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Patrimônio histórico esquecido inibe turismo Roberto Tadros | página 4

Ano I n.º 5 junho/2013 R$ 9,90

Cheias e secas em níveis extremos confundem saberes tradicionais 28-38

Bumbás de Parintins ensinam como fazer um megaespectáculo 40-47

São Paulo é o destino do momento para consumidores de cultura 56-65

Entrevistas | Reportagens | Literatura | Cinema | Gastronomia | Música | Meio ambiente | Fotografia | Viagem


LANÇAMENTO

O livro Patrimônio Cultural – Proteção e Responsabilidade Objetiva, de Paulo Fernando de Brito Feitoza, é resultado de pesquisa a respeito da cultura nacional e sua responsabilidade. Tratase de uma obra jurídica demarcada por conceitos sociais e culturais. É recomenda para operadores do direito e estudiosos que buscam referências contemporâneas sobre o tema. Nas livrarias ou pelo site www.editoravaler.com.br



editorial

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esta quinta edição, dedicamos merecido espaço ao patrimônio arquitetônico de Manaus. De um lado, o apelo legítimo do empresário José Roberto Tadros, líder do setor comercial, à recuperação imediata do centro histórico da cidade de Manaus, há décadas com suas calçadas e ruas ocupadas por barracas de camelôs e “cozinhas” de refeições rápidas, como frituras e churrasquinhos. Tadros entende que, neste momento de preparação da cidade para a Copa do Mundo de Futebol, o Poder Público precisa devolver o centro antigo ao comércio legalizado e ao turismo. No Centro, concentram-se os principais vestígios da economia da borracha, que se estendeu do final do século 19 ao começo do século 20, e da fase exitosa do comércio importador da Zona Franca de Manaus, que durou da década de 1970 a 1990. O empresário acentua que Manaus é a única cidade da Amazônia brasileira que relega o patrimônio conquistado com a extração e comércio da borracha. De outro, há esforço governamental para a construção de obras voltadas às demandas da Copa do Mundo que irão mudar a feição da cidade e o jeito de a população se relacionar com ela. Os melhores exemplos são a Arena Amazônia, estádio onde se realização jogos da Copa, e as mudanças nos transportes coletivos públicos já anunciadas. São obras de impactos estético e funcional que, somadas à da ponte sobre o rio Negro, marcarão uma nova época na história socioeconômica da Amazônia. É da constituição das cidades que passado e presente, ainda que bem definidos por suas singularidades, ocupem os corações e mentes dos seus moradores. Isso jamais poderia ser menos verdadeiro na cidade banhada pelo encontro das águas dos rios Amazonas e Negro, dois dos mais importantes monumentos da natureza em todo o Planeta. Mas, caro leitor, essa é apenas uma das abordagens desta edição. Igualmente instigantes, estão as reportagens das seções de Meio ambiente, Personalidade, Diário de viagem, Fotografia, Literatura, Gastronomia, Música, Cinema e Opinião. Isaac Maciel Diretor-executivo

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INVC Instituto Nacional Valer de Cultura Av. Joaquim Nabuco, 1.605 – Centro CEP 69020-03 – Manaus-AM Tel. (92) 3234-9830

Diretor-Executivo Isaac Maciel Conselho Editorial Márcio Souza Renan Freitas Pinto Ivânia Vieira Tenório Telles Diretor de redação Wilson Nogueira MTB/AM 365 Editora-executiva Suelen Reis MTB/AM 235 Assistente de Edição Maria do Rosário R. Nogueira MTB/AM 148 Design e Direção de Arte Heitor Costa Assistente de design Carlos André Revisão Sergio Luiz Pereira Benayas Inácio Pereira Publicidade Hany Hauache Junior conectavenda@gmail.com (92) 3635-1324 / (92) 8401-0810 Marketing e comunicação Agência Conecta & Venda (92) 3642-4950 / (92) 9164-8911 Colaboradores desta edição Antonio Lima, Bárbara Nascimento, José Carlos Miranda, Luiz Otávio Martins, Marcus Stoyanovith, Michelle Portela, Tenório Telles, Thiago Almeida e Valéria Costa.


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Um novo marco na arquitetura amazônica

Cultura com irreverência

66 Ensaio sobre a (re) leitura da fé

70 Iracema e Simá unem metáforas sobre o Brasil

78 Viagem pela culinária venezuelana

84 Música popular produzida no Pará

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Manaus despreza patrimônio cultural da borracha 28 As águas no comando da vida 40 Logística espetacular

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São Paulo, a cidade do momento A graça de contar A identidade de William Shakespeare Coluna cultural latino-americana


entrevista | José Roberto Tadros

Manaus despreza patrim Wilson Nogueira e Suelen Reis | jornalistas

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centro antigo de Manaus, um dos símbolos da economia da borracha na Amazônia, precisa ser recuperado e transformado, urgentemente, em área adequada ao comércio e ao turismo. Quem faz o apelo é o presidente da Federação do Comércio de Bens, Serviços, Turismo do Amazonas (Fecomércio-AM) e primeiro vice-presidente da

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Confederação Nacional do Comércio (CNC), José Roberto Tadros, 67. O empresário – que também é presidente do conselhos regionais do Serviço Social do Comércio (Sesc) e do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac) – entende que é um equívoco do Poder Público permitir que ruas do centro histórico estejam ocupadas por barravalercultural

Foto: Divulgação Sesc

mônio cultural quinhas de camelôs. Os vendedores ambulantes, segundo o empresário, enfeiam as ruas, prejudicam o direito de ir e vir dos consumidores, provocam estado de insegurança nos turistas e ainda concorrem de modo desleal com mais de sete mil lojas, que pagam impostos e geram empregos. Todo o comércio de Manaus emprega ao menos 90 mil 7


Um modelo como esse (ZFM) serve para tirar o empresariado, o Estado, da economia da depressão”

pessoas. Do apogeu econômico da exportação da borracha, no final do século 19 e começo do século 20, e do comércio importador das décadas de 1970 e 1980, restam prédios de estilos arquitetônicos que marcaram épocas e ruas reservadas a pedestres, os chamados calçadões da Zona Franca. Para Tadros, Manaus é única entre as quatro cidades da Amazônia brasileira – as outras são Belém, Rio Branco e Porto Velho – influenciadas pela economia da borracha que despreza parte significativa do patrimônio cultural desse período. Confira a entrevista em que Tadros também abordou realizações do Sesc e Senac. Wilson – Qual é o perfil da instituição que o senhor dirige?

Foto: Divulgação

Prédio histórico onde funcionará a Faculdade do Senac

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Tadros – As instituições [Sesc e Senac] foram criadas sob a inspiração do governo Vargas, no Estado Novo, que estava influenciado pela do [Benito] Mussolini. Getúlio Vargas tinha grande ligação política com Mussolini. Cada segmento empresarial deveria contribuir com um percentual. No nosso caso, a atividade comercial, os recursos seriam direcionado ao Sesc e ao Senac; no caso da atividade industrial, para o Sesi; no caso da atividade agrícola, para o Senar, que depois foi extinto. O país estava passando por um período de “invasão” das cidades pelo homem do campo. O Brasil, uma sociedade agrícola até os anos de 1940, rapidamente entrou no processo de urbanização, principalmente com o desenvolvimento industrial da cidade de São Paulo. E aí se apercebeu que a sociedade de consumo era irreversível. Os empresários entenderam que precisavam de bases sólidas para o desenvolvimento comercial e industrial. As

famílias do Nordeste que migravam para São Paulo sabiam pegar na enxada, mas se deparavam com a falta de habilidade para trabalhar na cidade. Então foram criados o Senac e o Senai para preparar essa mão de obra. Suelen – O Sesc e o Senac, com suas atividades de lazer e cultura procuravam atenuar, de certa forma, os impactos das mudanças sobre os trabalhadores... Tadros – As pessoas vinham de outros lugares e sentiam-se deslocados numa cidade diferente. Saíam dos campos para cidades cheias de arranha-céus. Isso iria afetar o psiquismo dessas pessoas. Então surgiu o Sesc para oferecer esporte, lazer, cultura e saúde. Dentro do princípio grego mens sana in corpore sano atendemos não só o trabalhador como a seus familiares. Depois, o Sesc ampliou a sua atuação para a área de instrução, mas sem colidir com o Senac. Hoje, está maior ainda com o turismo social, que já levou os trabalhadores para Europa, Venezuela, Machu Picchu... Wilson – De lá para cá, o Brasil mudou várias vezes. Hoje, o Senac está se adaptando a uma a nova realidade da falta de mão de obra mais qualificada? Tadros – Com certeza. Temos que estar permanentemente nesse processo. Aqui, no Amazonas, vamos lançar a Faculdade do Senac. É a segunda no Norte/Nordeste e a primeira do Norte. Então, hoje, o sistema Sesc/Senac vai mais além: recebe o filho do trabalhador na recreação infantil, alfabetiza, oferece o ensino básico, fundamental e médio. E se ele quiser, tem o ensino valercultural


Fotos: Heitor Costa

profissional no Senac e poderá ir até a faculdade. Abrange todas as etapas do ensino até a conclusão do nível superior. Suelen – Quais são os cursos que serão oferecidos na Faculdade Senac nesse primeiro momento? Foi feita uma pesquisa para as áreas mais promissoras na região? Tadros – Com certeza passou por uma pesquisa. Atualmente não podemos partir para uma empreitada sem pesquisa de mercado. O processo tem que ter um cunho científico. Vamos ter cursos de Gastronomia, Design Gráfico, Logística e Processos Gerenciais. Wilson – E esse sistema educacional total abrange quantas pessoas atualmente? Tadros – Uma média de 40/50 mil diplomas por ano, entre o Sesc e o Senac. O Sesc tem as escolas de alfabetização de jovens e adultos (EJA), para preparar e inclusive resgatar aquela população que ficou lá atrás, quando não se exigia o ensino fundamental e que hoje não encontra mercado de trabalho. Hoje, pessoas com 40/45 anos precisam se alfabetizar. Naquela altura as exigências não eram tamanhas. Mas hoje as máquinas agrícolas e industriais são sofisticadíssimas. Quem não sabe ler e não entende como operar uma máquina estará fora do mercado de trabalho na indústria e nas grandes corporações comerciais. Wilson – Equipamentos e máquinas cada vez mais exige qualificação. Tadros – Sim. As empresas industriais operam com equipamentos valercultural

que são sofisticadíssimos e com tecnologias avançadas, cibernética, robótica... Até pouco tempo as empresas comerciais e industriais eram nativas. Hoje, grandes empresas dos setores varejistas e atacadistas estão investindo no Norte, no Nordeste ou no Sul. Então é preciso uma mão de obra qualificada. Wilson – Do ponto de vista da cultura, qual a sua análise da Zona Franca? A ZFM acabou se transformando em uma cultura cuja essência é a improvisação, a dependência permanente.

É preciso procurar alternativas para se formar uma estrutura forte na economia”

Tadros – O que digo é que um modelo como esse serve para alavancar e tirar o empresariado, o Estado, da economia da depressão [refere-se ao período posterior ao ciclo da borracha]. Mas é preciso procurar alternativas para se formar uma estrutura forte na economia. E para isso não se deve fixar em só uma atividade. Os EUA são grande centro agrícola; têm uma base industrial de alta tecnologia e criatividade que modificou a face da Terra; possuem, na área comercial e de serviços – aí se incluem entretenimento e turismo – sem similar no mundo. Nós ficamos permanentemente numa 9


Fotos: Divulgação/Sesc

visão contemplativa ou peripatética, passeando na visão do Distrito Industrial, quando tínhamos que construir uma base sólida para o turismo, o agronegócio e para o comércio. Essa acomodação é que preocupa os empresários nascidos aqui. Sabemos que, com as mudanças que se processam na economia do mundo diariamente, esse modelo pode se transformar em letra morta amanhã, como já se transformou o comércio importador de Manaus. Suelen – É preciso considerar que até o turismo interno caiu... Tadros – Ainda hoje eu comentava: como é que o brasileiro pode viajar pelo Brasil com um turismo tão caro? Hotelaria tem um contrato de demanda que é um absurdo! Um hotel pode estar vazio, mas deve pagar uma taxa de luz elétrica como se estivesse lotado. Isso não existe em lugar nenhum do mundo. E ainda cobram ICMS (Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) em cima desse contrato de demanda. O ICMS é cobrado em cima de uma expecta10

tiva de venda. Também paga taxa de iluminação noturna em cima da demanda. Entendo que taxa de iluminação noturna quem tem que pagar é o município, que cobra tributos variados para gerar esse benefício ao cidadão. Já ouvi várias pessoas dizerem que gostariam de fazer turismo dentro do Brasil, mas vão para o exterior, porque é muito mais barato. Suelen – E os brasileiros, em razão do turismo, têm uma boa participação na economia dos EUA... Tadros – É. Até porque nosso turismo é tão caro que os brasileiros vão comprar enxoval de casamento, de bebê, presentes para os filhos e até passar o Natal lá, porque é mais barato. Wilson – E em relação aos investimentos qual a participação do Sesc nas áreas de cultura e entretenimento? Tadros – Todas. Teatro, coral, ginástica rítmica, dança, folclore, desfiles de moda.

Suelen – O Sesc está com novos projetos culturais para Manaus como um novo Centro Cultural. Quais são as novidades nesse sentido e o que está em andamento? Tadros – Novo centro cultural vai ser construído no Centro. Já veio a autorização das obras com orçamento de 23 milhões de reais. Vai ser onde hoje é a quadra do Sesc, pegando toda a área do terreno, descendo para o subsolo e mais cinco andares. A previsão é para 2015, pois vamos começar as obras agora em 2013. O anfiteatro do balneário do Sesc – até agosto ou setembro, estará pronto. Esse é um investimento de 16 milhões de reais. Temos o campo de futebol – com pista de atletismo, três mil lugares sentados, cobertura, sala de imprensa climatizada, um investimento de 12 milhões de reais que deve ficar pronto até o final do ano. No dia 7 [de junho] vamos inaugurar a Faculdade Senac, onde funcionou o colégio Senador Lopes Gonçalves. Mas já vamos começar a obra da sede definitiva da faculdade. Como historicamente, o Senador Lopes Gonçalves sempre valercultural


foi uma escola da área do comércio, porque era administrado pelo Sindicato do Comércio Varejista de Manaus, fiz questão de comprar, pois vai continuar sendo escola. Suelen – Há investimentos para o interior? Tadros – O Hotel de Manacapuru, um investimento de 18 milhões de reais, está sem previsão de entrega, porque divergências levaram ao cancelamento da concorrência. Mas a primeira etapa está pronta. Só falta a última etapa, que terá uma nova concorrência. O hotel vai atender a toda a rede em nível nacional. A Colônia de férias (centro ecológico de lazer) já está em construção. Só no muro, de quatro mil metros, nós vamos gastar um milhão e oitocentos mil reais. Depois vamos fazer velódromo para competição de bicicleta, pedalinhos, campo de futebol, quadras esportivas, piscinas, redódromo (lugares para atar redes), churrasqueiras, bar, restaurante. Esses equipamentos vão atender ao chamado turismo de um dia. Não tem

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hospedagem. A colônia de férias está localizada nas margens do lago do Miriti, no município de Manacapuru. Também estamos ampliando o Senac em Parintins e Itacoatiara e construindo um barco-escola com domínio Sesc-Senac, um modelo maior que o atual do Senac.

Novos projetos para o interior: Barco-escola Sesc-Senac, Colônia de férias e hotel em Manacapuru

Suelen – E como esse barco vai funcionar? Tadros – O Senac continuará com os cursos profissionalizantes e o Sesc entra na área de atendimento da saúde, com gabinete odontológico e assistência médica, principalmente com o exame Papanicolau. Não é só esse serviço, mas é o principal. Esses barcos vão para regiões onde não há necessidade de base física. Geralmente são cidades com até dez mil habitantes. O barco-escola passa seis meses num determinado lugar e, nesse período, é possível fazer exames ginecológicos em todas as mulheres, tratamento dentário, além de oferecer uma biblioteca nos moldes clássicos, mais genérica, enquanto o Senac dispõe

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de livros técnicos, voltados para os cursos profissionalizantes. Wilson – E a Copa do Mundo? Qual a sua expectativa? Tadros – Temos cursos de inglês e espanhol à vontade e estamos preparando o estádio para servir como opção para treinos dos times para a Copa do Mundo. Wilson – E a expectativa de movimentação na cidade? Faturamento... Qual análise você faz? Tadros – O empresário, por sua natureza, já é um otimista. Temos expectativa que a coisa

vai melhorar grandemente, mas aí é preciso que essa cidade se transforme numa vitrine. Enquanto tiver a bagunça que está aí, o efeito vai ser contrário. Eles [os turistas] virão e nós vamos ter, num primeiro momento até um surto, mas o que vão dizer que isso aqui é um mercado persa. Wilson – Dê exemplos dessa bagunça na cidade. Tadros – Os camelôs, cidade abandonada, esquecida. O centro histórico idem. As pessoas querem ver o centro histórico. A pessoa não vai para o Cairo ver edifício moderno, vai 12

para ver pirâmides; vai a Roma ver o Coliseu, a basílica de São Pedro e não o novo edifício que a Fiat construiu... De maneira que temos que preservar o centro histórico que retratou uma época, o ciclo da borracha, que só ocorreu aqui, em Belém, no Acre e em Rondônia. Feudalismo teve no Ocidente todo; o sistema capitalista teve no mundo todo, mas o ciclo da borracha só aconteceu aqui, como o ciclo do ouro em Minas Gerais – e por isso quando a gente vai a Minas quer visitar a antiga Vila Rica. Suelen – E como o senhor vê o turismo ecológico no Amazonas? Existe uma estrutura que atenda esses turistas?

Tadros – Imagina! Aí é que está. Se o centro histórico está abandonado, se os camelôs tomaram conta das ruas e se as pessoas jogam o lixo na rua... Wilson – Mas isso diz respeito à gestão pública. Por que o senhor acha que o “centrão” ficou nessa situação? Tadros – Acomodação, desinteresse, falta de alguém que vibre com isso. Você vê, por exemplo, algumas atitudes tomadas pelo Robério Braga (secretário de Cultura do Amazonas). Quando ele restaurou o antigo quartel da polícia, você viu a quantidade de gente valercultural


que foi para lá no dia da inauguração? Você viu como está a praça de São Sebastião, hoje Largo de São Sebastião, depois que o Robério deu uma ajeitada naquilo? E quem diria que amazonense ainda gostava de ópera? Olha o sucesso do Festival de Ópera! Quem garante que as pessoas não sentirão prazer de circular no centro histórico restaurado, recuperado e valorizado. Até porque ninguém gosta de viver enfurnado. Hoje você sai do seu apartamento, entra no seu automóvel, sai do seu automóvel e entra num shopping center. Você quer olhar o céu, a rua, que ver um sujeito engravatado e outro de chinelo, de manga de camisa, quer ver o povo, a diversidade, a tacacazeira, quer ter opções. O Centro de Manaus tem sete mil lojas, você compra as

nidas, vias expressas, mas a cidade não tem isso. A única via que foi aberta mais recente, com o advento da Zona Franca, foi a Djalma Batista. Isso com Jorge Teixeira há 40 anos. E, por último, com o Eduardo Braga, a avenida das Torres, mas essa fica muito distante. Até você chegar lá, já pegou um tremendo engarrafamento. Mas é decididamente um desafogar. Teríamos que ter outras avenidas das Torres para rasgar essa cidade. Vê-se que a tendência de crescimento da cidade é para o lado do Tarumã e Vivenda Verde. Tínhamos que estar rasgando avenidas largas naquelas regiões. É para lá que surgirão os novos conjuntos habitacionais, os novos edifícios.

coisas muito mais baratas, olha para o céu... Agora você tem que ter segurança, higiene e o seu sagrado direito de ir e vir. Mas isso você não tem hoje.

Tadros – Criei-me no Centro e hoje sou morador de Adrianópolis. Mas a Manaus que eu conhecia é a Manaus do centro da cidade, a Manaus da borracha. No Centro viveram as famílias mais ilustres do Amazonas, que fizeram o Amazonas, sendo elas formadas por empresários, políticos e de intelectuais. Por isso deve ser preservado. Não adianta dizer que é centro histórico sem fazer nenhum investimento, sem ter respeito pela história. Não podemos deixar que pessoas de outros lugares façam bagunça na terra dos outros, quando são impedidos de bagunçar lá na terra deles. Em Porto Velho, Rio Branco, Macapá ou Belém não existem camelôs no meio da

Wilson – Manaus escolheu mal os seus governantes? Tadros – Diria que não, porque outrora éramos uma cidade de cem mil habitantes e hoje somos a sexta cidade mais populosa do país. Mas acho que, na verdade, o gestor público tem que ter uma visão de amor. Tudo tem que ser feito com amor. Para melhorar a circulação de veículos, é necessário rasgar avevalercultural

Wilson – O senhor é um morador do Centro?

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Fotos: Heitor Costa

Descaso e abandono em construções históricas e porto de Manaus

rua. Viajo o Brasil todo, o tempo todo e não vejo isso. O último lugar que ainda tem camelô é Manaus. Por que isso? Em troco de que e com que propósito acontece isso? Wilson – Mas os camelôs se transformaram em força política... Tadros – Se fosse, eles teriam deputados estaduais, federais, senadores. E se viraram uma força mesmo, por que foi eleito o Arthur Neto? Diziam que o Arthur teria se acabado em razão da retirada dos camelôs. E depois tem que prevalecer o respeito às leis. O leito da rua não é para ser ocupado. Não tenho nada contra que eles procurem um meio de vida, acho isso corretíssimo, mas um meio de vida que não prejudique terceiros, inclusive os próprios trabalhadores do Sindicato do Comércio do Amazonas que trabalham conosco. Eles se queixam

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porque perdem comissões (porque eles são comissionados) para camelôs. Esses produtos são vendidos aos camelôs não se sabe como. Eles não são importadores. Alguém está tirando vantagem nesse processo. Não sei quem, porque não me cabe interferir. Mas tenho ouvido dizer, lido nos jornais que eles também querem uma solução. Então que encontrem logo, antes da Copa. Se isso não acontecer até a Copa, pode esperar que Manaus estará fora da rota do turismo. Aliás, já está. Em grande parte por causa da incúria e estará muito mais. Porque esse turismo de navio não resolve muita coisa. Os turistas entram num ônibus no porto, dão uma volta e retornam para o barco. Até porque a visão que eles têm não é agradável. E isso não sou eu quem está dizendo, são os próprios turistas que dizem. Quando eles chegam e se deparam com aquele mar de camelôs, não se arriscam a descer do navio. Eles valercultural


sentem medo. E o Brasil está na mídia com a crescente violência e eles imaginam que pode acontecer alguma violência contra eles aqui. Turismo tem que ser segurança, beleza. Você tem que mostrar coisas diferentes. O centro histórico é para ter coisas diferentes: a arquitetura, as ruas, as vitrines, mas quem ousa fazer vitrines hoje em dia no centro da cidade? Está tudo abandonado, a iluminação de Manaus é péssima, é uma cidade escura. Espero que o Arthur resolva esses fatores negativos até porque ele tem um prazo: a Copa do Mundo é ano que vem. Não dá mais para empurrar com a barriga. Suelen – Mas esse é um problema que parece afetar outras cidades. Tadros – Nem tanto. Vou dar um exemplo. Rio Branco era a cidade mais feia da Amazônia, e os irmãos Viana, que têm amor a Rio Branco, a transformaram em uma cidade bonita. Inclusive eles foram os precursores do Prosamim. Eles fizeram o Canal da Maternidade, que foi a inspiração para a realização do Prosamim aqui. Não tem um camelô em Rio Branco. Se um camelô parar, a polícia o adverte e quinze minutos depois, se ele insistir, sua mercado-

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ria será toda recolhida. E quem comanda o Acre, em nível municipal e estadual é o PT. Eles [os gestores] não fazem vista grossa. Isso acontece porque os irmãos Viana amam o Acre, amam Rio Branco. Wilson – E o Porto de Manaus? Tadros – É só você comparar o Porto de Belém com o Porto de Manaus. Você chega ao Porto de Belém, o segurança está de terno e gravata, tem políticos, pessoas da sociedade almoçando lá. Aqui, duvido que você tenha coragem de passear com a tua família no porto. E o Porto de Manaus é muito maior que o de Belém, o Porto de Manaus não é assoreado e o de Belém é. Lá, não para barco nem navio. Mas é tudo arrumado, bonito. Todas as pessoas têm o direito de ir ao porto. O rico, a classe média e o pobre podem ir. Todo mundo quer se sentir bem. O pobre não gosta de ir para lugares horrorosos e feios. Já dizia o Joãosinho Trinta: “Quem gosta de miséria é intelectual. O povo gosta de luxo”. E Vinicius já dizia que beleza é fundamental. Seja beleza das pessoas, de uma tela, de um prédio bem-arrumado, de uma rua ou de uma cidade bem-arrumada.

Wilson – É visível que Centro de Manaus virou uma galeria de churrasquinho... Tadros – Totalmente. E outra coisa: Belém, pela sua estrutura, é muito mais difícil de cuidar do que Manaus. As ruas são estreitas, mas estão trocando toda a iluminação aérea por uma subterrânea. Por que Manaus não pode fazer o mesmo, se 65% da arrecadação da Amazônia é gerada pela ZFM? Dos atributos arrecadados na Amazônia, 65% são do Amazonas. O Amazonas é transferidor líquido de recursos para a União. Como é que Belém pode fazer isso e Manaus não pode? São essas perguntas que faço e não encontro explicação. Raciocino, raciocino e a equação não fecha.

Se isso não acontecer até a Copa, pode esperar que Manaus estará fora da rota do turismo” 15


Foto: Antonio Lima

arquitetura/urbanismo

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Um novo marco da modernidade amazônica A construção da Arena da Amazônia incentiva reflexões sobre a conservação de construções históricas e a inauguração de novos ícones de modernidade na capital amazonense Luiz Otávio Martins | Jornalista

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esde que foram anunciadas as 12 cidades-sedes dos jogos da Copa do Mundo da Federação Internacional de Futebol (Fifa), em 2014, boa parte da atenção da mídia e do público está voltada para as reformas e reconstruções de estádios de futebol, entre eles o célebre Maracanã, no Rio de Janeiro. Manaus é a única capital do Norte do país onde haverá jogos do even-

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to. Estão previstos quatro no total – o primeiro no dia 14 de junho –, durante a primeira fase do campeonato. E para atender às exigências da Fifa, o Estádio Vivaldo Lima, projetado pelo premiado arquiteto Severiano Mário Porto e inaugurado em 1970, na avenida Constantino Nery, foi demolido para dar lugar à Arena da Amazônia, prevista para ser inaugurada em dezembro deste ano.

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Foto: Divulgação

A escolha do formato da rede da trama tem a ver com o das escamas de peixe e de algumas cobras amazônicas”

Fotos: Antonio Lima

Inevitavelmente, a decisão do poder público de demolir a estrutura original do Vivaldão e erguer outra completamente nova – com impacto estético e lugar garantido como novo cartão-postal de Manaus – incentiva reflexões sobre conservação de patrimônio, a opção de oferecer ao público novos ícones de modernidade e até se não seria possível conservar a antiga estrutura e erguer a arena em outro local da cidade. A nova construção obedece a uma série de exigências da federação e possui características de outros projetos do gênero espalhados pelo mundo, como seu caráter multiuso. Externamente, a estrutura lembra a Allianz Arena, em Munique, na Alemanha, mas o estádio amazonense apresenta em sua fachada e cobertura um trançado de peças metálicas cujas formas fazem referências a elementos da região.

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“A escolha do formato da rede da trama tem a ver com o das escamas de peixe e de algumas cobras amazônicas. Foi feito um estudo de formatos que estivessem mais identificados com a cultura autóctone”, diz o coordenador da Unidade Gestora do Projeto Copa, Miguel Capobiango. O novo projeto é assinado pelo arquiteto Ralf Amann, do escritório alemão Gerkan Marg und Partner (GMP), e a execução está sob a responsabilidade da construtora Andrade Gutierrez. Com a inauguração da Arena da Amazônia, o governo do Estado espera que a área em que a obra está seja revitalizada – afinal, é uma parte da cidade bastante movimentada, que fica entre o Aeroporto Internacional Eduardo Gomes e o Centro Histórico de Manaus – e que o caráter multiuso do estádio, que terá um espaço integrado ao Centro de Convenções que está sendo construído ao

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Fotos: Antonio Lima

lado, seja continuamente explorado. Está previsto que a obra inclua em sua estrutura um restaurante e um estacionamento subterrâneo.

Marketing internacional Miguel Capobiango observa que a comentada troca do nome Estádio Vivaldo Lima por Arena da Amazônia tem suscitado muitos questionamentos por parte do público. Mas revela que ninguém trocou o antigo nome do local. “Na verdade, como todas as arenas da Copa têm significado regional, nada a impede de ser Arena da Amazônia Vivaldo Lima. O nome pode continuar associado à arena. Não houve decisão governamental em relação a isso ainda”, diz. O site do governo brasileiro para a Copa do Mundo 2014, inclusive, refere-se ao local como “Arena da Amazônia Estádio Vivaldo Lima”.

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O coordenador da UGP Copa observa ainda que o nome Amazônia chama muito a atenção internacionalmente. “Manaus nunca teve a oportunidade de estar tão presente no mundo como vai estar na Copa 2014. É obvio que esse nome está vinculado à exposição que a arena pretende trazer para a cidade. Então, a Arena da Amazônia tem esse caráter, sim, de carregar o conceito de que Manaus estará presente na Copa”, afirma.

Com a inauguração da arena espera-se que o entorno seja mais valorizado esteticamente e que a obra se torne um novo ponto de visitação em Manaus. “O estádio vai se tornar mais um ponto turístico a exemplo do que aconteceu com a Ponte Rio Negro, que tem um significado importante na cidade, hoje. As pessoas gostam de visitar e levar aquela lembrança porque são imagens que ficam no imaginário dos visitantes. Então temos que real-

Números

A obra está orçada em R$ 515 milhões e conta com R$ 375 milhões de financiamento federal. A área total é de 72 mil m2, e sua capacidade será para 44 mil torcedores. Em abril,

58% da obra já estavam concluídos, e a expectativa para maio é o início da montagem da fachada e da cobertura do estádio, que deve terminar no mês de outubro.

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“ mente tirar proveito disso”, diz Capobiango, lembrando que existem estádios importantes pelo mundo que promovem visitações pagas pelo público. Ele acredita que não apenas Manaus, mas o Estado do Amazonas sempre gostou de se mostrar de forma impactante para o restante do mundo. E a inauguração recente de grandes construções, como a Ponte Rio Negro, no ano passado, e a Arena da Amazônia, em dezembro, certamente fazem parte dessa característica. “Acho que é um conjunto de ações que vai levar Manaus a desenhar um novo horizonte, não só econômico, mas até de visibilidade mesmo”, comenta. “A cidade tem um caráter internacional muito grande. É uma capital a ser visitada, existe um desejo de visitação muito grande por parte de gente no mundo inteiro”.

Nova dinâmica E depois da realização da Copa? Como ficará a Arena da Amazônia numa cidade onde o futebol – modalidade que é o carro-chefe desse tipo de estrutura – carece de mais apoio e investimento? Capobiango acredita que a Arena pode coope20

Manaus nunca teve a oportunidade de estar tão presente no mundo como vai estar na Copa. É óbvio que esse nome está vinculado à exposição que a arena pretente trazer para a cidade” Miguel Capobiango

rar para uma melhoria da situação do futebol amazonense. “Vamos ter um equipamento público extremamente moderno, visualmente bonito e com uma nova dinâmica. Visitei alguns estádios mais modernos e são ambientes muito legais para passear, mesmo sem jogos. Você vê muita coisa, muita tecnologia, então isso fascina as pessoas. Tenho certeza que isso vai exercer mais um grande empurrão para que o futebol volte a ocupar seu espaço”, aposta. O coordenador da UGP Copa também comenta a preocupação que envolve o custo da operação da Arena. Ele observa que a Arena da Amazônia possui o tamanho do Estádio Olímpico João Havelange, o Engenhão, no Rio de Janeiro, em atividade, cujo custo operacional chega a R$ 500 mil por mês. “É mais ou menos o que vai custar nossa arena. Então temos que verificar de que forma vamos pagar o custo, e para isso temos que ter operação. Um show no Engenhão, por exemplo, paga três meses de uso. Basta um show internacional grande e lotado e você já tem uma garantia de funcionalidade, de custeio”, diz Capobiango.

Modernidades substituídas A arte-educadora Evany Nascimento, que tem concentrado suas pesquisas no estudo de patrimônio desde a sua graduação e é autora do livro Monumentos Públicos do Centro Histórico de Manaus (Editora Valer), observa que, de tempos em tempos, tem sido comum em Manaus o surgimento de modernidades que substituem uma modernidade anterior. Ela lembra de depoimentos incluídos numa edição do programa de TV Documentos da Amazônia, apresentado pelo jornalista Abrahim Baze, totalmente voltada para a história do Estádio Vivaldo Lima. “As pessoas daquela época falando sobre o que significou esse projeto chega a ser comovente porque ele está dentro de um contexto de modernização pelo qual a cidade passava, com a implantação da Zona Franca de Manaus, que derrubou a estética do período da borracha e lançou uma nova estética em termos de construção”, analisa. “O Estádio Vivaldo Lima, nesse período, vai ser um pouco o símbolo dessa modernidade, e num momento em que era interessante materializar

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nessas construções o nome de pessoas significativas naquela época”. Para Evany Nascimento, a construção da Arena da Amazônia faz parte de um novo momento de modernidade da capital do Amazonas ligado à cultura. “O estádio era específico para o esporte, embora ele tenha abrigado shows, eventos de distribuição de cestas básicas etc. Mas essa nova arena está dentro de uma concepção mais atual de construção de grandes espaços, que são espaços multiuso, tanto no Brasil como no mundo. E Manaus, como em vários outros momentos de sua história, não poderia deixar passar essa oportunidade, no contexto da Copa do Mundo, de se mostrar como uma cidade atualizada e moderna. Assim como não deixou passar a riqueza do período da borracha, para construir todo o território, e não deixou passar a implantação da Zona Franca para criar todo o centro comercial. Esse é um momento que estamos vivendo de grande concorrência cultural”, afirma. Evany observa que Manaus é uma cidade que alimenta há anos uma necessidade de se mostrar para o mundo, sempre da maneira mais moderna. “O que estiver acontecendo no mundo em termos de modernidade, Manaus vai adotar como uma necessidade. É como se

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a gente quisesse dizer a todo tempo que aqui existe um ambiente urbano que não está incluído nessa natureza toda”. Para ela, tal comportamento é gerado a partir das velhas piadas que associam a região apenas à floresta. “Diante disso, é como se as pessoas tivessem essa missão de dizer para o mundo: ‘Aqui existe uma cultura, existem projetos modernos’. É como se essa urbanidade brigasse todo tempo com a natureza. Tanto que as construções deixam de lado qualquer relação com árvores. Nossa arborização é precária, não temos zoológicos, o nosso contato com o rio foi completamente deixado de lado, perdemos o porto. É como se a cidade se cercasse numa redoma para não mostrar o restante da natureza”, diz, destacando que a identidade da região parece estar sempre em processo de reafirmação. O lado ruim dessa imposição de urbanidade em detrimento da natureza acaba sendo a perda de construções importantes. “O Vivaldão era um projeto do Severiano Mário Porto, que teve outros grandes projetos em Manaus”, elogia Evany. O fato de ter abrigado eventos importantes ao longo dos anos não impediu que o estádio acabasse sendo abandonado aos poucos. A arte-educadora lembra que o local já possuía uma história de falta de

O que estiver acontecendo no mundo em termos de modernidade, Manaus vai adotar como uma necessidade. É como se a gente quisesse dizer a todo tempo que aqui existe um ambiente urbano que não está incluído nessa natureza toda” Evany Nascimento 21


Fotos: Antonio Lima

Cenas do legado arquitetônico de Severiano Mário Porto

uso, ausência de reforma e de restauração. “Isso também é comum aqui, as coisas vão ficando sem cuidados, sem reformas e acabam sendo destruídas”, diz.

Simbologia Inaugurar um novo estádio com um nome que carrega a palavra “Amazônia” também faz parte da necessidade que Manaus tem de se apresentar maior para o Brasil e o mundo, na análise de Evany Nascimento. Ela acredita que o antigo foco de homenagear uma figura importante para o desporto foi mudado com propósitos turísticos. “Eu penso que, naquela época, o propósito era ter um espaço de esporte para a região que agregasse os outros países vizinhos e também ser um lugar de referência no Norte. Só que agora o turismo é a grande economia que pesa. Então o que vende mais, um nome particular sobre

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o qual ainda seria construída uma memória internacional ou um nome que já é conhecido internacionalmente? O nome Amazônia sempre teve um apelo e trouxe visibilidade internacional para a região”. A autora destaca ainda mais dois pontos simbólicos a respeito da Arena da Amazônia. O primeiro envolve o aproveitamento de material do Estádio Vivaldo Lima nas obras da nova construção e na estrutura de estádios esportivos do interior do Estado. “É como se pedacinhos que as pessoas construíram fossem colocados como pedras fundadoras desse novo estádio. De alguma forma o Vivaldão não morre. Ele continua ali porque está fundamentando tudo isso. A demolição dele serviu para a construção da arena. Então, se pensarmos uma biografia da construção, ele vai estar presente”, destaca Evany, enfatizando que essa forma de reutilizar material é uma prática das empresas de construção.

Outro ponto simbólico é a própria forma da cobertura da arena, com um desenho que remete a um cesto de palha ou paneiro. “Não se sabe até que ponto a engenharia vai conseguir reproduzir e deixar que fique claro visualmente. Mas, quando colocam o projeto da arena ao lado de um paneiro, é possível ver uma relação. E, simbolicamente, o paneiro está dentro da concepção dessas novas arenas multiuso, porque serve para guardar objetos, para transportar, para dar de presente, para decorar. O paneiro também é multiuso”, observa.

Sustentabilidade O conceito de sustentabilidade também faz parte da concepção da Arena da Amazônia, e está presente nas exigências da Fifa, por meio do programa batizado de Green Goal. Essa iniciativa prevê a redução de emissões de CO2 nos eventos da

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Fotos: Divulgação

federação, a armazenagem de água potável, coleta seletiva de lixo, reutilização de copos, economia de energia e um consumo eficiente de combustível em sistemas públicos de transporte. Coordenador do curso de Arquitetura e Urbanismo da Ulbra, Jaime Kuck destaca o elemento sustentável presente na concepção do arquiteto Severiano Mário Porto para o Vivaldão – que mesmo não sendo uma obra arquitetônica muito antiga, deixou a sua marca e inclusive conquistou o Prêmio Nacional de Arquitetura, em 1966. “Os projetos dele sempre tiveram essa preocupação relacionada com o clima local, e o estádio de futebol teve também algumas características bastante interessantes que marcam a arquitetura do Severiano no Amazonas, particularmente em Manaus”, comenta. “O Vivaldo Lima foi um estádio que se inseriu na topografia local, se utilizou um pouco menos de terraplenagem e

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não foi, digamos assim, um monumento externo de uma escala muito grande, como normalmente os estádios são, porque ele estava praticamente dentro da terra. Isso foi uma coisa bastante interessante. Fora a qualidade arquitetônica que marcou muito a história da cidade”. Em meio a elogios a Severiano Mário Porto, Kuck lamenta a situação em que se encontram algumas obras assinadas pelo arquiteto, premiado inclusive internacionalmente. “Projetos muito importantes estão sendo completamente deteriorados por falta de conservação, e com isso perdemos em relação à memória de alguns objetos arquitetônicos fundamentais para a história da arquitetura no Amazonas”. Entre as obras assinadas por Severiano Mário Porto no Estado estão o prédio da sede da Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), o Fórum de Justiça Henoch Reis, o Campus da Universidade Fe-

deral do Amazonas (Ufam) e a Casa da Cultura de Itacoatiara. Jaime Kuck lamenta a perda do estádio antigo, mas não como uma questão de mero saudosismo. “Há a preocupação com outras questões que têm acontecido no sentido de prejudicar a memória, particularmente a memória arquitetônica de Manaus. A gente lamenta. Claro que a cidade tem um ganho de um grande projeto de arquitetura, um monumento talvez até desproporcional em relação a nossa demanda no campo esportivo, particularmente do futebol. Mas, de qualquer maneira, talvez a gente sofra um pouquinho ainda de um certo complexo de inferioridade e precisamos construir grandes obras para mostrar que existimos”, diz. “Acho que isso não é necessário. Temos outras coisas pequenas que provam que existimos e que somos importantes”. Em relação a obras consideradas patrimônio histórico e contempladas

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Foto: Antonio Lima

Foto: José Carlos Miranda

Pesquisadora Luciane Páscoa

com tombamento e aquelas com características urbanas mais modernas, a população deveria demonstrar o mesmo respeito. “Nós precisamos é não esperar pelo tombamento de um ícone da arquitetura para ele ser valorizado e conservado. Acho que o objeto arquitetônico importante deve ser conservado pelo valor arquitetônico que ele tem e que marca uma determinada época na cidade”, afirma Jaime Kuck. “Não precisamos respeitar só o patrimônio histórico tombado, nós precisamos ter um pouquinho mais de respeito em relação às características urbanas que foram sendo construídas ao longo do tempo e que contribuem muito para a consolidação da memória da cidade. O que reforça os laços do cidadão em relação ao seu espaço é a memória, que é feita de imagens que existiram no passado e que ainda testemunham, no pre-

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sente, a sua importância naquele momento, a sua importância ao longo desse tempo e a sua importância hoje também”.

Marca mais moderna A professora doutora Luciane Páscoa, da Escola Superior de Artes e Turismo da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), questiona se a população não tinha um apego com uma construção como o Estádio Vivaldo Lima. “Mesmo que não fosse tombado como prédio artístico, um marco do patrimônio, será que não havia uma relação do cidadão com ele que fomentasse uma discussão que atingisse um âmbito maior para levar as pessoas a discutirem mais calmamente? Será que a população perdeu realmente o vínculo com aquela estrutura ou tinha uma relação de memória que não se mani-

festou?”, comenta. “Um grupo pode ter protestado, falado alguma coisa, mas foi uma discussão muito localizada, sem muita repercussão. E, no fundo, todo mundo quer o novo”. Luciane lembra que, em outras épocas, era comum a alteração de obras artísticas sem consultas à população. “No mesmo local onde hoje existe uma igreja de estilo gótico, pode ter existido uma basílica, uma igreja românica e depois modificações góticas”, conta. “Mas naquela época não havia a noção que temos hoje de patrimônio e as pessoas usavam constantemente o local. A gente julga esse passado, mas estavam utilizando determinado monumento”. Ela observa que a noção de preservação tem início no movimento do Romantismo. “É quando se começa a se voltar os olhos para a Idade Média, no sentido de recuperar monumentos, res-

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e também a empresa privada tem que dar a sua contrapartida. Falta uma educação patrimonial”. Luciane Páscoa lembra ainda que existem cidades que convivem bem com a relação entre patrimônio histórico e modernidade. “Há lugares que se propõem até a criar novos edifícios dentro de uma estética contemporânea. Sinto falta disso em Manaus. Cultuamos o Teatro Amazonas, que é um monumento muito importante, mas é usado para

Foto: Divulgação

taurar catedrais, e então surge essa questão de preservar o passado e respeitar a memória”, diz. Em relação ao patrimônio artístico de Manaus, ela elogia o esforço da Secretaria de Estado da Cultura para restaurar obras importantes, mas acredita que para a realização de um trabalho maior seria preciso mais forças econômicas e políticas. E frisa que o cidadão também tem que fazer a sua parte. “O cidadão tem de cuidar melhor da sua cidade

À espera de licença ambiental

Projetado em 2005 pelo arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012) para oferecer uma vista panorâmica do encontro entre os rios Negro e Solimões, o Memorial Encontro das Águas é outra obra que, quando for inaugurada, certamente vai figurar entre os cartões-postais de Manaus. É a única obra prevista para o Amazonas do arquiteto responsável pela estética de Brasília, e a segunda planejada por ele para a região Norte – a primeira é o Memorial da Cabanagem, localizado em Belém do Pará.

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tudo e está sendo até sobrecarregado. Precisamos de um teatro para atender a outros públicos, outras exigências, festival de jazz, concertos diversos. A cidade já comporta público para abrigar outros teatros e há uma necessidade de espaços mais modernos”, analisa. Luciane defende uma marca mais contemporânea em Manaus, não apenas a revitalização de espaços antigos, mas também a construção de uma estética moderna.

Até o momento não há previsão para que o Memorial Encontro das Águas, que aguarda licença ambiental, seja inaugurado. “Estávamos aproveitando a oportunidade da Copa do Mundo 2014 para conseguirmos o recurso para executar o memorial, uma obra que não é barata, bem localizada e com um visual maravilhoso”, explica Miguel Capobiango. “Ocorre que durante o desenvolvimento da operação de execução da obra nós enfrentamos a questão do tombamento”. Sem condições de construir a obra para a Copa do Mundo, o projeto foi devolvido para a Secretaria Municipal de Infraestrutura (Seminf). “A secretaria é quem vai verificar o espaço adequado de tempo para que o memorial possa vir a ser realidade”, diz o coordenador da UGP Copa. O memorial foi o primeiro lugar cogitado para abrigar o Fan Fest, evento oficial da Copa para exibição pública dos jogos do campeonato e para apresentações artísticas. O local escolhido agora é a praia da Ponta Negra. O Encontro das Águas está entre os maiores atrativos turísticos da região e foi tombado em 2010 como Patrimônio Histórico pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O memorial projetado por Niemeyer está orçado em cerca de R$ 40 milhões e planejado para ocupar uma área de 9.383,33 m2, no bairro Colônia Antônio Aleixo.

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História recuperada

Foto: Divulgação

Torço para que a Arena da Amazônia tenha uma contribuição em outras atividades, para que não fique esquecida e não tenha o mesmo fim do Vivaldo Lima Abrahim Baze

Logo que soube que a estrutura original do Estádio Vivaldo Lima seria demolida, o jornalista e historiador Abrahim Baze decidiu narrar a trajetória do lugar no programa Documentos da Amazônia, apresentado por ele e exibido pelo canal Amazon Sat. “Eu recuperei a história do estádio com depoimentos do Flaviano Limongi, do Eduardo Monteiro de Paula, do Arnaldo Santos e do Carlos Zamith. Recuperei também a narração e o vídeo da inauguração do estádio”, conta. O baiano Vivaldo Palma Lima (1877-1949) foi médico, advogado e político, e teve o nome homenageado no estádio de futebol por ser um grande entusiasta dessa modalidade esportiva. Foi sócio-fundador e presidente do Nacional Fast Clube, sócio benemérito e presidente do Nacional Futebol Clube e ainda sócio honorário do Luso Sporting Club e da União Esportiva Portuguesa de Manaus. A pedra fundamental do Estádio Vivaldo Lima foi lançada em 1958, mas o local só foi inaugurado oficialmente em 5 de abril de 1970, com uma partida amistosa entre a

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seleção amazonense e a seleção brasileira, esta a vitoriosa, por 4 a 1. A vinda da seleção nacional, que contava com jogadores como Pelé e Roberto Rivelino, foi possível graças à amizade entre o então presidente da Federação Amazonense de Futebol (FAF), Flaviano Limongi, e João Havelange, na época presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD). A capacidade do Vivaldão era para 43 mil pessoas. Antes da construção do Estádio Vivaldo Lima, que Abrahim Baze comenta ter sido um anseio da população de Manaus que, até então, não tinha um estádio à altura, o jornalista lembra que as atenções estavam voltadas para o estádio do Parque Amazonense. “Esse estádio tem uma história muito bonita onde havia jogos de futebol, corridas de cavalos. Não era suntuoso, mas historicamente tinha um registro importante”. Mas o estádio do Parque Amazonense foi vendido – por uma boa causa, frisa o historiador – e os torcedores passaram a assistir aos jogos no Estádio Ismael Benigno, do São Raimundo

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Esporte Clube, popularmente conhecido como Colina. O sonho da construção de um estádio de grande porte em Manaus começou no governo de Plínio Coelho (1955-1959), passou pelo de Arthur Reis (1964-1967) e foi concluído durante o mandato de Danilo Areosa (1967-1971). “A sociedade esportiva precisava de um estádio decente”, afirma Baze. Com o tempo, infelizmente, o futebol amazonense passou a enfrentar dificuldades. “O esporte aqui em Manaus perdeu a sua atenção. Os clubes envelheceram socialmente e financeiramente. Perderam o seu poder de barganha de contratar grandes jogadores. Isso fez com que a população deixasse de ir ao estádio. E nós passamos a ter o Vivaldão como se fosse um elefante branco”, conta o jornalista.

Perda

Embora esteja na torcida para que a Arena da Amazônia não tenha o mesmo destino de abandono e descaso enfrentado pelo Estádio Vivaldo Lima, Abrahim Baze não é muito otimista em relação ao futuro da nova construção. “Torço para que a Arena da Amazônia tenha uma contribuição em outras atividades, para que não fique esquecida e não tenha o mesmo fim do Vivaldo Lima. É um projeto belíssimo. Eu espero que nossos governantes possam cuidar bem da arena, até porque o investimento foi muito alto”, diz. “Mas, terminada a Copa, a arena vai pagar o preço que pagou o Estádio Vivaldo Lima. A tendência é essa porque quem vai usar mais é o esporte, e o esporte não tem estrutura profissional, não tem estrutura financeira, a sociedade esportiva envelheceu. Não temos estrutura que estimule o torcedor a ir ao estádio. É uma crise que não é só nossa, mas estamos em pior situação”.

Foto: Antonio Lima

Para Abrahim Baze, a decisão de demolir a estrutura original do Es-

tádio Vivaldo Lima representa uma grande perda. “Historicamente nós perdemos. Eu não quero julgar as razões, os motivos, mas nós temos, sim, espaço físico numa cidade como Manaus para fazer um grande estádio de futebol na Cidade Nova, por exemplo, um dos bairros mais populosos. Se lá não tivesse espaço poderíamos construir até mais distante, porque desde que o poder público direcionasse transporte coletivo de boa qualidade e estacionamento confortável, o povo iria”, opina. O jornalista também teme que a opção em marcar um nome como Arena da Amazônia possa cooperar para que o nome Vivaldo Lima se perca no tempo e acabe caindo no esquecimento. “Esse nome ficará na lembrança de alguns historiadores, como eu, que ao passar por ali vai entender que essa família teve o nome ali perpetuado e, de repente, foi esquecido. Acho que, no mínimo, o nome deveria ser Arena Amazônica Vivaldo Lima”.

Arnaldo Santos, destaque na cabine do estádio Vivaldo Lima

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meio ambiente

AS ÁGUAS NO CO

DA VIDA

Cheias e secas em níveis extremos confundem os saberes tradicionais e desafiam o conhecimento científico Wilson Nogueira e Marcus Stoyanovitch | jornalistas

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Fotos: Heitor Costa

OMANDO N

o dia 14 de abril, as águas do rio Solimões haviam engolido o chão das casas das margens do paraná do Paratari, no município de Manacapuru (AM), e já sinalizavam uma grande enchente. As aulas estavam suspensas e a maioria dos moradores migrara para as terras mais altas. Os moradores do Paratari, assim como os de todo o vale

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amazônico, vivem sob o ritmo do ciclo das águas e, por isso, estimá-lo em alcance e intensidade previne sobressaltos. A maioria dos ribeirinhos já se orienta sobre o movimento das águas por meio dos serviços meteorológicos divulgados pelo rádio e pela TV, hoje disseminados nas comunidades rurais. Os aparelhos de TV, conectados a antenas pa-

rabólicas, funcionam, na ausência da energia elétrica, com baterias carregadas por placas fotovoltaicas – mais conhecidas como placas de energia solar. É difícil encontrar uma comunidade ou povoado que não possua ao menos uma casa com “tevê de antena parabólica”. As previsões das enchentes e vazantes baseadas na ciência meteorológica, ainda assim, se entrecru29


zam com as da sabedoria milenar dos habitantes dos rios. Os moradores mais antigos faziam suas estimativas não só pelo ritmo das águas, mas, sobretudo, pelo comportamento dos animais e dos vegetais. Essa sabedoria dá conta de um mundo que se manifesta no todo e nas partes. Rios, animais e vegetais são seres vivos entrelaçados. Izenildo Delfino Medeiros, 43, morador da comunidade Nossa Senhora do Carmo, localizada no Paratari, ainda lembra da “crença” dos mais antigos: “Quando o sapo-cururu cantava [coaxava] de frente para o rio, era sinal de que a vazante seria grande; quando ele cantava de frente para terra, era sinal de que a enchente seria grande”. Ele explica que a sabedoria dos antigos é sempre reconhecida, mas a tendência dos mais novos é a de se informarem por meio dos serviços meteorológicos. Para Izenildo, existe hoje uma enorme irregularidade no comportamento dos rios nos últimos anos. No espaço de apenas três anos

ocorreram duas grandes enchentes: a 2009 e a do ano passado. Conforme a régua de medição do porto de Manaus, a enchente de 2009 superou a de 1953, até então considerada a maior desde começo da medição, em 1902. Os ribeirinhos das várzeas do Solimões asseguram que a enchente do ano passado foi maior que a de 2009. “No ano passado, perdi 14 cabeças de gado”, afirma Izenildo. As águas do Solimões, nas várzeas de Manacapuru, estavam bem abaixo do nível da enchente do ano passado, em 14 de abril. Os ribeirinhos esperavam uma enchente menor que as de 2009 e 2012, mesmo assim devastadora, porque àquela altura já se anunciava atípica. A maioria das casas do paraná do Paratari estava invadida pelas águas e seus moradores haviam se transferido para a cidade de Manacapuru ou para terras rurais mais altas. O irmão de Izenildo, Izivaldo, era um dos poucos moradores que permaneciam na comunidade. Além de criar algumas cabeças de

Fotos: Heitor Costa

Quando o sapo-cururu cantava [coaxava] de frente para o rio, era sinal de que a vazante seria grande; quando ele cantava de frente para terra, era sinal de que a enchente seria grande”

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gado, Izivaldo é dono do barco que faz o transporte escolar das crianças que moram no Paratari. As aulas estão suspensas e é provável que só sejam retomadas lá pelo mês de julho. O barco está ancorado na porta da sua casa. Dos animais domésticos, só permaneciam com ele um gato e um cachorro, também acostumados a morar no barco. “O que resta agora é pegar um peixe, comer, dormir e esperar a agua baixar”, afirma Izivaldo.

Movimentos da natureza O ensaísta Leandro Tocantins resumiu a influência do ritmo das águas no cotidiano dos ribeirinhos amazônicos no título de sua obra clássica: O rio comanda a vida. valercultural

Enchente e vazante regulares facilitam a vida, mas em tempos atípicos causam transtornos e prejuízos inestimáveis aos que dependem das terras baixas e dos rios para viver. Nesse contexto, não seria de se estranhar a atenção que os antigos davam aos movimentos da natureza e desse modo acumulavam informações para as futuras gerações. Dona Maria Francisca Ferreira Frota, 47 anos, conta que seus pais e avós anteviam o comportamento das águas no despencar da “capemba” ou “curuatá do jauari (palmeira aquática). “Se a capemba caísse de boca para baixo, a seca seria grande; se caísse de boca para cima, a cheia seria grande”, lembra. Ela mora na comunidade Canabuóca III, na margem do Solimões, e está

! – Izenildo 2 – Dona Maria Francisca 3 – Amarildo 4 – Secagem da fibra de juta

disposta a permanecer na casa ainda que tenha que subir maromba acima do assoalho. Tudo indica que, neste ano, a “campemba” caiu de boca para cima. Maria Francisca observa que água avança menos que no ano passado, mas já foi o suficiente para prejudicar a colheita de juta, de mandioca, macaxeira, frutos e legumes cultivados nessa área. Amarildo dos Santos Soares reclama do preço da juta que está muito baixo. “O governo incentiva o plantio, mas 31


Fotos: Heitor Costa

Dona Zilda e seu Antônio: farinhada às pressas para salvar safra

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não garante o preço. O trabalho da juta é o pior trabalho que existe e precisa ser bem pago”, reclama o agricultor. A enchente do ano passado desestimulou plantio de manivais, fato que contribuiu para a escassez da farinha de mandioca no mercado amazonense. Em abril, o quilo de farinha “de primeira” chegou a ser vendida até por R$ 15; em Manacapuru, no mesmo mês, o quilo era vendido entre R$ 5 e R$ 7. Amaril-

do dos Santos disse que toda a sua produção de farinha será estocada para consumo até a próxima safra. O mesmo procedimento seria adotado pela maioria dos produtores daquela área, segundo Amarildo. “De que adianta vender caro agora e comprar mais caro ainda depois?”, questiona. Para não se surpreender com os movimentos das águas, os avós de dona Zilda Azevedo de Moraes acompanhavam os hábitos das aves “patinho do igapó” e “maçarico”. “Quando uma dessas aves se aproximava do terreiro das casas, era sinal de que a enchente seria grande”, explica. Dona Zilda e seu marido, Antônio Silva Moraes, mais outros parentes, realizam uma farinhada para não perder a mandioca colhida às pressas. No ano passado, no dia 14 de abril, o barracão de farinha já estava inundado.

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Os moradores do Pesqueiro, Costa do Marrecão e região do Canabuóca, cujas terras estão acima das do paraná do Paratari, também previam uma enchente menor que as de 2009 e 2012, mas igualmente atípica. Em razão das duas últimas grandes cheias, Edmilson Azevedo Romão decidiu parar com a criação de gado. Ele chegou a possuir 400 reses; e se desfez do rebanho para não perdê-lo totalmente. “O gado aguenta na maromba dois meses, no máximo; depois morre, porque não tem espaço para se mover”, explica. Quando as águas começam a descer, lá pelo meado de junho ou começo de julho, os moradores das várzeas retomam as preocupações com a vazante. Nas vazantes atípicas, como a de 2005, os rios, paranás, igarapés e lagos secam a níveis extremos e os peixes morrem em grandes quantidades. A água abundante da enchente some na vazante e esse fenômeno empurra os povoados, as vilas e as cidades ribeirinhas para a calamidade da falta de água potável na maior bacia hidrográfica do mundo.

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Fotos: Heitor Costa


Sêo Antônio Moraes olha para as águas do Solimões que rebatem a luz do sol com intensidade e explica: “Tá vendo esse riozão aí? Isso tudo vai secar e daqui a cinco meses estaremos pagando água para beber a dois quilômetros daqui”. As comunidades do Canabuóca estão localizadas por trás de uma aluvião e por isso ficam sem água potável nas grandes secas. Seus moradores captam água da chuva por meio de caneletas afixadas nos beirais dos telhados. Entre o vaivém das águas amazônicas, nos últimos anos, desfaz-se o elo que atava homens e bichos, plantas e homens e mulheres na teia da vivência em cumplicidade. As grandes enchentes e vazantes intercalavam-se em longos períodos e se anunciavam pelo por intermédio do saber acumulado por sucessivas gerações. Hoje, nem os satélites conseguem captar, ao menos com certa antecedência, como as águas amazônicas vão se comportar. “Enlouqueceram a natureza”, resume Izivaldo Medeiros. No fechamento desta edição, em 8 de junho, as águas do Solimões e do Negro estavam a dois centímetros da conta de 2009, haviam colocado 33 municípios em estado de calamidade pública e flagelado mais de 270 mil pessoas.

Enlouqueceram a natureza”

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Fotos: Heitor Costa

As águas levam perto de oito meses para atingir o auge da enchente e vazam em apenas quatro meses

A ciência tenta explicar Os cientistas classificam “o enlouquecimento da natureza” como resultado de eventos extremos. São cheias e secas que atingem níveis acima dos registrados anteriormente e que jamais foram vivenciados. Esses incidentes vêm ocorrendo com mais frequência nos últimos anos. Maio é o mês que marca a fase de transição no calendário das águas. É quando as chuvas podem desestabilizar o nível médio das águas dos rios da região, segundo o pesquisador Naziano Filizola, no estudo Comunidades Ribeirinhas Amazônicas: modos de vida e uso dos recursos naturais, elaborado em 2007, coordenado pelos doutores Henrique Santos, Terezinha Fraxe e Antônio Carlos Witkoski. Os estudos foram feitos no rio Solimões/Amazonas, para o projeto Piatan, por intermédio da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Os meses de maio, junho e julho formam o período da cheia. O que era terra firme vira fundo de rio, submergindo cultivos e reduzindo as atividades em terra. A caça foge para as terras mais altas e os peixes se dis36

persam no grande rio, desocupando os igarapés, lagos e igapós. O deslocamento entre as comunidades só é possível com uso de canoa. Nessa época, os ribeirinhos, tão acostumados ao calor amazônico, se enroscam em grossos lençóis, para se proteger da friagem causada por massa polar fria enviada pelo oceano Pacífico equatorial. Agosto marca o início da vazante e da seca que seguem os ciclos nos meses de setembro e outubro. Como observa o estudo, o regime fluvial do rio Amazonas é bastante peculiar e favorável ao uso agrícola da planície de inundação. É que o ritmo da enchente é mais lento que o da vazante. As águas levam perto de oito meses para atingir o auge da enchente e vazam em apenas quatro meses. Nesse complexo que compreende os rios Solimões/Amazonas, a área de várzea, riquíssima em nutrientes e boa para culturas de curtos ciclos, chegam a medir de 75 mil a 100 mil quilômetros quadrados ou até 2% da Amazônia brasileira, conforme o estudo do Piatan. Esse período é de pouquíssimas chuvas e máxima evapotranspiração. Se por um lado os ribeirinhos volvalercultural


tam à terra firme e encontram os leitos dos rios com a fertilidade em alta, por outro, têm dificuldades de deslocamento para centros urbanos, onde ocorrem algumas transações comerciais e assistências médico-hospitalares. A pesca nos lagos e nos igarapés volta a ser praticada. Nos leitos dos rios cultivam-se batatas, macaxeira, mandioca, feijão, milho e cará, para o consumo familiar ou comercialização. Na terra firme, ressurge a pastagem para o gado, atividade desenvolvida de modo rústico e de pouco valor comercial se comparada à pecuária praticada no Sul, Sudeste e Centro-Oeste do país. Novembro, dezembro, janeiro, fevereiro, março e abril são meses de enchente. As águas sobem e levam para superfície troncos e galhos de madeiras mortas, com maior risco para a navegação. É tempo de insetos e, por isso, o aumento de algumas doenças tropicais como: malária, hepatite e febre amarela. As valercultural

chuvas são mais intensas, atingindo um índice de chuvas de 250 mm/mensais; é tempo de baixa insolação e menor evapotranspiração. A falta de sincronismo entre os regimes (pluvial) das chuvas e (fluvial) dos rios é a formadora desse calendário das águas com as quatro estações amazônicas: seca, enchente, cheia e vazante, de acordo com Filizola. Segundo o IBGE (2010), existem 728.495 moradores das áreas rurais, a grande maioria de ribeirinhos. Neste período, mais de 4,5 mil famílias (dezoito mil pessoas) estão em estado de calamidade pública, só na Região Metropolitana de Manaus, em razão da cheia do rio Negro, cuja cota deve ficar em torno dos 29 m, segundo o presidente do Serviço Geológico do Brasil – CPRM, no Amazonas, Marcos Antônio Oliveira. “Tudo vai depender das chuvas”, diz ele, assegurando que a marca pode ser superada, mas não ultrapassará as anteriores. 37


Fotos: Antonio Lima

Nem os ribeirinhos nem a ciência têm explicação para as causas desses eventos extremos

Natureza imprevisível e extremada Em 2005 e 2010, a seca flagelou os ribeirinhos apesar da criatividade em sobreviver também a esses eventos extremos. Em 2005, a seca chegou ao nível de 14,75 m, bem menor que a média mínima histórica que é de 17,62 m, atestou a CPRM. O socorro institucional, na maioria das vezes, ocorre de maneira tardia ou de forma paliativa, com bem menos resultado do que o propagandeado oficialmente. Em 2009, a cheia ficou a um milímetro da maior enchente do Amazonas, ocorrida em 1953, com 29,69 m. Mas, em 2012, a cheia ultrapassou essa marca, com 29,97 m, e causou transtornos no centro de Manaus e algumas cidades do interior, como Maraã, no 38

Solimões, e Barreirinha, no médio Amazonas, ficaram totalmente submersas. Nem os ribeirinhos nem a ciência têm explicação para as causas desses eventos extremos. De acordo com o climatologista Luiz Cândido, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), o aquecimento das águas superficiais no Atlântico tropical norte é considerado fator de grande contribuição para as secas extremas, como a de 2005 e 2010, reduzindo as chuvas e o nível dos rios em afluentes do sul e do oeste do Estado do Amazonas aos menores níveis. No oceano Pacífico equatorial ocorre os fenômenos El Niño e La Niña e provocam o aquecimento e esfriamento do vale amazônico. O fenômeno do aquecimento é da parte do El Niño. “As águas mais quentes enfraquecem os ventos vindos desde o oceano e reduzem o transporte do vapor de água para a Amazônia. Com menos vapor de água na atmosfera, as nuvens não se formam, assim não ocorre chuva”, explica Cândido. O CPRM, monitora 61 pontos do Estado para compor um sistema de alerta, que ajuda na tomada de medidas de precaução, planejamento e ações da Defesa Civil. Como reafirmam os pesquisadores no projeto Piatan, os gestores públicos precisam reconhecer o processo histórico de adaptação, assimilação, competição e difusão das novas instituições, técnicas e motivações autóctones e as transplantadas pelos colonizadores e povoadores da Amazônia. Precisam reconhecer, principalmente, o profundo saber indígena sobre esses ambientes anfíbios. É por meio dos saberes da população indígena-ribeirinha que se avalia a dimensão da existência conforme o calendário das águas. valercultural



Foto: Antonio Lima

festival

Bois-bumbás de Parintins comemoram cem anos de criação e ensinam como fazer um megaespectáculo em ilha no meio da selva Wilson Nogueira | jornalista

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espetáculo dos bois-bumbás Garantido e Caprichoso, que se assiste no bumbódromo ou na televisão, é resultado de uma complexa operação logística para abastecer de materiais os galpões dos artistas e dotar Parintins

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(AM), localizada em uma ilha fluvial, de equipamentos e serviços de segurança aos turistas nos três dias de festival. Por isso, artistas e dirigentes dos dois bois-bumbás começam a elaborar suas apresentações com dez meses de antecedência. O boi-bumbá parintinense, originário do folguedo de terreiro entre parentelas, tornou-se, nos últimos 48 anos, uma das mais importantes festas populares do Brasil. Garantido e Caprichoso foram criados por Lindolfo Monteverde e Roque Cid, respectivamente, em 1913. O primeiro passo rumo à espetaculavalercultural

rização dos bois-bumbás foi dado em 1965, na edição inaugural do Festival Folclórico de Parintins, que também contou com a participação de quadrilhas e pássaros. Na década de 1980, Garantido e Caprichoso já mobilizavam “galeras” (torcedores) em várias cidades da Amazônia e chamavam a atenção da mídia nacional. Há três décadas esse espetáculo é transmitido ao vivo em rede regional e nacional de TV. O festival também ganhou fama porque as escolas de samba do Rio e São Paulo passaram a importar artistas e artesãos parin-

O boi-bumbá parintinense tornou-se uma das mais importantes festas populares do Brasil”

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bilidade regional ao boi-bumbá parintinense, versão do bumba meu boi do Nordeste. Mendes, por influência do historiador parintinense Tonzinho Saunier, morto em 1999, priorizou, nos primeiros anos do festival, as lendas da cobra-grande, do boto e da iara, a mãe-d’água, todas correntes no imaginário amazônico. Com o passar dos anos, os “discípulos” de Mendes e do irmão Miguel Pascale – artista plástico italiano radicalizado em Parintins desde 1972 e morto em 2010 – aumentaram o tamanho das alegorias e diversificaram as abordagens temáticas. As alegorias refletem o agigantamento desse espetáculo popular amazônico que, desde 1988, é realizado no bumbódromo com capacidade para 30 mil espectadores e oito mil brincantes, quatro mil de cada boi-bumbá. Para comemorar os cem anos de Garantido e Caprichoso, o governo do Amazonas

Fotos: Antonio Lima

Jair Mendes

tinenses, para dar movimentos aos seus carros alegóricos. As mudanças no modo de apresentação dos bois-bumbás iniciaram-se no começo da década de 1970, pelas mãos do artista plástico Jair Mendes, hoje com 70 anos, parintinense que havia trabalhado por quatro anos na escola de samba carioca Portela. “Eu ia à concentração e admirava a Portela. Eu já vinha para Parintins e pensava: ‘em Parintins não tem Carnaval, mas tem boi-bumbá’. Foi aí que comecei a enxergar um pouco de escola de samba no boi. Foi uma mistura que deu certo e está dando certo até hoje”, conta Mendes, considerado o “pai das alegorias” nos bois-bumbás. Ele fez carreira profissional no Garantindo e agora defende as cores do Caprichoso. As alegorias de lendas, cosmogonias indígenas e personagens do cotidiano rural e urbano deram visi-

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As alegorias de lendas, cosmogonias indĂ­genas e personagens do cotidiano rural e urbano deram visibilidade regional ao boi-bumbĂĄ parintinense

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Foto: Euzivaldo Queiroz

Ao menos 50 mil pessoas desembarcam em Parintins para brincar de boi

anunciou um investimento de R$ 40 milhões em ampliação de camarotes, arquibancadas e equipamentos da arena a céu aberto. Ao menos 50 mil pessoas desembarcam em Parintins para brincar de boi por três dias, no último final de semana de junho. Os governos federal, estadual e municipal unem-se para atender às necessidades do megaevento com policiamento ostensivo, brigadas de bombeiros, infraestrutura médico-hospitalar, segurança na navegação aérea, na navegação fluvial, no abastecimento da cidade, no atendimento a chefes de Estado e diplomatas, jornalistas e homens de negócios. A Marinha mantém corvetas e helicópteros no porto da cidade, para prováveis emergências. Todos esses serviços e equipamentos desaparecem uma semana depois do festival e a cidade retoma a sua rotina de precariedade nos serviços públicos essenciais.

Desafios espetaculares Os dirigentes e os artistas dos bois-bumbás, por sua vez, realizam operações logísticas complicadas para abastecer seus galpões (lugares onde são confeccionadas as alegorias, fantasias e adereços) com materiais comprados em São Paulo, Rio de Janeiro e Manaus. “O Caprichoso começa a ser pensado, pelos membros do Conselho de Arte, em agosto e até novembro já formatamos o espetáculo que vamos apresentar nas três noites do festival”, explica o diretor de arena do boi-bumbá, Edwan Oliveira. Com o orçamento do espetáculo definido, os dirigentes do boi-bumbá e artistas partem para a pesquisa e escolha de materiais no Rio e em São Paulo, para que as compras entrem nos galpões ao menos quatro meses antes do festival. Oliveira afirma que os fornecedores de São Paulo e Rio precisam de tempo para adequar materiais usados no carnaval às necessidades dos bois-bumbás ou para importar outros, como são os casos das penas de pavão, faisão, galo e peru, que vêm da China. “Usamos materiais semelhantes aos das escolas de samba, porém sem o brilho carnavalesco e por isso 44

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O coordenador da Comissão de Arte do Garantido, Fred Góes, disse que, a partir deste festival, o boi-bumbá passou a fazer suas compras em Manaus, porque os custos com frete e passagens aéreas dos seus compradores “comem” a diferença dos preços praticados no Rio e São Paulo. Ele explica que os patrocinadores oficiais dos bois-bumbás só pagam suas cotas nas proximidades do festival. “A mercadoria que se paga depois sempre é mais cara, pois o comprador perde o poder de barganha”, acentua. Com os fornecedores de Manaus, Fred assegura que o Garantido consegue material para o festival sem maiores sobressaltos. Ele lembra que o Garantido já fez “algumas loucuras” para surpreender os espectadores e o “contrário”. Em 2005, o norte-americano Erick Scott sobrevoou o bumbódromo em seu foguete portátil, protagonizando um pajé em transe, num ritual indígena. A cápsula com o combustível para o foguete foi transportada

Em 2005, o norte-americano Erick Scott sobrevoou o bumbódromo em seu foguete portátil, protagonizando um pajé em transe

Fotos: Wilson Nogueira

as empresas precisam adaptá-lo com novos tingimentos ou outros recursos”, revela Oliveira. Depois, essa compra é embalada e transportada em carretas até Porto Velho ou Belém, de onde seguem por via fluvial até Manaus. De Manaus, seguem em balsas até Parintins. Essa viagem pode durar até dois meses. Anualmente, o Caprichoso utiliza ao menos dez carretas para transportar seu material artístico até Parintins. Essa operação compensa, segundo Oliveira, porque as empresas do Rio e São Paulo também vendem para o Carnaval e podem atender ao boi-bumbá com preços mais em conta que os praticados em Manaus. “Se uma determinada peça custa R$ 24 em Manaus, no Rio, custa R$ 10”, exemplifica. Ele informa que esses fornecedores conseguem materiais e produtos fabricados conforme as características do espetáculo panejado e, acima de tudo, cumprem os prazos acordados. Em Manaus, Caprichoso compra isopor e ferro.

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Foto: Antonio Lima

No ano passado, cada um dos bois-bumbás arrecadou em torno de R$ 9 milhões

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por avião fretado de forma clandestina entre Manaus para Parintins. “Sabíamos que o combustível não oferecia nenhum risco à segurança do avião ou do aeroporto, mas foi necessário superar os trâmites burocráticos para fazer esse espetáculo. Contamos com a ajuda de autoridades que torcem pelo boi”, revela Fred. Em 2008, os dirigentes do boi-bumbá trouxeram um profissional de balonismo de São Paulo, para fazer o Garantido descer do “balão de São João” no meio da arena. “O balão, de três metros de altura, veio de avião até Manaus, mas não ha-

via como trazê-lo por via aérea até Parintins. Então, o transportamos de carreta até Itacoatiara (AM), a 280 quilômetros de Manaus, e de lá até Parintins numa lancha a jato. Tudo isso no maior sigilo e no mesmo dia do espetáculo”, acrescenta Góes. Os dois bois-bumbás também alugam enormes guindastes para montar os módulos alegóricos na arena ou para realizar performances aéreas. São usados guindastes com braços de até 80 metros, com capacidade para movimentar até 40 toneladas. Já foram montadas na arena do bumbódromo alegorias com até 13 metros de altura. Esses

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Fotos: Wilson Nogueira

equipamentos são alugados em Manaus e transportados de balsa até Parintins. Uma balsa já afundou, na orla de Manaus, por não suportar o peso de um guindaste contratado para as apresentações do Garantido em 2006. No ano passado, cada um dos bois-bumbás, arrecadou em torno de R$ 9 milhões. Metade desse dinheiro é empregada no pagamento de pessoal, a maioria artistas e artesãos que trabalham nos galpões. A outra parte é aplicada no “boi de arena”, um espetáculo lítero-cênico-musical, no qual se destacam gigantescas alegorias em movimento, construídas em estruturas de ferro e revestidas por diversos materiais, como papelão fibrado, gesso, látex, cola, fibra de vidro e poliestireno. As grandes esculturas são esculpidas em blocos de isopor. Ferro e isopor são os materiais mais caros das alegorias.

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Artistas e artesãos em atividade nos galpões. Movimentação começa dez meses antes do Festival

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personalidade

Cultura

irreverência O português Joaquim Marinho possui uma relação com a cultura amazonense desde jovem, quando começou a atuar como locutor de rádio. Até hoje é lembrado quando o assunto é cinema, música, arte erótica e até história, tema que desperta seu interesse graças a coleção filatélica mantida por ele

Fotos: Antonio Lima

Luiz Otávio Martins | jornalista

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ligação do português Joaquim Marinho com a cultura produzida no Amazonas teve início cedo em sua vida, ainda na adolescência. Ele tinha 16 anos quando começou a se envolver com o ofício de radialista, porém esse interesse pela comunicação não era compartilhado pelo pai, que queria que ele seguisse uma carreira de advogado. Joaquim chegou a se formar em Direito, pela Universidade do Amazonas, e até a exercer a profissão – atuou como advogado do Porto de Manaus. Mas ele preferiu se dedicar a realizações nas áre-

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as do cinema, da música, da literatura e tornou-se um dos mais conhecidos agitadores culturais de Manaus. Joaquim Marinho é radialista, advogado, colecionador, escritor e empresário. Também já atuou em cargos públicos, de turismo e cultura, e foi inclusive cônsul honorário da República Tcheca em Manaus. Nunca se envolveu em partido político e é conhecido ainda pelas opiniões sinceras que torna públicas em suas entrevistas e no programa de rádio “Zona Franca”, onde faz questão de manter uma postura independente para falar sobre assuntos culturais e políticos – tendo como

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com

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Fotos: Divulgação

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carro-chefe música de variados estilos, nacionais e internacionais. Uma das facetas mais conhecidas de Joaquim Marinho é a de empresário do ramo de cinema. A primeira das seis salas de exibição, todas localizadas no Centro de Manaus, que inaugurou ao lado do sócio, Antônio Gavinho, foi o Cine Chaplin, em 21 de abril de 1979. “O Antônio disse que tinha um dinheiro que havia herdado do pai e perguntou: ‘O que tu achas que dá pra fazer com esse dinheiro?’ Eu disse que queria abrir um cinema”. E assim nascia a primeira sala de exibição da empresa Cinemas de Arte. “Conversei com a filha do Chaplin, Geraldine, no Rio de Janeiro, e ela disse que seria o primeiro cinema com o nome do pai dela”, recorda. Localizado na avenida Joaquim Nabuco, o Cine Chaplin era o maior da empresa, com 360 lugares. Mais tarde a capacidade foi reduzida em

cem lugares, mas continuou sendo o maior. Joaquim tinha uma predileção por filmes como Manhattan (1979), de Woody Allen. O grande público, entretanto, nem sempre aprovava tais exibições, e o resultado era prejuízo na bilheteria. O Cine Chaplin, então, viu seus dias de glória com a entrada em cartaz de grandes produções hollywoodianas, como E.T. – O Extraterrestre, Ghost (que conquistou o impressionante recorde de um ano em cartaz) e tantos outros arrasa-quarteirões. “Não era o princípio de cinema que eu gostava. Mas cheguei à conclusão com meu sócio de que iríamos à falência se continuássemos passando filmes como Manhattan”. Ele observa que o Cine Chaplin, em seus três primeiros anos, chegou a ficar entre os 20 cinemas brasileiros com maior público. Segundo Joaquim, todos os cinemas admi-

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Publicidade A publicidade que envolvia a exibição dos filmes também merece destaque. Os cartazes originais eram reproduzidos por artistas plásticos da região como Marius Bell, e era impossível não subir a avenida sem prestar

nistrados por ele e Gavinho foram bem-sucedidos de maneira geral. “O Chaplin deu muito certo pela ligação que passamos a ter com a Embrafilme. Conseguíamos feitos até de se estranhar, como a exibição de filmes antes do restante do Brasil”, lembra, citando Anaconda que entrou em cartaz em Manaus uma semana antes de ser exibido em outras capitais do país. Depois do Chaplin, foram inaugurados os cines Oscarito, Grande Otelo, Carmen Miranda, Renato Aragão e Cantinflas. E todos com a aprovação dos homenageados ou de seus parentes. “Fui falar diretamente com o Cantinflas, no México, e ele queria saber o que havia me inspirado a abrir um cinema com o seu nome. Eu o convidei para a inauguração e ele disse, ‘Não, porque tenho muito medo de aviões’”, conta Joaquim, aos risos. “Tive contato com ele ainda durante muito tempo”. No dia da inauguração do Cine Carmen Miranda, quem esteve presente foi a irmã da atriz, Aurora. Já o humorista Renato Aragão ficou surpreso com a homenagem. “Foi feito um convite meu e do meu sócio diretamente para ele, que perguntou, ‘Mas por que eu?’ Eu respondi, ‘Porque você identifica qualquer pessoa que queira fazer cinema’”, recorda Joaquim, observando que esses artistas ficavam surpresos porque, até então, nunca haviam sido homenavalercultural

atenção nas grandes pinturas na fachada do prédio. Joaquim também não poupava publicidade para as salas de exibição ao divulgar a estreia de filmes em seu programa de rádio e em espaços que conseguia na televisão.

geados dessa maneira. “O Grande Otelo ficou empolgado ao ser lembrado para ser nome de cinema. E cada homenageado tinha uma razão de ser”. Joaquim Marinho diz que não houve um motivo específico para o fechamento de seus cinemas. E cita o surgimento das salas em shopping centers e o fato de que certos filmes que eram lançados nesses locais com mais facilidade do que nos cinemas do Centro, aguçando a curiosidade do público por novidades. “Meu sócio e eu ficamos cansados de bater de frente”, afirma. O primeiro cinema a fechar foi o Carmen Miranda, e o último, em 2000, o Chaplin.

Festivais Outro marco na história cultural do Amazonas, também na área da sétima arte, foi a realização, de 19 a 29 de outubro de 1969, do 1.º Festival Norte de Cinema Brasileiro, dirigido por Joaquim Marinho. “O festival de cinema foi realmente um avanço de mil anos porque conseguimos ficar com prestígio político”, comemora. O evento contou com a presença de atores como Milton Gonçalves e dos cineastas Silvino Santos e Rogério Sganzerla. As sessões foram realizadas no extinto Cine Odeon, e o filme Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, foi consagrado o vencedor do festival.

O radialista lembra dessa época como um período de grande movimentação cultural. Já tinha atuado como secretário de Turismo e, então, exercia a função de secretário de Cultura. “Quando fui para a Secretaria de Turismo, o que existia era o Departamento de Turismo e Promoção do Estado. Então achei que tinha que haver uma entidade que tornasse o turismo independente para o Estado porque eu pensava que o turismo era a grande jogada para o Amazonas. Foi quando criei a Emantur”, conta Joaquim, que presidiu a entidade durante dois anos. Ele também destaca a realização do 1.º Festival da Canção do Amazonas entre os acontecimentos interessantes dessa época. “Nesse festival envolvemos um monte de bons músicos aqui do Estado, entre eles, o Aldisio Filgueiras e o Anibal Beça”, cita.

O festival de cinema foi realmente um avanço de mil anos porque conseguimos ficar com prestígio político” 51


Foto: Divulgação

Nas ondas do rádio

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Eu acho que o rádio, mais do que o jornal e melhor até do que a televisão, é a maneira mais rápida de você informar o que está acontecendo no mundo”

Paralelamente a todos os seus envolvimentos com a Cultura no Estado, Joaquim Marinho nunca deixou de lado o comando de seu programa de rádio, Zona Franca, que ele afirma ter um grande prazer em apresentar. Sua relação com o rádio teve início na adolescência, aos 16 anos. Logo de cara, conseguiu a representação da gravadora Philips para divulgar lançamentos de discos na cidade. Daí em diante, o rádio e a música foram uma constante em sua vida. A relação com a Philips durou 11 anos e, mais tarde, abriu até uma loja de discos, a Ponto, no edifício Maximino Corrêa, que comercializava inclusive títulos importados que o próprio Joaquim trazia quando viajava, uma vez por ano, aos Estados Unidos. Seu acervo pessoal de discos chegou a 35 mil LPs, e a ligação com a gravadora rendeu ainda contatos para shows em Manaus e até amizades com artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e o Quarteto em Cy. Mesmo sendo obrigado pelo pai a estudar Direito, Joaquim Marinho sempre gostou de comunicação e buscou estar próximo de personalidades competentes do rádio amazonense. “Passei por todas as emissoras. Comecei na Rio Mar, depois fui para a Baré, da Novidade fui para a Amazonas FM. E tive dois grandes mestres locutores, o Ivens Lima, na Rádio Rio Mar, e o Edson Paiva, na Rádio Baré”, diz. Joaquim lembra também, bem-humorado, das broncas que levava de Josafá Pires e Jaime Rebelo, em razão do seu sotaque português. “Eu cheguei a seguinte conclusão: ou eu perdia o sotaque e deixava de ser gozado ou gozava os outros porque não tinha mais sotaque”, diverte-se. Também

não poupa elogios aos jornalistas Erasmo Linhares (“um mestre”) e Eduardo Monteiro de Paula (“uma grande companhia em rádio”). Independência como locutor de rádio sempre foi um elemento do qual Joaquim Marinho nunca abriu mão. “Eu acho que o rádio, mais do que o jornal e melhor até do que a televisão, é a maneira mais rápida de você informar o que está acontecendo no mundo, e isso eu aprendi muito cedo”. O programa Zona Franca tem duração de três horas e, atualmente, vai ao ar pela Amazonas FM. É voltado para música e classificado como eclético, com um roteiro que também inclui notícias culturais e, por que não, opiniões sobre política. “Hoje eu faço um programa que era de quatro horas. Começava às 9 e ia até às 13h porque eu curtia tremendamente o que eu fazia. Eu aproveitava o meu acervo de discos, que era muito grande, e as próprias gravadoras se encarregavam de mandar discos para eu divulgar músicas em absoluta primeira mão”. Ao longo dos anos, Joaquim revela que teve poucos problemas em relação a expor seus pensamentos. “Houve reclamações duas ou três vezes. Mas eu falo sobre tudo. Falo o que eu quero. Talvez o que incomoda seja a sinceridade com que digo certas coisas. Mas sempre fiz um programa solto e nunca me senti podado. Nunca aceitei nenhuma imposição em termos de imprensa, com relação à liberdade de expressão. E não esculhambava ninguém pessoalmente. Eu levantava questões políticas que tinham uma razão de ser”, justifica o radialista, enfatizando que, “por incrível que pareça”, nunca foi alvo de nenhum tipo de processo.

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Foto: Divulgação

Histórias para contar No dia 28 de novembro de 1974, Joaquim Marinho viajou, com a cara e a coragem, para Nova York. Estava ansioso para conferir o show que Elton John apresentaria, com participação de John Lennon, no palco do Madison Square Garden. Só havia um detalhe: ele ainda não tinha o ingresso. Mesmo tendo ligado antes para um amigo, que o desencorajou a ir porque as entradas estavam esgotadas, Joaquim viajou para ver de perto dois de seus ídolos. “Cheguei a Nova York e disse que ficaria na porta do Madison Square Garden, esperando que alguém fosse desistir de ver o show”, lembra. Determinado, ele ficou de prontidão no local e conseguiu o tão desejado ingresso para o concerto. Era Dia de Ação de Graças, e alguém desistiu de ir ao show, para sorte do radialista. Esse é um dos momentos que Joaquim Marinho mais guarda com carinho em sua memória, e que pretende dividir com seus leitores no livro Meninos, Eu Vi, uma coleção de momentos culturais que ele presenciou durante décadas. Ainda não há previsão de lançamento, mas ele garante que a obra já está estruturada. Antes de Meninos, Eu Vi, o radialista colocará nas livrarias outras duas obras, Galvez e o Selo do Acre, uma edição bilíngue, em português e inglês, e Belle Époque no Amazonas, em parceria com a historiadora Etelvina Garcia – que deve sair no aniversário de Manaus, em outubro. O primeiro livro é sobre o único selo do Estado Independente do Acre, emitido na época do governo do espanhol Luiz Galvez Rodriguez de Arias, em 1899. “Foi o Márcio Souza que me falou que existia um selo impresso na época do Galvez. E eu consegui um exemplar com um colecionador de São Paulo”, revela Joaquim, que anos mais tarde adquiriu um segundo exemplar original. Ele conta ainda que hoje em dia existe apenas uma folha dessa série, com 12 cópias impressas em Buenos Aires, que resistiram ao tempo. “Consegui uma cópia de cada um desses selos, e coloquei-as no livro. Tenho dois originais e um deles deverá ir para o Acre. O Tião Viana (governador do Acre) quer que eu venda um dos selos para o Estado e estou em negociação”, diz Joaquim, que decidiu escrever o livro pelo simples fato de ter achado esse raro selo.

Outros livros já lançados por Joaquim Marinho são “A Arte Sacana de Carlos Zéfiro” (1983), “Os Alunos Sacanas de Carlos Zéfiro” (1996) e o mais recente, “Manaus Meu Sonho” (2010).

Hobby A fama de colecionador de Joaquim Marinho é conhecida além do Amazonas e já foi tema até de entrevista no Programa do Jô. Na ocasião, exibiu itens de sua coleção de pornografia – como, por exemplo, as tão comentadas esculturas de pênis –, que abrange, entre outros objetos, telas e livros. O selo do Estado Independente do Acre faz parte da primeira coleção de Joaquim, valercultural

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Fotos: Antonio Lima

cujo incentivo veio do pai. “Eu ainda morava em Portugal quando comecei a colecionar selos, aos oito ou nove anos”, afirma o radialista, que não lembra mais qual foi o primeiro selo que adquiriu. Em sua residência, Joaquim vive rodeado de produtos culturais – LPs, DVDs, revistas, miniaturas, ilustrações –, mas suas principais coleções são cinco: selos, cartões-postais, miniaturas de carros, pornografia e quadrinhos eróticos. A mais valiosa, do ponto de vista afetivo e financeiro, é a de selos. O item mais precioso é exatamente o do Estado Independente do Acre. “Esse selo se transformou numa raridade porque só sobrou uma folha, com 12 cópias”, observa o colecionador, que possui dois exemplares dessa série, de 1899. “É o item mais raro e caro da minha coleção”. O fascínio de Joaquim Marinho por selos tem a ver diretamente com o registro histórico que essa peça é capaz de abrigar. “Não sou historiador e nem quero ser, mas passei a sentir atração pela História por meio dos selos”, justifica. O radialista revela que não tem ideia de quantos já conseguiu reunir, assim como não sabe a quantidade exata de seus cartões-postais, nem das histórias em quadrinhos para adultos. Dessas suas grandes coleções, apenas a de miniaturas de automóveis – iniciada na mesma época da filatélica – já foi contabilizada: 2.500 peças. Assim como a coleção de selos tem a ver com a de cartões-postais, a coleção de pornografia – cujo incentivo veio de amigos – acaba tendo relação com a de histórias em quadrinhos eróticas. O destaque desta são as revistas ilustradas por Carlos Zéfiro. “Histórias em quadrinhos é uma das coisas que mais curti e continuo curtindo até hoje”. 54

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Antigamente, nem passava pela cabeça de Joaquim Marinho vender itens de suas coleções, mas hoje já pensa em passar algumas peças adiante. A facilidade maior de venda fica por conta dos selos. “São fáceis de vender porque existe mais organização por parte dos donos das casas filatélicas. Mas não consigo vender em dois dias, tenho que entrar em leilões”, diz. “Eu sei o que os selos valem e sei o que eles podem valer quando eu quiser vender. E já recebi ofertas”, revela.

Homem de família Em 1990, Joaquim Marinho dividia seu tempo em atividades como empresário – ainda mantinha as salas de cinema no centro da cidade – e, claro, como locutor. Mesmo assim, encarou um novo desafio: a nomeação de cônsul honorário da República Tcheca em Manaus, função que exerceu durante dez anos. “A experiência foi ótima. Inclusive ajudei, através do Thiago de Mello, a soltar um deputado tcheco que foi preso porque resolveu defen-

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der a República Tcheca no México”, afirma. Com um nome e uma vivência tão ligados à cultura, é fácil imaginar que Joaquim Marinho deva ser presença constante em eventos como apresentações musicais, lançamentos de livros ou exposições. E ele é. Mas mesmo com toda a admiração que tem pela cultura amazonense, o radialista prefere estar em casa, acompanhado da esposa, Silene, com quem está casado há mais de 40 anos, e das filhas, Patrícia e Cristina. “Por incrível que pareça sou muito familiar”. Joaquim Marinho nasceu na cidade portuguesa do Porto e veio para Manaus aos dez anos, durante a década de 1950. “Meu pai foi contratado pra ser diretor da Beneficente Portuguesa porque ele era administrador hospitalar em Portugal. Primeiro veio ele e, um ano mais tarde, minha mãe, meus irmãos e eu”, recorda. “Ele era formado em Medicina, mas quando chegou aqui resolveu estudar Direito porque adorou ficar um tempo como diretor da penitenciária”.

Já o jovem Joaquim foi logo matriculado no Colégio Dom Bosco. E, por determinação do pai, formou-se em Direito. “Durante sete anos fui advogado do Porto de Manaus. Exerci ideologicamente a advocacia. Na época não existiam outras faculdades, então era o caminho certo a seguir”. E sempre buscando assumir posturas independentes, Joaquim trilhou o caminho do radialismo, uma paixão que mantém até hoje. O português que veio ainda criança para Manaus revela que nunca pensou em se mudar da cidade, e valoriza todas as raízes que criou na capital amazonense. “Gosto de Manaus e nunca pensei em sair daqui”. Além da fama de desbocado e irreverente, Joaquim Marinho tem consciência de que é, há anos, um personagem importante da cultura local. Diz que não se sente exatamente orgulhoso, mas gosta de ser procurado por diversos tipos de pessoas para dar sua opinião. “Se a opinião é boa ou não, isso não é problema meu, é de quem quer a opinião”.

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diário de viagem

São Paulo a cidade do momento Bárbara Nascimento | jornalista

Saiba por que a Terra da Garoa é o destino ideal para os consumidores de cultura, entretenimento e conhecimento

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ultidiversidade é a palavra que define São Paulo como um dos mais importantes centros de vanguarda das culturas globalizadas. Onze milhões de habitantes de 70 nacionalidades e 12 milhões de visitantes por ano dão-lhe uma vida pulsante. Sampa é destino ideal para os que buscam cultura, conhecimento e entretenimento. Mas para desfrutar de tantas opções desse cardápio cultural superlativo – que agrada a todos os gostos e bolsos – é preciso despir-se da pressa. A cidade promove 45 mil eventos por ano e é sede de grandes eventos, como São Paulo Fashion Week, Salão do Automóvel, Grande Prêmio de Fórmula 1, Fórmula Indy, Parada LGBT, viradas cultural e gastronômica, e bienais da Arte, do Livro e da Arquitetura.

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Foto: Rubens Chiri

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Fotos: Rubens Chiri

Fotos: Miguel Schincariol

“Sempre que vou a são Paulo me surpreendo com a quantidade e diversidade cultural. Adoro descobrir novas livrarias e galerias de arte. A Vila Madalena sempre tem algo novo, é apaixonante. Também curto as opções teatrais, desde teatro under até a indústria musical que cresce e impacta cada vez mais. São Paulo é um caldeirão cultural e eu tento experimentar a maior quantidade de ingredientes possível”, comenta o ator Vinicius Campos. Não por acaso, a cidade aparece no topo do ranking internacional de “cidades do momento”, do Hub Culture Zeitgeist, há quatro anos. Em 2010, 2011 e 2012, São Paulo foi campeã da lista. Neste ano, ficou em quarto lugar, atrás de Londres, Hong Kong e Miami. Os negócios são o principal motivo para visitar a cida-

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de, seguido de eventos culturais e de entretenimento. De acordo com estudo da SPTuris, o tempo médio de estada é de três dias e o valor gasto no período é de R$ 1,4 mil. Para convencer os executivos a ficar mais um dia e conhecer as atrações culturais e gastronômicas, a Secretaria de Estado da Cultura criou o programa “Fique mais um dia”.

Museus Os 110 museus de São Paulo são o carro-chefe do turismo cultural na cidade: são responsáveis por 83% das visitas culturais e de lazer. Seus visitantes podem encontrar desde a história da língua portuguesa até obras de Renoir e Van Gogh. Mas são os interativos e multimídias que têm conquistado o público.

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O Catavento Cultural (Parque Dom Pedro 2.º, s/n. Centro) é o novo queridinho de crianças e adultos. O museu tem 250 instalações divertidas, divididas em quatro seções: Universo, Vida, Engenho e Sociedade. O Museu do Futebol é classificado como museu de terceira geração e combina diversas mídias para contar como o país transformou o futebol. O Museu da Língua Portuguesa é o ponto de encontro com a literatura, a sexta língua mais falada do mundo e a história do idioma, por meio de uma viagem sensorial.

Teatro São Paulo é, também, um dos principais berços teatrais da América Latina. Há opções em todos os gêneros, desde as megaproduções

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da Broadway, passando por peças estreladas por atores globais até aquelas menos badaladas, mas bem cotadas no circuito alternativo. A programação teatral de São Paulo não tem a mesma dimensão e alcance do cinema, mas oferece aos seus habitantes ou visitantes o melhor do que há no país. Da zona Norte à zona Sul, da Oeste a Leste ou pulsando no Centro, o fã dessa arte não passa vontade. “Eu moro em São Paulo pelo aspecto cultural da cidade. A quantidade de programação teatral e dança de baixo custo é imensa. Os SESCs são um ótimo ponto de convergência disso tudo”, diz o repórter cinematográfico Paulo Bueno, natural de Bragança Paulista. Segundo dados oficiais, São Paulo abriga atualmente 160 teatros.

Megaeventos Carnaval, São Paulo Fashion Week, Lollapalooza, Parada Gay, Bienais (Arte, Livro e Arquitetura), Fórmula-1, Fórmula Indy, Salão do Automóvel, Salão Duas Rodas, Mostra Internacional de Cinema, entre outros. A lista de megaeventos que a capital paulista abriga durante a temporada é enorme. E mostra, com toda a certeza, a capacidade estrutural da cidade. Não à toa, a Terra da Garoa é apontada como a mais bem preparada das 12 sedes da Copa do Mundo.

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Foto: Divulgação

São Paulo em números

45 1 260 110 160 40 88 184 41 5 100 7 7 12,5 52 15 600 6 3 500 60

mil eventos por ano evento a cada 6 minutos salas em 55 cinemas museus teatros centros culturais bibliotecas casas noturnas festas populares estádios de futebol parques e áreas verdes parques temáticos casas de espetáculo mil restaurantes tipos de cozinha mil bares restaurantes japoneses mil pizzarias mil padarias churrascarias.

Sem contar os da Grande São Paulo, em especial da região do ABC paulista. Há alguns anos destacam-se na programação teatral paulistana os musicais e as comédias. Junto de peças mundialmente famosas entre elas o Rei Leão, atualmente no calendário cultural da cidade estão também inúmeros shows de stand-up comedy (comédia em pé). Originário nos Estados Unidos, esse estilo de comédia tomou conta do Brasil, principalmente de São Paulo. Há inúmeras opções para quem gosta de dar risada. Um dos clubes mais famosos é o Comedians, de propriedade dos humoristas Danilo Gentilli e Rafinha Bastos.

Cinema Nenhuma outra cidade no Brasil tem tanta oferta da sétima arte como São Paulo. Nenhuma! Com 260 salas de cinema espalhadas pela sua selva de pedra, a capital paulista recebe em primeira mão, em solo brasileiro, os principais lançamentos do cinema mundial. Há alguns anos, os lançamentos norte-americanos passaram a dividir espaço também com sucessos europeus (há muitos filmes franceses em cartaz na capital paulista) e latino-americanos (os longas argentinos costumam ter sucesso no circuito paulistano de cinema). Manter tantos cinemas abertos e com público frequente pode ser valercultural


Fotos: Divulgação/T4F

considerado uma vitória para qualquer cidade. Até mesmo uma megalópole como São Paulo. Afinal, as ofertas de filmes na internet são inúmeras e praticamente sem concorrência. E mais: de graça. Hoje em dia, os principais lançamentos do cinema mundial muitas vezes estão disponíveis na internet antes mesmo de estarem em qualquer telona por aí. Há quem prefira o escurinho do cinema, o cheiro de pipoca no ar e aquela tela gigante à frente, como se estivesse dentro do filme. Esse romantismo é difícil de ser superado por qualquer boom da internet ou facilidade proporcionada pelas telas de computadores. A telona é imbatível. “Eu tento ir bastante ao cinema, principalmente para levar as crianças. Você sempre encontra um filme legal para assistir, mas os preços são altos. Meu filho mais novo, de dois anos, já paga meia-entrada... Então, para uma família de quatro pessoas esse passeio acaba levando aproximadamente R$ 100 [incluindo ingressos e bebidas]. O Cine Clubinho no Cine Sesc é uma saída. A programação é gratuita, voltada para crianças e tem palhaços e música antes do filme. É uma delícia!”, valercultural

conta a jornalista Carol Patrocínio, mãe de dois meninos.

Shows Os principais shows musicais que ocorrem no Brasil têm como palco São Paulo. Seja nacional, internacional ou festival. A capital paulista tem uma programação anual bastante agitada nesse sentido. Rock, pop, samba, pagode, música eletrônica... Tem atração para todos os gostos. Várias vezes ao ano, cidadãos de diversos Estados e do interior viajam a São Paulo para ver o cantor predileto, a banda favorita ou ficar horas a fio em um festival como o Lollapalooza, realizado recentemente. Bom para os hotéis, que normalmente ficam com 90% de lotação nesses períodos. Mas a vida musical de São Paulo não vive apenas das grandes atrações. Ao contrário. O cenário é muito mais abrangente do que parece. Por toda a cidade é possível encontrar as mais variadas atrações. Há shows intimistas de jazz e blues, eventos de expoentes do rock, pop. Além de pagode e sertanejo.

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Foto: Arquivo pessoal

Diversidade gastronômica

São Paulo é a cidade mais cosmopo-

cer o novo e gostam de sentir influências

lita do Brasil. No aspecto gastronômico

de outros lugares, o que facilita o traba-

em especial. São 12,5 mil restaurantes,

lho dos chefs que estão na capital pau-

divididos em 52 cozinhas diferentes, 15

listana”, avalia a chef Vivi Araujo. “O que

mil bares, 600 restaurantes japoneses,

mais gosto de São Paulo é a diversidade

seis mil pizzarias, três mil padarias e 500

e a facilidade de conseguir quase tudo o

churrascarias. Muitos turistas optam pela

que se precisa dentro de uma cozinha.

capital paulista justamente por essa di-

Aqui, temos o mundo em nossas mãos,

versidade na hora de comer.

tanto na gastronomia quanto nos costu-

“O público já não é tão conservador como antes. As pessoas querem conhe-

mes”, acrescenta o chef e proprietário de dois restaurantes, Marlon Sakamoto.

Foto: Arquivo pessoal

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É isso que amo em São Paulo: eventos culturais gratuitos e ótimos. Não precisamos gastar muito para se divertir. Basta se informar”

Nas casas de pequeno, médio e grande porte, covers se revezam com bandas e artistas de som próprio, em busca do fim do “anonimato”. A rua Augusta, atualmente, é onde se reúne a maior diversidade de tribos musicais. Há de tudo na famosa rua paulistana. Opções para todos os gostos e estilos. Pode-se dizer que a rotina musical da cidade de São Paulo acompanha seu ritmo dinâmico, muitas vezes alucinante. Mas que dá certamente uma pitada a mais de charme na maior cidade do Brasil, dona não só da maior população, mas também da maior diversidade de eventos culturais.

Grátis Quem mora em São Paulo sabe: muitas vezes uma saída de poucas horas pode pesar (e muito!) no bolso. Tudo é caro nessa cidade que movimenta bilhões por ano e tem uma das economias mais aceleradas do mundo. Mas há muitas (e boas!) opções sem que você precise gastar dinheiro.

O site www.catracalivre.com. br é uma das principais fontes para quem está à procura de diversão gratuita na capital paulista. A página reúne as mais variadas atrações, seja shows, exposições, peças de teatro, festivais de cinema... Muitos patrocinados pela prefeitura ou Estado. “É isso que amo em São Paulo: eventos culturais gratuitos e ótimos. Não precisamos gastar muito para se divertir. Basta se informar”, comenta a paulistana Janaína Nunes. Em São Paulo, anualmente, há também a Virada Cultural. Em um fim de semana, as atrações, gratuitas, varam a madrugada em todas as regiões da cidade. Mais recentemente, a prefeitura organizou também a Virada Gastronômica, no mesmo estilo da citada anteriormente. Para aqueles que gostam de economizar e ficam indignados com preços abusivos em São Paulo há também um espaço especial para deixar sua “denúncia”: é o Boicota SP www.boicotasp.com.br. Nele, o consumidor pode avisar a todos onde há preços bem acima da média para os produtos.

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Foto: Rubens Chiri

Masp é atração número 1 É difícil pensar em São Paulo e avenida Paulista sem lembrar do Museu de Arte de São Paulo, o Masp. Não é à toa que o edifício idealizado por Assis Chateaubriand e projetado por Lina Bo Bardi tornou-se a principal atração turística do maior centro financeiro da América Latina. Aproximadamente 2,5 mil pessoas visitam o museu por dia. O acervo do museu, fundado em 1947 e inaugurado em 1968, é o principal da América Latina, com obras de grandes artistas, como Renoir, Monet, Cèzanne, Goya, Picasso, Van Gogh, Cândido Portinari, Di Cavalcanti e Anita

Uma cerveja de 600 ml por R$ 14,00, uma omelete de R$ 36,00 e uma pizza de camarão por R$ 150 são apenas algumas das “denúncias” já registradas no Boicota SP. Na página, há um mapa da capital paulista, dividido por bairros e categorias. Tudo para facilitar a reclamação do consumidor.

Turismo gratuito Muitos turistas preferem o transporte público ao carro. Não só por uma questão de economia, mas também para caminhar mais perto da alma de cada cidade. Em São Paulo, portanto, há um passeio muito interessante: o Turismetrô. É uma parceira da São Paulo Turismo com o Metrô. São cinco roteiros diferentes, por pontos turísticos e históricos

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da cidade, ao custo de, no máximo, dois bilhetes (R$ 6), dependendo do trajeto escolhido. Outro passeio gratuito que tem conquistado adeptos é o SP Free Walking Tour. Ele é realizado todas as quartas, quintas, sábados e domingos, e percorre a velha São Paulo e os arredores da avenida Paulista. O tour é feito em inglês, perfeito para quem deseja aprimorar o idioma da rainha. “Fiz esse passeio há pouco tempo porque, apesar de ter ido a São Paulo várias vezes, nunca tinha feito turismo na cidade. Foi muito legal conhecer o Centro antigo, o prédio do Copan, o Museu do Ipiranga, a Igreja da Sé, entender a história da capital e o melhor ainda é fazer tudo isso sem gastar um centavo”, comemora a amazonense Camila Baranda.

Foto: Arquivo pessoal

Malfatti.

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Foto: Arquivo pessoal

Paixão pela efervescência de Sampa

LANE LIMA – Jornalista

Sou de Manaus e moro em São Paulo há pouco mais de dois anos. Antes de vir para cá foram muitos anos de namoro com a cidade, até que decidi junto com a minha família a me debruçar de vez nessa terra de tantas caras, que exala cultura.

De lá até aqui acumulei inúmeros shows, espetáculos teatrais, eventos culturais, exposições artísticas internacionais, troca de experiências fomentadas pela diversidade e pluralidade que certamente poucos lugares no Brasil proporcionam. O que me impressionou ao passar a viver aqui é que me sinto o tempo inteiro instigada a consumir, a buscar, a frequentar esse circuito cultural, é por ter a necessidade de assimilar tendências, conhecer mais, ter entretenimento de qualidade, tipo de coisa que a cidade me proporciona o tempo todo. A efervescência de São Paulo, que é a maior metrópole da América do Sul e o mais importante centro financeiro do país, não poderia passar despercebida por ninguém que

pisasse em solo paulistano, onde as praias não são os shoppings – como dizem – e sim, os museus, os parques, as livrarias, os sebos e que, em dias cinzas, o colorido da arte urbana toma o lugar do Sol e proporciona prazer da mesma forma. O mais interessante é que não precisamos desembolsar muita grana para acompanhar o ritmo acelerado da agenda agitada daqui. Existem opções super em conta de shows, espetáculos teatrais e exposições de arte a preços simbólicos de dois, três reais e, muitas vezes, até de graça. Vi grandes festivais de Jazz, espetáculos teatrais, shows de bandas internacionais como Franz Ferdinand ao ar livre, sem pagar nada, com estrutura de primeira, em ho-

CALENDÁRIO DE EVENTOS 2013 JULHO

AGOSTO

SETEMBRO

7.º Festival de Cinema Latino-Americano 12 a 19 de julho Memorial da América Latina

Musical Billy Elliot 2 a 18 de agosto Credicard Hall

Perrosky 3 de setembro Jockey Club de São Paulo

Herbie Hancock 22 de agosto Credicard Hall

John Mayer 19 de setembro Arena Anhembi

Hanson 21 de julho. Credicard Hall Madagascar Ao Vivo 26 de julho a 6 de outubro Ginásio do Ibirapuera Paramore 30 e 31 de julho. Espaço das Américas 64

Marisa Monte 30 e 31 de agosto HSBC Brasil

Iron Maiden 20 de setembro. Arena Anhembi Bon Jovi e Nickelback 21 de setembro. Estádio do Morumbi

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rários alternativos, à tardinha, com a família. Sem contar com o circuito cultural de instituições como o Sesc, que oferecem diariamente opções de lazer e entretenimento para toda a família. Aliás, lugar que eu frequento bastante. Já devo conhecer quase todas as 20 unidades só da grande São Paulo. Ir a um show de música, peça, espetáculo circense, dança, exposição de artes plásticas e visuais, ou uma sessão de cinema por lá, é certeza de conforto, segurança, respeito com o público – com destaque ao atendimento e pontualidade – e tudo a preço justo, superacessível. E para conseguir aproveitar bem, eu e meu marido seguimos uma rotina semanal de busca em sites, revistas e guias que informam a agenda cultural do mês. Selecio-

namos o que queremos contemplar na semana, mesclando sempre com uma programação infantil para a nossa filha de seis anos. Outro lugar que frequento muito é o Centro Cultural São Paulo, onde posso explorar seus acervos nas bibliotecas, as salas de leitura infanto-juvenil com gibiteca, participar de contações de histórias, ações e palestras educativas e projetos de artes visuais. Aqui em Sampa, não existe esse papo que não dá para se divertir sem grana. Isso é uma bela desculpa para quem não quer sair de casa e prefere ficar vendo TV. Com toda essa facilidade, ainda consigo economizar para quando quero ver atrações como Cirque Du Soleil, Elton John, musicais da Broadway que têm ingressos a preços mais salgados, pelo menos para o meu bolso.

Isso porque não mencionei as opções noturnas, gastronômicas e uma série de intervenções que acontecem durante qualquer ida ou volta do trabalho, no metrô, nas ruas, nas praças, além das opções turísticas que incluem roteiros históricos e locais alternativos como as feirinhas de arte e antiguidade. O problema aqui está na oferta, na verdade, na quantidade. Muitas vezes me pego tendo de escolher entre uma opção e outra, entre a variedade de coisas boas em um mesmo dia. E quantas vezes me vi indo duas, três vezes a um mesmo show ou peças porque gostei muito. Normal. E como na música de Caetano Veloso, Sampa, eu também posso te curtir numa boa. “Alguma coisa acontece no meu coração...”.

Gogo Bordello 25 de outubro HSBC Brasil

The B-52s 5 de outubro HSBC Brasil

NOVEMBRO

OUTUBRO

Salão Duas Rodas 2013 8 a 13 de outubro Anhembi Parque

Black Sabbath 11 de outubro Campo de Marte Bienal Mostra Intermediária 2013 Outubro Pavilhão do Parque do Ibirapuera

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São Paulo Fashion Week 28 de outubro a 1.º de novembro Bienal Ringo Starr 29 de outubro Credicard Hall

Justin Bieber 2 de novembro Arena Anhembi Sarah Brightman 28 de novembro. Credicard Hall

DEZEMBRO Grande Prêmio de Fórmula 1 15 de dezembro Autódromo de Interlagos

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fotografia

Insólitos 35mm

Ensaio sobre a Thiago Almeida | jornalista

F

otografar é despir-se para uma multidão de desconhecidos. E despir-se para desconhecidos exige coragem, sinceridade e principalmente proximidade. Despir-se escondido, protegido dos olhares curiosos, da chuva e do frio não apetece o coração de um fotógrafo. Ao menos, não deste que vos escreve. Uma ideia me acordou na manhã de sábado, 19. Mas ocasionalmente minhas ideias veem sempre de mãos dadas a dúvidas, questionamentos e alguns instantes de rabugices aquietadas a café. Sem açúcar, por favor! O desafio foi lançado: um sábado de sol, uma lente 35mm nas mãos e uma ideia fixa na cabeça. Despir-me mais uma vez, agora para reler a fé dos moradores de um município no interior do Amazonas. – Mais um café, por favor! Sim, sem açúcar. A palavra fé tem origem no latim. O termo deriva de fides que significa: “Confiança” e “crença”. É o oposto da dúvida, inimiga da incerteza. Fé é acreditar em algo, ainda que sem nenhum critério comprobatório. No último 19 de maio, Alvarães, ilhada por florestas e rios vestiu-se de fé. Moveu-se de fé. Pela fé, moradores

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(re)leitura da fĂŠ

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e visitantes celebraram mais uma vez a Festa do Divino Espírito Santo. Um antigo e habilidoso fotógrafo húngaro disse certa vez que se uma foto não ficou boa é porque você, certamente, não chegou perto o suficiente. Fotografar é chegar perto, bem pertinho. Despir-se e fotodocumentar a fé de um grupo social é um ensaio antropológico de alguns segundos. Um piscar de olho. Uma ladainha. A 68

fotografia é sempre a (re) leitura de um olhar; por detrás de uma lente; à frente de um cérebro e cercado de valores socioculturais. Fotografar a fé é algo como tentar capturar o ar com uma rede malhadeira. Se você não tiver “golpe de vista” ou “olhar”, o ar sempre irá passar por entre os buracos da rede. Meu relógio marcava 18h. Em alguns minutos o sol iria se pôr. Este era o sinal! Segundo o que apurei,

quando o astro-rei esconde-se no horizonte a comunidade cristã do município de Alvarães é incumbida de uma tarefa santa: fazer o lago Alvarães chorar lágrimas de sangue. Iluminar os céus com luzes, fogos de artifícios; barulho para afastar os maus espíritos, beleza para honrar o Divino Espírito Santo. Neste momento, por detrás da minha lente 35mm, a fé metamorfoseou-se da abstração. Do ar não tinha, se quer, valercultural


Perfil Thiago Lima de Almeida, 26 anos, Belo-horizontino por nascimento. Paulistano de vida e coração e agora filho adotivo do Amazonas. Graduou-se em Turismo pela Universidade Federal de Minas Gerais e Jornalismo pelo Centro Universitário UNA. A vida fez-lhe fotógrafo, por escolha própria aderiu ao fotodocumentarismo. Atualmente trabalha como assessor de comunicação e divulgação científica em Unidades de Conservação no médio Solimões.

parentesco. A fé tinha estatura mediana, pele escura, pés descalços, mãos calejadas e olhar de respeito. Entoava ladainhas, pai-nossos de cada, ou de todos os dias, deslizava em uma canoa sob as águas negras do lago Alvarães. A cada toque na água uma vela surgia. Fotografar é navegar sob a lente por águas turvas, negras, brancas. Escrevendo essas linhas, recordei-me ainda, que fotografar tem cheiro de madeira valercultural

molhada sob o sereno de domingo. Mas não um domingo qualquer; um domingo santo! “Acordei” às 8, talvez 9, da noite. Recordo-me de descer da catraia e apertar forte as mãos de um rapaz. Agradeci-lhe imensamente pela possibilidade de deslizar sob o lago. Queimar os dedos nas lagrimas de fé, ouvir até doer as dezenas de minutos de fogos de artifícios que rasgaram o silêncio da

madrugada. A negritude do céu e a inocência em fé, deste que vos escreve. Caro leitor, preciso lhe pedir desculpas. Infelizmente meu retrato é limitado, pois meu coração insiste em viver o clique de perto. Fotografar é deixar o coração guiar o corpo pela coreografia da labuta, arte nossa de cada dia. Aos iluminados de Alvarães, que na ausência de montanhas moveram rios de fogo e fé... 69


Foto: Divulgação

literatura

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Iracema e Simá unem metáforas sobre o Brasil As duas são obras fundamentais e necessárias para a compreensão da construção do que chamamos hoje de “identidade nacional brasileira” Tenório Telles | escritor

O

uso afirmar que o precursor da reflexão ficcional sobre a formação da identidade nacional, por meio da relação conflituosa entre civilizado e “primitivo”, não é o cearense José de Alencar, autor de Iracema, mas o baiano Lourenço Amazonas, que escreveu Simá, considerado o primeiro romance amazonense. Lourenço, militar, passou parte da sua vida na Amazônia, convivendo com os indígenas e com o processo de colonização da região. Simá foi lançado em 1857 e Iracema, em 1865. Ambos têm como trama o surgimento do primeiro “brasileiro”, fruto da relação entre

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um europeu e uma indígena. Em circunstâncias distintas, essa relação se concretiza de forma ardilosa e, no caso de Delfina, personagem do romance amazônico, também violenta. Perpassa, nas duas obras, a sugestão de que o fruto do “encontro de raças” – uma superior e outra inferior – não poderia vir de um ato consentido, daí a embriaguez dos protagonistas dos dois livros: Martim e Simá. Assim, considero as duas obras fundamentais e necessárias para a compreensão da construção do que chamamos hoje de “identidade nacional brasileira”.

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Fotos: Divulgação

Iracema

Já se evidencia em Iracema um tema que aflorará posteriormente na cultura brasileira: dos “dois brasis”

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Iracema é o romance mais expressivo da tendência indianista do Romantismo brasileiro. A narrativa tem como argumento a colonização do Brasil, simbolizada no processo de formação da terra natal de Alencar, o Ceará. Iracema, índia da tribo Tabajara, representa o elemento “primitivo” e originário da terra, e Martim, colonizador português, é o conquistador europeu que impõe o seu domínio sobre o território e os povos indígenas. Da união dos dois nascerá uma nova raça, que terá em Moacir, filho do casal romântico, o primeiro rebento. José de Alencar mistura no romance lenda e história. Tendo como pano de fundo o contexto da colonização do território brasileiro, no

início do século 17, o narrador descreve o encontro de dois mundos: de um lado, o europeu, racional e cristão, e de outro, o primitivo, mítico e lendário. O livro é uma metáfora da conquista e da tragédia que se abateu sobre os povos indígenas com a chegada do homem branco, fato que não passou despercebido ao escritor. No capítulo em que narra o encontro de Batuirité, velho chefe pitiguara, com o português Martim, o indígena pressente o desenlace trágico de seu povo, ao comparar o estrangeiro ao gavião branco, e seu neto, Poti, à narceja (ave). A frase que pronuncia contém uma profecia: O velho soabriu as pesadas pálpebras, e passou do neto ao estran-

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geiro um olhar baço. Depois o peito arquejou e os lábios murmuraram: – Tupã quis que estes olhos vissem, antes de se apagarem, o gavião branco junto da narceja. A fala de Batuirité é simbólica. Da mesma forma que o gavião é um predador das outras aves, o velho guerreiro teve a premonição da ameaça destrutiva que Martim (gavião branco) representava para os indígenas, simbolizado por Poti (narceja). A morte de Iracema, após conceber seu filho com Martim, é evocativa do destino trágico dos povos indígenas, ao mesmo tempo em que esclarece o conteúdo profético do vaticínio do guerreiro pitiguara. Alencar problematiza no livro o choque e as consequências do contato entre civilizações com aspirações, conceitos e visões de mundo diferentes. Iracema pode ser lido como um esboço romântico da tragédia dos povos ameríndios. O que reforça a tese de muitos críticos de que o nome Iracema é um anagrama de América. Não é de todo absurdo afirmar que a submissão da índia tabajara a Martim é metafórica da conquista da América pelos colonizadores europeus.

Amor e a história Iracema é um romance que tem dois núcleos temáticos: o amor e a história. A temática amorosa gira em torno da paixão da heroína por Martim. O enlace sentimental entre os dois funciona como pretexto, concebido por José de Alencar, para abordar aspectos históricos relativos à formação de sua terra de nascimento. Ao enfocar o surgimento do cearense, a partir do cruzamento das duas raças simbolizadas pelas

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personagens, o narrador pretendeu, na verdade, problematizar o nascimento do homem americano, simbolizado na figura de Moacir (filho do sofrimento). A presença europeia nos trópicos foi destrutiva para os povos nativos. A colonização da América inscreve-se, na história da humanidade, como um capítulo trágico, relato da conquista e morte dos habitantes primitivos do continente. É o triunfo da derrota. Em Iracema, o narrador deixa evidente, por meio da fala do próprio Martim, a ameaça que o homem branco representava para os indígenas: “Iracema soltou-se dos braços do mancebo, e olhou-o com tristeza: – Guerreiro branco, Iracema é filha do Pajé, e guarda o segredo da jurema. O guerreiro que possuísse a virgem de Tupã morreria. – E Iracema? – Pois que tu morrias!... Esta palavra foi como um sopro de tormenta. A cabeça do mancebo vergou e pendeu sobre o peito; mas logo se ergueu. – Os guerreiros de meu sangue trazem a morte consigo, filha dos tabajaras”. A chegada de Martim à tribo tabajara funciona como um elemento desestabilizador da paz e união da aldeia. O amor de Iracema pelo estrangeiro desencadeia o ciúme e a ira do chefe Irapuã. Para não fugir ao espírito romântico, estabelece-se um triângulo amoroso, ao mesmo tempo em que se acirram os ânimos entre os dois pretendentes ao coração da índia. O conflito é evitado pela intervenção de Araquém, pajé e pai de Iracema, e do velho Andira, seu irmão. A atitude de Irapuã é anticolonialista, embora seja tratado pelo

narrador como vilão, por se opor a Araquém e Andira, e desejar matar Martim. A história é perpassada pelo conflito entre os tabajaras e os pitiguaras, aliados do guerreiro português. Já se evidencia em Iracema um tema que aflorará posteriormente na cultura brasileira: dos “dois brasis”. Na obra de Alencar, o litoral, habitado pelos pitiguaras (comedores de camarão), é dominado pelos brancos, e o sertão, pelos tabajaras, que, derrotados pelos seus inimigos, recuam para o interior, mantendo incólume sua cultura da influência dos conquistadores.

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Saiba mais Colonialismo cultura A obra enseja uma reflexão sobre outro tema: o colonialismo cultural. Se por um lado é evidente a resistência tabajara ao estrangeiro, por outro é clara a aceitação da dominação branca pelos pitiguaras que, além da amizade e aliança com os portugueses, são convertidos à fé cristã. Alencar é simpático à causa colonialista. Apesar da resistência tabajara à presença do conquistador, o escritor descreve o surgimento de vida civilizada, da mairi (cidade) dos cristãos, de forma pacífica, ressaltando a boa convivência com os pitiguaras e a superioridade religiosa dos brancos. Como afirma o narrador: Germinou a palavra do Deus verdadeiro na terra selvagem; e o bronze sagrado ressoou nos vales onde rugia o maracá. O chocalho indígena é absorvido pelo sino da igreja.

Simá, um romance amazônico Um dos livros mais contundentes da literatura brasileira, o romance Simá – romance histórico do Alto Amazonas é contemporâneo do ciclo das narrativas indianistas do Romantismo brasileiro. Simá, do ponto de vista temático e histórico, tem mais relevância que Iracema, embora faltasse a Lourenço Amazonas o talento literário de Alencar. A percepção do autor de Simá em relação à presença europeia na Amazônia é crítica e pessimista, o que o difere do autor de Iracema, que é condescendente e tenta justificar o processo civilizatório empreendido pelos europeus no Brasil e no continente americano. A postura de Lourenço é radical, sem condescendência com a violência e oportunismo de Régis, português que simboliza o colonizador: acolhido na casa de Marcos, um tuxaua Manaus destribalizado, violenta a filha do indígena, Delfina,

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e a engravida. Para alcançar o seu intento, Régis usa o mesmo artifício que Alencar usará em Iracema: oferece vinho com ópio a Marcos e sua filha, que se embebedam, tornando-se presas fáceis dos intentos do português, que, aproveitando-se da situação, estupra Delfina. Em Alencar, a personagem indígena, Iracema, seduz Martim, o português, sendo, assim, responsabilizada pelo nascimento de Moacir, fruto dessa relação espúria. A perspectiva de Lourenço Amazonas é outra: o encontro do civilizado, representado por Régis, com o primitivo, Delfina, foi traumático e violento, como a ilustrar o comportamento da civilização europeia em relação aos povos autóctones da Amazônia e da América. Após a tragédia vivida pela filha, Marcos deixa a região do Solimões, onde morava, e volta para o rio Negro, numa tentativa de reconciliação com suas origens. Com esse gesto, pretendia esquecer o passado, o que

fica evidente na sua decisão de mudar de nome. Passa a se chamar Severo. Após conceber sua filha, Simá, que em língua geral quer dizer luz, Delfina morre de tristeza. O avô de Simá a cria dentro dos costumes do povo de Manaus. Torna-se uma moça bonita e é prometida a Domingos de Dari, jovem de sua etnia. Régis chega ao rio Negro e se encanta com a beleza de Simá, usando de artifícios para conquistá-la, como já fizera com sua mãe. Não suspeitava que a personagem era sua filha, fato que só vai ser esclarecido na cena mais dramática do romance, em que ocorre a morte de Simá e Régis reconhece o colar que estava em seu pescoço, o mesmo que ele pusera em Delfina na noite em que a estuprara. É o momento em que se estabelece o diálogo com o pai da heroína e tudo se revela: “Eu sou Marcos lá de Coari’’. Régis entra em desespero porque descobre que Simá, a quem acabara de causar a própria ruína, era na verdade sua filha. Em desespero, pede para morrer e grita pela filha: – Simá, minha filha!!! Simá, antes de seu último suspiro, dirige-se a Régis: – Meu pai!!! Eu lhe perdoo. Dessa forma trágica termina esse romance emblemático, que na verdade é uma reflexão sobre a presença europeia na Amazônia, sobre o encontro de dois mundos que se chocam e, ao mesmo tempo, atraem-se pelo fascínio ao desconhecido. O romance de Lourenço Amazonas é mais que uma denúncia, é uma metáfora da tragédia vivida pelos povos nativos da Amazônia.

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prod s: Re Foto

ução

livro

Antropóloga compartilha narrativa com ator de bumba meu boi em tese acadêmica

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T

extos científicos não costumam colaborar com os leitores sem experiência com os afazeres acadêmicos. São portadores, em larga medida, de discursos que se fecham em compartimentos disciplinares. Não é esse o caso do livro A graça de contar: um Pai Francisco no bumba meu boi do Maranhão, da antropóloga Luciana Gonçalves de Carvalho, publicado em 2011, pela Aeroplano. Trata-se da tese da autora para a obtenção do título de doutora em antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pesquisa amparada nos rigores científicos e apresentada em fluida dinâmica literária. A antropóloga é hoje professora da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa). Luciana pesquisou a performance cômica na brincadeira do bumba meu boi do Maranhão, no começo da década de 2000. Ela cumpre toda a ritualística da narrativa acadêmica, mas se desvencilha da sisudez e dos “encaixes” teóricos, mesmo quando transita nos rigores da metodologia científica. É possível, por intermédio da sua etnografia abundante e densa, compreender as relações socioculturais que envolvem o bumba meu boi do Maranhão. A pesquisadora aponta que fenômenos da política, da economia, da religião, das relações de parentesco e compadrio, da construção de identidades e das redes de solidariedade podem ser localizados e analisados, também, nas pegadas do bumba meu boi.

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A narrativa coloca os leitores em contato com pessoas, personagens, cenas, cenários e outras peculiaridades que, tanto na academia quanto nas discussões acadêmicas convencionais são colocados, costumeiramente, atrás dos chamados “temas de grande relevância”. A Graça de contar contraria o cientificismo e reafirma que as festas populares, quando abordadas por pesquisadores competentes e criativos, revelam conteúdos importantes e necessários à interpretação da vivência e da convivência social. No bumba meu boi inscreve-se a história do Maranhão e vice-versa, porque ambos se constituem de situações latentes e manifestas à espera da revelação e da interpretação densa, lúcida, instigante e descomplicada. valercultural

Narrativa compartilhada Destaco ainda magnânima decisão da pesquisadora de compartilhar a sua narrativa com a autobiografia do agricultor e ator popular Herberth Mafra Reis, o Betinho, Pai Francisco do bumba meu boi Fé em Deus. E se entendermos que uma tese também é uma autobiografia, podemos afirmar que, em A Graça de contar desfiam-se duas biografias por meio de uma narrativa que mistura estilos etnográficos e beletristas. Esses sujeitos-personagens se entrelaçam em uma trama que, sob a atenção e expectativa do leitor, clama pela sobrevivência do bumba meu boi no tradicional no mundo citadino miditizado.

Na escritura de Luciana ou na própria narrativa, Betinho, em ritmo cadenciado e organizado, revela como se envolveu com o bumba meu boi a ponto de assumi-lo como devoção religiosa. Por sua vida passam várias fases do folguedo, no qual exerce o papel de ator cômico, amo, criador e diretor de episódios do auto do boi. Quando se encontra com Luciana, Betinho já é um sujeito atormentado pelas mudanças nas formas de organização e apresentação do bumba meu boi, agora transformado em produto turístico. O ator está sem ânimo para “brincar de boi”, porque a morte cultural lhe ronda o espírito. A sua última cartada, para não sucumbir vergonhosa e covardemente, é registra a sua história, que é a história do bumba meu boi “original e tradicional”, em um livro. “Esta é a hora, Luciana, eu vou contar a razão de nos conhecer e nos unir para trazer de volta a parte mais importante na história do bumba meu boi”. É assim que Betinho registra a sua decisão de narrar a sua história para Luciana. Betinho se apresenta como ator que quer participar da pesquisa, mas avisa que não pretende abrir mão da sua condição de narrador de primeira mão. E Luciana, pesquisadora ousada, acolhe o narrador e compartilha a sua obra com ele. “Desde que nos conhecemos, tenho acompanhado suas aflições íntimas de longe e de perto. De certo modo, talvez mais perto que qualquer outra pessoa de seu convívio. De tão perto que ele chega a transferir para mim parte de suas obrigações”, escreveu Luciana. A Graça de contar mantém acesa a polêmica em torno dos procedimentos do fazer acadêmico. Mas, muito além dessa provocação instigante, é uma leitura edificante. 77


gastronomia

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Descubra um mundo de variedades típicas do país vizinho Valéria Costa | Jornalista

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P

ouco mais de mil quilômetros separa Manaus da fronteira da Venezuela, o que não é empecilho para que inúmeros turistas amazonenses se aventurem todos os anos pela BR-174 (Manaus-Boa Vista) – seja de carro ou ônibus – com destino às praias caribenhas da Ilha de Margarita ou algum tour pela rica geografia do país vizinho, em busca de férias relaxantes ou compras badaladas. Nesse roteiro, claro, se inclui a descoberta de uma culinária tipicamente criolla, como é conhecida a gastronomia bolivariana. Quem já foi, pelo menos uma vez àquele país, com certeza provou alguma iguaria e sabe do que vou falar agora: arepa, cachapa, empanada são uma mania

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O consumo da arepa na Venezuela é tão importante quanto a farinha no Norte do Brasil”

nacional. Em toda esquina pode-se ver alguma banca vendendo alguns desses pratos típicos com todo tipo de recheio que se possa imaginar: desde queijos, carnes e até mesmo pescado (peixes da região) desfiado. No café da manhã, no almoço, lanche ou até mesmo substituindo o jantar, lá está a arepa. Eu poderia afirmar que ela é a “farinha” venezuelana. E como a arepa é um prato que não pode faltar na mesa do venezuelano, como fazem aqueles que moram no exterior?, haja vista que a massa de harina pan, que nada mais é que a farinha de milho pré-cozida e bem fina,é um produto estritamente daquele país, apesar de também ser

consumido na vizinha Colômbia, não se encontra em Manaus. Simples. O chef de cozinha, natural de Caracas, Corrado Farinola, tem uma solução para isso. Morando na capital amazonense há quase quatro anos com a família, ele não hesita em ir comprar, sempre que pode, fardos de harina pan no vilarejo de Santa Elena de Uairén, cidade fronteiriça com o município de Pacaraima, em Roraima, numa viagem pela BR-174. A compra, com muita disciplina, chega a durar um semestre em sua residência. Inclusive, seus filhos, que também são venezuelanos, costumam levar arepa recheada com queijo, em suas lancheiras para a escola e fazem a

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festa quando o cardápio do jantar vai ser este item da gastronomia bolivariana. “O consumo da arepa na Venezuela é tão importante quanto a farinha no Norte do Brasil”, acrescenta o chef. Mas não é só isso. Se o turista estiver realmente decidido a mergulhar na culinária do país de Nicolás Maduro ele irá descobrir um mundo de variedades típicas de cada região da Venezuela. E a principal delas é o pollo (frango, em português). E como o povo venezuelano come frango, seja na chapa, seja a la broaster (espécie de frango bem frito, muito crocante), ou mesmo cozido com arroz. Aos domingos, a tradição é o sancocho, é como se fosse o cozidão de carne brasileiro, mas com mocotó com um caldo bem mais grosso, explica o empresário venezuelano da construção civil Luís Sifonti, radicado há 20 anos em Manaus.

Ele conta que para matar a saudades de sua terra natal, o Estado de Zulia, que fica a poucos quilômetros da fronteira com a Colômbia, costuma se reunir com outros conterrâneos que moram na capital amazonense para conversar e cozinhar pratos típicos da região, mesmo usando os temperos daqui. “O que mais difere o nosso sancocho do cozidão brasileiro são a quantidade e variedade de verduras que colocamos. A banana-pacovã verde não pode faltar, que é justamente o que faz o caldo engrossar, após

ser ralada. O milho verde aguça o gosto do mocotó e, para dar um toque doce natural, a c res ce n t a m o s a batata-doce e mais banana-pacovã madura”, explica.

Dicas aos turistas Nos últimos anos, o assessor parlamentar Mário

retorno a Manaus, chegou a fazer uma em sua casa com

Daniel Carvalho já foi pelo menos três vezes à Ilha de

arroz, açúcar e milho. “A minha ficou bem melhor que

Margarita, outras tantas para Santa Elena do Uáiren, na

a deles”, brinca.

fronteira, e para as cidades de Puerto Ordaz e Puerto La Cruz.

Para o empresário Luís Sinfonti, o segredo para quem escolhe passar férias ou morar em outro país ou

Ele afirma que gosta de passar férias na Venezuela

cidade que não é a sua é se adaptar à culinária da re-

porque, explica, além de ser uma viagem barata, cos-

gião. Ele conta que quando chegou a Manaus, há duas

tuma ir de carro e não gasta quase nada para encher o

décadas, teve que aprender a comer farinha. “Em alguns

tanque de gasolina depois que cruza a fronteira. “Meus

momentos, pensei que estava comendo seixo de tão

gastos com gasolina lá não passam de R$ 3,50. Quer

dura. Passei muita fome até a me adaptar e hoje não

mais o quê?”, diz.

falta uma farinha na minha mesa”, diz.

Ele conta que nas suas descobertas pelo país e

O chef Corrado Farinola enaltece a comida de seu país

pela culinária venezuelana procurou provar o máximo

e fala que a culinária venezuelana é mais rica do que apa-

de pratos típicos a que foi apresentado. “Comi arepas,

renta. “O turista precisaria de uma orientação mais es-

hallacas, o tequeño, que é uma massa de queijo branco

pecializada para encontrar os pontos que oferecem uma

muito parecido com a nossa panqueca”, diz Daniel. Ele

gastronomia regional mais elaborada”, observa.

acrescenta que aprendeu a receita da cachapa e, no seu

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Prato nacional

Difusão da gastronomia bolivariana Com o projeto de difundir e promover a culinária bolivariana no Amazonas, o Consulado Venezuelano em Manaus iniciou ano passado, de forma tímida, ações nesse sentido. Carmén Navas informou que, em julho de 2012, o consulado foi convidado a divulgar sua cultura na Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e, num estande, o grupo apresentou à comunidade acadêmica a arepa e o papelón criollo. Num outro momento, conta, por ocasião da confraternização do consulado, em dezembro

Outro prato que representa a culinária nacional é o pabellón criollo, conforme explica a ministra interina do Consulado da Venezuela em Manaus, Carmén Navas. Ela diz que essa comida típica do país se parece um pouco com a feijoada brasileira. “É um prato que leva feijão preto, arroz branco, carne de gado desfiado, banana-pacovã frita em fatias e queijo. Somos um povo que comemos muito queijo”, conta. Carmén afirma que a cada data comemorativa, o país possui pratos específicos em sua culinária. Um exemplo são as hallacas navideñas, comida tipicamente venezuelana consumida de norte a sul do país na noite de Natal (La nochebuena) e que sua produção envolve todos os integrantes da família por ser extremamente complexa. Enroladas em folhas de bananeiras com barbante, as hallacas são compostas por massa de milho cozida, guisado de carne bovina e suína e galinha desfiada ao vinho, rodelas finas de cebola, pimentão vermelho e amarelo, alcaparras, uvas-passas, azeitonas e ameixas. Ela explica que

essa comida combina num mesmo menu as três raças que chegaram ao país: o índio, o negro e o branco e surgiu no período colonial da Venezuela. Carmén Navas é natural do Vale Del Tuy, no Estado Miranda, a poucos quilômetros da capital venezuelana, Caracas. Em missão no Brasil há três anos, sendo pouco mais de um ano em Manaus, a ministra afirma que uma das poucas dificuldades que encontrou aqui foi em relação aos peixes, haja vista que as espécies oferecidas na cidade são oriundas de rio. “Há muita diferença entre os sabores dos peixes de rio e de mar. Sou caribenha e acostumada a comer peixes da água salgada”, diz. Já na parte de doces, o país possui uma variedade de pratos, a exemplo do doce de mamão, muito apreciado pelos venezuelanos, o pudim, chamado lá de quesilho e a forte influência europeia com o tiramisu, de origem italiana, mas adaptado à culinária local. Outra iguaria muito consumida no dia a dia daquele povo é a cachapa, feita à base de milho verde e o papelón com limón, que é um refresco de rapadura e limão bem gelado.

do ano passado, a ministra convidou alguns manauenses e, com a assessoria do chef Corrado Farinola, serviram no jantar pratos típicos do natal venezuelano: as hallacas e o doce de mamão, além da comida brasileira. “Uma vez que o brasileiro quebra a resistência e prova das comidas típicas da Venezuela, passa a gostar”, diz a ministra. Atualmente, segundo dados do consulado, residem em Manaus 154 venezuelanos. Mesmo assim, a capital amazonense não possui nenhum restaurante que ofereça a comida típica daquele país.

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música

Produzida no Pará A nova produção musical paraense se destaca no cenário nacional e começa a ganhar força pelo mundo Suelen Reis | Jornalista

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Foto: Junior Franch

Foto: Nayara Jinknss

E

la está no ranking das mais pedidas das rádios, na lista das mais baixadas na internet, nos BGs dos programas de TV, nas trilhas sonoras das novelas. A música paraense está na moda! E, além do espaço no cenário nacional, os hits do Pará começam a ganhar força pelo mundo. A cantora Gaby Amarantos representa muito bem este momento. Ela acaba de lançar – e disponibilizar gratuitamente na internet – o DVD Live in Jurunas. O álbum é megaglobalizado: tem título em inglês, conteúdo paraense e diretor francês. Em entrevista a Valer Cultural, ela comenta esta boa fase.

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“É um documentário-filme-show que apresenta para o mundo nosso trabalho. Queria que as pessoas tivessem acesso a essa nossa filosofia e já tinha essa ideia (de disponibilizar) em comum com os produtores. Esse é o momento da música paraense. Estamos começando a exportar música brasileira que a gente faz”, comenta Gaby, que, recentemente, participou no badalado Festival de Cannes e segue em turnê internacional com shows pelos Estados Unidos e Europa. “Quero levar nossa música para os outros países conhecerem. Os shows não serão para brasileiros que

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Fotos: Nayara Jinknss

Nem gosto dessa expressão ‘na moda’. Porque moda passa, daqui a pouco ninguém lembra. Falo em uma história que vem sendo contada há vários anos”

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Mestre da guitarrada

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vivem fora, mas para os estrangeiros mesmo”, orgulha-se. Outro destaque da música paraense, Lia Sophia – que emplacou um carimbó na trilha sonora de novela global – também conversou com a nossa reportagem e fala em reconhecimento. “Nem gosto dessa expressão ‘na moda’. Porque moda passa, daqui a pouco ninguém lembra. Falo em uma história que vem sendo contada há vários anos com os mestres da guitarrada, com o carimbó, com a Fafá de Belém. Agora só estamos aparecendo na mídia nacional. Claro que essa exposição ajuda, mas a nossa música é muito mais que isso”, comenta. De acordo com Lia, o segredo desse sucesso é o povo paraense. “É um povo apaixonado, que consome nossa música. Que se impõe e diz: ‘É disso que gostamos’. Essa atitude aguça a curiosidade das pessoas de fora e elas querem conhecer que ritmo é esse”, afirma.

MPB paraense Com todo orgulho que sente por ser nortista, Gaby rebatizou a música paraense. Ela costuma defender o que chama de Música Popular Brasileira produzida no Pará (MPBPP). “É diferente, único. Tem nossa atitude na essência. É o nosso tecnobrega que interage com outras culturas. Não é só regional, é moderna, é pop. Não tem como rotular. Tocamos vários ritmos como samba, funk com uma pegada nossa”, comenta. Aceitação e valorização das origens e da cultura fazem parte desse movimento artístico forte no Pará que enfrenta o preconceito sem medo. “Durante muito tempo olhávamos só para o que vinha de fora, mas passamos a nos valorizar. Olharmos para nós mesmos, para as nossas riquezas, nossa verdade. Somos singulares, diferentes, temos amor e autoestima lá em cima. Mas isso é um processo que leva muitos

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anos. Faço uma música pop produzida no Pará, um zouksoul, carimbó-pop. Não dá para rotular. Tem várias coisas misturadas”, pontua Lia. A cantora afirma também que mais que reconhecimento, já existe uma influência paraense na Música Popular Brasileira. “A música produzida no Pará já está influenciando a MPB. Caetano (Veloso) até gravou um carimbó. Estava no Carnaval de Recife e me surpreendi quando reconheci o carimbó no show dele. E não era uma adaptação, era o carimbozão mesmo, o puro”, diz Lia.

Superando as dificuldades

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Para ter essa segurança toda dentro e fora dos palcos, foram anos de trabalho. “Para sermos reconhecidos – e aprovados – nacionalmente, temos lutado muito porque acreditamos que temos muito a mostrar para o Brasil e somos exemplos para os Estados da Amazônia de como se fazer perceber”, diz Lia. Além da força dos artistas que não param de produzir, o apoio do poder público e das empresas privadas foram importantes nesse processo. “O Poder público que incentiva, apoia, por meio de projetos de lei (ela cita a Lei Semear), com a realização de festivais que valorizam o artista local; tem o apoio das empresas privadas que apostam, acreditam nos nossos artistas. Já era assim antes dessa exposição, agora mais ainda. Todos querem associar seus nomes aos nossos artistas”, comenta Lia. Gaby confirma: “existe um movimento, um investimento coletivo. Aqui (no Pará) todos os artistas são iguais e importantes”.

A música da Amazônia entrou no mapa!”

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No livro Festa na cidade – O circuito bregueiro de Belém do Pará, o autor, Antonio Maurício Dias da Costa, afirma que “não é ponto pacífico a aceitação global do ritmo da cidade. Que as festas de brega são restritas à periferia de Belém, à população menos favorecida...”. Elas discordam! “Estamos mostrando que não é bem assim. Mas, no geral, o brega é representativo da nossa cultura. E do modo como o paraense ouve música. Faz parte do nosso dia a dia. Mas é uma música dançante, festiva. As pessoas querem se divertir. E é com a nossa alegria que estamos ultrapassando todas as barreiras”, diz Lia. Consciente do sucesso, a engajada Gaby faz questão de dizer que essa é uma característica da cultura brasileira. “Acho que isso (essa desconfiança) é uma coisa bem cultural do nosso país. Mas no Pará foi um pouco mais forte. Caetano, por exemplo, é diferente, está sempre à frente do seu tempo, teve suas dificuldades. Eu sou de vanguarda

Apoio

também e estou quebrando tudo. Faço um papel que tem gerado boas discussões. Uma grande conquista foi a patrimonização do tecnomelody que conseguimos recentemente. As pessoas estão abrindo mais a mente. Acho que é bacana. A música da Amazônia entrou no mapa!”, pontua.

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cinema

Título original: Anonymous (2011) Direção: Roland Emmerich Elenco: Rhys Ifans, Vanessa Redgrave, Joely Richardson, David Thewlis, Xavier Samuel e Derek Jacobi Duração: 130 minutos

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A identidade de William Shakespeare

O filme Anônimo explora uma das teorias sobre o verdadeiro nome por trás das obras do poeta e dramaturgo inglês Luiz Otávio Martins | jornalista

C

om um nome mais associado a filmes comerciais de ficção e ação, fica um pouco difícil crer que o alemão Roland Emmerich poderia se interessar por um tema como a vida do poeta e dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616). Mas, em 2011, o cineasta de Godzilla, Independence Day e

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O Dia Depois de Amanhã dirigiu o drama Anônimo, que aborda a secular discussão sobre a autoria dos textos assinados por Shakespeare – sem deixar de lado as liberdades dramáticas comuns a filmes históricos produzidos em Hollywood. E, ao se afastar das criaturas fantásticas e do ritmo alucinante comum aos seus blockbusters (alguns eficien-

tes, outros nem tanto), Emmerich mostrou ser competente também ao mergulhar nas intrigas políticas da corte de Elizabeth I, entre as últimas décadas do século 16 e os primeiros anos do século seguinte. Em Anônimo, o roteiro de John Orloff atribui a tão discutida autoria de obras como Romeu e Julieta, Rei Lear e Hamlet – que data do século 89


18 – a Edward De Vere, conde de Oxford, que ainda criança chama a atenção de Elizabeth I, rainha da Inglaterra, Irlanda e País de Gales. Após a morte do pai, e por ordem da monarca, ele passa a morar com a família do lorde William Cecil, e desperta a inveja de seu filho Robert. Edward passa a ter aulas de idiomas, História, Geografia, esportes, mas é proibido de desenvolver sua maior paixão: escrever poemas e dramas, prática considerada pecaminosa pelo lorde. Já adulto, Edward conhece o teatro popular e vê no dramaturgo Benjamin Jonson (um personagem da vida real, que pode ter sido rival de Shakespeare), perseguido por causa do conteúdo crítico de suas peças, a possibilidade de ter suas histórias ovacionadas pelo público. Ele paga para que o escritor assuma a autoria dos seus textos.

Mas após a primeira encenação de Henrique V, Jonson hesita e um ator de sua companhia, o beberrão e mulherengo Will Shakespeare, apresenta-se para a plateia como o verdadeiro autor. Paralelamente, é desenvolvido um enredo de traição e cobiça pelo trono real. O elenco é formado basicamente por rostos não muito conhecidos do público em geral, e nele brilha a veterana Vanessa Redgrave no papel de Elizabeth I, certamente uma das melhores encarnações da soberana. A versão mais jovem da rainha é interpretada por Joely Richardson, presente no seriado Nip/Tuck, e um quase irreconhecível Rhys Ifans dá vida a Edward De Vere. Para quem não se lembra, ele é o amigo relaxado de Hugh Grant, em Um Lugar Chamado Notting Hill. No aspecto direção de arte, figurinos e, por que não, efeitos visuais,

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O elenco é formado basicamente por rostos não muito conhecidos do público em geral, e nele brilha a veterana Vanessa Redgrave”

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Anônimo está à altura das grandes produções hollywoodianas – as de Emmerich incluídas –, mas curiosamente não chega a glamourizar esteticamente a corte da rainha Elizabeth. Ela própria é retratada com os dentes podres. Por parte da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas – aquela que distribui o prêmio mais cobiçado da sétima arte –, Anônimo foi indicado a apenas um Oscar, o de melhor figurino. Uma injustiça. Afinal, a produção de Roland Emmerich é, em vários aspectos, mais interessante do que Shakespeare Apaixonado, comédia romântica de 1998, consagrada como melhor filme daquele ano. Talvez Hollywood prefira que o público lembre sempre do dramaturgo como aquele jovem com bloqueio criativo (vivido por Joseph Fiennes) que encontra em lady Viola a inspiração para escrever uma de suas mais conhecidas peças. Difícil é crer que a interpretação de Gwyneth Paltrow seja capaz de inspirar alguém a escrever uma história como Romeu e Julieta. O cartaz original de Anônimo não faz rodeios e joga a questão: “Shakespeare foi uma fraude?”. A discussão segue entre acadêmicos, especialistas no assunto e, de unânime entre todos, só mesmo a genialidade dos dramas escritos por William Shakespeare.

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Coluna cultural latino-americana

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opinião

Idealizador dos pontos de cultura, Célio Turino afirma que, com a futura Lei Cultura Viva em vigor, os traços culturais típicos do Brasil não vão se desfazer com as mudanças de gestão ou passar do tempo Michelle Portela | jornalista

O

ano de 2013 será um período de intenso protagonismo dos novos mecanismos de fortalecimento da cultura brasileira, com desdobramentos para toda a América Latina. Após a sanção do Vale Cultura, cartão que fomenta o consumo de cultura por trabalhadores que ganham até cinco salários mínimos, no fim do ano passado, será a vez do Projeto de Lei (PL) 757/2011, a conhecida Lei Cultura Viva.

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O projeto de lei, de autoria da deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-R), tem a missão de institucionalizar como política de Estado o programa já em vigor do Ministério da Cultura, de mesmo nome. Na prática, a função da Lei Cultura Viva é facilitar a manutenção de mais de três mil pontos de cultura no país, envolvendo mais oito milhões de brasileiros. Com a futura lei em vigor, será a certeza de que os traços culturais

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típicos do Brasil não vão se desfazer com as mudanças de gestão ou passar do tempo. É o que explica o idealizador dos pontos de cultura, Célio Turino, que mobilizou os movimentos sociais de todo o continente sul-americano em direção ao I Primeiro Congresso Latino-americano de Cultura Viva Comunitária, que aconteceu de 17 a 22 de maio em La Paz, na Bolívia. É que, para ele, o modelo de pontos de cultura não cabe mais nos limites territoriais brasileiros e se fortalece como uma proposta de desenvolvimento sustentável para o continente. Com isso, os movimentos engajados na proposta já realizam uma campanha continental pela Cultura Viva Comunitária, que busca asse94

gurar em lei um orçamento mínimo de 0,1% de orçamento público para o “fazer cultural” autônomo e protagonista, potencializando os Pontos de Cultura existentes em todos os países.

Como foi a construção do projeto Ponto de Cultura? Célio Turino – Tudo começou em Campinas, há mais de 20 anos, quando fui secretário de Cultura do município, de 1990 a 1992. Naquele período, a gente desenvolveu uma ação com casas de cultura, que tinham o germe desse pensamento, que era da gestão compartilhada entre Estado e sociedade, desenvolvimento em rede e adaptação

da realidade local. Pegávamos uma casinha de Cohab, que estava desativada, em um bairro distante da cidade, e ali virava um ponto. E assim sucessivamente, em garagens, no que era possível. Depois, o programa se desestruturou na mudança de governo. Eu também fui mudando de rumo e, em 2000, vim trabalhar em São Paulo, onde fui diretor de Lazer, até quando fui chamado para ir ao Ministério da Cultura (MinC).

Qual foi o resultado da implantação dos PCs na política cultural brasileira? Tivemos um bom retorno no início, perto de 850 projetos em 2004 – valercultural


era para selecionarmos apenas 100, mas como eram muito bons, chegamos a 260, e terminamos aquele ano com 72 conveniados. Em função dessa construção e desse retorno, o programa foi ganhando mais força e, em paralelo, aquela ideia da BAC (Bases de Apoio a Cultura) foi perdendo força. Ficou acordado que esse era o caminho, e o Congresso, depois da aprovação do presidente Lula, fez uma emenda parlamentar de R$ 55 milhões para o programa para 2005; quando comecei, tinha apenas R$ 5 milhões. Foi a partir da experiência do Cultura Viva, com os Pontos de Cultura no Brasil, quando, pela primeira vez, se construiu uma política cultural que reconhecia

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e potencializava o fazer artístico das comunidades. No Brasil, em 2009, alcançamos 8.500.000 pessoas, em mais de 3.000 Pontos de Cultura (cada ponto é uma entidade cultural), em 1.100 municípios. Porém, como o governo Dilma, tem ocorrido um grande retrocesso e atualmente há apenas algumas centenas de Pontos de Cultura efetivamente apoiados pelo governo federal. Mas muitos seguem se assumindo como Ponto de Cultura, independente de apoio oficial e em razão de seus compromissos com suas comunidades.

No Brasil, em 2009, alcançamos 8.500.000 pessoas, em mais de 3.000 Pontos de Cultura”

E como surge a ideia de uma articulação internacional por

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uma cultura comunitária até a reivindicação de um orçamento mínino para a cultura nos países da América Latina? Em 2009, no Fórum Social Mundial da Amazônia, em Belém (Pará), eu fiz uma apresentação do programa e diversos grupos culturais da América Latina estavam presentes, daí se originou o movimento plataforma puente/cultura comunitária, que assumiu a proposta da Cultura Viva Comunitária em seus países e assegurando 0,1% dos orçamentos públicos para os Pontos de Cultura.

Com participação de representantes de todo continente?

Foto: Divulgação

De toda América Latina, com gente da Argentina, Colômbia, Peru,

Guatemala, Costa Rica, ao todo 11 países. Na América Latina, milhares de entidades estão envolvidas. Há estimativas de que 120.000 pessoas (do México à Patagônia), em diferentes níveis de organização, participem da rede atualmente. Com apoio oficial, já há programa Cultura Viva na Costa Rica, Colômbia (em diversas cidades, como Medellín e Bogotá), Peru (governo da nação e municipalidade de Lima) e Argentina. Em maio realizamos o 1.º Congresso Latino-americano Cultura Viva Comunitária, em La Paz, Bolívia. Vimos o melhor retrato, onde mais de mil participantes de centenas de entidades de 17 países participaram das atividades do encontro. O Congresso também contou com fóruns de gestores, inclusive com a participação de ministros de Estado e parlamentares envolvidos na apresentação da Lei Cultura Viva em seus países e municípios.

Como ocorreu o desdobramento desse movimento nos demais países?

Ponto de Cultura é exatamente isso: a identidade na diversidade

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De baixo para cima. Exatamente assim, os grupos culturais ficaram sabendo do que acontecia no Brasil com os Pontos de Cultura, se interessaram, se aproximaram e fizeram! Desde que saí do governo federal, quando estava como secretário da Cidadania Cultural no MinC, já visitei 11 países da América Latina e alguns países europeus, sendo que meu livro, Ponto de Cultura – o Brasil de baixo para cima, está editado em vários países (quem quiser fazer download da versão em português, pode fazê-lo gratuitamente acessando meu site: www.celioturino.com.br).

Na qualidade de política pública, como o Cultura Viva pode alavancar o desenvolvimento sustentável da América Latina? Esse é o ponto central. Como o Ponto de Cultura atua a partir do território, aplicando princípios do Estado-Rede, em gestão compartilhada com a sociedade, há um entrelaçamento de ações e a cultura é abordada em sentido amplo: como expressão simbólica (arte), mas também em sua dimensão de cidadania e economia, permitindo uma sustentabilidade de fato, construída pelo fortalecimento dos processos de autonomia e protagonismo das comunidades. Todo o modelo teórico do Cultura Viva é construído a partir de uma visão integrada e holística do desenvolvimento, em que o foco está na Potência (na capacidade de agir e transformar) e não na Carência (naquilo que falta) das comunidades. Afinal, a solução de nossos problemas está sempre em nós mesmos.

Refletindo a identidade e a diversidade das regiões onde se instalam? Ponto de Cultura é exatamente isso: a identidade na diversidade. Cada Ponto é de uma forma, mas que encontram na essência.

Como essa política emerge no contexto da economia criativa? São políticas antagônicas. A economia criativa parte da ideia da submissão dos valores da cultura aos valores da economia, da cultura como produto, como mercadoria. O Cultura Viva parte do reconhecimento do fluxo da vida e de seus pro-

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cessos autônomos, da cultura como processo, e como bem comum.

Os países envolvidos nessa proposta tem política econômica para essas abordagens, quer dizer, há força política que se reflita em políticas culturais progressistas como essas?

mos no governo Dilma, que tem promovido um retrocesso em relação a essa holística. Como são os movimentos culturais que têm impulsionado a política, creio que florescem com muito vigor, em especial em países como a Colômbia, sobretudo nas grandes cidades, na Costa Rica, Peru e Argentina.

De certo modo, alguns países estão até mais avançados do que ve-

A expectativa é de que a plataforma seja catalisadora de

uma nova forma de pensar e fazer cultura? É o nosso objetivo! Até porque, agora, quase dez anos após a formulação do Cultura Viva, há que perceber que essa política pública extrapola cultura estrito senso. Com o Cultura Viva exercitamos em grande escala a integração entre os conceitos de Estado-Rede (Castells) e Estado Ampliado (Gramsci).

Perfil Célio Turino - Historiador, escritor e gestor de políticas públicas. Foi idealizador e gestor do programa Cultura Viva e dos Pontos de Cultura, tendo exercido diversas funções públicas, entre São Paulo/SP (2001/2004) e

Secretário da Cidadania Cultural no Ministério da Cultura (2004/2010). Autor de Cultura - o Brasil de baixo para cima (Ed. Anita Garibaldi, 2009), entre outros.


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anos de Hist贸r

e todas as Ci锚ncias e Sentimentos p

respons谩veis, criativos, aut么nomos, comprometidos


ria, Matemática, Português…

para formar cidadãos conscientes,

s a escrever a sua história em um mundo melhor

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ANOS

www.palasatena.g12.br



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