faça comparações entre nossas manifestações e as recentes manifestações no mundo árabe. Ocorre que, as demandas principais em países como Tunísia e Egito são outras: democracia direta, serviços públicos gratuitos e de qualidade, estado de bem-estar social, luta contra corrupção e corruptores. São agendas muito distintas, contextos sociais completamente outros. Não se faz revolução apenas munidos de descontentamento. Talvez quisessem apenas chamar a atenção para si, como modo de demonstrar sua revolta, já que não havia coesão ideológica ou política, ou uma pauta, ou mesmo uma liderança. Mas nem todos estavam imbuídos do mesmo espírito. Havia vândalos e saqueadores que se aproveitavam do 61
tumulto para obterem vantagens pessoais. E, afinal, se era apenas para chamar a atenção, não haveria razão para que as manifestações durassem até o presente momento (ainda que localizadas especificamente nas capitais de São Paulo e Rio de Janeiro). Ora, se não há uma pauta revolucionária capaz de ir além da mera indignação e propor a transformação necessária, em que bases estão pautados seus pilares de justiça? Outro caso emblemático: o resgate dos beagles, em São Roque-SP Dessa vez, ativistas de direitos dos animais, ajudados por outras pessoas simpáticas à causa (desde os black blocs passando por atrizes e donos de canis) e mobilizadas também por redes sociais, resolveram tomar a iniciativa de invadir propriedade praticular, que fazia experiências devidamente autorizadas com animais, por causa de denúncia de supostos maus tratos. Uma classe média simpática aos bichos – mas também simpática à grande mídia quando esta diz que os black bloc são vândalos – fez o mesmo que os professores cariocas: mudou de opinião em relação aos mascarados. Passou a admití-los como parceiros, e não como “infiltrados”. O ocorrido lembrou um pouco a velha animação dos Estúdios Disney, sobre os dálmatas. Aliás, não podia ser diferente: mascarados lutando junto com loirinhas para salvar beagles! Perfeita combinação para a “sociedade do espetáculo”. A revolução dos beagles teve muitos heróis. Integrou gente que pensava diferente. Deu 62
oportunidade, inclusive, de conversarmos não só a respeito de direitos dos animais, mas também de como não podemos abrir mão de direitos humanos se queremos defender direitos dos animais. Proporcionou à classe média o experimento com a técnica da “ação direta”. Além disso, mobilizou jovens por uma causa nobre, que é a diminuição do sofrimento. Conclusão: o mal-estar da descrença Para além dos detalhes de ambos os casos, que levariam a análises jurídicas, sociológicas ou mesmos psicológicas de suas motivações, o que nos salta aos olhos é que a justiça pelas próprias mãos, pela impaciência e descrédito no sistema, foi a solução adotada. Mas, enfim, qual justiça? Pelo critério cultural, em qual discurso da história deveria estar inserida? Será que podemos, sem sobressaltos, chamar de civilizado o estágio recente? Obviamente, não devemos descuidar de que a ideia de justiça como controle social se aproximaria perigosamente do totalitarismo. Independente de qual bandeira esteja a defender, tentar refrear os ímpetos naturais ao conflito suceptível entre os grupos (ou classes) que convivem socialmente, tende a impor artificialmente uma suposta harmonia, mas, no fundo, sempre haverá resquícios do discurso de dominação. Por isso, confundir justiça com direito nunca permitirá entrever a verdadeira face que estamos a procurar. Não há como dizer que a justiça não seja normativa, uma vez que estabelece padrões de moralidade e ética. Contudo, esta não está na 63
dependência de ser estabelecida pelo Estado, ao contrário do direito. Se o poder concentrado no Estado está a serviço da classe dominante, isso não significa, rigorosamente, que o padrão de justiça – que paira sobre e a partir da sociedade – não possa estar além das articulações da política estatal. Nesse passo, devemos concluir que, apesar do vetor de justiça não ser uma imposição oficial da classe que domine o Estado, o reconhecimento do que, afinal, seja o justo ainda se pauta pelo senso que move os conflitos em sociedade. E, sendo assim, o justo será aquilo que se faça necessário e possível, dentro dos limites da convivência social, em um dado momento histórico. A questão da justiça, até aqui, se mostrou um reflexo determinista das condições contextualizadas em sociedade. Ou seja, em determinada situação, a adoção de um vetor específico seria inescapável. Mas, recordando o conto de Chaucer, onde se insere nossa liberdade de escolha? Seria absurdo querermos escolher sob qual justiça nos pautar? Podemos escolher a justiça sob a qual nos conduzir? Ou esta já estaria determinada pelas circunstâncias, sendo a suposta alternativa apenas uma ilusão? Se a necessidade e a possibilidade são os leitmotiv do justo, e elas decorrem das consequências do conflito, então, devemos concluir que são os conflitos que nos levam às escolhas. Assim, as chances de controlar os vetores de justiça estariam relacionadas com a possibilidade de escolha dos conflitos. Por isso, se se pode antecipar quais são as necessidades prioritárias, pode-se controlar a conflituosidade a que a sociedade possa 64
estar exposta, de modo que o justo sempre possa ser observado, sem a necessidade de suspendê-lo em função de aspectos contingenciais. Referências AGUIAR, Roberto Armando Ramos de. O Que é Justiça: uma abordagem dialética. São Paulo: AlfaOmega; Piracicaba: Unimep, 1982. ALVES, Elizete Lanzoni; SANTOS, Sidney Francisco Reis dos. Iniciação ao Conhecimento da Antropologia Jurídica. Florianópolis: Conceito, 2007. BARBOSA, Júlio César Tadeu. O Que é Justiça. São Paulo: Círculo do Livro, 1990. BOTTOMORE, Thomas Burton (org.). Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado: trabalho relacionado com as investigações de L. H. Morgan. 9ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984. HÖFFE, Otfried. O Que é Justiça? Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. JUNKES, Sérgio Luiz. Justiça e Sociedade: ensaios sobre temas jurídicos contemporâneos. Florianópolis: Insular, 2009. KOZICKI, Katya. Levando a Justiça a Sério: interpretação do direito e responsabilidade judicial. Belo Horizonte: Arraes, 2012. VELASCO, Marina Isabel. O Que é Justiça?: o justo e o injusto na pesquisa filosófica. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2009.
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Discurso contra a barbárie: desafio de crítica permanente ao conceito de educação Gilson Luís Voloski17
Introdução Pretendo refletir sobre o tema do presente Colóquio, “Civilização e barbárie na atualidade”, a partir das contribuições do pensamento de Theodor W. Adorno, especificamente sobre seus desdobramentos no campo educacional, relacionando-as com o tempo presente. No Brasil, expressões como “todos na escola”, “todos pela educação”, “universidade para todos”, entre outras, revelam a importância que adquiriu a educação na sociedade brasileira. De fato, o direito de todos ao acesso e à permanência na escola representa uma reivindicação histórica, que por longo tempo foi privilégio de poucos. De modo geral, as pessoas partem do pressuposto de que a educação institucionalizada não apenas contribui para um futuro mais seguro às suas crianças, como as tornam melhores enquanto seres humanos. Relacionando essa perspectiva com o tema do Colóquio, tal processo de socialização contribuiria para um afastamento das possibilidades da barbárie na medida em que o sistema educacional se universaliza a todos, integrando-os. Justamente esse entendimento linear é criticado por Adorno em sua obra Educação e 17
Professor da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.
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emancipação, pois chama atenção para a dialética entre barbárie e civilização na cultura. Nesse sentido, parto da tese de que a educação não é necessariamente um fator de emancipação, e o que pode evitar o seu regresso ao mito é a construção permanente de um discurso crítico e autocrítico à formação cultural. 1. Dialética do esclarecimento: discurso contra a barbárie Adorno é um dos expoentes da Escola de Frankfurt, exilado nos EUA durante a Segunda Guerra Mundial, período em que escreve com Max Horkheimer a obra Dialética do esclarecimento (1947). Esse título “é, aparentemente, oriundo de uma carta de Adorno a Horkheimer, na qual ele menciona a expressão como sinônima da dialética entre cultura e barbárie.” (DUARTE, 2007, p. 40). Considerando os escombros de uma guerra de proporções inéditas, viabilizada tão somente pelo poder da ciência, os autores perguntam: “Por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie...” (1985, p.11). Afinal, levando em conta o caos do poder bélico, é plausível a pergunta: Estamos nos conduzindo para a civilização ou para a barbárie? Mesmo levando em consideração de que se trata de uma situaçãolimite, extremo que não queremos mais passar, o fato que a barbárie surgiu potencializada no âmago do processo civilizatório. Em Dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer buscam demonstrar que civilização e barbárie são duas faces da mesma razão em 68
disputa na história da cultura. Analisam tal ambiguidade na obra do nascimento da razão ocidental: os poemas épicos atribuídos ao grego Homero. Para os autores, a razão já se encontrava embrionariamente na tentativa do mito classificar, explicar, narrar o surgimento e a ordem do mundo e que, posteriormente, desenvolve-se em saber filosófico e científico. A tese da obra é de que a razão surgiu do mito e para o mesmo pode voltar, caso não exerça a reflexão crítica e a autocrítica permanente entre conceito e tempo presente. Portanto, de modo introdutório, a razão consiste em discurso justificado, enquanto o mito, na aceitação de uma imagem pela crença em uma autoridade. A seguir, apresento duas imagens na tentativa de destacar aspectos da relação mito e razão: a primeira, processo de desenvolvimento do mito à razão; a segunda, regresso da razão ao mito. Embora essa relação seja mais complexa do que é possível desenvolver nestes parágrafos, mesmo assim, apresento em linhas gerais, para introduzir a reflexão ao problema em questão. Considerando que os muros da cidade de Troia eram intransponíveis, uma das imagens mais interessantes do mito narrado por Homero é a que garantiu a vitória aos gregos. Esta é atribuída ao estratagema denominado de Cavalo de Troia. Popularmente, conhecido como presente de grego. As atuais produções cinematográficas o retratam como uma gigantesca obra de arte em forma de cavalo de madeira, dentro do qual se escondiam soldados. O importante a destacar desse episódio, para a reflexão do nosso tema, é que não foi pela espada do invencível herói Aquiles que se adentrou 69
pelos muros da cidade. As forças bélicas permaneceram equilibradas entre os gregos e troianos por mais de uma década. A ruína de Troia ocorreu pelos encantos de uma bela escultura e pelo discurso persuasivo de Sinon - jovem que dramatizava por súplicas ao se apresentar como sacrifício dos gregos aos deuses, por boa viagem de retorno. É possível imaginar que não foi por um ato de ingenuidade, mas do dever da consciência mítica dos troianos, que exigia uma atitude de respeito a uma oferenda aos deuses. Portanto, a obra não devia ser destruída, contudo conduzida em seu lugar apropriado. Desse modo, o que existia de encantador na cultura grega, a arte dedicada exclusivamente ao culto das divindades, foi racionalmente instrumentalizada a serviço do engodo, da dominação, da destruição e da pilhagem, em poucas palavras, da barbárie. No entanto, a vitória também desencadeava as condições para o desenvolvimento da razão autorreflexiva a partir do mito. A conquista deslocava o próspero comércio marítimo da região troiana para as cidades gregas, sobretudo, para Atenas. Por sua vez, a arte se beneficiava ao narrar o mito por inúmeras vezes. Com o passar do tempo, as interpretações expandem em beleza e complexidade, como se observa nas tragédias gregas. Nos heróis trágicos, já se vislumbrava sinais do giro antropológico, principalmente, na conversa de Édipo com a esfinge: é o homem a resposta do enigma. Entre os sofistas, Protágoras concebe o homem como a medida de todas as coisas. E o ateniense Sócrates contribui com o desenvolvimento da atividade dialógica em vista do 70
“nascimento” da razão autorreflexiva: conhece-te a ti mesmo. Portanto, atividade crítica em que a razão, aos poucos, emancipava-se do mito. Na segunda imagem, destaco aspecto do retorno da razão ao mito. No capítulo “Ulisses mito e esclarecimento” da Dialética do esclarecimento, uma das imagens analisada pelos autores é a passagem da embarcação de Ulisses pela região onde habitavam as sereias. Ulisses, como dono da embarcação, busca garantir o privilégio de escutar o canto sedutor. Para isso, determina que o amarrem ao mastro, enquanto os seus marinheirosremadores, depois de selarem seus ouvidos com cera, remam exaustivamente sempre na mesma direção. Quando o amarrado ouve o canto, se contorce a ponto das cordas agredirem seu corpo, demonstrando uma mistura de prazer, dor e sofrimento. Amedrontados, os ensurdecidos remam desesperadamente para além dos limites dos domínios das sereias. Para Adorno e Horkheimer, essa imagem tem algo de familiar com a sociedade contemporânea. Assim, a figura de Ulisses pode ser comparada à classe proprietária, que pode desfrutar dos prazeres, mas não plenamente, pois é reprimida pelas amarras de uma racionalidade administrativa. Por outro lado, a figura dos marinheiros-ensurdecidos se assemelha aos operários fabris, atrofiados em sua sensibilidade pelo trabalho repetitivo. Na condição do “trabalho alienado”, nem o proprietário, nem o operário se reconhecem como autores da própria obra, todavia como objetos de um poder alheio e misterioso. Indícios de uma sociedade racional, que retornou à 71
condição do mito. Não por ter deixado de ser racional, contudo por ter reduzido a razão em instrumento de controle. Além disso, o que está em jogo na passagem das sereias é a autopreservação do indivíduo e da sociedade, mas ainda é verdade que o medo produzido culturalmente esconde algo de ilusório. Nesse aspecto, partindo do pressuposto de que Ulisses era um astuto enganador, também é possível imaginar que tudo não passou de mais uma de suas encenações, pois era o único que estava em condições de escutar, que a ameaça do canto das sereias era engodo. Desse modo, contorcia-se contra as cordas para gerar medo em seus marinheiros a fim de que remassem com maior determinação, talvez, numa região de forte correnteza. O que seria do poder sem o medo dos subalternos como aliado? Nesse sentido, o medo que congela a reflexão retorna como mito no contemporâneo, embora pobre em imagem, como, por exemplo, o discurso de combate ao terrorismo. A racionalidade que visa o controle total: protocolo a ser seguido sem questionamento em troca de promessa de segurança. Adorno dedicou grande parte de sua vida na elaboração de uma teoria crítica contra a barbárie. No entanto, na véspera da comemoração do seu centenário, no dia 11 de setembro, a Humanidade acompanhara pelos meios televisivos uma nova versão do Cavalo de Troia. Para Alexandre Vaz (2010, p.117), “A ironia de que a data comemorativa ao nascimento de Adorno passe ser lembrada, depois do atentado às Torres Gêmeas, como a reinauguração do século XXI, diz algo sobre os 72
impasses do tempo presente e do pensamento sobre ele”. O espetáculo de destruição, apresentado de diferentes ângulos e diversas vezes, potencializou o medo imaginário na mesma proporção da audiência, como uma espécie de reedição do que um dia se chamou de “presente de grego”. O novo cavalo de Troia, agora como cavalo voador, uma espécie de Pégaso, mina por dentro as torres fortificadas em nuvens de fogo, fumaça e poeira. Enquanto o discurso em imagem televisível adentra sutilmente as muralhas troianas dos lares (muros, grades, vigias, câmeras, alarmes, etc. dos reservados condomínios) e potencializa a cultura do medo, o outro da relação não é apenas um estranho, mas uma ameaça imaginária constante. Assim como o mito era anunciado pela autoridade inquestionável, e cabia aos demais aceitá-lo, a espionagem estatal (entre elas, a virtual) tem a “suposta” revelação e a autoridade de controle, colocando sob vigia a liberdade de qualquer pessoa. Aquela figura mítica do ardiloso Ulisses, que até hoje nos faz suspeitar se de fato houve canto de sereia, parece que ainda tem algo a nos dizer na atualidade. Procurei apresentar aspectos, em largos traços, da tese de que a razão surgiu do mito e para o mesmo pode voltar, caso não se exerça a reflexão crítica e autocrítica permanente entre conceito e tempo presente. 2. Desafio de crítica permanente ao conceito de educação Embora se deposite muitas expectativas em relação à universalização da educação 73
institucionalizada, como se fosse apenas positiva, uma postura prudente buscaria antes assegurar as condições formativas apropriadas. Afinal, o que pode proteger a educação da barbárie? Otimismos estiveram presentes na história das ideias pedagógicas, enquanto o progresso do desenvolvimento humano, em geral, não avançou mais do que o ritmo da própria condição social. Inclusive, às vezes, regride. Então, somente a partir de crítica rigorosa apresenta sinais de avanço. Parece ser essa a perspectiva de Adorno (1995, p.119) ao defender como a principal meta da ação pedagógica “que Auschwitz não se repita”, considerando que “ela foi a barbárie contra a qual se dirige toda a educação”. Ela contou com a cega obediência das pessoas à autoridade e, conforme o autor, o “único poder efetivo contra o princípio de Auschwitz seria autonomia, o poder para a reflexão, a autodeterminação, a não-participação.” (1995, p. 24-5). No mesmo texto, ele também menciona a barbárie causada pela “bomba de Hiroshima”. Sabemos que são situações-limites do que jamais se esperava da Humanidade. O fato é que ela só foi possível pela contribuição de eficientes engenheiros, entre outros profissionais, talvez, os mais destacados em suas turmas escolares. Por sua vez, Adorno considera que reformas educacionais isoladas não abarcam o problema da formação social, pois as contradições da racionalidade que predominou culturalmente são bem mais complexas do que propiciar um clima de eficiência didática na escola. Aliás, abusar da severidade por meio da obediência a um formalismo pedagógico pode contribuir para agravar o problema. 74
Na atual reforma educacional brasileira, além de garantir o acesso e a permanência, o desafio é assegurar ensino de qualidade a todos. A problemática, então, encontra-se no entendimento do que significa qualidade e como avaliá-la. Não é raro encontrar escolas que submetem suas propostas pedagógicas aos programas de provas de vestibulares, tendo como referência a colocação no ranking dos cursos mais disputados. Isso é observável no filme Pro dia nascer feliz, de Jardim Silva, documentário sobre as escolas brasileiras. Geralmente, as discussões sobre esse filme se concentram nas dificuldades e escassez pedagógica das regiões periféricas. Sem discordar desse lamentável cenário educacional, chamo a atenção para aquela escola socialmente conceituada do centro mais desenvolvido do país, justamente por se apresentar como modelo de qualidade. Sem dúvida, as condições de estudo são distintas, porém são evidenciadas na fala dos entrevistados e nas imagens das relações estabelecidas como manifestações patológicas. Indícios de uma sociedade que prima pela especialização, que terceiriza a educação ao formalismo pedagógico, que conduz o educando aos limites de uma repressão civilizatória. Essa obsessão educativa guarda em si o segredo da barbárie. Em Educação e emancipação, Adorno (1995, p.119) enfatiza que uma das contribuições mais significativas de Freud parece ser aquela em que “a civilização, por seu turno, origina e fortalece progressivamente o que é anticivilizatório”. Em outro momento, menciona Freud, dizendo: “justamente esses momentos repressivos da cultura 75
produzem e reproduzem a barbárie nas pessoas submetidas a essa cultura.” (ADORNO, 1995, p. 157). E, no ensaio “A filosofia e os professores”, o autor ressalta a dialética do conceito cultura entre emancipação e dominação: “a diferença entre a cultura nos termos em que conserva e supera em si o que corresponde à natureza, e um mecanismo de opressão real que se prolonga no espírito. Sob o seu jugo o natural que foi reprimido retorna só desfigurado e destrutivo.” (ADORNO, 1995, p.74). Em outras palavras, a natureza desproporcionalmente agredida pela racionalização predominante na cultura e, no caso da educação, pela submissão a um formalismo didático, pode retornar, em algum momento, como barbárie. Por outro lado, a cultura também carrega elementos de racionalidade autorreflexiva, que pode desencadear em autonomia. Nesse sentido, quando a educação exerce a atividade de autocrítica, abre possibilidades de emancipação. Eis o empenho de Adorno, na última década de sua vida, em pensar a educação como processo de desbarbarização da cultura. A educação, que abre precedentes para a barbárie, tem a formação atrofiada em seu caráter autorreflexivo, enquanto a ênfase recai no saber instrumental produtivo, a qual Adorno denomina de semiformação. De acordo com Pagni e Silva (2007, p.244), a crítica que o autor empreendeu a “instrumentalização do pensamento e da cultura, em nossa civilização, e suas implicações para a dominação social na sociedade administrada, fornece elementos significativos para pôr em dúvida o conceito moderno de formação cultural e de 76
Educação”. Ele denuncia criticamente a redução de significados desses conceitos basilares da constituição da sociedade moderna, à medida que “encobrem a heteronomia do pensamento e a deterioração da cultura propiciada pela subordinação destes à lógica do sistema, que é a do mercado.” (2007, p.246). Portanto, a formação que visa garantir elementos emancipadores da cultura conta com uma qualidade de educação para além daquela exigida pelo mercado. O conceito abrangente de formação cultural é marcado pela tensão aberta entre as dimensões de autonomia e adaptação social. No fenômeno da semiformação, conforme Maar (1995, p.26), “o lado duplo da cultura, pelo qual ela também é cultura do espírito em sua independência crítica, como momento de resistência, se perde, permanecendo apenas o momento de adequação à dominação da natureza”. O que dificulta ao formando desenvolver a capacidade de refletir sobre o sentido dos próprios atos, pois a condição social se apresenta como determinação externa. E, segundo Adorno (1995, p.145), pelo “processo de adaptação ser tão desmensuradamente forçado, [...as pessoas] precisam impor a adaptação a si mesmo de um modo dolorido, exagerando o realismo em relação a si mesmo”. Assim, a formação que deveria despertar o gosto pela cultura, uma busca amorosa e permanente como construção do próprio ser enquanto humano, em seu lugar, é experimentada uma sobrecarga de atividades formais, obrigatoriedade a ser desempenhada com eficiência, que não sendo realizadora é recepcionada repulsivamente. Diz Adorno (1995, p. 149), ao se 77
referir a semiformação, que não se trata apenas da “ausência de formação, mas da hostilidade frente à mesma, do rancor frente àquilo de que são privadas”, isto é, do autorreconhecimento, de referências que proporcionaria refletir sobre o sentido da própria existência. Denomino de ultrarrealismo o que o autor se refere na frase “exagerando o realismo em relação a si mesmo”. É o comportamento social que não consegue imaginar nada fora da produção e do consumo, conforme determinação do mercado, por isso tende a menosprezar o núcleo da autonomia da cultura e, no caso da educação escolar, colocar em posição secundária as áreas de conhecimento (filosofia, literatura, sociologia, psicologia...), que poderiam contribuir para o desenvolvimento de uma razão autorreflexiva. No contexto do ritmo desesperado de produzir e consumir, a atividade do indivíduo de apropriação subjetiva da cultura, que conduz à autonomia do pensar e do agir responsavelmente, pressuposto formativo à democracia, não pode ser vista pelo ultrarrealista senão como algo desnecessário e um tanto oneroso ao sistema educacional. Considerando que a educação é resultado e processo da cultura, ela carrega consigo a mesma contradição entre formar para a autonomia e para a adaptação social. Nas palavras do autor, A educação seria impotente e ideológica se ignorasse o objetivo de adaptação e não preparasse os homens para se orientarem no mundo. Porém ela seria igualmente questionável se ficasse nisto, produzindo nada além de pessoas bem ajustadas, em 78
consequência do que a situação existente se impõe precisamente no que tem de pior. Nestes termos, desde o início existe no conceito de educação para a consciência e para a racionalidade uma ambiguidade. Talvez não seja possível superá-la no existente, mas certamente não podemos nos desviar dela (ADORNO, 1995, p.143). Como na condição socioeconômica e cultural predomina o momento da adaptação em detrimento da autonomia, pensar a qualidade da educação institucional, principalmente para uma sociedade que se denomina democrática, implica em zelar e prover prioritariamente essas possibilidades formadoras que, geralmente, ficam em segundo plano nas exigências de uma sociedade de mercado. De acordo com Adorno, A importância da educação em relação à realidade muda historicamente. Mas se ocorre o que eu assinalei há pouco – que a realidade se tornou tão poderosa que se impõe desde o início aos homens -, de forma que este processo da adaptação seria realizado hoje de um modo antes automático. [...] teria que neste momento de conformismo onipresente muito mais a tarefa [educação] de fortalecer a resistência do que fortalece a adaptação (Adorno, 1995, p.157). A aposta de Adorno consiste em articular experiência e pensamento, resgatando o valor formativo de duas áreas importantes do conhecimento: a Arte e a Filosofia. De acordo com Pagni e Silva (2007, p. 261),
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à Filosofia, caberia promover a conceituação necessária a elevar a experiência sensível ao pensamento, deixando à vista o que o conceito não esgotaria: o medo, o terror, os sentimentos de beleza, de prazer e as emoções sublimes suscitadas pela relação do indivíduo com o mundo. Esses sentimentos que a linguagem não consegue captar e que a arte suscita. Nessa ocorrência da experiência, o pensamento se defronta com o derradeiro limite e, por seu intermédio, com as possibilidades de criação de outros modos de ser, de sentir e de agir no mundo. A articulação entre Filosofia e Arte se daria pelo reconhecimento dos limites do pensamento diante dessa experiência e pelas possibilidades de experienciá-la, no presente, trazendo à luz aquilo que difere do pensamento e que o faz, constantemente, recomeçar a busca pelo enigma da existência, da vida e da morte. O empenho é recuperar a interrogação recíproca entre conceito e experiência no processo formativo como possibilidade de desbarbarização da cultura. Da Filosofia, o zelo pela qualidade da apropriação dos conceitos, evitando “preconceitos”, como exercício do pensamento, é condição para pensar e justificar racionalmente a própria ação. Da Arte, contribuições para o desenvolvimento da sensibilidade, condição de receptividade do outro e de abertura para o diferente. De fato, por meio de conceitos, é que interpretamos e nos orientamos no mundo. Sem eles, retornaríamos ao caos da diversidade e à ação 80
puramente imediata. Contudo, desde que surgiu, o conceito carrega em si a contradição, pois pode aprisionar ou libertar. E nas palavras de Adorno e Horkheimer (1985, p. 29), “o conceito, que se costuma definir como a unidade característica do que está nele subsumido, já era desde o início o produto do pensamento dialético”. No entanto, a dialética se tornou impotente quando se passou a projetar o conceito como uma rede sobre a natureza, visando dominar o medo do desconhecido. “Nada mais pode ficar de fora, porque a simples ideia do ‘fora’ é a verdadeira fonte de angústia”. Assim, a razão subjetiva pressupõe que a unidade coincide de forma idêntica ao objeto, mas “destituindo do conhecimento tudo aquilo que lhe é estranho, que não pode ser calculado e que não se encaixa no esquema.” (PAGNI, SILVA, 2007, p. 247). Sem dúvida, é comportamento violento, talvez a raiz da barbárie, impor por via de mão única o ajustamento da natureza aos limites do conceito. Ao contrário, o que a Arte nos ensina é que a vida é bem mais ampla do que o conceito consegue abarcar. Em outras palavras, o conceito precisa de crítica constante para ampliar seus limites. E, desse modo, promover plenamente a formação humana. E, entre os conceitos, no contexto atual, o da educação deve ter atenção especial devido sua relevância social. Considerações finais Levando em conta o contexto brasileiro de universalização do sistema educacional, relacionando com o tema do Colóquio Civilização, questionei sobre a qualidade em educação. 81
Desenvolvi como eixo de reflexão a ideia de que a educação não é necessariamente um fator de emancipação, e o que pode evitar o seu regresso é a construção permanente de um discurso crítico e autocrítico à formação cultural. As duas imagens míticas analisadas, raiz da nossa cultura, apresentam indícios de uma dialética entre civilização e barbárie. O discurso contra a barbárie consiste; portanto, na atividade crítica de desbarbarização da própria cultura. A educação tem grande contribuição nesse esforço de emancipação. No entanto, como produto e processo da cultura, seu conceito também carrega a mesma contradição. De modo geral, ela apenas é concebida em seu aspecto positivo; mas, quando reduz a formação à instrumentalidade produtiva, abre precedentes à frieza racional. Como na condição social predomina a dimensão adaptativa, a ênfase deve ser colocada nos aspectos da resistência por meio da autocrítica permanente, pressuposto da condição de autonomia. A expressão “todos na escola” indica a relevância da educação institucionalizada em nossa sociedade. Contudo, ela também carrega em si o risco da integração restrita à exigência do mercado. É a crítica permanente ao conceito de educação o que pode contribuir para evitar o ajustamento das massas ao conceito. Ao contrário, o discurso crítico almeja a ampliação dos limites do conceito para avançar no desenvolvimento da formação humana em plenitude. Referências 82
ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 1995. ADORNO, T; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. DUARTE, R. Teoria crítica da indústria cultural. Belo Horizonte: UFMG, 2003. JARDIM, João. Pro dia nascer feliz. 88 min, (2007), Tambeline Filmes. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=g5W7mfOvqm U>. Acesso em: outubro de 2012. MAAR, W. L. À guisa de introdução: Adorno e a experiência formativa. In: ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 1995. PAGNI, P.A; SILVA, D. J. A crítica da cultura e os desafios da educação após Auschwitz: uma leitura a partir da teoria crítica da Escola de Frankfurt. In: PAGNI, P.A; SILVA, D. J. (org.). Introdução à Filosofia da Educação: temas contemporâneos e história. São Paulo: Avercamp, 2007. PUCCI, B.; RAMOS-de-OLIVEIRA, N.; ZUIN, A.A.S. Adorno: o poder educativo do pensamento crítico. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. VAZ, Alexandre Fernandez. Sobre os esforços da Aufklärung: educação e política depois de Auschwitz. In: PUCCI; ZUIN; LASTÓRIA. Teoria crítica e inconformismo: novas perspectivas de pesquisa. Campinas, SP: Autores Associados, 2010. VOLOSKI, G. L. Dos lugares da Filosofia da Educação: reforma educacional, praticismo, 83
formação. 2013. 163 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2013.
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Segurança, Estado, Liberdade Guilherme Sauerbronn de Barros18 Lá fora faz um tempo confortável A vigilância cuida do normal Os automóveis ouvem a notícia Os homens a publicam no jornal (Zé Ramalho, Admirável Gado Novo) Prólogo O governo americano, através de seu procurador-geral, Eric Holder, “considera legítimo, em situações de emergência, empregar drones para assassinar cidadãos norte-americanos em seu próprio território sem o ‘devido processo legal’: ou seja, expandir para o ‘centro’ [do cenário político internacional] a prática comum nas ‘periferias’ (Afeganistão, Iêmen, Iraque...)” (Cidades Rebeldes, São Paulo: Boitempo/Carta Maior, 2013). Essa notícia, desconcertante e apocalíptica fez-me perceber que vivemos um tempo anunciado em 1997 pelo diretor de cinema Win Wenders no filme “O Fim da Violência”19. Trata-se de um “metafilme”, que analisa, entre outras coisas, a relação do cinema com a violência. Nos anos 90, além dos tradicionais filmes de ação à la Rambo, Conan e Cia. que tanto sucesso fizeram na década anterior, surge um fenômeno novo: o filme de 18
Doutor em Musicologia e professor do Departamento de Música do Centro de Artes da UDESC. 19 Win Wenders: 'The End of Violence' (1997), com Gabriel Byrne, Traci Lind, Bill Pullman, Loren Dean, and Andie MacDowell.
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violência Cult, cujo representante maior é Quentin Tarantino – e cujo público é, virtualmente, o mesmo dos filmes de Wenders. O diretor alemão, por sua vez, apresenta um filme em que a violência não é o atrativo principal, mas seu principal assunto, possivelmente em resposta a essa escalada da violência cada vez mais explícita nas telas de cinema. O Filme Por detrás das câmeras, a violência ou a barbárie se torna espetáculo; quanto maior o realismo, maior o frisson do espectador. O distanciamento simbólico, a imagem editada, os efeitos especiais dão ao público a ilusão de alheamento e segurança. No filme, porém, Wenders produz uma dramática inversão de papéis para aproximar e misturar os diferentes níveis em que a violência ocorre. As personagens têm seus destinos cruzados a partir de uma trama que envolve um especialista em computação (Gabriel Byrne) que trabalha num projeto secreto do governo, do qual ele próprio conhece apenas parte dos objetivos; um diretor de filmes de ação de Hollywood (Bill Pullman); sua esposa rica e infeliz (Andie Macdowell); um jardineiro mexicano e sua família. O projeto secreto consiste, basicamente, na criação de uma rede de câmeras de segurança de alta precisão, espalhadas por toda a cidade de Los Angeles para monitorar situações de violência, concreta ou em potencial – exatamente como as que existem hoje em praticamente todas as metrópoles do mundo. O ponto crucial, que o próprio 86
especialista em computação desconhecia quando começou a trabalhar no projeto, é que essas câmeras seriam equipadas com fuzis de alta precisão, capazes de eliminar com um tiro certeiro o suposto agente da violência (volto a frisar, violência efetiva ou potencial. No segundo caso, a identificação do agente violento depende de uma interpretação por parte dos agentes da lei). Muito semelhante à “guerra cirúrgica” dos Estados Unidos no Afeganistão, retratada por Michael Moore em “Farenheit 11/09”, ou à ação da polícia do Rio de Janeiro no helicóptero equipado com câmeras noturnas, perseguindo e matando o traficante Matemático pelos becos e vielas da favela da Coréia, em maio de 2012 – cujas imagens impressionantes somente foram liberadas pela polícia e exibidas pelo Fantástico em 2013. Essa barbárie “asséptica” parece aliviar a consciência de quem a defende ou a aplica, pois, longe de sujar as mãos de sangue, faz da vida um videogame. Na seqüência do filme, o especialista em computação, ao tomar conhecimento dos objetivos do projeto, sente-se moralmente obrigado a fazer a levar essa informação a público, a reagir contra o monstro que ele próprio ajudou a criar – como fez recentemente Edward Snowden em relação à espionagem mundial pela NSA (National Security Agency) e a CIA (Central Intelligence Agency). Conforme adiantamos, no filme de Wenders discute-se ainda a presença da violência nos filmes de ação, que fazem dela seu argumento principal. O diretor de sucesso, (Bill Pullman), vê-se envolvido numa conspiração a partir do momento em que recebe um email em sua caixa postal, no qual estão 87
os planos secretos do governo ligados ao projeto do “Fim da Violência”. Ele passa então a ser perseguido e é obrigado a assumir uma falsa identidade. Acostumado a lidar com a violência apenas como ficção, em truques e efeitos especiais nos filmes que dirigia, passa a senti-la na própria pele. Por ironia do destino, a personagem – um civilizado, rico, branco e famoso cidadão americano – encontra acolhida justamente em uma família de imigrantes mexicanos – os “bárbaros”, anônimos e pobres que vivem à margem da sociedade estadunidense. Esse mergulho na barbárie, não mediado, não midiatizado, é o ponto focal do filme, que aborda ainda outros temas, tais como o canibalismo da indústria cinematográfica – representado pelos agentes e produtores que passam a assediar a esposa do diretor desaparecido (Andie Macdowell), a relação entre violência e erotismo etc. A realidade retratada por Wenders, que ainda soava algo ficcional no final do século XX, hoje encontra-se consolidada. Somos permanentemente monitorados por câmeras de segurança, celulares, drones e, principalmente, na web. Mas seria esse o papel do Estado, controlar os cidadãos em todos seus movimentos a fim de garantir a ordem? A herança de Wenders “Eh, Oô, vida de gado, Povo Marcado, ê, Povo feliz”
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Não é por acaso que “O Fim da Violência” é obra de um diretor alemão. Sua visão crítica está respaldada pela longa tradição idealista e humanista dos séculos XVIII e XIX, assim como pelos excessos e o colapso dos ideais nas guerras do século XX. Uma obra especialmente significativa para a discussão que trazemos é Os Limites da Ação do Estado, uma reflexão sobre o papel do governo em relação à sociedade civil, escrita em 1792 pelo jovem aristocrata prussiano Wilhelm Von Humboldt, então com 24 anos. Humboldt não foi apenas um teórico. Foi um homem de ação, diplomata, ministro, fundador da Universidade de Berlim. Ciente do radicalismo das posições que defendia em seu ensaio e temendo problemas com a censura prussiana, jamais o publicou em vida. Segundo Humboldt, o Estado deveria imiscuir-se o mínimo possível na vida dos cidadãos, servindo à sociedade e não sujeitando-a a seus interesses. Seu propósito seria o de meramente garantir as condições para “o desenvolvimento mais pleno, mais rico e mais harmônico das potencialidades do indivíduo, da comunidade ou da raça humana” (Humboldt, 2004, p.75). Esse desenvolvimento, concebido no espírito da Bildung goethiana, dependeria, segundo o autor, de uma “variedade de situações”, de estímulos e de relações entre indivíduos, que contrasta fortemente com a imagem de um Estado forte e regulador, provedor de bens, trabalho, segurança, mas também punitivo e restritivo. “O que Humboldt entende por nação corresponde ao que denominamos sociedade civil. 89
Com efeito, ele distingue a ‘constituição estatal’ da ‘comunidade nacional’, pois a primeira coloca os cidadãos numa relação específica entre si a partir de leis, costumes e do próprio poder do Estado, enquanto a segunda se caracteriza por um outro tipo de laço entre os homens, baseado na livre escolha e na cooperação voluntária. Mais precisamente, a constituição estatal deveria estar subordinada à nação, ou seja, o Estado à sociedade civil, pois o desenvolvimento dessa última é a verdadeira finalidade das relações humanas, enquanto aquele nada mais é do que um meio para a realização dos indivíduos. Ou, ainda, a política deveria ser um mero instrumento de realização da sociedade, e não algo que a esta se sobreponha.” (ibid, nota, p.29) Ao questionar-se sobre as áreas em que o Estado deveria atuar, admitindo como finalidade última a garantia da liberdade dos cidadãos, Humboldt conclui que a interferência do Estado deveria limitar-se à segurança, sendo todas as demais instituições estatais nocivas para o desenvolvimento do homem como ser social. “Tem sido de tempos em tempos questionado pelos teóricos de direito estatal se o Estado deveria fornecer apenas segurança ou também o bem-estar físico e moral da nação. A preocupação com a liberdade da vida privada tem conduzido, em geral, àquela primeira proposição, enquanto a idéia natural de que o Estado possa dar algo mais além de apenas mera segurança e que a limitação injuriosa da liberdade, ainda que possível, não constitui uma consequência essencial de tal política é defendida pela segunda. E tal visão tem sem 90
dúvida prevalecido, não apenas na teoria política mas igualmente na prática.” (ibid, p.140) Partindo dessa reflexão, ele chega a uma conclusão radical: “qualquer interferência do Estado em assuntos particulares – em que não ocorra qualquer violência aos direitos individuais – deveria ser absolutamente condenada.” (ibid, p.153) Para Humboldt, a noção de que o Estado deva promover a felicidade dos cidadãos é um grande equívoco, pois é na liberdade e na diversidade coletiva que essa felicidade se consuma. A interferência do Estado através de instituições reguladoras e promotoras do “bem estar” social é condenada por Humboldt na medida em que tais instituições estatais tendem a enfraquecer a vitalidade de uma nação” (ibid, p.157) e sua atividade “invariavelmente produz uniformidade nacional e uma maneira contida e artificial de atuação. (...) A própria variedade que emerge da união de inúmeros indivíduos é o bem maior que a sociedade pode oferecer, e essa variedade encontra-se indubitavelmente perdida em proporção ao grau de interferência do Estado (ibid, p.156). Humboldt idealiza uma sociedade que, diante de problemas, necessidades, infortúnios, desastres, se organiza e mobiliza suas forças individuais em uma ação conjunta, espontânea, legítima. A ingerência excessiva do Estado na vida dos cidadãos, ao contrário, torna os homens passivos, pouco criativos e moralmente frágeis. A infinita variedade de modos de existência individuais, em tal Estado, é substituída pela uniformidade e pela padronização dos hábitos, costumes e crenças. 91
Em outras palavras, “A solicitude do Estado para com o positivo bem-estar de seus cidadãos (...) Impede o desenvolvimento da Individualidade.” (ibid, p.170) A análise de Humboldt, que poderia soar exageradamente utópica e historicamente ultrapassada, é, ao contrário, surpreendentemente atual em diversos pontos. Por exemplo, na forma como o Estado percebe os cidadãos e como são pautadas as decisões no campo da política e da economia: “No tipo de política que estamos analisando, os homens são relegados em favor das coisas, e a força criativa pelos resultados.” (ibid, p.176) A fim de acentuar o contraste com essa realidade sombria, Humboldt apresenta a imagem (idealizada) de uma sociedade em que imperasse o equilíbrio e a harmonia, de “um povo desfrutando de uma liberdade desimpedida e absoluta da mais rica diversidade das relações individuais e externas; (...) uma situação na qual a energia haveria de manter ritmo com o requinte e a riqueza de caráter”. (ibid, p.178) Nesse caso, o Estado estaria praticamente ausente, cuidando apenas da segurança dos cidadãos e, dessa forma, garantindolhes a liberdade, cujos frutos seriam a riqueza, a diversidade cultural, social, artística etc. Convencido da inconveniência de uma ação extensa por parte do Estado sobre a vida dos cidadãos, Humboldt retoma o problema da segurança, que ele já havia definido como sendo a única esfera na qual o Estado teria legitimidade em suas ações. A violência pode surgir mesmo no seio de uma sociedade harmoniosa, pois faz parte da índole humana um certo grau de egoísmo e de 92
disposição para o conflito. “Contra-atacar o mal que surge do desejo que o homem tem de transgredir seus próprios limites, e a discórdia produzida por tal apropriação indevida dos direitos dos outros, constitui o objeto principal da ação do Estado.” (ibid, p.187) A partir da consideração de que “sem segurança não há qualquer liberdade” (ibid, p.188), Humboldt passa a observar os modos segundo os quais tal controle deveria ser implementado, até o ponto em que trata das medidas adotadas pelo Estado a fim de coibir crimes antes de que efetivamente ocorram, ou seja, de medidas voltadas para sua prevenção. Sua posição é clara: a prevenção de ações que possam conduzir ao crime produz inevitavelmente uma diminuição da liberdade, cujos efeitos são mais amplos e nocivos do que os benefícios que se possa atribuir a tal medida. Sua percepção sobre a tendência da sociedade em evoluir rumo a uma ampliação das liberdades civis demonstra, no entanto, excessivo otimismo de sua parte: Tem sido comum, ultimamente, insistir na habilidade e adequabilidade de prevenir ações ilegais, assim como em lançar mão da ajuda de meios morais para tal. No entanto, não dissimularei que, ao ouvir tais exortações, fico feliz em pensar que esses cerceamentos da liberdade tornam-se cada vez mais raros entre nós e cada vez menos
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possíveis nas modernas constituições. (ibid, p.203)20. É certamente melhor evitar que um crime seja cometido do que punir quem o cometeu, e a forma mais objetiva e eficaz de prevenir ações ilegais é através da coleta de provas. Mas nem sempre as provas são cabais, e para serem identificadas como tal dependem de uma interpretação por parte de quem investiga. Ou seja, o próprio conceito de “prova” é, nesse contexto, uma construção; e portanto, ainda que rigorosamente lógica, passível de erro. A preocupação de Humbolt se traduz na sentença a seguir: Numa investigação sobre crimes cometidos, o Estado pode de fato lançar mão de meios compatíveis com a finalidade, mas nenhum daqueles que tratem o cidadão que é apenas suspeito como se já fosse um criminoso, nem tampouco qualquer outro que possa violar os direitos do homem e do cidadão (que o Estado precisa respeitar até mesmo sendo do criminoso), ou que tornaria o Estado culpado de uma ação imoral (ibid, p.324). Conseqüentemente, considerando as vantagens e desvantagens de tal política preventiva, Tudo que o Estado pode fazer, sem frustrar seus próprios objetivos e sem se apoderar da O que diria Humboldt diante da política externa norteamericana, de todos os excessos perpetrados em nome da segurança nacional, da sofisticação tecnológica a serviço da espionagem, enfim, de todos os temas que tratamos na primeira parte deste artigo? Com certeza a concepção de liberdade na atualidade pouco tem a ver com aquela à qual ele se referia. 20
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liberdade dos cidadãos, deve estar restrito ao procedimento anterior, isto é, a mais estrita vigilância de cada transgressão da lei, seja aquela já cometida ou apenas planejada. Mas, como isso não pode ser adequadamente chamado de prevenção às causas do crime, acredito poder com maior segurança afirmar que a prevenção de ações criminais encontrase inteiramente fora da esfera de atribuições do Estado (ibid, p.320). Ao deixar de lado a preocupação com atos criminosos em potencial, o Estado passa a concentrar suas energias na proteção dos cidadãos e na imputação de penas aos condenados, pois “enquanto o cidadão obedecer às leis e mantiver a si mesmo e aos seus no conforto sem fazer qualquer coisa calculada para prejudicar os interesses do Estado, este último não se preocupará com a maneira particular pela qual ele conduza sua existência” (ibid, p.207) Talvez uma tal sociedade apresente um certo grau de desordem; especialmente se comparada com um Estado autoritário no qual a coletividade seja conduzida dentro de limites estritos pela ação controladora estatal. No entanto, para Humboldt, Um Estado no qual os cidadãos se sentissem compelidos ou induzidos por tais meios a obedecer até mesmo a melhor das leis poderia vir a ser tranqüilo, pacífico e próspero, mas a mim me pareceria sempre ser apenas uma multidão de escravos nutridos e não uma nação de homens livres e independentes (ibid, p.254).
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Privar os cidadãos da dignidade de homens livres é, sob sua ótica, o pior dos males e todos os benefícios da prosperidade econômica são eclipsados por essa perda. Ao tirar dos cidadãos a responsabilidade das escolhas individuais e de suas conseqüências, o Estado opera definitivamente a inversão de papéis assinalada anteriormente, deixando de servir a sociedade e passando a sujeita-la a seus interesses. Em lugar de delegar ao Estado o papel de tutor e censor, Humboldt aposta na consciência dos cidadãos de que lhes é impossível infringir os direitos dos outros sem que venham a sofrer uma diminuição equivalente de seus próprios direitos (...). Assim, em lugar de todos os meios artificiais e complicados concebidos para evitar o crime, eu proporia apenas leis boas e maduras, penas adaptadas, em extensão absoluta, às circunstâncias locais e ao grau relativo de imoralidade do crime; proporia uma busca de maneira tão minuciosa quanto possível às efetivas transgressões da lei; por fim, a certeza da pena determinada pelo juiz, sem qualquer possibilidade de abrandamento da severidade (ibid, p.321). Retornando aos argumentos iniciais, de que a liberdade e a diversidade são a via para a mais harmoniosa formação do indivíduo e da sociedade, Humboldt relaciona os modelos contrastantes de Estado – liberal e opressor – ao tipo e à intensidade da energia que eles proporcionam e que neles circula.
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A liberdade eleva a energia e, como conseqüência natural, promove todo tipo de liberalidade. A coerção cerceia a energia e engendra todos os desejos egoístas e todos os artifícios mesquinhos da fraqueza. A coerção pode prevenir muitas transgressões. Não obstante, ela rouba mesmo das ações que são legais uma parte de sua beleza. A liberdade pode conduzir a muitas transgressões, mas ela empresta até mesmo ao vício uma forma menos ignóbil (ibid, p.255, 256). Conclusão Tanto no filme de Wenders como no ensaio de Humboldt, os argumentos giram em torno da noção de limite – limite estatal, limite social, limite entre ficção e realidade, entre utopia e política. Valores morais, sociais, estéticos outrora bem definidos hoje resistem à sua fixação. A tecnologia transformou profundamente nossa relação com os limites espaço-temporais, e as promessas de onipresença e onipotência, proporcionadas por tablets e smartphones , custam caro: seu preço é uma grande parcela de liberdade e privacidade da qual os indivíduos abrem mão, geralmente sem se dar conta. No filme de Wenders a evolução tecnológica das ferramentas de controle da sociedade propicia a substituição do assassino comum pelo assassino sem rosto – o próprio Estado. E o equilíbrio se inverte: em Humboldt, o estado era limitado e o indivíduo livre; em Wenders, o Estado é onipotente e o indivíduo apenas um número, um corpo
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animado, cuja vida pode ser tirada a qualquer momento, sem julgamento ou apelação. Referências HUMBOLDT, Wilhelm Von. Os Limites da Ação do Estado. Rio de Janeiro: Topbooks Editora e Distribuidora de Livros Ltda, 2004 MARICATO, Ermínia ... [et al] Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo/Carta Maior, 2013
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Sobre as noções de ‘civilizado’ e ‘bárbaro’ no contexto ficcional de Tito Andrônico: experiências do Projeto de Extensão ‘Oficina de Leitura e Interpretação de Textos’ da UDESC José Claudio Matos – doutortodd@gmail.com21 Franciéli Ordovás - fran.or@hotmail.com22 Kariane Regina Laurindo karianeregina@hotmail.com23 Kayma Kanoon da Silva kanoonkaymas@hotmail.com24 Keitty Rodrigues Vieira keitty_rodriguesvieira@hotmail.com25 Resumo Apresenta os resultados do projeto Oficina de Leitura-2013 da UDESC, a partir da interpretação das noções de ‘civilizado’ e ‘bárbaro’ presentes na tragédia Tito Andrônico de Shakespeare. Por meio da metodologia da leitura reflexiva e dialogada, Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP. Acadêmica do curso de Biblioteconomia – Gestão da Informação da Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC. 23 Acadêmica do curso de Biblioteconomia – Gestão da Informação da Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC. 24 Acadêmica do curso de Biblioteconomia – Gestão da Informação da Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC. 25 Acadêmica do curso de Biblioteconomia – Gestão da Informação da Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC. 21 22
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interpreta a obra de Shakespeare e conduz uma discussão acerca de diferentes concepções de civilização e de barbárie, formadas a partir do exame das ações dos personagens e do contexto da peça. Indica a possibilidade de compreensão e utilização do texto escrito por meio da leitura em grupo, tal como realizada pelo projeto Oficina de Leitura. Palavras-Chave: Oficina de leitura, bárbaro, civilizado, Shakespeare. Introdução Este trabalho procura apresentar os resultados obtidos por um projeto de extensão conduzido no ano de 2013 na Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. Este projeto, intitulado “Oficina de Leitura e Interpretação de Textos” funciona desde 2007, dirigido a estudantes, professores da educação básica e membros da sociedade em geral. A Oficina de Leitura é uma atividade de leitura em grupo, de textos ficcionais e teóricos. Seu método pode ser descrito com ‘leitura reflexiva e dialogada’, segundo o qual cada trecho do texto é lido e discutido em tempo real, e cada participante é chamado a apresentar e discutir sua interpretação com os demais. A leitura aqui apresentada é chamada reflexiva por aproximação com a noção de ‘pensamento reflexivo’, desenvolvida pelo filósofo e educador John Dewey em sua obra. Assim, a leitura é reflexiva por que procura organizar as informações obtidas a partir do contato com o texto, de modo a atingir uma 100
conclusão, uma compreensão resultante de um processo investigativo do leitor sobre o texto. Esta leitura é, ainda, chamada dialogada porque se realiza em conjunto com outros leitores, em uma ou em várias sessões coletivas. Assim, a reflexão sobre o texto vai sendo produzida num percurso de comunicação e de diálogo entre os leitores participantes (Matos, 2011, p. viii). Este método foi empregado para a leitura da Lastimável Tragédia de Tito Andrônico, de Shakespeare. Esta oficina teve lugar no segundo semestre de 2013, na Biblioteca Universitária da Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC, com a carga horária total de 20 horas. Seus participantes constituíram-se predominantemente de acadêmicos de graduação da própria Universidade, entre os quais estão os autores do presente trabalho. Os resultados desta atividade são aqui apresentados. O foco principal é a discussão em torno de dois conceitos: Civilizado e Bárbaro. Estas denominações ocorrem diversas vezes ao longo do texto de Shakespeare. Atribuir a elas um sentido é uma condição necessária para a compreensão da obra e sua conseqüente apropriação por parte do leitor. A questão aqui proposta é, então: Quais concepções de ‘civilizado’ e de ‘bárbaro’ podem ser formuladas a partir da leitura e interpretação da Lastimável Tragédia de Tito Andrônico? A fim de tomar a questão em consideração e argumentar a respeito de algumas respostas possíveis a ela, os participantes da oficina de 101
leitura adotam as seguintes estratégias interpretativas: i) O texto é considerado como um artefato, e o leitor é o seu usuário. A interpretação, baseada em razões buscadas na própria estrutura do texto não tenta, por causa disso, imitar, ou reproduzir a intenção original do seu autor. Ao invés disso o leitor pode tentar sustentar ou defender determinada leitura, se a favor dela for capaz de oferecer justificativas e razões plausíveis. ii) Nesta leitura vigora o que Umberto Eco chamou de “acordo ficional”, ou “suspensão da descrença” (Eco, 1994, p. 81). Em outras palavras, embora o leitor saiba que se trata de ficção, leva a sério a história que é narrada, a ponto de discuti-la como uma história coerente, e em certa medida, plausível, e não apenas como um conjunto de afirmações que sabe serem falsas. O leitor aceita, por assim dizer, participar da história que é contada pelo texto, e exercer a reflexão segundo as regras e situações propostas no universo ficcional da história. Segundo Matos, Yano & Rhor: O texto, supõe-se, deve ser considerado suficiente para ocasionar sua compreensão e permitir que o leitor o analise, o explique a seus interlocutores, e pense a partir dele outras questões, temas e problemas que o interessem (Matos, Yano e Rohr, 2008, p. 7). O que é considerado em primeiro lugar é o próprio texto, como um segmento definido de discurso, que segue uma ordem narrativa e lógica. Assim, circunstâncias da biografia do autor, da época de
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produção, e de demais fontes exteriores ao texto são vistas em segundo plano. No ensaio “Titus Andronicus: Uma obra violenta, um texto controverso” (2009), que acompanha a edição brasileira da peça, Beatriz Viégas-Faria, afirma que a peça é considerada a de maior lucro na companhia de Shakespeare, encenada por volta de 1594 e desconhecida da grande maioria dos leitores. A autora lembra ainda de que a tragédia “também é um texto sobre a violência inerente à condição humana – em todos os tempos” (Viégas-Faria, 2009, p. 17). Portanto, como é característica freqüente nos clássicos, a relevância de sua temática transcende os limites do contexto original de sua criação. Contextualização do problema Na trama de Shakespeare, Tito Andrônico, general da Roma Antiga retorna da guerra contra os godos. No entanto, sua recusa em se tornar imperador e as sucessivas mortes em decorrência da disputa pelo trono desencadeiam uma onda de vingança. Tamora, rainha dos godos, feita prisioneira por Tito, casa-se com o novo imperador Saturnino, tendo a oportunidade perfeita para se vingar de Tito. A história é cercada de decapitações e mutilações, além de um estupro e uma cena de canibalismo. A obra “Tito Andrônico” é, então, marcada por cenas (ou momentos) de carnificina. Podemos separá-las em três grupos de situações, que são interdependentes, e ligadas pela semelhança quanto à forma como seu autor as descreve. São
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também ligadas pela relação de causa e efeito no argumento da peça. São elas: i) Primeira situação: Quando Tito retorna da guerra contra os godos, para saciar o espírito de vingança pelos filhos mortos, e para um ritual de oferenda aos espíritos dos filhos perdidos em guerra ele manda que o filho mais velho de Tamora, Alarbo, seja sacrificado. A rainha dos godos implora pela vida de seu filho, mas não obtém resultado satisfatório. Em seguida Tito transfere para Saturnino o titulo de imperador que lhe foi confiado pelos anos de dedicação a Roma. Com a nomeação, Saturnino escolhe Lavínia para se tornar Imperatriz de Roma, porém a mesma foge com Bassiano irmão de Saturnino que era o seu prometido, ajudada pelo seu Irmão Múcio. Na discussão que se segue, Múcio é impiedosamente assassinado por Tito, seu próprio pai. ii) Segunda situação: Com a recusa de Lavínia em se casar com Saturnino, este decide casar-se com Tamora. A rainha dos bárbaros, então, passa a orquestrar sua vingança contra Tito. Com ajuda de Arão, seu amante, a nova Imperatriz de Roma auxilia os seus dois filhos - Quiron e Demétrio - a matar Bassiano e estuprar Lavínia. Além disso, Aarão faz com que os filhos de Tito, Quinto e Márcio fossem considerados os responsáveis pelo assassinato do irmão do Imperador. iii) Terceira situação: Julgados pela morte de Bassiano os filhos de Tito são degolados e suas cabeças entregues ao pai, que decepou a própria mão para evitar a morte dos 104
filhos e viu seu filho Lúcio ser banido de Roma. Enlouquecido com os infortúnios que aconteceram com sua família, Tito decide vingar se da rainha dos godos e de seu amante. Tito inicia, então, uma onda de crimes que torna a obra um sinônimo de carnificina. Motivado pela vingança, ele primeiro mata os filhos de Tamora e os serve em um jantar para que a mãe coma da sua carne. Seus filhos que foram reduzidos a um pastelão preparado por Tito. Este, compadecido por um sentimento de piedade e vergonha, mata Lavínia, sua filha, para que a mesma saia da triste situação em que se encontrava. Em seguida, mata Tamora e posteriormente é morto por Saturnino, que tem sua vida tirada por Lúcio recém chegado do exílio, trazendo Arão como prisioneiro. Aarão é julgado e condenado a ficar enterrado até o pescoço para morrer de fome. A necessidade da civilização em exterminar a barbárie Diversas concepções de ‘civilizado’ e ‘bárbaro’ podem ser inferidas da leitura da história. A relação entre elas e as justificativas que se pode ajuntar, a partir do texto, indicam ao leitor em uma primeira aproximação, a existência de um conceito popular, ou comum, de civilizado e de bárbaro. - Civilizado: aquele que está correto perante a sociedade. É quem segue as normas, as leis, as formas consideradas corretas de fazer cada coisa em uma sociedade. Sendo assim, pessoas civilizadas formam uma sociedade “ordenada”, elas agem com a razão predominando sobre os sentimentos e a emoção. 105
- Bárbaro: seria então o oposto de civilizado. Quem faz as coisas pelo instinto, pela emoção e não pela razão. Sendo assim, muitas das vezes infringes as leis da civilização, porque os bárbaros têm seu jeito de viver muito diferente dos civilizados, e por isso são chamados de “selvagens”. Esta interpretação leva o leitor a considerar que a explicação para as ações de Tito Andrônico tem a ver com seu conceito do que seja civilizado. No início da peça, por exemplo, ele mata Alarbo por achar que a civilização seja a salvação do império, por considerar os bárbaros atrasados, incapazes de entender as leis da civilização, enquanto, para os bárbaros, o único sentimento é a proteção, a honra e as suas próprias leis, sem se auto-declararem atrasados ou melhores que os próprios civilizados. Na própria obra, o civilizado tenta acabar com o bárbaro mostrando que somente em uma sociedade ordenada e movida por regras é que consegue manter uma Pátria inatingível. Pode-se dizer que Roma só ganhou a guerra porque era organizada, e o povo godo não ganhou porque não tinha organização, o que os levou à derrota. Porém, é importante esclarecer que não existe confirmação de que ser bárbaro é ser mau e civilizado é ser bom. Essa teoria perde a validade quando personagens teoricamente civilizados tomam atitudes bárbaras. Nós temos na tragédia um imperador – Saturnino - atraído pela civilização e caracterizado pela vida pública, que tenta manter o seu poder à base da traição e mentira. No momento em que Saturnino mata Tito, poderíamos considerar um ato bárbaro, entretanto, analisando de uma maneira minuciosa, fica claro que a atitude 106
é extremamente civilizada, exatamente porque essa atitude tem como interesse: “proteger o império”, guardar a paz em Roma, finalizar as vinganças, proteger a vida pública. Diversas concepções de civilizado e bárbaro A leitura da peça de Shakespeare conforme a metodologia empregada na Oficina de Leitura levou os autores deste trabalho a discutir e procurar analisar mais profundamente as nuances do texto escrito e os detalhes referente ao desenvolvimento da trama e à ação dos personagens. Em virtude deste aprofundamento da reflexão sobre o texto, outras possíveis respostas à questão inicial puderam ser consideradas, além desta primeira concepção de bárbaro como mau e selvagem, e civilizado como bom e ordeiro. O resultado aqui apresentado constitui, então, o efeito de uma reflexão conjunta, obtida pelo diálogo e pelo compartilhamento de idéias, interesses e mesmo de dúvidas e inquietações. A leitura em conjunto, portanto, pode se beneficiar até mesmo dos dilemas e dúvidas do leitor, se estes dilemas e dúvidas forem expostos e discutidos pelo grupo. Assim, as concepções mais elaboradas a que se chegou, a partir da questão inicial são as seguintes: i) Bárbaro: dá valor à família e interesses privados. Civilizado: dá valor à honra e interesses públicos. Como encontramos evidência favorável a esta resposta no texto? O bárbaro, no texto, identifica-se com o godo. Para mostrar a ideia da principal característica do godo, que é o afeto 107
principalmente pela família, destacamos a seguinte passagem: [...] tende piedade das lágrimas que derramo, lágrimas de mãe no sofrimento por seu filho. Se alguma vez vossos filhos foram amados por vós, lembrai-vos que do mesmo modo o meu filho é amado por mim (SHAKESPEARE, 2009, p.27). Nesta fala, da personagem Tamora, fica claro que ela está intercedendo pelo filho que está à beira da morte, única e exclusivamente por uma questão de afeto privado, sem interferência dos valores e convenções da sociedade. A concepção do civilizado, baseando-se nesta hipótese, pode ser demarcada com o seguinte trecho: [Tito] Nem tu nem ele são meus filhos. Meus filhos não teriam jamais me desonrado assim. [...] O dia mais sombrio que já vi é este dia de hoje, em que sou desonrado por meus filhos em Roma (SHAKESPEARE, 2009, p. 38), ou seja, para um romano, a honra é superior a qualquer coisa, inclusive à morte de um familiar muito próximo, neste caso, o próprio filho. E a honra é um valor civil, ou seja, que se manifesta conforme costumes e usos da sociedade organizada em regras e leis publicamente instituídas. ii) Bárbaro: Segue seus sentimentos e usa da racionalidade para suprir necessidades sentimentais. Civilizado: usa da racionalidade e só admite os sentimentos se estes tiverem serventia para o bem público. 108
Algumas passagens poderiam indicar a ideia de que o Bárbaro não é racional, mas isso não é verdade. Vemos isto na seguinte passagem: [Tamora] Como vocês têm amor à vida de sua mãe, busquem a revanche; caso contrário, vocês não podem mais ser chamados de meus filhos [...] [Lavínia] Não, Tamora, que barbárie! Não há título que se compare ao teu para descrever tua natureza: rainha dos bárbaros (SHAKESPEARE , 2009, p.54-55). Tamora acaba de se comportar, grosso modo, de forma fria e calculista, armando um plano para que seus filhos possam suprir o desejo sexual deles, ou seja, foi tudo esquematizado para que aqueles bárbaros pudessem satisfazer seus interesses privados. Esta concepção também contradiz a ideia pré-formulada de que o romano não aceita nenhuma representação afetiva quando, na verdade, é aceitável desde que esteja de acordo com os princípios civis e morais vigentes entre os romanos. Justamente por isso é que a filha de Andrônico, Lavínia, se casa com Bassiano: não somente pelo amor dos dois, mas para honrar a promessa que fizeram um ao outro. iii) Bárbaro: povo ruim, cruel. Civilizado: povo bom, resolve as coisas na base da conversa e das leis. Os exemplos que citamos acima já são suficientes para comprovar que o bárbaro nem sempre é cruel, até porque, se fosse, não haveria como explicar a cena de uma mãe suplicando pela vida de seu filho. E se fosse verdade que o civilizado não comete atos cruéis não teríamos, também, um 109
pai matando um filho porque este foi contra a elevação da honra familiar, mesmo estando a favor de uma lei romana. É impossível separar os personagens como sendo unicamente bárbaros ou civilizados. O que podemos dizer é que cada personagem tem um ponto bárbaro e civilizado que aparece conforme a situação em que este é colocado. Análise dos personagens O tema da dualidade entre civilização e barbárie tem tanto a ver com o livro que foi necessário apenas falar um pouco sobre cada personagem, para que a ligação fosse feita. Alguns personagens são claramente bárbaros e outros claramente civilizados, porém alguns personagens “arriscam” mudar um pouco o que torna nossa compreensão um pouco vaga, se for se contentar com uma interpretação superficial. Como cada personagem tem seu caráter definido desde o início da obra, e quando Shakespeare começa a transação de um para outro, o entendimento das dinâmicas pelas quais o argumento da peça se desenvolve exige um esforço mais intenso do intérprete. Este esforço é motivado pela apreciação da própria história, e com o auxílio do método da leitura reflexiva e dialogada é possível construir uma atribuição de significado ao texto, que enriquece a experiência do leitor. Ao próprio Tito Andrônico, personagem principal, é atribuída certa dose de barbárie. Seus excessos de violência, seus arrebatamentos de dor, fúria e remorso o aproximam do conceito que se faz de bárbaro. Ao prezar a honra e a civilidade em 110
excesso, e ao valorizar mais a imagem pública do que as necessidades de sua família, ele se desumaniza. Sua civilidade atinge o grau de um vício: Porque o vício de ser civilizado, como foi o caso de Tito, o tornou um bárbaro afetado pelos seus atos e não um bárbaro completo, como seria a grandiosa bárbara Tamora. O perfil dos principais personagens da trama, traçado durante as sessões de leitura do texto, ajuda a entender a relevância da pergunta acerca das noções de bárbaro e de civilizado. O que se procura mostrar é que a solução desta questão é complexa, e que tal complexidade só pode ser obtida por um procedimento de leitura e reflexão que discute acerca do texto, ou ainda, discute com o texto. Saturnino (Imperador): um personagem que nos deixa uma imagem de certa forma cômica. Um filho de imperador que agora disputa com seu irmão mais novo, o trono. Um filho de imperador romano, considerado um civilizado de puro sangue. Bassiano (Irmão do Imperador): noivo de Lavínia, Bassiano luta pelo seu lugar no trono, mas acaba o perdendo para seu irmão. Em momento algum Bassiano se mostra bárbaro, ele é um civilizado que segue as leis e as normas de Roma da maneira correta. Deixa-se guiar por seus sentimentos apenas quando luta pela mão de Lavínia. Os irmãos, filhos, netos e parentes Andrônicos: são uma espécie de figurantes, mas que contribuem para o desenvolvimento da história. Por serem romanos da família de Tito são civilizados, e por isso seguem as normas e as leis de 111
Roma da maneira como se espera que fossem seguidas. Alarbo (primogênito de Tamora): é um dos quatro godos que foram capturados por Tito na sua guerra contra eles. Junto com Alarbo foram capturados Demétrio, Quirão e Tamora (rainha dos godos). Alarbo era um godo e por isso considerado bárbaro. Por ser o primogênito de Tamora, foi esquartejado por Tito (ato este que é considerado pelos romanos um ritual civilizado). Demétrio e Quirão (filhos de Tamora): Dois godos bárbaros por definição. Agem somente pela emoção e pelo desejo. A razão só existe na vida desses dois a fim de servir a seus apetites. Todo e qualquer ato feito por eles é bárbaro, em momento algum eles podem ser considerados civilizados, pelo menos não para Roma. Lavínia (filha de Tito): uma moça romana, civilizada, meiga, dócil e amada por todos. A garota dos sonhos de Sartunino e de Bassiano, porém quem tinha o coração de Lavínia era Bassiano. Ela então luta pelo seu amor e não se casa com Saturnino. Mais tarde como vingança pela morte de seu filho Alarbo, Tamora deixa que seus dois filhos matem Bassiano e estuprem Lavínia, assim a desvirginam, cortam suas duas mãos e sua língua. Tamora (rainha dos godos): a rainha dos godos não poderia deixar de ser a rainha dos bárbaros. Toda e qualquer coisa feita por Tamora tem a ver com seus sentimentos. Os bárbaros têm seus filhos como sendo parte deles, parte de seu corpo, seu ser. Então, quando seu primogênito é esquartejado na sua frente como forma de sacrifício, ela se vê obrigada a vingar-se. O que é 112
feito por Tamora, é feito para seu próprio interesse e não para que os outros vejam. Aarão (mouro amante de Tamora): ele acompanha Tamora aonde quer que ela vá. De início pode-se dizer que ele é um bárbaro, mas suas atitudes o fazem ser simplesmente Aarão, sem ser possível vislumbrar uma distinção nítida entre um comportamento civilizado ou bárbaro. Ele age com suas leis e descumpre suas próprias leis, age como bem entende e quando bem entende. Tito Andrônico: É sem sombra de dúvida a maior incógnita desse livro. Capitão de uma tropa de soldados, Tito já teve tantas batalhas quanto a sua idade pode suportar, muitas vitórias e pouquíssimas derrotas o fizeram ser honrado diante Roma e adorado por todos. Ele não aceita os costumes godos e segue à risca toda e qualquer lei de Roma. No decorrer do livro, Tito tem que se deparar com a vingança de Tamora sobre sua filha Lavínia. Ele não suporta o sofrimento causado a ela e, de certo modo, perde sua lucidez. Ele luta e corre atrás do seu objetivo, com a sua única arma que é a sua insanidade. Prepara um banquete para seus inimigos e na frente deles mata sua própria filha. Por quê? Quer dizer então que Tito não é um bárbaro, ele é civilizado? Um bárbaro não agiria assim. É próprio dos bárbaros considerar seus filhos como parte de si. Lembre-se o leitor de que, em nome de Roma e de suas leis, sendo civilizado, Tito mata seu próprio filho. Isto quer dizer, então, que Tito utilizou de sua insanidade para poder agir como bárbaro, e quando viu que tinha seu jogo ganho decidiu voltar para seu comportamento de 113
civilizado? Ele mata sua filha para que sua honra não fique manchada. Afinal, sua filha já não era mais virgem, não tinha as mãos e nem a língua, para que mais desgosto para um pai do que isso? Ele tomou essa decisão não só para se privar de uma vergonha pública, mas para livrar Lavínia de um enorme sofrimento e desonra. Os civilizados têm a vida publica como foco principal. Após matar sua filha, mata a imperatriz e tenta matar Saturnino, o que ele não consegue e quem acaba morrendo é ele, pelas mãos de Saturnino, que é morto pelas mãos de Lúcio (filho de Tito). Considerações finais Ao ler um texto, um indivíduo ou um grupo podem, por meio da leitura, estabelecer uma relação comunicativa cujo resultado é a ampliação do campo da experiência possível. Esta ampliação permite o maior controle dos meios pelos quais indivíduos e grupos atingem seus objetivos. Este é o objetivo da Oficina de Leitura, consubstanciado na reflexão que aqui foi apresentada. No caso específico da Lastimável Tragédia de Tito Andrônico, o grupo de leitores chegou a conclusões relativas aos significados possíveis para ‘civilizado’ e ‘bárbaro’, que levam a uma superação das interpretações superficiais e costumeiras destes conceitos, e a elaboração de um entendimento mais elaborado dos significados que o texto apresenta. Pode-se argumentar a partir da reflexão realizada, que não há uma dimensão civilizada na experiência social humana, que esteja livre da influência da barbárie. Assim como não há a possibilidade de estabelecer um julgamento de valor 114
absoluto, em favor de uma ou de outra destas dimensões da vida particular e pública. Indivíduos e grupos incorrem em condutas predominantemente civilizadas, ou predominantemente bárbaras, conforme a dinâmica de objetivos, interesses, crenças e sentimentos. Como o Tito Andrônico nos leva a concluir na presente ocasião, o projeto civilizatório acaba infectado pela atitude bárbara e isso constitui, de um lado, sua ruína e decadência, e de outro a sua força e vitalidade. O sentido profundo da tragédia Shakespeareana, conforme a experiência de leitura que aqui se tentou apresentar, é que não há ideal de civilização que possa se sustentar sem o contraste e a participação da barbárie em sua realização. Referências ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. 2ª. Ed. São Paulo: Companhia das Letras. 1994. MATOS, José Claudio. Interpretação Filosófica de Textos – Manual Didático. 1ª. Ed. Florianópolis: Editora UDESC. 2011. MATOS, YANO & ROHR. “A Oficina de Leitura e Interpretação de Textos: Fundamentos e experiência de um projeto de extensão da UDESC”. In: UDESC em Ação. Volume 2, número 1. 2008. SHAKESPEARE. Tito Andrônico. 2ª. Ed. Porto Alegre: L&PM. 2009. VIÉGAS-FARIA, Beatriz. “Titus Andronicus – Uma obra violenta, um texto controverso”. In: SHAKESPEARE. Tito Andrônico. Porto Alegre: L&PM. 2009. 115
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A cultura do audiovisual como estratégia comunicativa no contexto da escola: repensando os saberes escolares Juliane Di Paula Queiroz Odinino26 A crise remetida à escola nos dias atuais vem acompanhada do sentimento de descompasso de expectativas vivenciado pelos inúmeros sujeitos que compõe a escola. A visão predominante reconhece primordialmente a escola como um espaço de disseminação de conhecimentos a partir da eleição de certos tipos de saberes e condutas próprias de um sistema social pré-definido, como revelam os estudos sociológicos sobre currículo. Essa sociedade é calcada nos liames do processo civilizatório, cujo ranço tem ainda hoje encontrado muitas revela dificuldades na promoção de uma abertura para o diálogo e incorporação de novos saberes. No intuito de compreender a tensão vivenciada nos mais diferentes cotidianos escolares, parte-se da compreensão da organização escolar exaltando seu papel histórico-social enquanto espaço privilegiado de disseminação de conhecimentos, conjugando-os às novas demandas que caracterizam as culturas midiáticas e tecnológicas. A partir daí ensaiam-se possibilidades estratégicas de intervenção que levem em conta prioritariamente a compreensão da complexidade do fenômeno social em jogo de forma que as mesmas sejam orientadas pelo debate sobre os Doutora em Ciências Humanas pela UFSC. Professora de Antropologia e Sociologia da Educação na Faculdade Municipal de Palhoça - FMP. 26
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novos desafios de uma sociedade ressignificada pelas tecnologias midiáticas. A ideia de partir de uma revisão do papel social da escola remete a um convite para a reflexão filosófica como possibilidade de promoção do reencontro e do diálogo entre esses diversos saberes. Por fim, tal discussão evoca o caráter mesmo da escola pela sua potencialidade de promoção da reflexividade, do multiculturalismo, do exercício da cidadania e da prática da alteridade, para além de uma visão reprodutora, colonizadora e massificadora, a qual a escola tem historicamente se orientado. A pertinência da escolha desse tema se faz pela necessidade de repensar filosoficamente o papel da educação básica em nosso país, tendo em vista às demandas de um mundo marcado predominantemente pela cultura do audiovisual, da urbanidade, da tecnologia, das novas sociabilidades e das novas formas de conceber o trabalho. A proposta prevê uma reflexão no sentido de ensaiar possibilidades de intervenção que permitam levar em considerações elementos relacionados às culturas audiovisuais infanto-juvenis aliados aos saberes produzidos na escola com o objetivo de pensar em inovadoras e criativas formas de atuação e produção de conhecimentos que tenham o campo da ética e da estética como o eixo orientador. Em linhas gerais é possível afirmar que o objetivo é o de problematizar o contexto cotidiano da escola básica a fim de apreender de que forma as os fenômenos culturais e, em especial, as culturas infantis e juvenis são ali vivenciadas e incorporadas nos propostas pedagógicas, tendo em vista a inquietante presença das mídias. A hipótese 118
é a de que é possível que todos esses elementos possam articular-se no processo curricular. De maneira geral, a análise procura inserir-se nos debates acerca do papel da educação nos contextos atuais, de forma a considerar como importante elemento a forma como se delineiam, na organização dos saberes produzidos, as relações entre adultos e crianças/jovens. Desse modo, o ponto de partida localiza-se no complexo contexto contemporâneo, marcado por relações assimétricas de poder, as quais são atravessadas por incansáveis e distintos significantes culturais. O que se observa é que no contexto desse jogo são tensionados, deflagrados e redefinidos os posicionamentos tanto dos sujeitos sociais quanto das instituições educacionais, anteriormente reconhecidas como principal instância de transmissão de conhecimentos. A proposta de investigação basicamente propõe dois níveis que se interrelacionam: uma dimensão macrossocial da situação política e institucional que envolve a educação básica hoje em nosso país e, intrinsecamente associada à primeira, uma esfera microssocial atenta aos meandros e às relações desencadeadas no cotidiano específico, onde são delineadas as identidades, sendo estas tomadas pela noção de transitoriedade (HALL, 2000). Conforme defende Sirota (1994), a atenção às interações sociais cotidianas sobrepuja como princípio norteador de compreensão para explicar os desencadeamentos sociais do sistema educacional. De olho nas culturas infanto-juvenis, cabe investigar a maneira como as mesmas são vivenciadas na escola, esta última entendida 119
enquanto campo privilegiado de profusão de conhecimentos. Assim, importa saber de que modo tais saberes são incorporados na organização dos conhecimentos consolidados na educação básica. Do ponto de vista dos estudos críticos e pós-críticos sobre currículo, tais saberes são circunscritos pelo reconhecimento dos significados produzidos pela construção de formas de poder, experiências e identidades que precisam ser analisadas em seu sentido político-cultural mais amplo (GIROUX & SIMON, 2009, p. 97). Desse modo, ao vincular o contexto educacional da educação básica com as culturas infantis e juvenis desdobram-se necessariamente questões relacionadas às formas de organização do conhecimento escolar, campo de estudos curriculares. Enquanto artefato social e cultural (MOREIRA & SILVA, 2009, p. 7), os estudos sobre o currículo trazem para o debate as relações de poder implicadas, o qual configura-se como área contestada, denominada arena política. Na tentativa de desvelar as relações envolvidos nessa dinâmica escolar, é válido a todos(as) agentes envolvidos(as) um exercício de reflexividade sobre as diferentes culturas e discursos que incidem sobre o processo de organização curricular, como destaca Moreira (2004): Cabe procurar desafiar o viés monocultural do currículo escolar, desestabilizar a hegemonia da cultura ocidental no currículo, destacar o caráter relacional e histórico do conhecimento escolar, questionar as representações, as imagens e os interesses expressos em diferentes artefatos culturais, 120
buscando explicitar as relações de poder neles existentes. (p. 69/70) Diante dos artefatos tecnológicos, outras lógicas são colocadas em jogo, onde a persuasão, a força da imagética e a bricolagem ganham expressão. Segundo Kensky (2012), a nova sociedade digital não visa excluir os modelos anteriores, mas antes envolver numa mixagem os conteúdos das diversas redes disseminadoras de saberes, ressignificando as memórias e os lugares sociais dos sujeitos. Nesta linha, torna-se bastante oportuno recuperar o papel filosófico e histórico-social da educação básica, sobretudo no que compete a história dos conhecimentos curriculares com o foco nas disciplinas que reconhecidamente compõem a grade escolar. Tal processo é conhecido como movimento de institucionalização das disciplinas. As histórias de consolidação das disciplinas são comumente marcados pela intermitência e fragmentação entretanto recuperá-las a partir dentro do recorte de interesse permite situar e problematizar as hierarquias estabelecidas na própria relação destas.Um bom exemplo remete valorização das ciências chamadas duras, a matemática e a física, em detrimento das ciências humanas, a geografia e a história devido ao caráter produtivista atribuído às mesmas. Essas assimetrias estão presentes nas manifestações culturais escolares e acabam sendo reproduzidas sobretudo pelo caráter conteúdista que a escola vem historicamente apresentando. Assim, ressaltar e problematizar esse aspecto configura-se essencial no sentido de ensaiar novas possibilidades de ações coletivas no espaço, com a maior participação de 121
todos os agentes envolvidos, convidados a repensarem coletivamente o papel e a função da escola. Na prática cotidiana da escola é bastante comum tomar as manifestações e expressões culturais infantis e juvenis de forma estereotipada, como “cultura menor”. Tais expressões tendem a ser filtradas, organizadas e sistematizadas pelos adultos, segundo um esquema moral nem sempre explicitado e problematizado aberta e suficientemente. Isso é reforçado principalmente quando trata-se das culturas das mídias, concebidas como produto de uma sociedade de consumo e de entretenimento, portanto com pouco ou quase nenhum valor cultural do ponto de vista de uma compreensão hegemônica de cultura como erudita. Porém, justamente por esse motivo bem como pelo poder altamente persuasivo com que os conteúdos midiáticos são remetidos às crianças e adolescentes é que os mesmos devem ser tomados com pela sua importância e seriedade no contexto dos saberes que circunscrevem o espaço do cotidiano escolar, desse modo, dando forma a um objeto a ser analisado e problematizado criticamente por adultos e crianças, na esteira com que defende Giroux (1995). Um exame da cultura infantil desestabiliza a noção de que as batalhas em relação ao conhecimento, aos valores, ao poder e em relação ao que significa ser um cidadão estão localizadas exclusivamente nas escolas ou nos locais privilegiados da alta cultura; além disso, esse exame fornece um referente teórico para ‘lembrar’ que as identidades 122
individuais e coletivas das crianças e dos(as) jovens são amplamente moldadas, política e pedagogicamente, na cultura visual popular dos videogames, da televisão, do cinema e até mesmo em locais de lazer como shopping centers e parque de diversão (p. 50). Arendt (1991) argumenta que a relação humana com o mundo, mediada pela educação, nunca está dada de antemão, mas tem de ser tecida novamente a cada novo nascimento, no qual vem ao mundo um ser inteiramente novo e distinto de todos os demais. Desse modo, a educação não pode jamais ser entendida como algo dado e pronto, porém tem de ser continuamente repensada em função das transformações do mundo no qual insurgem novos sujeitos e novas realidades. A autora aponta que a crise da educação vivenciada nos novos contextos político e social está relacionada à desvalorização da força da tradição e dos conhecimentos herdados das gerações anteriores, de modo que a questão norteadora da pesquisa busca compreender e pensar alternativas de conjugar o legado científico, humanístico e filosófico com as atuais demandas em torno da diversidade cultural e as múltiplas expressões culturais e artísticas potencializadas pelos veículos comunicacionais. A experiência marcada pelo contato permanente com a comunicação midiática insurge de forma bastante negligenciada pelas instituições escolares seja devido à falta de uma problematização quanto ao seu uso e papel social seja por uma simples atitude de privação e negação de veiculação, sobretudo das mídias de amplo 123
alcance, nos espaços escolares decorrente do destaque ao caráter mercadológico das mesmas e da ênfase à cultura letrada. Entretanto, esse aspecto constituinte das culturas infantis encontra significativos espaços para ser vivenciado, principalmente relegado ao “tempo livre”, momento em que surge com toda sua potencialidade. É preciso também realizar uma exercício de reflexão coletiva sobre os lugares de legitimidade e de autoridade dos(as) “porta-vozes” do conhecimento, o que implica revisitar os lugares da criança e do adulto, bem como seus diferentes papéis, como pais, mães, comunidade, professores(as) entre outros, imbricados nas relações e nas ideologias que atravessam o cotidiano escolar. A forma de organização do conhecimento em suas dimensões políticas, da mais ampla relacionada às política públicas até consolidação de pressupostos que devem embasar a construção de estratégias coletivas da instituição educativa, devem visar representar democraticamente os interesses dos diferentes sujeitos, adultos, jovens e crianças, que a compõem. Daí a importância de tomá-las sobre novos olhares, além das disciplinas que circunscrevem na maioria das vezes campos de conhecimentos. A presente proposta de análise caracteriza-se pela reconceitualização do microssociológico articulado ao macrossociológico e visa ser desenvolvida a partir do fomento de uma conjunto de reflexões junto aos inúmeros sujeitos envolvidos. No ambiente escolar os sujeitos encontram condições de forjar um sistema de referência, ainda 124
que fragmentado e fluido que mescla as influências culturais e o pesode sua configuração institucional. Os(as) estudantes, na condição de pesquisadores(as) junto aos (às) demais professores(as) buscariam examinar como opera e em que consiste esse sistema, ainda que fluido e fragmentado, tendo em vista extrair elementos para elucidar as práticas culturais desencadeadas neste contexto. Para alcançar esse objetivo, é imprescindível aliar encontros de discussão entre diferentes profissionais da educação e reflexão sobre a prática de pesquisa, sobre a condição e organização dos diferentes conhecimentos curriculares e disciplinares, em prol de outras formas de conceber os diferentes saberes que não apenas os tradicionais. Almeja-se que estes encontros possam contar com a participação do maior número possível de profissionais e demais envolvidos como famílias, crianças, jovens e interessados(as), a fim de consolidar parcerias e evitar situações que incitem a separação entre o objeto analisado e os pesquisadores(as), num esforço de agregar os(as) envolvidos(as) para que possam de fato se perceberem definitivamente como parte desta empreitada. Do ponto de vista da participação das crianças e jovens, certamente as culturas das mídias, ligadas ao uso de computadores, tablets entre outros, deveria ter uma atenção bastante especial, para além de uma relação de ensinoaprendizagem. Com a atenção recaída às culturas midiáticas infanto-juvenis, todo empenho dirige-se ao questionamento dos conhecidos entretenimentos para crianças que sejam manipulativos e racistas, 125
sexistas e dirigidos a uma determinada classe, com vistas a estabelecimento de um padrão de consumo (STEINBERG & KINCHELOE, 2004, p. 19). A partir dessa postura será possível desenvolver oportunas estratégias comunicativas, vislumabrando coletivamente a sistematização de uma prática de pesquisa antenada aos fenômenos sociais, por via do trato dialético e da postura vigilante de reflexividade, os quais permeiam as comprometidas ações e teorias pedagógicas, podendo ser compartilhada pelos diferentes atores e agentes envolvidos, eis o desafio transposto. Assim, será possível pensar em planos de ação orientados por uma perspectiva que vise escancarar os interesses por trás da produção e disseminação desses conteúdos, as visões estereotipadas, os valores difundidos em suas mensagens e seu caráter predominantemente comercial. Tais reflexões só serão possíveis graças ao desenvolvimento de estratégias comunicativas oportunizadas pelas aproximações dos atores envolvidos, pensadas criativamente a partir do desenvolvimento de meios que perpassam as barreiras das diferenças linguísticas e letradas, sobretudo tratando-se de crianças e jovens (MARTIN-BARBERO, 2011). Neste sentido, a pesquisa deve orientar-se por este espírito fundamental, levando a cabo a possibilidade de promoção e fomento de esforços com vistas a compreender e revisitar de maneira criativa, séria e original novos rumos pedagógicos e políticos.
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Da multiplicidade de esforços, de antagonismos e de resistência podem resultar, então, formas originais e distintas de protesto e coesão, o que contribui para a complexidade e a riqueza que fundamentam o programa de uma democracia radical (MOREIRA & MACEDO, 2002, p. 28). O encontro entre os sujeitos interessados, crianças, jovens e adultos que desempenham os mais diferentes papéis, permite conhecer melhor suas realidades sociais e cultural no sentido de questionar e rever seus papéis a fim de realizar um movimento de desnaturalização das determinações sociais em jogo e abrir-se para o novo, para o alémfronteiras disciplinares, para novas formas de conhecimentos e vivências, onde todos(as) sintamse igualmente parte, tendo em vista a consolidação de uma escola para todos(as) efetivamente. Enfim, a análise procura não se restringir apenas a compreensão crítica, filosófica e teórica acerca da atual conjuntura social, mas busca repensar caminhos alternativos que proporcionem novas possibilidades e vivências entre adultos, crianças e jovens, recorrendo às mídias e às novas tecnologias como formas de conjugar inovadores processos escolares que sejam de fato mais inclusivos e atentos à valorização de múltiplos saberes, para além do modelo dominante civilizatório. Referências: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1991. BROUGÈRE, Gilles. Brinquedos e cultura. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2008. 127
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A política desde o particular contingente Leandro Marcelo Cisneros27 Selvino José Assmann28 Resumo Nesse trabalho analisamos algumas possibilidades teórico-práticas da política, destacando sua abordagem desde o particular contingente. Para isso, retomamos argumentos de Hannah Arendt, quem encontra chaves interpretativas no pensamento kantiano para entender a ação política desde o particular contingente apreendido pela faculdade do juízo. Concomitantemente, Michel Foucault propõe reflexões próximas a essa perspectiva, quando fala de biopolítica (1974 – 1979), sugerindo entender a política de forma mais adequada desde a esfera micro das relaciones de poder. Ambos refletem a partir de matrizes compreensivas diferentes, no entanto, nos interessam as aproximações que possam ser exploradas. Palavras-chave: juízo estético, micropolítica, exercício da liberdade. A faculdade kantiana do juízo para a política
Doutorando no Programa de Pós Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas do Centro de Filosofia e Humanidades da Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista CNPq (2013-2014) e bolsista CAPES (2010-2013). 28 Professor permanente no doutorado da Pós Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas e no Departamento de Filosofia do Centro de Filosofia e Humanidades da Universidade Federal de Santa Catarina. 27
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A obra de Hannah Arendt, Lições para uma filosofia política de Kant (1993), apura quatro teses centrais, das quais nos apreciaremos a que afirma que a chave interpretativa para a política a encontramos na “Doutrina do Belo” da Crítica do juízo (Kant, 2002), pois afirma que tanto as questões políticas como aquelas relativas à obra de arte, em sua relação com o gosto estético, têm características análogas. Seriam os conceitos de juízo reflexionante estético, mentalidade alargada, desinteresse, comunicabilidade e sensus communis o núcleo dessa filosofia política. Quando Kant discute sobre o juízo estético, faz uma distinção entre gênio e gosto, que aprofunda a importância do sentido claramente político do exercício do juízo do espectador. A faculdade que nos permite julgar a arte como uma bela-arte é o gosto. Sobre esse ponto, Kant entende que o gosto é necessário para definir o belo, por ser o acordo entre a livre imaginação e a conformidade com o entendimento e suas leis. Complementarmente, o juízo é a faculdade pela qual a imaginação se ajusta ao entendimento. Então, o gosto, como juízo geral, é a disciplina (ou o cultivo) do gênio e orienta, traz clareza e ordem aos pensamentos do gênio. Ele torna as ideias susceptíveis de consentimento geral e permanente, podendo ser seguidas por outros (Cf. Arendt, 1993: 80). Segundo Kant, são requisitos da bela-arte: imaginação, intelecto, espírito e gosto, sendo as três primeiras faculdades unidas pelo gosto, ou seja, pelo juízo.
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Para tal fim, a comunicabilidade é uma condição sine qua non, e isso se relaciona diretamente com o juízo do espectador, quem através do seu juízo, cria o espaço para que esses objetos apareçam. São os críticos e os espectadores os que criam o domínio do público, e não os atores e/ou criadores. Diz Kant que “a faculdade que guia essa comunicabilidade é o gosto, e este, ou o juízo, não é privilégio do gênio” (Arendt, 1993: 80). Essa comunicabilidade existente, primeiramente, entre os próprios espectadores, fato que sublinha que os espectadores só existem no plural, ainda quando o espectador não esteja envolvido no ato, o está sim com seus companheiros espectadores. Mas, também nos referimos à comunicabilidade que se opera entre espectador e ator. Isso traz outro elemento fundamental a ser considerado, a sociabilidade ou a intersubjetividade necessariamente presente em cada juízo.29 Estabelecida a necessidade de comunicabilidade, devemos destacar a importância de outro conceito, a saber, o senso comum, ou dito mais propriamente, o sensus communis.30 Ele é a faculdade de julgar e discriminar o correto do 29
Arendt conclui isso a partir de Kant no § 41 da Crítica do juízo, da onde extrai a seguinte afirmação: “no gosto o egoísmo é superado, ou seja, temos consideração, no sentido original da palavra. Devemos superar nossas condições subjetivas particulares em nome dos outros […] o elemento não subjetivo nos sentidos não objetivos [gosto e olfato] é a intersubjetividade” (Arendt, 1993: 86). Grifos da autora. 30 Arendt sugere utilizar a expressão Sensus Communis proposta por Kant, já que sua tradução pode distorcer o significado originalmente pretendido, conceito que fala do entendimento comum entre os homes, e não do mero sentido que qualquer ser humano possui. (Arendt, 1993: 90).
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incorreto que, surpreendentemente, deve se basear no sentido do gosto. Nessas questões há uma eleição, há uma aprovação ou desaprovação de aquilo que agrada, e essa decisão é efetuada a partir do critério da comunicabilidade, isto é, da publicidade, para cuja aplicação, a regra de dita decisão é o sensus communis, entendido como a consciência de um universo de opiniões e juízos, no qual cobram sentido a opinião e o juízo próprios. O sensus communis é a regra do juízo, sempre que seja entendido como um sentido comum a todos, isto é, nas palavras de Arendt, “una faculdade de julgar que, em sua reflexão, considera [a priori] o modo de representação de todos os outros homes no pensamento, para comparar, de certo modo, seu juízo com a razão coletiva da humanidade” (Arendt, 1993: 91). Mas, recordemos que é a comparação de nossos próprios juízos com os possíveis juízos dos outros e não os juízos efetivamente proferidos. Isso significa que devemos nos localizar no lugar de qualquer homem, fazendo abstração das limitações que contingentemente interferem no nosso juízo. Nessa perspectiva, o gosto é para Kant esse sentido comunitário, entendendo por sentido: o efeito de uma reflexão no espírito. Essa reflexão gera um efeito, como se fosse uma sensação e, nesse caso, uma sensação de gosto, ou seja, de sentido discriminador da eleição. Citando a Kant, o gosto é “a faculdade de julgar aquilo que converte nosso sentimento [sensação] numa representação dada [percepção], comunicável em geral, sem a mediação do conceito. O gosto é, então, a faculdade de julgar a priori a comunicabilidade de 134
sentimentos que se ligam a uma representação dada” (apud Arendt, 1993: 92). Para Kant, é esse sentido comunitário o que torna possível ampliar nossa mentalidade. Ele nos permite fazer abstração das circunstâncias e das condições privadas que limitam e inibem o exercício do juízo. Em tanto que imaginação e reflexão nos possibilitam que nos libertemos delas e atingir aquela imparcialidade relativa, que é a virtude especifica do juízo. Arendt destaca que essa faculdade da imaginação é proposta por Kant como a habilidade que “torna presente o que está ausente, transforma os objetos dos sentidos objetivos em objetos sentidos. Isso acontece pela reflexão, não sobre um objeto, mas, sim sobre a representação dele. O objeto representado, não a percepção direta do objeto, é a que suscita o prazer ou o disprazer” (Arendt, 1993: 82-3). A imaginação é a faculdade que proporciona a conexão entre a sensibilidade e o entendimento. Kant sugere que a imaginação é, de fato, a “raiz comum, mas desconhecida para nós” da sensibilidade e do entendimento. Assim, a imaginação é um pré-requisito para toda percepção e o esquema é pré-requisito no só para todo conhecimento, mas para qualquer possibilidade de comunicação (Arendt, 1993: 102-105)31.
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Sem os esquemas estamos impedidos de reconhecer nada. “Ainda quando só exista no pensamento, é um tipo de imagem; não é um produto do pensamento, nem é dado pela sensibilidade; e ainda menos é o produto de uma abstração feita a partir de dados sensíveis. É algo além do entre pensamento e sensibilidade; pertence ao pensamento na medida em que é
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Assim, os particulares são comunicáveis, porque ao perceber um particular, temos em nosso espírito um esquema cuja forma é característica de muitos desses particulares. Por outro lado, a comunicabilidade dos particulares é possível, porque essa forma esquematica está no espírito de muitas pessoas diferentes, formas que são produtos da imaginação. Na Crítica do juízo, Kant propõe os juízos reflexionantes¸ porque são os que derivam a regra a partir do particular, contrariamente aos juízos determinantes, que subsomem o particular sob uma regra general. No esquema percebemos, de fato, algum universal no particular. Kant alude a essa distinção ao diferenciar entre “subsumir a um conceito” e “conduzir a um concepto” (Arendt, 1993: 106). Para o qual, é o exemplo o que permite ao juízo reconhecer um fato, de forma análoga a como o esquema ajuda ao entendimento a reconhecer um objeto em quanto tal. Os exemplos orientam e conduzem nosso juízo, para que esses adquiram “validez exemplar” (Arendt, 1993: 106-107). A partir desse núcleo conceitual, é possível conceber o mútuo entendimento entre o ator e o espectador, quando a máxima do ator é a mesma máxima de acordo com a qual o espectador julga o espetáculo do mundo. Aqui, Arendt propõe pensar um “imperativo categórico da ação”, que poderia ser assim: “aja sempre de acordo com a máxima através da qual esse pacto original possa se atualizar numa lei geral” (Arendt, 1993: 96). externamente invisível, e pertence à sensibilidade na medida em que é algo como uma imagem.” (Arendt, 1993: 102-4).
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Essa perspectiva kantiana, originariamente pensada para a experiência estética do belo, pode ser análoga à experiência política, como Arendt propõe, se entendemos que tanto os juízos estéticos, como os juízos políticos assumem o seguinte denominador comum: a capacidade de refletir sobre eventos particulares sem que estejam subsumidos sob um universal já previamente estabelecido. Toda essa argumentação é importante, para que o juízo crítico de eventos não se reduza a uma prática mecânica de subsunção do particular pelo universal. Isso nos leva a afirmar o valor e pertinência do exercício do juízo e não, por exemplo, da razão prática, para construir o público entre seres humanos que vivem em pluralidade e que manifestam suas opiniões na particularidade e contingência de conjunturas, arranjos, conflitos e negociações políticos. Por sugerir uma direção semelhante a essa que Arendt destaca a partir da Terceira Crítica kantiana, seguidamente, apresentamos alguns argumentos de Foucault, por meio dos quais propõe que analisemos a política a partir da dimensão micro das relações de poder. Relações e efeitos de poder microfísicos Nessa secção nos detemos em algumas considerações a partir de cinco trabalhos de Michel Foucault, compilados sob o título Microfísica do poder (1992).32 Com eles, tentamos contemplar o 32
Especialmente os trabalhos: “Verdad y poder”; “Nietzsche, la Genealogía, la Historia”; “Más allá del bien y del mal”; “Sobre la justicia popular.
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núcleo dessa perspectiva e que podemos sintetizar mediante o continuo: saber-verdade-poder. Analisando especificamente a relação entre verdade e poder (Foucault, 1992: 185-200), esta chama a atenção de Foucault a partir dos debates surgidos entre os anos 1950 a 1955, quando se discutia sobre o estatuto político da ciência e as funções ideológicas que ela podia acarretar. Então, Foucault sugere as categorias de saber e poder como as que melhor permitiriam apreender o entrelaçamento dos efeitos de poder e de saber. Para entender a ciência e seu status político, essa perspectiva nos propõe que a analisemos como saberes articulados a partir de discursos, que para ser significativos se ajustam a regimes. Desde esse ponto de vista, então, do que se trata é de entender que essas discussões giram em torno às regras de produção e legitimação desses discursos, que constituem saberes. Por tanto, o que deve ser observado com atenção é que os enunciados que são aceitos como cientificamente verdadeiros, agora, podem ter-se formado a partir de regras que foram modificadas. Dessa maneira, a pregunta seria: o que é o que rege os enunciados e qual é a forma em que eles se regem entre si, para ser reconhecidos como cientificamente válidos? É conveniente entender os enunciados científicos dentro de redes de relações políticas e o importante é a identificação de problemas na organização e Debate con los maos”; “Los intelectuales y el poder. Entrevistas Michel Foucault – Gilles Deleuze”. Recordamos que entre os anos 1974 e 1979 Foucault iniciava a formulação da sua concepção sobre biopolítica e ainda no pensava no cuidado de si e a governabilidade, ou seja não conceptualizava sobre a subjetividade.
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administração dessas políticas, dando atenção aos efeitos de poder que circulam entre enunciados científicos.33 Por outro lado, em “Más allá del bien y del mal” (Foucault, 1992: 31-44) continua essa reflexão sobre poder e verdade, abordando problemas que são entendidos mais habitualmente como políticos, isto é, não só o problema da repressão e o disciplinamento policial, mas, também o verso dessa política, visível no fato de exaltar a imagem de um homem “normal, racional, consciente e adaptado” (Foucault, 1992: 38), fundamentalmente, a partir de certa ideologia que se sustenta a partir dos binômios bem–mal, proibido–permitido. A essa atitude podemos confrontar ações pontuais e locais, que poderão ter certa eficácia se, como Foucault propõe, renunciarmos a teorizações com pretensão de discurso general, ou que tomam como ponto de partida a ideia de uma sociedade entendida como um conjunto, como um todo homogêneo e compacto. Por outro lado, também entende que se o problema está preso entre as amarras que provém de concepções utópicas, não é a teoria a que se deve opor à utopia, antes bem, a experiência. O par antinômico da utopia é a experiência, e é essa a que se nos propõe reconsiderar e reconstruir em nossos dias. Segundo Foucault, toda utopia tende a criar unidades onde ela não pode existir. A utopia espera 33
Esses regimes diferentes são os que intentou delimitar e descrever em As palavras e as coisas. Por outro lado, entre essa obra e A história da loucura, ainda que fosse sob aspectos diversos, ambas abordaram esse problema central do poder, ainda isolado de forma deficiente (Foucault, 1992: 178-9).
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uma solução igual para todos, por isso é que a utopia fala do “conjunto da sociedade”, que é justamente o que precisa ser questionado. Por isso é que à utopia contrapõe-se uma experiência e não outra grande teoria explicativa globalizante. Isso se deve a que, em esse contexto, Foucault entende a teoria com outro sentido que não é o de uma verdade com validade universal, como se diria platonicamente. É por isso que Foucault disse que “es necesario renunciar a la teoría y a los discursos generales” Foucault, 1992: 42), pois a contingência está tão presente nas teorias, como na experiência. Assim, para dar respostas novas e alternativas aos contemporâneos regimes de poder e verdade, deveríamos nos inclinar a entender e ter alguma incidência efetiva em nossas próprias experiências, mais do que sobre as teorias. Levando essa perspectiva para o plano epistemológico, Foucault propõe rejeitar aqueles analises que se remetem ao campo simbólico ou ao campo das estruturas significantes, recorrendo à analises que são feitos em termos de genealogia, dando centralidade às relações de força e ao desenvolvimento de estratégias e táticas, tomando como ponto de referência, não o modelo da língua e os signos, antes bem o modelo das batalhas dentro de uma guerra34. Dessa maneira, para estudar e entender os processos de constituição de enunciados que são aceitos como verdadeiros e, por tanto, dos quais se derivam efeitos articuladores de 34
Esse entendimento das relações de poder como guerra não é permanente na obra de Foucault, mas, que aqui ele fale de uma condição de guerra, nos ajuda a destaca o contingente da política, vista desde o particular.
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regimes de poder, o conceito que adquire significação é o de sucesso. Ele exige diferenciar as redes e os níveis aos quais pertencem esses enunciados ou as práticas políticas, para reconstruir a trama de relações que possibilitam que se engendrem e se conectem entre si. Essa perspectiva responde à convicção de que, para entender nossa constituição em quanto seres históricos, esses processos são melhor entendidos a partir da nossa condição para a guerra, mais do que da nossa condição de falantes. A história da humanidade entende-se melhor se vista como uma guerra, mais do que como um diálogo. Por isto, Foucault sugere analisar as relações de poder, antes que as relações de sentido numa perspectiva linguística. Seguindo esse raciocínio, essa abordagem genealógica também deve dispensar a prerrogativa de um sujeito constituinte, mais ainda, convém se livrar até da noção mesma de sujeito. Isso se explica pela convicção que Foucault tinha nessa época sobre a pertinência da proposta de rejeitar qualquer forma de a priori ou de transcendentalismo, especialmente esse de tipo antropológico. Pois seu interesse direciona-se para entender como se constitui o sujeito em e através da história, sem pressupor uma natureza, essência ou instâncias metafísicas semelhantes. Assim, a genealogia é entendida como uma forma de dar conta da constituição dos saberes, discursos e domínios de objetos, sem a necessidade de um sujeito fundante ou previamente existente. Aqui também convém recordar que, desde o continuo poder-saber-verdade, os efeitos de poder 141
não podem ser entendidos sob a forma negativa e limitada da repressão. Pois se o poder se mantem e é aceito é porque não apenas diz não, já que também e, sobretudo, o poder entendido de essa maneira, é aquilo que “permea, produce cosas, induce placer, forma saber, produce discurso” (Foucault, 1992: 182). É por isso que o entendemos melhor, se o consideramos como uma rede que produz e que se estende em toda a extensão do corpo social. De tal maneira que podemos falar de uma economia de poder, entendida como procedimentos que geram e possibilitam os modos em que os efeitos de poder circulam de forma continuada, sem interrupções, com adaptações, ao mesmo tempo em que individualizada no corpo social. No texto “Nietzsche, la Genealogía, la Historia” (Foucault, 1992: 7-30), Foucault desenvolve meticulosamente essa perspectiva genealógica, cuja virtude está em destacar a singularidade dos acontecimentos, resignando perspectivas que privilegiam a analise e a compreensão a partir de algum tipo de fim último. Com isso, não pretende se opor à história, antes bem a recorridos meta-históricos do pensamento historiográfico, engendrados por teleologias e suas consequentes significações ideais. A genealogia se opõe ao estudo de qualquer tipo de origem, que seja entendido como o “lugar de la verdad” (Foucault, 1992: 10). Essa genealogia propõe assumir o corpo como o locus em que os acontecimentos se inscrevem, e também como o lugar em que o eu é dissociado, justamente, por essa oposição a todo tipo de 142
transcendentalidade. Isso ocorre, pontualmente, a partir de uma redefinição do senso histórico, para praticar o que Foucault chama uma história efetiva (Foucault, 1992: 18), que possa apreender os acontecimentos, entendidos como uma relação de forças que muda seu sentido, quando muda o signo da dominação, ainda que não seja claramente identificável. Essa compreensão parte do pressuposto de que os jogos de forças envolvidos na história não obedecem a qualquer tipo de destinação, nem a leis mecânicas, mas, sim ao acaso e à luta. Assim, a história efetiva propõe-se como um saber em perspectiva, a partir do momento em que já não há uma história supra-histórica que determine o senso histórico da nossa compreensão. Mais ainda, o senso histórico genealógico se encarrega de destruir reificações tais como a realidade, a identidade e a verdade (Foucault, 1992: 25). Essa proposta dispensa o sujeito de conhecimento, entendido como pressuposto ontológico e epistemológico do saber, consequentemente são diluídos os limites e intensão da vontade de verdade. Essa outra maneira de entender os processos históricos constroi outro tipo de saber que renega de um sujeito fundante. Essa ideia é aprofundada, quando Foucault afirma em “Más allá del bien y del mal” que o problema da compreensão historiográfica vigente é que opera de tal maneira que o saber permanece inacessível ao acontecimento, por um lado, pela determinação que o poder de classe tem sobre esse saber e, por outro lado, esse acontecimento 143
encontra-se diluído e permeado pelo poder de classe, que o somete, pelo perigo e a ameaça que o acontecimento representa para esse poder de classe. Dentro dessas relações de poder, outro fator importante a considerar é o papel do intelectual (Foucault, 1992: 77-86), em relação ao qual Foucault adverte a existência de uma mudança significativa, que se revela no estabelecimento de una nova maneira de relação entre teoria e prática. O intelectual já não é aquele que toma a palavra e está legitimado como quem possui a verdade e a justiça, se transformando em algo assim como a consciência de alguma coletividade de sujeitos. Isto é, o intelectual já não á mais aquele indivíduo que de forma clara e prístina encarna a síntese de uma universalidade, em contraste com outra figura obscura, anônima e amorfa da massa, que precisa ser tutelada em seu pensamento. Dessa maneira, o intelectual já não teria como poder falar em nome dos outros, nem de poder dizer o que os outros têm que pensar ou fazer. Essa nova relação explicita-se na maneira de trabalhar que esse novo tipo de intelectual se propõe, pois esse “ya no busca lo universal y ejemplar, lo justo y verdadero para todos” (Foucault, 1992: 183), antes bem, devido a suas condições de trabalho e de vida especificas e singulares, ele se centra em setores específicos, em pontos precisos da existência. Isso lhe permite una aproximação mais imediata e concreta com os problemas pontuais, específicos e as lutas deles derivadas. Já não há urgência por uma consciência do universal. Essa forma de ligação entre teoria e prática é a que caracteriza ao intelectual especifico 144
(Foucault, 1992: 184). Dessa maneira, Foucault afirma que se antes o intelectual universal podia ser análogo ao jurista-notável, encontrando sua mais plena expressão no escritor, portador de significações e valores nos que todos podem se reconhecer. O intelectual específico identifica-se mais com a figura do “sábio-expert” (Foucault, 1992: 185). Essa proposta é aprofundada no texto “Los intelectuales y el poder”, no que diz respeito ao tipo de relação que os intelectuais estabelecem com a construção do saber e, sobretudo, em relação com as demais pessoas, quando afirma que o papel do intelectual não é o de se constituir em algo assim como a vanguarda ou ocupar o lugar do maldito para dizer a irrefutável verdade que a todos abrange e importa. Pelo contrário, antes disso, trata-se de que saiba identificar situações e lugares em que o poder é objeto e instrumento ao mesmo tempo, no plano do saber, a verdade, a consciência ou do discurso, e lutar contra as formas que esse poder assume. Nessa entrevista, tanto Foucault como Deleuze afirmam que a teoria não deveria ser entendida como o oposto à prática, isto é, não há uma relação de opostos ontológicos ou epistemológicos entre elas, pois ambos pensadores entendem que tanto uma como a outra são práticas. Por tanto, nem a primeira é a tradução abstrata da segunda, nem essa é a aplicação concreta daquela. Nesse sentido, a teoria é entendida como “una práctica, pero local y regional” (Foucault, 1992: 79), sem pretender universalizações abarcadoras da totalidade da 145
existência. Dessa prática, do elaborar teorias, derivam-se lutas que têm a característica de ser “fragmentárias” (Foucault, 1992: 77), o que não se deve entender como defeito ou incapacidade, mas, sim, como a expressão de como a vida acontece de fato. Nessa luta contra o poder, se trata de lutar para torná-lo evidente e exercer o poder de resistência que seja possível e contra-atacar, exatamente onde as relações de poder são mais visíveis e maliciosas. Pouco importa a “toma de conciencia” (Foucault, 1992: 79). Uma consequência importante que traz esse reconhecimento é que o intelectual já não tem condições de falar em nome dos demais e que agora se dedica a falar por si mesmo, apenas em nome próprio. Isso se traduz num estimulo para que as demais pessoas também falem e ajam em nome próprio, sem buscar substituir uma representação por outra. Esses elementos nos permitem concluir que a verdade não existe fora de ou sem poder. Pois, ela é produzida graças a múltiplas coerções, imposições e gerando “efectos reglamentados de poder” (Foucault, 1992: 187), sendo isso especifico e particular em cada sociedade, segundo cada uma tenha construído seu próprio regime de verdade, sua política geral de verdade (Foucault, 1992: 187), os tipos de discurso, os mecanismos e instancias que permitam dirimir entre enunciados verdadeiros ou falsos, os tipos de punição, as técnicas e os procedimentos valorizados para a obtenção da verdade e o estatuto de aqueles aos que se encomenda julgar o que é que funciona como o verdadeiro. 146
Desde essa perspectiva, verdade não se refere ao “conjunto de las cosas verdaderas” (Foucault, 1992: 188), mas ao conjunto das regras segundo as quais se distingue entre o verdadeiro e o falso, distribuindo específicos efeitos de poder (Foucault, 1992: 189) a aquilo definido como verdadeiro. Essa é a razão pela qual não se trata de libertar a verdade de todo sistema de poder, pois a própria verdade, ela mesma, é poder. Não obstante, o que sim pode-se fazer é se contrapor à forma hegemônica de verdade, exercendo relações de resistência para desvincular essa verdade do poder. Pois, a verdade mesma é questão de política, já que do que se trata não é de lutar para cambiar ou substituir a verdade que existe, mas de mudar o modo de fazer que algo seja verdade, a economia da verdade, a política da verdade. Foucault debate e analisa essas questões, aparentemente tão abstratas, numa problemática política concreta, quando no texto “Sobre la justicia popular” (Foucault, 1992: 45-76), discute com membros do Partido Comunista Francês de orientação maoísta, sobre qual é a maneira em que uma revolução de esquerda seria coerente com a administração de justiça, questionando a formatribunal, ainda que essa instituição supostamente esteja ao serviço dos interesses e objetivos das massas populares. Primeiramente, Foucault rejeita a ideia matriz de uma forma-tribunal, ou seja, a ideia de uma arbitragem ideal e dos três elementos que ela implica, a saber: 1) a exigência de um terceiro elemento intermediário entre as partes envolvidas; 2) a referência a uma ideia, a uma forma, a uma 147
regra universal de justiça e 3) uma decisão com poder executivo (Foucault, 1992: 54). Nessa direção, ele também rejeita a ideia de uma moral universal, que na modernidade foi imposta pela burguesia ao proletariado, separandoo dos setores populares não proletarizados. Porque uma moral assim continua sendo um pressuposto problemático para a liberdade do ser humano, embora seja institucionalizado por um movimento insurrecional revolucionário. Para Foucault, quem pense em termos de revolução, não pode se evadir de pensar que essa consistia, exatamente, em que é o aparato de justiça, propriamente, o que deve ser eliminado. Porque entende que o sistema penal e, dentro dele, pontualmente o aparato judiciário, nunca funcionaram de outra maneira que não fosse introduzindo contradições no povo, “confrontando el proletariado al sector de la plebe no proletarizada” (Foucault, 1992: 56-75). E é por isso que ele afirma que o aparato judiciário tem tido efeitos ideológicos específicos sobre cada uma das classes dominadas. Não obstante, também chama nossa atenção quando se opõe à ideia de que o sistema penal seja apenas uma vaga superestrutura, pois, em quanto sistema, tem tido um papel constitutivo nas divisões da sociedade atual. Esses são os aspectos que comporiam um núcleo central de reflexões nos textos selecionados, que propomos para questionar diretamente nossas concepções sobre saber, poder, verdade, o sujeito e a forma em que o intelectual se relaciona com eles, propondo una genealogia como matriz 148
epistemológica. Isto é, fica questionado qualquer tipo de essencialismo ou a priori antropológico, epistemológico, ontológico ou de qualquer outra natureza e, a partir disso, fica o desafio para construir entendimentos desde as humanidades, que privilegiem o particular e contingente como vias de acesso mais adequadas para reconhecer e compreender o que nos acontece no presente. Algumas considerações para o debate O presente texto reconstrói os argumentos de Hannah Arendt e Michel Foucault, pois entendemos que apesar das distâncias epistemológicas e ontológicas, e embora Foucault não se apoie na obra de Arendt, chamam nossa atenção na mesma direção, ou seja, sobre a necessidade de valorizar criticamente o particular contingente. Nesse sentido, há pontos que podem e devem ser mais desenvolvidos, só que pelo limitado alcance previsto para esse trabalho, só apresentamos os argumentos de maneira mais ou menos esquemática. Não exploramos as diferenças e especificidades dos pensamentos de cada uma das propostas explicitadas, por não ser esse o foco desse escrito. Pelo contrario, queremos nos concentrar em destacar as proximidades, justamente porque apesar das diferenças, essas perspectivas nos convidam a refletir sobre o mesmo assunto: compreender a política desde o particular contingente, repensando as questões relativas à universalidade e à comunidade política, e com isso, questionar a pretensão de uma teoria general da política.
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Segundo entendemos, a congruência assinalada é importante, porque nos exorta a construir relações e a desenvolver práticas em que a política seja o conteúdo e objetivo, quer dizer, na qual exercitemos nossa liberdade, assumindo seus riscos. Como diria Arendt, decidir se só queremos ser animais sociais ou se aceitamos o desafio de sermos animais políticos, para construir espaços públicos nos que exercitemos a palavra, dentro de uma pluralidade de opiniões, para decidir rumos coletivos e individuais, assumindo a capacidade de refletir sobre eventos particulares sem que estejam subsumidos sob um universal previamente estabelecido. Ou, como diz Foucault: vamos nos conformar com que um sistema de regras tenha substituído à política? Vamos continuar a camuflar a natureza bélica de nossas relações em sociedade? Até quando vamos a fazer a vista grossa ao fato de que as regras tomaram o lugar da guerra, instalando suas violências dentro de um sistema, passando assim de uma dominação para outra? (Foucault, 1992: 17) Quando vamos a nos decidir a construir relações de poder que dispensem qualquer a priori com pretensão de universabilidade absoluta, que insista em teorias gerais para explicar os eventos particulares, continuando com a reprodução das relações de dominação em que vivemos, muitas vezes, bem conformados? Isso não significa que a realidade seja apocalíptica e que apelemos a algum tipo de reconciliação redentora. Em todo caso, isso só seria aceitar o risco de exercitar nossa condição para a 150
política e a ética desde a contingência do particular sem recorrer a fundamentos últimos. Referências ARENDT, Hannah. Lições para uma filosofia política de Kant [New School for Social Research, outono de 1970]. Rio de Janeiro: Edição brasileira de Relume-Dumará, 1993. [Traducción y estudio previo de André Duarte de Macedo. Traducción al castellano nuestra]. ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. [Tradução de Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer]. CISNEROS, Leandro. O juízo reflexionante estético: uma das vias necessárias para a realização da liberdade política. Orientado por Maria de Lourdes Alves Borges e Alessandro Pinzani. Florianópolis, 2007. 140 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Florianópolis, 2007. FOUCAULT, Michel. Microfísica del poder. 3. ed. Madrid: Las Ediciones de la Piqueta, 1992. [Edição e tradução de Julia Varela e Fernando Álvarez-Uría]. KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
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A barbárie sem o discurso e o discurso filosófico na educação do humano Jason de Lima e Silva35 “Por que de súbito começa essa inquietação...? / Porque anoiteceu e os bárbaros não vieram. / E algumas pessoas vieram das fronteiras, e disseram que agora os bárbaros não existem mais. / E agora o que será de nós sem bárbaros. / Essas pessoas já eram alguma solução”. Konstantinos Kaváfis, Esperando os bárbaros, 1904 (Edições Nephelibata) 1. Preâmbulo da ideia Onde começa a barbárie? Onde a encontramos e em que medida somos capazes de reconhecê-la sem que haja a menor dúvida? Sobretudo, se pressupormos que toda a barbárie se institui apenas no reverso de uma civilização. E no rastro de muitas civilizações, como a nossa chamada Ocidental, há uma série de catástrofes que se acumulam no devir da história, contra as quais o Angelus Novus de Paul Klee nada pode fazer, segundo a interpretação de Benjamin, porque suas asas são impelidas por uma tempestade, e enquanto seu rosto olha o passado de mortos e ruínas, nós vemos uma cadeia de acontecimentos:
Doutor em filosofia pela UFRGS, professor do Departamento de Metodologia de Ensino da Universidade Federal de SaNta Catarina – UFSC. 35
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esta tempestade é o progresso.36 Sem considerarmos, ainda, o fato de barbárie e civilização não serem senão signos que habitam e configuram a mesma humanidade, como se um pêndulo na terra variasse seu compasso entre a medida da excelência e a pretensão da estupidez, a potência de criar e a obstinação de destruir ou nada significar. Essas são questões bem gerais para uma hipótese modesta o bastante para, à primeira vista, soar insuficiente, qual seja: a barbárie só existe (ou vinga) onde falta o discurso. À parte a réplica de poder também o discurso justificar a barbárie, ou barbáries (fundado, muitas vezes, na exigência de uma verdade com base na qual julga), talvez se torne menos insuficiente essa hipótese se esclarecermos o sentido de discurso: pois não se trata unicamente da fluência retórica de quem fala, na figura do orador, mas também, e primeiramente, do exercício da própria escuta, segundo um trabalho de ouvir e recolher o logos. Em segundo lugar, esse discurso significa uma abertura para a experiência do próprio diálogo. Entre o discurso do silêncio consigo e o diálogo sobre o mundo com outros está o princípio da filosofia. O desejo de ordenar silenciosamente o sentido do que não está dito no mundo e o afã de falar para nada deixar soterrado, como que presa das profundezas de um mistério tão inacessível quanto enfadonho, eis a plena realização filosófica: seu amor de superfície, 36
Benjamin, Walter. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. “Sobre o conceito de história” (1928). Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987.
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seu desejo de pôr à luz o que estava submerso e confuso. Em terceiro lugar, o discurso filosófico só se justifica se for convertido em ação, aos moldes dos filósofos antigos. Não se trata tanto de falar convicto de uma verdade, mas de viver verdadeiramente a própria suspeita: entre o saber que se diz e o reconhecer o que se pode. É o modo de viver filosoficamente, e não o discurso sobre filosofia, que faz alguém ser ou não ser um filósofo. Perguntado sobre qual a vantagem de ser um filósofo, Aristipos responde: “Se todas as leis fossem revogadas, continuaríamos a viver da mesma maneira”.37 Assim, filosofia se faz no esforço do sentido contra o não sentido, da razão dos afetos contra o caos das paixões, da razoabilidade do debate contra a tirania das opiniões, através de um discurso que se faz à força da razão, e não, como diz Fernando Savater, à razão da força.38 E é neste ponto que o discurso filosófico pode contribuir para a educação do humano, à medida que o “desbarbariza”, ou melhor, retira continuamente o homem do estado ou do risco da barbárie que nele mesmo sempre recomeça, e sobre ele se impõe pelo 37
LAÉRTIO, D. Vidas e doutrinas de filósofos ilustres. 2ª. ed. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1977, p. 64. 38 “Nada mais necessário do que esse exercício, porque a filosofia não é a revelação feita ao ignorante por quem sabe tudo, mas o diálogo entre iguais que se fazem cúmplices em sua mútua submissão à força da razão e não à razão da força”. Savater, F. As perguntas da vida. Trad. Monica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.2. Mais adiante ainda antecipa a razão de minha hipótese: “Raciocinar não é a algo que aprendemos em solidão, mas algo que inventamos ao nos comunicar e nos confrontar com os semelhantes: toda a razão é fundamentalmente conversação”. E ainda ironiza: “Às vezes os filósofos modernos parecem esquecer esse aspecto fundamental da questão”. Idem, p.42.
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reinado de seus próprios caprichos. Contra a barbárie que escraviza a alma, o remédio do discurso filosófico põe em obra um modo de vida cuja finalidade é tornar autarquicamente livre o ser do homem, e assim lhe dar franquia para humanizar não apenas a si mesmo, mas o mundo que habita com outros, conquanto possa de vez em quando reconhecê-lo na sua familiaridade e na sua estranheza. Quero, portanto, mostrar em que medida o discurso filosófico, como prática de si mesmo com outros, educa a humanidade para além de sua barbárie, a partir de três domínios: o domínio da palavra, o domínio do silêncio e o domínio da ação. Farei isso, já assinalo, com base em alguns fragmentos da cultura grega, cuja herança nos impõe o desafio de continuar a pensálos, enquanto nos resta algum fragmento de civilização. 2. O domínio da palavra: o domínio da palavra prepara o domínio da alma A primeira indicação da barbárie aparece na Ilíada de Homero, e aparece não ligado à ação violenta (como em Górgias no Elogio de Helena), nem em oposição ou em grau inferior à cultura helênica. Aparece para designar a tribo dos cários, povo do sul da Ásia Menor, os quais se reúnem na cena aos troianos, sob o comando de Heitor, para opor resistência ao exército dos aqueus e seus aliados. Os cários são designados como os falantes bárbaros (barbaranophon). Vejam, aqui não há a superioridade grega em relação aos que não sabem falar ou pronunciam mal o grego. Não há, nessa passagem, etnocentrismo ou helenocentrismo, 156
como diz o filósofo Jean-François Mattéi39. O poeta Homero apenas descreve uma forma de falar sonoramente confusa, uma fala de borborismos, cheia de ruídos. A repetição bar bar já não soa bem e por isso mesmo serve para definir aqueles que balbuciam ruidosamente seu próprio idioma. Só mais tarde é que os barbarófonos corresponderão não apenas aos cários, nem aos troianos, mas a todos aqueles que não falam o grego. Assim como somente mais tarde o bárbaro será associado aos atos de violência, sentido cuja emergência reconhecemos no Elogio de Helena (7) de Górgias, e posteriormente ainda à tirania, a exemplo de uma das passagens do Banquete de Platão (182 b-d). A genealogia dos povos cários, na Ilíada do século VIII, pertence ao reino dos falantes bárbaros, e é o único povo cuja gênese não indica nomes de família ou do país. Como aliada de Tróia, desde o início encontramos a barbárie de uma língua que não se faz entender. O que importa aí? Jean-François Mattéi responde: “Aquele que domina a palavra e as forças caóticas que se agitam sob a linguagem dos homens é civilizado, tanto na guerra quanto na paz; aquele que fala de modo confuso e desarticulado, deixando transbordar sua violência interior, é bárbaro, tanto na paz quanto na guerra”.40 O primeiro passo da cultura está marcado (passo visto, sem dúvida, já da perspectiva de uma cultura bem situada historicamente, a grega), qual seja: a articulação do verbo e a verbalização articulada 39
Mattéi, Jean-François. A barbárie interior. Ensaio sobre o i-mundo moderno. Trad. Isabel Maria Loureiro. Sâo Paulo: UNESP, 2002, p. 77. 40 Idem, p.80.
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entre os pares e os estrangeiros. A barbarofonia dos cários é um registro sensível sobre o som da fala, sobre a modulação do discurso, o ritmo fluente, e o primeiro indicativo histórico daquilo a que está submetido o homem bárbaro: ao risco de não compreender e não ser compreendido. O exercício da palavra filosófica, aos poucos na tradição grega, corresponderá ao esforço de traduzir continuamente o mundo, os seus signos, as suas fissuras e ambigüidades, em cujo devir nos vemos lançados a ponto de, muitas vezes, demorarmos a compreendê-lo. Tal como em Heráclito, quer ouvindo ou já tendo ouvido, a maioria na maioria das vezes tarda em relação ao logos, agindo ou falando. E assim chegam os homens descompassados para recolher o que se discorre no mundo, são axynetoi: não se lançam com o próprio ser. Por isso em Heráclito a valiosa metáfora dos dorminhocos e dos despertos. Por isso a preferência pelas coisas das quais há audição, visão e aprendizagem. (fr.55). Heráclito não perde tempo com notícias e conversas inúteis. O valor do que ouve corresponde ao valor do que fala (e mais ainda, do que escreve), e por essa razão deposita seus manuscritos no templo de Ártemis em Éfeso. Não para ser lembrado como sábio, mas para espiritualmente conduzir o devoto ou casual visitante do templo à abertura universal de seus pensamentos, e no lugar de se submeter à particularidade (idion) de seus impulsos, ao ordinário de suas preocupações, em algum momento, poder elevar-se à experiência de estar com o ser das coisas, o logos, na contingência do próprio mundo. 158
Há um fragmento, em todo caso, que é preciso recordar em Heráclito, um dos muitos tesouros que a tradição nos legou. “Mas testemunhas para os homens são olhos e ouvidos, se almas bárbaras (barbárous psychas) eles têm” (107). O que nos diz esse fragmento? Para aqueles que tem a alma bárbara, de nada adiantam seus sentidos, já que não dão sentidos ao que sentem, ao que percebem à volta. Aqui vale prestar atenção a essa associação entre a alma e a barbárie. O que faz a alma se submeter à barbárie? O fato, especialmente, de não se ver livre de seus afetos particulares para ver o que se mostra, e de não conseguir ouvir além do que já compreende, e por isso mesmo, se recusa a compreender. Essa prisão da alma em si mesma, sem abertura para o outro que é o próprio mundo, impede-a de, justamente, perceber as coisas tais como são. Vejam, as coisas tais como são, e não tais como poderiam ou deveriam ser ou ter sido, nem tais como não são. E um dos efeitos da dialética de Platão na República é erguer os olhos da alma para além de seu lodo bárbaro através das artes, tais como a ginástica e a música (Rep. VII, 533 c.-d.).41 A alma, enquanto escrava de sua barbárie, não tem forças, nem concentração suficientes, para escalar passo a 41
“O método da dialética é o único que procede, por meio da destruição das hipóteses, a caminho de autêntico princípio, a fim de tornar seguros os seus resultados, arrasta aos poucos os olhos da alma da espécie de lodo bárbaro em que está atolada e eleva-os às alturas, utilizando como auxiliares para ajudar a conduzi-los as artes que analisamos”. Platão, A República, VII (533c.-d.). Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. 12ª. edição. Lisboa: Fundação Calouste, 2010.
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passo a sabedoria rumo ao bem de todas as coisas, o bem que nos faz pensar. Dialética é o mais alto conhecimento em Platão. Dia-lego em grego se traduz por discorrer, conversar, atravessar a possibilidade do dizer e do compreender. A dialética em Platão se faz no diálogo vivo entre interlocutores, mas se chega por uma ascese da alma segundo um exercício de domínio de si sobre si mesmo durante toda uma vida, a sós ou com outros. No diálogo do Banquete, há uma dialética erótica ditada a Sócrates pela estrangeira de Mantinéia, Diotima, e tal dialética começa pelo amor juvenil pelos belos corpos para gerar belos discursos, e segue pelo amor da bela forma, das almas, dos belos ofícios e depois o amor das ciências para gerar belos discursos, até chegar a última das ciências, o conhecimento do que é belo em si e por si mesmo.42 Trata-se de uma dialética erótica cujo saber se situa entre o sensível dos corpos e o inteligível da forma. O aprendizado deste saber depende do efeito vivido na própria experiência de amar sensivelmente o que é belo: para produzir belos discursos. 3. O domínio do silêncio: o domínio da palavra pressupõe a compreensão do silêncio No pensamento de Heráclito não há separação possível entre a sabedoria do dito e a educação da escuta. “Pensar sensatamente”, diz o fragmento 112, “é virtude máxima e sabedoria é dizer (coisas) verídicas e fazer segundo a natureza, 42
Platão. O banquete (210 a – 211 d). Trad. José Cavalcanti de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1972 (Col. Os pensadores), pp. 47-48.
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escutando”. Não há como pensar sensatamente, nem dizer coisas verdadeiras, nem nada fazer segundo uma disposição que se mantenha no limite da natureza, sem ouvir, sem se dispor a ouvir, ou seja, sem se pôr atento ao movimento do mundo como logos. O filósofo Ortega y Gasset, na Rebelião das massas, acusa a perda da audição por parte do homem médio contemporâneo: “Para que ouvir se já tem dentro o quanto faz falta? Já não é época de escutar, senão, ao contrário, de julgar, de sentenciar, de decidir”.43 Há uma longa tradição, grega e latina, fundada no aprendizado da escuta. Não nos cabe aqui citá-la exaustivamente.44 Há anedotas como a do filósofo que, hospedado por um amigo, dormia com a mão esquerda sobre seu membro e a direita sobre a boca, pois era preciso segurar mais a língua do que seu sexo. Anedotas que revelam o perigo da tagarelice. Por isso Plutarco escreverá um tratado sobre o tagarela e outro sobre a escuta, no início da era cristã. O que importa aqui é assinalar a preocupação de se medir a língua para se aprender o necessário e não dizer além do suficiente a cada situação: de quem se ouve o que se fala? por que se fala a quem se fala? Para se aprender algo, o primeiro vício a ser vencido é o impulso de falar sem ponderar a escuta. A barbárie do tagarela encerra-o em si mesmo, como presa de seus juízos precipitados. Em Plutarco, o ouvido do 43
Ortega y Gasset, José. La rebelión de las masas. 30 a. ed. Madrid: Revista de Occidente, 1956, p.119. 44 Vale conferir o estudo de Michel Foucault a respeito: Foucault, Michel. “Aula de 3 de março de 1982”. In: A hermenêutica do sujeito. Trad. Márcio Alves da Fonseca. Salma Tannus Muchair. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 427-447.
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tagarela não se comunica com a alma, mas com a língua.45 O que ouve já se encontra sitiado por juízos em razão dos quais a língua não resiste responder e opinar. E se há na alma uma porta para o universal, uma passagem para o outro com os quais vivemos, a alma do tagarela patina no lodo bárbaro das próprias convicções, sem que seu dito ou ouvido receba do mundo a diferença que faz o mundo ser mundo. “Um homem tolo gosta de se empolgar a cada palavra”, lembra Heráclito (fragmento 87). Em boa medida, não apenas a civilização, mas o senso de pertencimento a uma cultura que nos antecede e subsiste a nossas vidas, o senso de civilidade e cultura supõe sempre o exercício de se perceber quais valores atravessam um discurso, se revertem ou não em experiências para além daquele que as viveu e se ganham valor quando narradas, se importam ou não tais valores ao destino de uma comunidade, se correspondem ou não a ação de quem fala, e o quanto é possível atravessar e debater a palavra do outro sem o risco de ser detido por uma ideia já previamente definida e de uma vez por todas, e assim, se permitir o exercício de fazer e de reconhecer um mundo em comum na pluralidade de nossas diferenças. 4. O domínio de si mesmo: ação e discurso Sofremos quando nosso querer pode menos do que gostaríamos e lamentamos quando o nosso poder quis mais do que seria suportável, depois de 45
Cf. Plutarco. Sobre a tagarelice e outros textos. Tradução Mariana Echalar. São Paulo: Landy, 2008.
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tê-lo feito e mesmo querido o que se fez. Há, entre os gregos, uma crítica permanente à desmedida humana, a hybris, quando se quer ou se faz poder além da conta. O perigo do herói é pretender a divindade, e é nesse perigo que também aprende a condição humana, mais do que seus pares. Essa crítica da desmedida, enfim, aparece tanto nas tragédias quanto nos tratados de filosofia. Uma tragédia que me ocorre agora é a de Antígona. Um dos momentos mais belos é quando, após ser decretada a prisão da heroína, Hemon, o noivo de Antígona, recorre ao pai, o rei Creonte, para fazê-lo reconsiderar sua decisão de decretar a morte de sua amada. “Os deuses, pai, implantam no homem a razão / — o bem maior de todos. Se falaste certo / acerca dessas coisas, não posso dizer / (jamais em minha vida eu seja capaz disso!). / Mas outros também podem ter boas ideias.”46 / Hemon não quer dizer estar seu pai errado, mas está errado porque não consideras as razões alheias, e quem se recusa a ouvir ou supõe ser o único a ter razão, é vazio em seu íntimo, se os abrirmos, veremos que estão vazios.47 Creonte recusa ouvi-lo e, nesse momento, se precipita na hybris, na desmesura sem volta, na fatalidade do erro de pretender ser o único correto. E logo verá que pôde mais do que quis e que quis além do que poderia suportar. O preço da hybris é o isolamento: àquele que ousou querer, poder e fazer além do limite de sua própria condição, perde os laços com sua comunidade, 46
Sófocles. Antígona (776 – 780). Trad. Mario da Gama Kury. 15ª. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009. 47 Idem (805-806).
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torna-se um apolis, um homem sem pátria nem lei que o proteja. Uma cultura que abdica de ensinar a medida, ou a sabedoria dada pela pretensão de têla ultrapassado, uma cultura sem uma educação da medida, enfim, corre o risco da barbárie. E a barbárie, como o reino de todas as paixões sem leis, institui a tirania de um lado e a escravidão de outro. Entre os bárbaros, diz Fedro no Banquete de Platão, é feio fazer carinhos nos amantes publicamente, assim como é feio o amor da sabedoria e o amor da ginástica, pois “não aproveita aos seus governantes que nasçam grandes ideias entre os seus governados, nem amizades e associações inabaláveis”.48 E esse é um ponto contra o qual o grego do século V não recua na sua diferença em relação ao bárbaro, o ser escravo: se admitimos a escravidão, se nos deixarmos escravizar, pensa o grego, aceitamos a tirania, aceitamos um poder sem medida e sem condução. Mas, antes, se nos tornamos escravos de nós mesmos, de nossas paixões e afetos, criamos a primeira condição para a tirania, cuja política está mais fundada no medo do que na liberdade, mais na suspeita do que no amor, mais na cumplicidade do poder do que na comunidade dos belos prazeres e das boas ideias. É importante lembrar que a liberdade para um grego supõe o modelo político do senhor e do escravo. Ser senhor de si é não ser escravo de seus impulsos. E aqui vale também uma anotação de Jean-François Mattéi: “O grego reconhece a civilização do bárbaro, sua anterioridade em matéria de religião, de costumes 48
Platão, op. cit. (182 c-d), p.22.
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ou mesmo de ciência. Mas existe um ponto no qual ele não transige: o servilismo da barbárie. O que distingue o bárbaro do grego é a dependência do homem em relação a seus desejos ou seu caos interior, que afeta tanto o déspota quanto seus súditos e lhes impede de aceder à liberdade”.49 Séculos mais tarde, na Rebelião das massas, Ortega y Gasset dirá ser a barbárie a tendência à dissociação “Civilização é, antes de tudo, vontade de convivência. Se é incivil e bárbaro na medida em que não se conta com os demais”.50 Barbárie, portanto, como o fato de não se poder contar com o outro, não se poder contar com qualquer um que seja, e por isso também, recusar servir a quem por ventura ou desventura necessite: civilização é primeiramente vontade de convivência. É claro que, em termos gregos, essa tendência bárbara à dissociação se justifica antes por uma dissociação da própria alma, em razão da qual vale a noção tão cara de harmonia, tal como aparece no pensamento de Pitágoras. Relacionar-se harmonicamente consigo e com outros é o ideal da educação grega. Mas para isso há uma intensa luta consigo, com e contra seus afetos, atividade que para o filósofo grego se traduzia como enkrateia, a arena das paixões no interior da qual se exercita o domínio de si sobre si mesmo, até se atingir a sabedoria, a sophrosyne, e assim gozar um pouco o sossego da alma com a alegria do pensamento. Ainda tomado pelo espírito grego, Nietzsche, em 1888, defende as três tarefas em virtudes das quais se precisa de 49 50
Mattéi, Jean-François, op. cit., o. 82. Ortega y Gasset, op. cit., p.124.
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educadores: aprender a ver, pensar, falar e escrever. “Toda ação sem espiritualidade”, diz Nietzsche, “bem como toda a vulgaridade repousa sobre a incapacidade de sustentar uma oposição a um estímulo – o ‘precisa-se reagir’ segue-se a cada impulso”.51 Se nós respondemos imediatamente a cada estímulo, barbaramente padecemos do que em nós pode ser o mais vulgar, já que nos faltou o intervalo, o tempo, no cultivo do qual aprendemos a ver, pensar, falar e escrever. Por fim, a despeito de toda a dissonância bárbara de nossas paixões e das vicissitudes do próprio mundo, a consonância da filosofia ensina o retorno a um porto seguro através de um diálogo permanente consigo mesmo e com outros. Diálogo em cuja abertura não apenas encontramos o prazer da conversação com os amigos, mas o próprio sentido para o que é e sempre será para além de nossas vidas, caso sobreviva alguma cultura. Assim, é neste lugar onde se encontram nossas diferenças, neste lugar cujo sentido se move e se transforma como o corpo e a pele de um animal no jardim da linguagem, nesta experiência única entre a palavra e o silêncio, entre o acordo instintivo e a dúvida razoável, é nesta abertura exercitada para o diálogo e no diálogo, em síntese, que vemos mais uma vez humanizado o mundo: e a revolta contra o que nos há de pior, impõe o trabalho pelo que ainda nos pode ser melhor. Mas quem disse ser o melhor sempre o mais desejado? Afinal, quem tem 51
Nietzsche, Friedrich. Crepúsculos dos ídolos, “O que falta aos alemães”, Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 63.
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paciência para tanta conversa, demora para acolher seus pensamentos e sabedoria para algum silêncio? Referências BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. “Sobre o conceito de história” (1928). Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987. FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. Trad. Márcio Alves da Fonseca. Salma Tannus Muchair. São Paulo: Martins Fontes, 2004. LAÉRTIO, D. Vidas e doutrinas de filósofos ilustres. 2ª. ed. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1977. MATTÉI, Jean-François. A barbárie interior. Ensaio sobre o i-mundo moderno. Trad. Isabel Maria Loureiro. Sâo Paulo: UNESP, 2002. NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculos dos ídolos. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. ORTEGA y GASSET, José. La rebelión de las masas. 30 a. ed. Madrid: Revista de Occidente, 1956. PLATÃO, A República, VII (533c.-d.). Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. 12ª. edição. Lisboa: Fundação Calouste, 2010. ______. O banquete (210 a – 211 d). Trad. José Cavalcanti de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1972 (Col. Os pensadores). PLUTARCO. Sobre a tagarelice e outros textos. Tradução Mariana Echalar. São Paulo: Landy, 2008. SAVATER, F. As perguntas da vida. Trad. Monica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2001 167
SÓFOCLES. Antígona (776 – 780 a.C.). Trad. Mario da Gama Kury. 15ª. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.
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Em busca do além-homem... Barbárie, civilização, cultura e educação em Nietzsche Vilmar Martins52 1. Introdução O presente trabalho é uma aproximação dos conceitos de Barbárie, Civilização, Educação e Cultura nas obras de Nietzsche, utilizando o conceito de Educação como “fio de Ariadne”, percorro o labirinto nietzschiano observando como o filósofo aborda estes conceitos e quais as relações que estes guardam entre si. Uma análise conceitual a partir do corpus philosophicum nietzschiano, necessita considerar que uma característica elementar do pensamento de Nietzsche é a dissolução das dicotomias e oposições, abominando o maniqueísmo entre bem e mal que domestica e limita o pensamento, o filósofo do martelo se esforça para evidenciar que as dualidades restringem o pensamento, pois previamente apresentam a resolução dos conflitos havendo um bem / bom para ser escolhido em oposição a um mau / ruim. Sendo assim para além de opor civilização a barbárie meu objetivo é demonstrar como a partir da barbárie construímos a civilização, que é multiplicada e alimentada pela educação, educação esta que deveria fomentar a cultura, pois a cultura seria o terreno no qual se realizaria a superação da atual condição humana.
52
Mestre em filosofia pelo Programa de PPGE/UFSC.
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A tarefa desta superação se situa na imbricação entre educação e cultura, pois a educação ao alimentar uma cultura nobre, desencadearia a produção continua, porém esporádica de tipos superiores, além do homem [Übermensch], que impediriam a massificação e o nivelamento da cultura. Na esteira das provocações nietzschianas intento demonstrar os instrumentos massificadores da educação e para além de uma “denúncia”, questionar / provocar o pensamento em busca de uma educação que realize nossas individualidades, promovendo a Cultura e o espirito livre. Estas reflexões podem nos auxiliar a repensar a educação, especialmente nestes tempos conturbados onde a educação por um lado é vista com desconfiança por uma sociedade mergulhada na informação e por outro lado como tábua de salvação para a ascensão social como prometido nos discursos democráticos. 2. Barbárie Ao se debruçar sobre o conceito de barbárie Nietzsche dissolve as fronteiras entre barbárie e civilização, afirmando que a barbárie foi necessária para criação da civilização, pois seu poder destrutivo inicial abriu o caminho para que a civilização florescesse “Essas terríveis energias – o que se chama de mal – são os arquitetos e pioneiros ciclópicos da humanidade. ”53 Desta forma a barbárie para Nietzsche foram forças selvagens necessárias, vistas como pioneiras 53
Humano Demasiado Humano, §246, p. 156. 170
ciclópicas da humanidade, pois para vicejar a Cultura foi necessária a ação da barbárie abrindo caminho a civilização. Porém, apesar da sua importância inicial o ressurgimento da barbárie depois do processo civilizatório significa um risco para a Cultura, pois a violência desmedida dos impulsos bárbaros se contrapõe a hierarquia de impulsos que caracteriza a cultura, ademais esta violência demonstra o fracasso do processo educativo em fomentar a cultura. Se por um lado a cultura é uma unidade de estilo, o contrário da cultura, a barbárie, “(...) é a ausência de estilo ou com a mistura caótica de todos os estilos”.54 O problema da barbárie está na sua multiplicidade incontrolável de paixões. O homem bárbaro é repleto de forças em um constante conflito por supremacia, para superar a barbárie se colocando além de uma domesticação civilizadora é necessário opor uma paixão ainda mais forte a multiplicidade de paixões bárbaras, para que acima da barbárie reine a Cultura como “(...) uma unidade de estilos artísticos que se manifesta em todas as atividades de uma nação”.55 A aparente oposição entre Barbárie como multiplicidade de estilos e Cultura como unidade de estilos, não escapa a Nietzsche pois este adverte: “Não se equivoquem com esta definição e não creiam que se trata de opor a barbárie ao estilo
54 55
David Strauss Crente e Escritor, §1, p. 11. Ibidem. 171
perfeito.”56 Esta oposição se dissolve quando compreendemos que “unidade de estilo”, não significa liberdade desenfreada para agir, e muito menos as inclinações de uma vontade particular. Em última instância o estilo não é uma percepção estética, mas sim o produto de uma exigência presente na cultura. Na esteira da multiplicidade dos estilos, a barbárie também é um desperdício de forças, pois neste estado “O comportamento da natureza tem toda uma aparência de desperdício, porém não o desperdício de uma exuberância criminosa, mas o da inexperiência; ”57 O caos estilístico que representa a barbárie por não se direcionar para nenhum objetivo, acaba desperdiçando esta energia primordial. A Barbárie, portanto, é a ambiguidade e a indeterminação, assim como também é a privação e o abandono, pois é a capacidade natural do tipo homem em sua absoluta efetivação e dispersão, onde dificilmente o humano consegue ascender para além de si, na barbárie a vida se limita a miséria da sua própria condição e o único ganho está em escapar do perecimento que o tempo impõe. Por isso a necessidade do processo civilizatório, para fugir da ambiguidade e da indeterminação, este processo é apontado por Nietzsche como o uso do intelecto, especialmente na sua de dissimulação e falseamento, de onde 56
Da utilidade e dos inconvenientes da história para a vida, §4, p. 137. 57 Schopenhauer Educador, §7, p. 235. 172
mais tarde se originará a moral como resposta dos fracos a violência dos fortes, pois “Na qualidade de um meio de conservação para o indivíduo, o intelecto desenvolve suas principais forças na dissimulação; este é com efeito o meio pelo qual os indivíduos mais fracos, menos robustos subsistem (...)”58 Se por um lado a Barbárie é essa profusão ilimitada das forças humanas, por outro lado essa profusão violenta acaba por minando as possibilidades de convivência humana, por isso o tipo homem em sua condição de hominídeo pulsional no deslocamento para a condição de animal político, faz uso do processo civilizatório. 3. Civilização Por um lado temos o processo civilizatório como esta capacidade de direcionar as forças do tipo humano, por outro este mesmo processo tornase tão violento quanto a barbárie pois “A “civilização” combativa (domesticação) necessita de todo tipo de ferro e tortura, para se manter contra a fertilidade e a natureza de animal de rapina”. 59 Desta forma a civilização tornar-se um processo radical de amansamento, para Nietzsche a principal característica do homem civilizado é a moralidade e para além de uma tábua de valores a moral civilizatória estabelece uma imutabilidade antropológica e um protótipo de ser humano, ou seja, se pretende única e universal, em última instância se alça a condição de “natureza” humana. 58 59
Sobre a verdade e Mentira no sentido extramoral, §1, p. 65. Fragmentos Póstumos 1887 – 1889, XIII 11 (153), p. 59. 173
Nietzsche realiza uma inversão das perspectivas, onde a domesticação passa ser vista como melhoramento e o melhoramento como enfraquecimento, desta forma a civilização com a promessa de elevar, enfraquece e diminui o tipo humano. “Tanto o amansamento da besta-homem como o cultivo de uma determinada espécie de homem foram chamados de “melhora” (...) Chamar a domesticação de um animal sua “melhora” é, a nossos ouvidos, quase uma piada”.60 Desta forma denominar o processo civilizatório de progresso para Nietzsche é uma falácia. O “progresso” da humanidade, como compreende a modernidade explicitado nos valores republicanos da revolução francesa “liberté, egalité et fraternité”, além da igualdade de direitos, compaixão, solidariedade, democracia, tolerância, etc. Seriam apenas enfraquecimento de uma natureza, a negação dos instintos humanos, em última instância civilização é tudo aquilo que declina, que domestica e inibe a vontade de potência. A Civilização de certa forma se opõe a Cultura para Nietzsche, pois a civilização seria um processo de domesticação do animal homem e a Cultura um processo de elevação do tipo homem, a civilização é por excelência redutora, castradora e cerceadora, pois busca a harmonia visando o prazer e o afastamento da dor, por outro lado a Cultura foge dos padrões de valoração, visando a superação da 60
Crepúsculo dos Ídolos, Os melhoradores da humanidade, §2, p. 50. 174
condição humana, a Cultura usa os instintos as “forças ciclópicas da humanidade” a favor do homem, buscando a excelência e a distinção. 4. Cultura Inicialmente se faz necessário argumentar que Nietzsche não pensa a cultura a partir de uma abordagem antropológica, para o filósofo do martelo a cultura [Kultur] é a expressão máxima de um povo dada na unidade de estilos de uma existência. O combate da Cultura não visa a felicidade de um povo, nem o livre desenvolvimento de seus dons, pelo contrário a cultura se mostra na justa proporção do desenvolvimento dos talentos deste povo. A Cultura se manifesta na relação com o Caos da existência, pois “O caráter geral do mundo, no entanto, é caos por toda a eternidade, não no sentido de ausência de necessidade, mas de ausência de ordem, divisão, forma, beleza, sabedoria e como quer que se chamem nossos antropomorfismos estéticos.61 Desta forma a cultura se define pela sua capacidade de organizar ou cultivar o Caos. Cultivar neste caso é dar forma e unidade ao que estava informe ou desorganizado, cultivado é aquilo que se tornou um conjunto coeso, recebendo uma forma: o contrário da forma é o não-formado, o informe, aquilo que é sem unidade. Em oposição a Civilização a Cultura visa a superação da atual condição humana, desta forma “O ápice da civilização e da cultura encontram-se 61
A Gaia Ciência, §109, p. 126. 175
separados um do outro(...)”62, e a civilização por estar separada da cultura, pode tornar-se uma barbárie cultivada. Em uma afirmação paradoxal, Nietzsche nos diz que “A cultura mais universal é exatamente a barbárie”63. A cultura universal promovida pelo processo civilizatório no seu ápice universalizante e democrático decai na barbárie ao intentar dar uma mesma unidade de estilo a todos os tipos humanos, ignorando suas capacidades e necessidades. Por conseguinte o que o processo democrático da cultura faz é criar uma variedade informe e sem unidade de estilos ou uma cultura de massa medíocre que não visa nada além de reproduzir determinados valores. Qual seria então o caminho para vivificar a cultura? Nietzsche afirma que este caminho é a educação, pois a educação tem a capacidade de hierarquizar os estilos, sem com isso massificar os estilos, mas levar cada um a tornar-se o que se é, ou seja, a atingir a sua própria altura. 5. Educação Buscando anunciar um processo formativo que possibilite ao humano tornar-se o que se é, Nietzsche afirma que nossa educação com ênfase na democratização e no utilitarismo, despreza nossas singularidades, negando os conflitos e homogeneizando o tipo humano, tornando-o massa. 62
Fragmentos Póstumos 1885 – 1887, 9 (142) (95), p. 344. Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, p. 74. 63
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Este processo violento de homogeneização e adestramento, cultiva um tipo homem fraco, desta forma contraditoriamente a educação para além de domesticar o humano contribui para barbarizar o tipo humano. Em seus escritos Nietzsche adverte que a educação regida pelo Estado visa criar rebanhos dóceis, conformistas e ignorantes. Esta educação gesta o humano teórico que domina a vida pelo intelecto separando vida e pensamento, corpo e inteligência, buscando no conhecimento apenas criar mais saber, sem colocar o conhecimento a serviço de uma melhor forma de vida. O pensamento pedagógico é apenas mais uma ficção intelectual útil, pois ao ser determinado pela sociedade e pela cultura em que surgiu e se desenvolveu, o pensamento pedagógico serve a apologia, explicação, imposição e determinação de modos de existência e possibilidades de vida, estes modos de vida como ficções da cultura e da educação. A sociedade surge e se estabelece a partir do conflito e das diferenças, onde os contrários agonisticamente se submetem uns aos outros, o problema está em assumir esta perspectiva como universalizante sob uma ótica dicotômica, onde um contrário nega as condições concretas do outro, afirmando uma identidade abstrata. Justamente este tem sido o mote da nossa educação a negação das individualidades e singularidades em nome de ideais abstratos. Esta educação monolítica que reproduzimos se volta para o estado e o mercado, refletindo em tipos humanos que saem dos ambientes educativos aptos 177
para serem usados pelo estado ou pelo mercado, mas não aptos para viver, pois a educação dissociou educação e vida. “A educação é um sistema de meios que visam arruinar a exceção em proveito da regra. A instrução um sistema de meios que visam ensinar o gosto contra a exceção, em proveito dos medíocres”64. Para os educadores os estudantes são algo novo, que devem ser tornados uma repetição, são peças novas que devem ser aparadas e homogeneizadas, apenas a semelhança e a igualdade devem imperar. Que elementos podemos contrapor a este processo formativo homogeneizante, de tal forma que a educação se tornasse o processo alimentador da cultura e a cultura nos elevasse para além da lama da simples subsistência, mas que a partir de uma educação para a vida gestássemos uma cultura para expressar essa vivência. 6. Em busca do além-homem Considerando que “O homem é algo que deve ser superado”.65 O processo educativo em Nietzsche aponta para a educação interligada com uma formação ampla, visando construir/alimentar uma cultura nobre. Esta cultura nobre desencadearia a produção continua, porém esporádica de tipos de uma cultura superior, este exemplar individual, superior, impediria a massificação e o nivelamento da cultura, o além do homem [Übermensch] seria o 64 65
Fragmentos Póstumos 1887 – 1889, XVI §6, p. 434. Assim Falou Zaratustra – Prólogo de Zaratustra §3, p 13. 178
resultado de um acúmulo de forças e seleção e não o alvo a ser atingido por um processo evolutivo geral. A questão que se coloca é: Conseguimos conviver me nossas escolas com este ser singular, este espírito livre? Alguém com um pensamento criador não propondo felicidade, igualdade e repouso como objetivo da existência, que considere a paz e a harmonia como um hiato entre os conflitos. Um indivíduo que “por amor ao futuro, trata duramente o presente e a si mesmo”, autodisciplinador que a partir das dificuldades potencializa seus impulsos para a auto-superação, produzindo e selecionando impulsos bem hierarquizados, usando a tensão e a diferença como motor para a luta entre os impulsos. Consciente que não recebeu qualidades acabadas nem de Deus, nem de seus pais, nem da sua condição social, mas disposto a traçar o fio da existência entrelaçando tudo o que foi e o que virá a ser, construindo suas caraterísticas nas relações, na luta dos impulsos por mais força e mais potência. Enquanto educadores estamos dispostos a conviver / estimular esta incômoda individualidade? Onde o educando não é um produto do educador, porém inegavelmente há uma influência recíproca entre esses sujeitos do processo educativo, que atitudes poderiam levar o educador a não impedir (já nos contentaríamos com isso) o surgimento / crescimento de espíritos livres? Pensamos que o educador deve desconfiar de qualquer origem perdida e idílica do tipo humano, 179
não há uma natureza a ser resgatada, mas sim a ser construída, também deve duvidar de qualquer teleologia e instrumentalização da educação, nada mais homogeneizador que uma “educação para”, da mesma forma o educador deve optar e preferir a diferença no lugar da identidade, o devir no lugar do ser, estimulando a invenção e a criação no lugar da revelação, fugindo da dialética com a compreensão que contrapor e conflitar palavras não é contrapor e conflitar valores. Este educador cético do mito moderno da interioridade sabe que não pode apelar para uma suposta “consciência” e nem é o seu papel construíla, libertá-la, torná-la autônoma, etc., desta forma coloca em “epoché” o diálogo e a ação comunicativa, incentivando sempre o dissenso e o conflito entendendo que a redução do conflito a partir do diálogo não é a supressão e nem a resolução do mesmo. Ao privilegiar a multiplicidade no lugar da unidade, a aparência no lugar da essência, o simulacro no lugar do ser, este educador estará renunciando as ideias de libertação, autonomia, emancipação e tantos outros cantos de sereias da nossa educação, dando as costas para as epistemologias da verdade o processo educativo poderá ser fundamentado sem fundamentos últimos, sem princípios transcendentes, mas sim universais contingentes, eventuais, efêmeros. Para superar a atual condição humana e encontrar o além do homem, penso que o educador deve agir como Zaratustra, que não queira pregar para as multidões e nem falar para os mortos, mas buscar companheiros para assim formar-se e 180
autoformar-se enquanto iguais, hierarquizando os espíritos e não as relações. Referências Nietzsche, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras. 2012. 340 p. __________, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado Humano: um livro para espíritos livres. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. 2005. 314 p. __________, Friedrich Wilhelm. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. 2011. 359 p. __________, Friedrich Wilhelm. Crepúsculo dos ídolos, ou, Como se filosofa com um martelo. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. 2006. 154 p. __________, Friedrich Wilhelm. David Strauss crente e escritor. In Considerações Intempestivas. Tradução de Lemos de Azevedo. Portugal: Editorial Presença. 1976. 211 p. __________, Friedrich Wilhelm. Da utilidade e dos inconvenientes da história para a vida. In Considerações Intempestivas. Tradução de Lemos de Azevedo. Portugal: Editorial Presença. 1976. 211 p. __________, Friedrich Wilhelm. Terceira Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador. in Escritos sobre educação. Tradução Noéli Correia de Melo Sobrinho. 5 ed. Rio de Janeiro: PUC-Rio. São Paulo: Loyola. 2011. 352 p.
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__________, Friedrich. Sobre verdade e mentira no sentido extramoral. In O livro do Filósofo. Tradução de Rubens Eduardo Ferreira Frias. 6 ed. São Paulo: Centauro. 2004. 110 p. __________, Friedrich Wilhelm. Sobre o futuro dos nossos estabelecimento de ensino. in Escritos sobre educação. Tradução Noéli Correia de Melo Sobrinho. 5 ed. Rio de Janeiro: PUC-Rio. São Paulo: Loyola. 2011. 352 p. __________. Fragmentos póstumos 1885 – 1887: Volume VI. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro-RJ. Forense Universitária, 2013. 480 p. __________. Fragmentos póstumos 1887 – 1889: Volume VII. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro-RJ. Forense Universitária , 2012. 596 p.
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