Valer cultural 6 ed

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cultural Ano I n.º 6 agosto/2013 R$ 9,90

UEA ajusta metas às exigências sociais Cleinaldo Costa | página 6

Entrevistas | Reportagens | Literatura | Cinema | Gastronomia | Música | Sociedade | Fotografia | Viagem




vc / editorial

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sta edição tem a cara do mundo, pois reúne elementos de culturas que as incompreensões humanas e as geografias separam. Ela expressa vozes, imagens, sons e cheiros que veem do rio Main, que corta a Alemanha, e se misturam com os do rio Negro, que despenca da região pré-andina colombiana para, nas portas de Manaus, beijar o rio Solimões. Essas águas e as águas de outros rios seguem para os oceanos, onde suas identidades se renovam em alteridade. O “encontro de águas” é a metáfora dos fluxos de conhecimentos e saberes que deslizam nestas páginas. Como a correnteza e o banzeiro dos rios, a vida, a vivência e a convivência dos seres humanos também são um vaivém, um eterno tecer e destecer da história, da ciência, dos mitos, da memória e das lembranças. Tanto aqui, em Manaus, em São Gabriel da Cachoeira ou em Parintins, no Amazonas, quanto lá, em Frankfurt, em Paris ou em São Paulo. Há, nestas páginas, um reitor que quer a ciência mais próxima da gente, há um país inteiro que para por um dia – ao menos por um dia! – para celebrar a música, a filha mais velha e mais adulada das prodigiosas invenções humanas; há o ex-jogador de futebol que a droga levou para o fundo do poço e que foi salvo pela sua persistência de voltar a viver com dignidade; há o fotógrafo que captura o olhar do índio que viaja na proa do barco a espiar os rochedos, as árvores e o voo dos pássaros, talvez à procura dos elos da sua existência; há um país inteiro que quer o fim do modus operandi dos políticos que trocaram a arte de fazer política pela política dos negócios; há o pensador que, quase solitário, proclama a “ecoeconomia” como necessária para o salvamento do planeta; há leituras e pontos de vista à espera de incitamento. As folhas desta edição foram feitas para ser lidas, ouvidas e olhadas com atenção, porque elas, necessariamente, convidam o leitor à reflexão sobre o mundo que pulsa nos textos e fotos nelas impressas. Ótima leitura! Isaac Maciel Diretor-executivo

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Diretor-Executivo Isaac Maciel Conselho Editorial Márcio Souza Renan Freitas Pinto Ivânia Vieira Tenório Telles Diretor de redação Wilson Nogueira MTB/AM 365 Editora-executiva Suelen Reis MTB/AM 235 Assistente de Edição Maria do Rosário R. Nogueira MTB/AM 148 Design e Direção de Arte Heitor Costa Assistente de design Ângelo Lopes Revisão Sergio Luiz Pereira Publicidade Hany Hauache Junior comercial@conectaevende.com.br (92) 3635-1324 / (92) 8401-0810 Marketing e comunicação Agência Conecta & Venda (92) 3642-4950 / (92) 9164-8911 Colaboradores desta edição Ana Claudia Leocádio, Antonio Lima, Ataíde Tenório, Daniel Bardan, Diego Reis, Leandro Canônico, Lucynier Omena, Marcus Stoyanovith, Neiza Teixeira, Sérgio Freire, Tenório Telles.


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Brasil, o n.º 1 da Feira de Frankfurt

Tucumã: caboquinho com cara de gringo

60 Definitivamente, Rio Negro

70 A terra que Abraão deixou para trás

82 Para lembrar que Paris é uma festa

96 “Quem preserva a Amazônia são os povos da floresta”

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UEA é a maior riqueza do Amazonas Bumbódromo agora também é liceu Educação valoriza técnicos De biógrafo a psicólogo

42 As histórias de Vera do Val 48 Vem pra rua! 90 O nome da rosa


Fotos: Antonio Lima

vc / entrevista Cleinaldo Costa

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UEA É A MAIOR RIQUEZA DO AMAZONAS Wilson Nogueira | Jornalista

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cirurgião-geral Cleinaldo de Almeida Costa, 44, está há quatro meses no cargo de reitor da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), instituição que possui um orçamento anual de R$ 300 milhões, 23 mil estudantes matriculados, 700 professores e ao menos 500 servidores. Ele não hesita em afirmar que atualmente a UEA, em razão da importância estratégica para o desenvolvimento regional, é o maior tesouro do Estado e dos amazonenses. Costa disse que sua missão, nesse momento, é “redimensionar o eixo pedagógico dos quase 50 cursos”, para atualizar as demandas que chegam à casa. Isso implica conhecer, por exemplo, o perfil dos egressos da instituição, onde serão medidos os impactos da sua relação com a sociedade. O reitor enfatiza, todavia, que quaisquer mudanças devem atender aos anseios das comunidades e dos municípios, porque é dessa forma que a UEA se comporta desde a sua fundação, há 12 anos. Costa ainda falou sobre a polêmica falta de médicos no interior do Amazonas e suas prováveis soluções. Confira a entrevista:

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Essa é, hoje, nossa preocupação prioritária, primordial: reencontrar, redimensionar o eixo pedagógico dos nossos quase 50 cursos e ter uniformidade no ponto de vista da filosofia de formação”

Wilson Nogueira – Como o senhor traçaria o perfil da UEA, com base nesses quatro meses da sua gestão, como o senhor definiria a instituição nas suas atribuições de ensino, pesquisa e extensão? Cleinaldo Costa – Existe uma frase de Einstein, reproduzida de outro autor, Newton, que diz que ele se apoiava em ombros de gigantes. Atualmente estamos aqui numa universidade que tem 12 anos, que responde aos anseios da população que vive e mora no Amazonas, que paga seus impostos, que cria seus filhos aqui. Uma universidade pública gratuita que atenda as necessidades da própria população do Amazonas, que se expanda para o interior. Assim foi pensada a UEA nos seus primórdios. Estou na condição de quarto reitor dessa casa, todos que por aqui passaram, tiveram suas contribuições, em maior ou menos grau, com um pouco mais de avanço, um pouco menos, mas todos representaram algum avanço no ponto de vista histórico dessa casa. Chegamos numa fase que ao mesmo tempo é de dificuldade, de tensionamento, mas é também de oportunidades. Oportunidade de avançar, de identificar novos rumos para a casa, de pensar novamente o projeto pedagógico da universidade como um todo, de repensar como é a qualidade do produto final nos seus quase 50 cursos: quem é o aluno egresso da UEA? Como nós o colocamos no mercado? Qual a sua inserção? Como ele foi qualificado? Essa é, hoje, nossa preocupação prioritária, primordial: reencontrar, redimensionar o eixo pedagógico dos nossos quase 50 8

cursos e ter uniformidade no ponto de vista da filosofia de formação. E qual seria o perfil desse profissional? Um profissional muito preocupado com as questões amazônicas, muito preocupado com a população que vive e mora no Amazonas, e capaz de responder aos desafios da Amazônia do século 21. Esse é o nosso público-alvo, nosso aluno, nosso egresso. Veja que não é uma missão pequena: é uma universidade que pensa como Amazônia, e que tem o interesse em responder a essa demanda. Hoje esse é nosso foco: não formar puramente o especialista, o técnico, mas um técnico capaz de pensar criticamente as questões da sua região, entender as necessidades da sua população, como responder de maneira objetiva a esses desafios. Esse é o nosso profissional, é a pessoa que queremos formar, que saiba trabalhar em equipe, que tenha uma visão muito clara do papel da sua especialidade, da sua profissão no contexto da sociedade do Estado do Amazonas. Esse é o nosso eixo. Quais os caminhos que levam a esse tipo de formação? Por meio de uma estruturação pensada em cada curso, chamada núcleo docente estruturante e que tem uma finalidade: redesenhar o projeto pedagógico de cada um dos cursos da UEA. Realizado pelos docentes de cada um dos semestres dos períodos que compõem o próprio curso. Em dezembro de 2013 esses núcleos estarão finalizados, em atividade e como o projeto pedagógico redesenhado, redefinido em cada um dos nossos cursos. A partir disso, há intenção de um contexto mais amplo em que nós reunamos todos os cursos e tenhamos uma característica única enquanto o que seria um núcleo docente estruturante geral. Uma política geral pedagógica para a UEA como um todo. Esse é um objetivo. Isso é pesquisa, coleta de informação, avaliação...?

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Isso é, ao mesmo tempo, avaliação, uma rota, uma meta, o modus operandis da nossa UEA. Seria a ideia geral, do ponto de vista pedagógico, da filosofia de formação dessa universidade. Em relação ao conhecimento sobre como se formaram essas pessoas que passaram pela UEA? O retorno disso, a leitura desse cenário, como serão obtidos? A leitura desses egressos já vem sendo feita pelas nossas pró-reitorias. O levantamento de quantos nós formamos. Como estão inseridos no mercado de trabalho? Qual a taxa de ocupação e como desenvolveram suas atividades, vinculadas à própria assistência ao mercado de trabalho, ao retorno à academia e à pós-graduação? Onde estão e o que estão fazendo? De que forma essas informações serão usadas ou aplicadas na política de gestão UEA? Isso é importante do ponto de vista histórico, mas também de planejamento, no sentido de redefinir as políticas de formação dentro da casa e, sobretudo, ouvir a sociedade, ouvir o que é necessário fazer, que resposta precisamos dar. O governador Omar Aziz tem uma preocupação de unir a política de formação à necessidade social e ao emprego e renda. Ou seja: em primeiro lugar, que tipo de profissional a comunidade precisa? Por exemplo, vamos levar um curso a um determinado município, mas a comunidade está pedindo? Esta é a primeira pergunta. Quantos profissionais precisaremos formar nos próximos quatro ou cinco anos, para atender a essa demanda nesse município? Estes profissionais formados responderão à necessidade da comunidade? O conteúdo oferecido e a qualificação que vai ser ministrada são suficientes para que possam dar resultado do ponto de vista da sociedade? Estarão inseridos no mercado de trabalho formalmente? Irá gerar emprego e renda para o município? É somando essas necessidades ao que nós iremos oferecer essa valercultural

politica casada, isso é o que interessa para Governo do Estado. Essa é uma enorme preocupação. Essa questão depende muito também das parcerias que a universidade, o governo poderá fazer nesses lugares... Com certeza. O Governo do Estado tem uma preocupação de inserir a universidade no contexto de suas políticas públicas. A universidade não está solta, não está fora desse planejamento. Ao mesmo tempo a UEA conversa com as secretarias de Planejamento, de Infraestrutura, de Ciência, Tecnologia e Inovação, com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam) e com outros órgãos que têm a finalidade de planejamento, de ação do ponto de vista estratégico na sociedade. Ao mesmo tempo, há um diálogo direto da universidade com os gestores municipais, seja o prefeito ou seus secretários nas diversas áreas, no sentido do apoio e do diálogo com a educação, ou com a saúde, por meio da nossa Escola de Saúde; diálogo com as estruturas de gestão, com os nossos cursos de gestão pública. Temos cursos de gestão pública em vários municípios, já com mais de uma turma formada. Então esse diálogo

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para resolver o problema da falta de médicos nos lugares mais remotos? A UEA se inseriu em algum programa? Tem o próprio programa? Como ela quer contribuir nessa questão?

permanente com as estruturas de governo é importante, ao mesmo tempo, ouvir de maneira direta a demanda dos municípios, o que eles querem do ponto de vista da informação. Hoje, qual o nível de interiorização da UEA? Somos a universidade que mais interioriza hoje no Brasil. Estamos presentes formalmente em 54 dos 61 municípios do interior do Estado. E temos ações não permanentes nos outros municípios, totalizando 61, mais a capital. Isso tem um impacto positivo. Por outro lado, oferecemos cursos de oferta especial – e é importante entender por que de oferta especial. Imagine que iremos levar um curso de gestão pública para 20 municípios, formando 40 profissionais em cada um deles. Ao término de quatro anos, não seria razoável repetir esses cursos no mesmo município, em função da demanda, mas seria interessante tê-los em outros 20 municípios e assim sucessivamente. Essa medida de oferta especial, ou de oferta única, tem essa característica: rodízio até que a gente tenha atendido os 61 municípios. Essa é uma estratégia interessante, porque leva à comunidade o profissional que ela está necessitando naquele momento. Em relação à questão médica, como está o curso de Medicina em relação à demanda? Como a UEA se insere no debate nacional 10

A UEA, historicamente, recebe por cota metade dos alunos de Medicina, ou seja, metade dos alunos que ingressam na Faculdade de Medicina. Estamos falando de 60 alunos por ano, oriundos do interior, divididos em dez polos. Esses alunos disputam vagas dentro do seu município ou do polo. Significa que a disputa por vaga é de 2 para 1, de 3 para 1 e, eventualmente, 1 para 1. Não é como a disputa na capital, que é mais apertada. Isso tem um benefício: trazer o aluno que vive e que fez todo seu ensino no interior para o âmbito da Escola de Saúde. Isso nos três cursos: Odontologia, Enfermagem e Medicina. Especificamente na Medicina tem havido um esforço enorme no sentido de compreender o curso dentro de uma estrutura multiprofissional, dentro da Escola de Saúde. O ganho disso é trabalhar a equipe multiprofissional de saúde. Entender o médico, o odontólogo e o enfermeiro como participante de uma equipe multidisciplinar, onde o cuidado, necessariamente na atenção primária, é multidisciplinar. Então, desde o início, a estratégia, o eixo do curso de Medicina, é voltado para a atenção primária. Nesse caso, há uma mudança na formação que, ao que parece, tira o foco da média e alta complexidades. O eixo é voltado para a formação primária, mas não descuida da média e alta complexidades. A vantagem disso é preparar o profissional que possa estar apto a responder por 90% dos problemas de saúde da população que se encontra na atenção primária. Essa é uma questão. A outra questão é investir fortemente na interiorização e levar esses alunos precocemente ao interior, dentro da estratégia multiprofissional de equipes. Os alunos têm a oportunidade de estar no interior diversas vezes durante a graduação e, especialmente, no valercultural


período do chamado estágio rural em saúde coletiva ou, popularmente, internato rural. Qual o papel do internato rural e como ele é diferente de outras escolas? O internato rural da UEA é feito em equipe multiprofissional. Os alunos irão numa equipe que contempla odontólogos, enfermeiros e médicos, eles não vão isolados por categoria, por profissão. Já de saída vão alunos enfermeiros, alunos odontólogos e alunos médicos. Todos no final da graduação. Irão para os municípios que têm parceria conosco, ficar durante 60 dias trabalhando e aprendendo junto com uma equipe de estratégia de saúde de família e comunidade. Isso tem se refletido no nosso Estado como a universidade que mais interioriza hoje.

É importante compreender que não basta pensar em política de atenção com salário, é preciso que haja estrutura de saúde adequada para que o médico possa exercer a sua atividade dentro de uma equipe multidisciplinar, porque o médico não trabalha isolado, não trabalha sozinho. A saúde realizada a partir desse contexto gera mobilidade social dentro do próprio município, gera emprego e renda e, ao mesmo tempo, amplia a oportunidade de termos mais profissionais de saúde no mu-

Foto: Rafael S. Nobre

É notório que o interior do Amazonas está sem médicos. Mesmo os municípios que lhes oferecem altos salários não conseguem atraí-los. Por que isso ocorre?

É importante compreender que não basta pensar em política de atenção com salário, é preciso que haja estrutura de saúde adequada para que o médico possa exercer a sua atividade”

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nicípio, melhorando as condições da infraestrutura de saúde e condições do próprio município. Assim, é lógico que teremos cada vez mais profissionais médicos atuando no interior como estratégia de médio prazo. Mas isso se viabilizaria de que modo? É necessário pensar numa carreira de Estado para médicos, tal como existe no Judiciário. Naturalmente que nem todos vão entrar nessa carreira. Haverá um concurso público em que a perspectiva de planejamento de carreira, de remuneração, promoção, se dê no momento em que o profissional ingressa pelo interior mais longínquo e, paulatinamente, vem se aproximando da capital, até que se encontre numa unidade de saúde da capital. Isso é uma proposição. Existe um projeto de lei que propõe uma carreira de Estado para os profissionais médicos do Amazonas. O senhor é favorável a essa proposta? Sou favorável e acredito que essa é uma solução real que vai resolver o problema. Teremos médicos fixados no interior via concurso público. Isso é um caminho. Outro caminho é determinar, por meio de mudança na lei de cotas, que o aluno de Medicina atue, depois de formado, em seu município de origem pelo período de um ano, prorrogável por mais um ano. Essa é uma medida paliativa. A outra medida, da carreira de Estado para 12

médicos, seria uma solução definitiva para o problema da fixação de profissionais no interior. Como o senhor encara admissão de médicos estrangeiros, principalmente no Amazonas, onde há uma migração de médicos da Bolívia, do Peru... Vemos com muita preocupação toda essa movimentação. Existe uma preocupação que é muito importante: qual é o perfil do profissional que queremos formar? Não só na Medicina, mas nas diversas áreas. Queremos formar um bom engenheiro, um bom advogado, um bom professor, um bom geógrafo, um bom enfermeiro, um bom médico, para que esse profissional possa de fato atender às necessidades da população que paga imposto e que, em última análise, mantém essa casa viva. Essa é a ideia. Para que possamos fazer isso, temos de ter boa estrutura para a universidade funcionar bem, para formarmos profissionais capazes de resolver essa demanda. Não sabemos se esses profissionais que vêm de fora terão essa qualificação. De que maneira eles serão verificados para que possamos ter profissionais de bom padrão atuando no nosso país e, naturalmente, nos municípios do Amazonas? Naturalmente que temos carência de médicos no interior. O número de profissionais que formamos seria suficiente para atender essa demanda, mas à medida que houvesse uma política de fixação desses profissionais.

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Que estratégia seria eficiente? Uma carreira de Estado, onde houvesse concurso e esses profissionais, tais como no Ministério Público, nos Magistrados, eles pudessem ingressar no interior e vir, progressivamente, aproximando-se da capital. De tempo em tempo, houvesse concurso de tal modo que esse fluxo fosse acontecendo de maneira contínua. Isso seria razoável acontecer. Quais são os municípios que hoje a UEA pode se considerar em sintonia com as questões locais? Diversos municípios que hoje têm internato rural funcionam com muito boa resposta, do ponto de vista médico. Um exemplo: Parintins é o município mais antigo do Amazonas onde o internato rural existe há 20 anos. Ele é anterior à UEA que lá atua desde que iniciou, há 12 anos. Hoje, Parintins tem 32 médicos. É o maior, tem uma infraestrutura melhor? Sim. Na medida em que houver uma estrutura de saúde razoável, o médico naturalmente irá para lá. Em Itacoatiara também tem uma estrutura razoável. Temos egressos nossos que, rotativamente, têm trabalhado em Eirunepé. Ficam dois anos e assim por diante. É um município a quatro horas de voo de Manaus, por exemplo. Quando os nossos internos chegaram em Uarini, não havia médicos de maneira regular por lá. Um município de 15 mil habitantes, bastante longe de Manaus – para chegar lá, voa-se de Manaus a Tefé durante quatro horas. De Tefé até Uarini, viaja-se mais sete horas numa lancha. E hoje temos um egresso da UEA trabalhando em Uarini de maneira permanente.

Ele foi interno naquele município durante seu período de estágio. Isso é política de atração, isso significa mudança. Na área de humanas, como está essa demanda? Realizamos um curso de Educação Física ofertado para 18 municípios. Formamos 800 profissionais de Educação Física para o interior. Os 800 foram absorvidos pela Seduc. Hoje estão todos empregados. Acabou de sair uma lei que determina que toda escola deve ter seu profissional de Educação Física. Então, esse mercado está ampliando. Formamos perto de dez mil pedagogos no interior, até o presente momento, para turma do interior. Desse contingente, 25% são professores indígenas

Queremos formar um bom engenheiro, um bom advogado, um bom professor, um bom geógrafo, um bom enfermeiro, um bom médico, para que esse profissional possa de fato atender às necessidades da população”

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atuando nas suas comunidades. E temos demanda para perto de mais dois mil na pedagogia como um todo. Nas áreas indígenas, já formamos muitos profissionais, a procura é por pós-graduação. Com tantos profissionais graduados, a UEA já tem um projeto de especialização/pós-graduação? Começaremos ainda em 2014 a especialização para esses docentes. Faremos uma pós-graduação latu sensu nas áreas da Educação infantil; da Educação básica para adultos, para dar oportunidade de educação permanente a esses profissionais que se formaram pela nossa universidade. Isso é demanda que vem da comunidade, não é uma demanda nossa. Estamos levando para o interior, pela rede Bionorte, um mestrado e um doutorado na área de Biologia para os professores de Biologia de oito municípios. Quais são as modalidades de ingresso na UEA? A universidade estuda a possibilidade de adotar o Enem?

Qual a comunicação que existe hoje entre a UEA e outras instituições de ensino e pesquisa, por exemplo, com o Inpa, Ufam e Embrapa? Nós temos parcerias com a universidade em diversos municípios onde estamos inseridos, diversas ações de graduação e pós-graduação acontecendo em parceria com a Universidade Federal do Amazonas (Ufam); parceria formal com o Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa); com o Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA); com diversas outras instituições pú-

Foto: Livya Braga

A universidade tem seu modelo próprio de ingresso. O seu vestibular contempla uma cota de 50% para todos os seus cursos. E como é uma universidade voltada para os alunos do Estado do Amazonas, metade des-

sa entrada se dá por cota para o interior. Ao mesmo tempo, essa universidade já vem desenvolvendo um programa que é o sistema de ingresso seriado, que é o SIS, em que o aluno do Ensino Médio faz prova ao final do primeiro, segundo e terceiro anos do Ensino Médio e, se obtém nota, ele entra pelo SIS e não pelo vestibular macro. E a outra forma de ingresso é, justamente, o vestibular macro. Esse é o cenário pelo qual trabalhamos hoje. No nosso próximo vestibular, teremos novos cursos, um exemplo: Tecnologia de Petróleo e Gás, que irá para os municípios de Coari e Itacoatiara, em razão da descoberta de novas jazidas e da oportunidade de termos profissionais preparados para essa demanda nos próximos anos. Cursos de nível superior.

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Foto: Antonio Lima

blicas e privadas. Só nos últimos quatro meses, fizemos acordo de cooperação técnica com 17 instituições de pesquisa no Brasil e no exterior. Qual a previsão para o funcionamento da cidade universitária? A previsão é que daqui a três anos estaremos em pleno vapor na nossa cidade universitária. Em 2014 pisaremos na cidade universitária e teremos alguma ação lá, pelo menos o viário já estará pronto, o acesso já estará finalizado. A UEA está consolidada? A UEA é uma universidade em fase de consolidação, em fase de amadurecimento no seu 12.º ano, que já conquistou muitas vitórias, vitórias impensáveis num período de tempo tão curto. E esse é um momento de consolidação das suas políticas e da resposta à sociedade. Ao mesmo tempo, A UEA é o maior tesouro que o Estado e a comunidade amazonense possuem. É sua maior riqueza.

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vc / artes

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Estado implanta em Parintins unidade do Liceu de Artes e Ofícios Claudio Santoro, para formar artistas e técnicos em Artes Cênicas, Artes Visuais e Música Wilson Nogueira | Jornalista

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abriella de Paula, 12, e Sofia Maria de Oliveira, 15, sonham se tornar bailarinas e seguir uma carreira exitosa. Por isso, elas acompanham, atentamente, a implantação do Liceu de Artes e Ofícios Claudio Santoro – Unidade Parintins, vinculado à Secretaria de Estado da Cultura (SEC), com as atividades previstas para iniciar neste mês. Outras crianças e jovens também contam com a possibilidade estudar música, dança, cinema, fotografia, artes cênicas sem a necessidade de se transferir para outras cidades. Essa é a primeira ação de formação de artistas e técnicos em artes do governo estadual fora de Manaus. O liceu funcionará no bumbódromo (lugar onde se realiza, no final de junho, os espetáculos dos bois-bumbás Caprichoso e Garantido) e vai aten-

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Fotos: Ataíde Tenório

Os movimentos que ela realiza no palco são perfeitos. Ela consegue passar o que sente para quem assiste a sua dança”

der, ao menos, 1,5 mil pessoas nos cursos regulares de teatro, dança, música, cinema, fotografia e artes plásticas e mais 1,4 mil nos de capacitação, com aulas em módulos aos finais de semana, nas áreas de Artes Cênicas, Artes Visuais e Música, ministrados pelo Centro de Educação Tecnológica do Amazonas (Cetam). Todos os cursos são gratuitos e estarão disponíveis, também, para moradores dos municípios de Nhamundá, Barreirinha, Boa Vista do Ramos e Maués. O quadro de servidores será de 1,5 pessoas, entre

elas, coordenadores, professores e monitores de cursos e oficinas. “Aqui desenvolveremos um projeto piloto que se espalhará para outros municípios”, explica Andressa Oliveira, coordenadora local do liceu. Ela disse que está entusiasmada

Mais moderno O bumbódromo acaba de ser reformado e ganhou um prédio, onde funcionam camarotes, e estrutura metálica para equipamentos de som e iluminação. O governo investiu R$ 45 milhões para adequá-lo às mudanças ocorridas no festival dos bois-bumFoto: Divulgação

bás e ao funcionamento do liceu. “O bumbódromo funcionará o

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ano todo”, diz Andressa. O liceu terá biblioteca, cineclube, galeria de arte com exposições do acervo da Pinacoteca do Estado, espaços destinados aos artistas locais e dos municípios vizinhos, mais o Memorial do Boi Caprichoso e o Memorial do Boi Garantido.

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vimento se deve à participação da comunidade na elaboração do projeto. “Estamos fazendo aquilo que a comunidade solicitou”, afirma. O professor de História da Arte da Universidade Federal do Amazonas (Ufam/Parintins) Erick Nakanome acredita que o liceu tem tudo para dar certo. “O governo fez o correto: ouviu antes a comunidade acadêmica, os artistas, agentes públicos, representantes dos bois-bumbás e os animadores culturais. Não veio de cima para baixo”, comenta. Nakanome acredita que essa abertura pode gerar práticas interdisciplinares, por exemplo, nos cursos de artes visuais, que dialogam com a antropologia, com a sociologia, com a filosofia etc. Além do boi-bumbá

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balé clássico brasileiro. “Os movimentos que ela realiza no palco são perfeitos. Ela consegue passar o que sente para quem assiste a sua dança”, explica. O liceu, segundo ela, vai realizar o sonho de muitos jovens que almejam ser artistas, mas se sentem impedidos de trocar de cidade ainda bem jovens. “É muito doloroso deixar os parentes e amigos para trás”, comenta. Andressa revela que o interesse da cidade pelo liceu está além do que vislumbravam os próprios técnicos do governo. “Esse é um projeto que já nasce vitorioso, porque a população o apoia de forma apaixonada”, afirma a coordenadora. Andressa acredita que esse envol-

Foto: Divulgação

com o apoio dos jovens à iniciativa da SEC. “A cidade abraçou o liceu”, afirma. Gabriella e Sofia sugerem que a SEC inclua o balé clássico entre as modalidades de dança. Elas compõem o grupo de 25 meninas que participaram de oficinas de balé clássico realizadas pela professora de dança Irian Butel, em pareceria com o Centro Educacional de Tempo Integral (Ceti) de Parintins. “Quando vi, pela primeira vez, um espetáculo de balé clássico na televisão, eu tive a certeza. É isso que eu quero! É por isso que eu vou lutar”, ressalta Gabriella. Sofia já decidiu o curso que fará no ensino superior: “Vou fazer escola de belas-artes, pois quero ser bailarina clássica”. Ela se inspira nas performances e história de vida de Ana Botafogo, a maior legenda do

Para a historiadora Larice Butel, as atividades do liceu descentralizarão o foco das artes do âmbito dos bois-bumbás para um horizonte mais amplo. “Parintins também tem rock, dança de rua, teatro, música, pastorinha e tantas outras expressões artísticas que estão encobertas pelos bois-bumbás”, salienta. O liceu, para a historiadora, vai qualificar e dar visibilidade ao talento dos

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Fotos: Ataíde Tenório

“ artistas locais para além dos bois-bumbás. Ela lembra que antes da hegemonia dos bois-bumbás, até a década de 1980, Parintins possuía atividades culturais mais diversas. “Isso está latente e deve se manifestar a partir de agora, com o liceu”, afirma Larice. 20

Parintins também tem rock, dança de rua, teatro, música, pastorinha e tantas outras expressões artísticas que estão encobertos pelos bois-bumbás”

O professor e animador cultural Dé Monteverde saúda a chegada do liceu com certa desconfiança: “A iniciativa é excelente. Ninguém é contra uma medida que pode melhorar a qualidade de vida da cidade, mas precisamos estar alertas para que não seja apenas algo para durar um

período eleitoral”, avalia. Dé explica que o próprio governo deve se impor o desafio de tornar esse projeto em política pública de Estado, para que não fique refém dos plantonistas da política. A secretária de Turismo e Cultura de Parintins, Cléa Viana, afirma que a prefeitura pretende desenvolver projetos em parceria com o liceu e com a SEC, para aprimorar o talento artístico do parintinense. “Nosso objetivo é o mesmo: criar condições para transformar turismo e cultura em bens que ajudem a melhorar a vida das pessoas”, explica. Ela disse que está conversando com os artistas e animadores culturais para expor os projetos do município e colher sugestões. “Meu propósito é, por exemplo, levar atividades culturais às praças da cidade”, diz. valercultural



Foto: Divulgação / Cetam

vc / educação

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Com a constatação de que está deficiente na formação de técnicos de nível médio, o Brasil amplia os seus investimentos para superar esse problema Suelen Reis e Wilson Nogueira | Jornalistas

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em técnicos qualificados, o país não avança”, afirmou a presidente Dilma Rousseff, durante a recente formatura de alunos do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec). “O Brasil passou muito tempo investindo no Ensino Superior e esqueceu as outras áreas”, assinala a diretora-presidente do Centro de Educação Tecnológica do Amazonas (Cetam), Joézia Pacheco. Essa constatação empurra o Brasil para a necessidade de reversão, com urgência, da velha ideia de que é somente o Ensino Superior que abre portas para o emprego ou atividades bem remuneradas. “Há uma pressão para que todos façam faculdade, mas a demanda de empregos é muito maior para técnicos de nível médio. Para cada grupo de 20 engenheiros, uma empresa precisa de, no mínimo, cem técnicos. Isso acontece na indústria e na saúde. Para cada médico, um enfermeiro, e para cada enfermeiro, oito técnicos de enfermagem. Está faltando essa mão de obra. E o Brasil não investiu para formá-la”, explica Joézia. valercultural

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Fotos: Divulgação / Cetam

Há três níveis de educação profissional: cursos tecnológicos de nível superior; técnicos de nível médio, com no mínimo 800 horas (técnicos em enfermagem, em agronegócios, em edificações, eletrônica); e básico, com duração de até 240 horas e que não necessita de escolaridade prévia, são cursos de qualificação (manicure, pedreiro, eletricista, costureira).

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eixos tecnológicos dividem a formação técnica, segundo o MEC

eixos são contemplados na atuação no Amazonas

O reconhecimento de que há deficiência de técnicos de nível médio, levou o país investir e a ampliar esse tipo de formação e o Ministério da Educação (MEC) adotou essa política como prioridade. Em 2003 o Governo do Amazonas também reconheceu que deveria atacar o problema. Não adiantava, por exemplo, instalar mais hospitais se não houvesse técnicos em enfermagens para atendê-los. “Os gargalos da saúde motivaram ensino técnico. Os nossos primeiros cursos técnicos, já em 2004, estavam voltados para a área da saúde. De lá para cá, o Cetam vem identificando, junto com as prefeituras e com a Secretaria de Estado do Planejamento, as vocações econômicas de cada um dos municípios. A formação da mão de obra qualificada em nível médio ajuda a desenvolver essas vocações”, afirma Joézia. As áreas trabalhadas atualmente vão desde as de recursos pesqueiros, agronegócios, enfermagem, saúde bucal, análises clínicas, edificações e até as de mineração. Para

chegar aos municípios, o Cetam estabelece parcerias, principalmente, com as prefeituras municipais. Mas também com algumas instituições do terceiro setor, empresas privadas, algumas igrejas e órgãos do governo federal, entre eles, Marinha e Exército.

Empreendedorismo A formação técnica de nível médio no Cetam tem duas vertentes: ampliar as oportunidades de emprego e estimular atividades autônomas. Hoje, a grande maioria dos formados abraça o empreendedorismo. “Um técnico em contabilidade não precisa ser o empregado de carteira assinada. Ele pode ser o empreendedor. O nosso país tem estimulado muito esse mercado nos últimos dez anos”, salienta Joézia. Ela disse que Agência de Fomento do Estado do Amazonas (Afeam), por exemplo, concede crédito aos egressos dos cursos técnicos de nível médio, para que eles possam iniciar os seus negócios. “O Amazonas é rico em oportunidades e vai valercultural


depender da persistência empreendedora desses profissionais para que essa riqueza se transforme em desenvolvimento”, diz ela.

Especialização O Cetam também já trabalha no pós-técnico, chamados de especialização técnica. Na área do técnico em enfermagem, há especializações em Urgência e Emergência, em Obstetrícia, em Neonatologia e em Instrumentação Cirúrgica; para os técnicos em Eletrônica, Especialização em TVs digitais; para os técnicos de Radiologia, especializações em Densitometria óssea e em Ressovalercultural

nância Magnética. O incentivo às especializações tem levado as pessoas ao gosto pelo conhecimento. Muitas migram para a graduação. “Muitos fazem faculdade mais para ter o curso superior, mas eles continuam na área de formação técnica. É a cultura do diploma”, explica Joézia. Em países desenvolvidos, a formação técnica é tão valorizada quanto à superior. Como o Brasil é um país emergente – a caminho do desenvolvimento pleno –, a tendência é de valorização cada vez mais do conhecimento técnico, para dar suporte à qualidade dos equipamentos, produtos e serviços que competem no novo mercado. Essa mudança atinge

O técnico em agronegócios, ou em recursos pesqueiros, é o profissional preparado para saber identificar as potencialidades da sua região nas áreas de recursos agroflorestais ou da piscicultura e transformá-las em negócio. Ou seja, detectar as oportunidades disponíveis na região, desenvolvê-las e explorá-las do ponto de vista comercial. Fazer com que o município efetivamente possa se desenvolver a partir desses negócios.

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Perfil

Foto: Divulgação / Cetam

Joézia Pacheco é servidora pública

especialização na área de Finanças e

estadual. Ingressou no Estado como

Mestrado na área de Engenharia de

engenheira civil. É formada em Enge-

Produção (pela Universidade Federal

nharia Civil (pela Universidade Federal

de Santa Catarina). É doutoranda da

do Ceará) e fez curso de administra-

área de Engenharia de Produção (pela

ção (pela Universidade Federal do

Universidade Federal do Rio de Janei-

Amazonas). É professora universitária

ro). Está no Cetam desde sua criação.

da iniciativa privada e, desde 2008,

Entrou em 2003 como diretora admi-

da Universidade do Estado do Ama-

nistrativo-financeira. No ano de 2009

zonas (UEA). Professora do curso

assumiu a presidência da instituição.

de Engenharia da Produção, tem

62

cidades recebem as ações do Cetam (Manaus e os outros 61 municípios do Estado)

17

mil alunos são atingidos pela iniciativa

3 750 26

setores que vão da construção civil à saúde. Joézia afirma que um pedreiro qualificado, em Manaus, pode conseguir uma remuneração de até R$ 5 mil por mês. “O administrador que inicia a carreira, depois de quatro anos na faculdade, não ganha mais que R$ 1.200 em empresas do Distrito Industrial. Já o técnico em segurança do trabalho, que é uma área da administração, entra no Distrito ganhando R$ 2 mil. Um técnico em radiologia ganha, no mínimo, R$ 4 mil por mês”, informa Joézia.

Um salto na educação

mil instrutores são cadastrados

estão atuando no momento

A história da educação profissional no Brasil vem sido alterada ao longo dos últimos 30 anos. Na década de 1970, os ensinos médio e técnico eram integrados. Era obrigatório. Depois veio o Científico.

A etapa seguinte foi marcada pelo curso normal, quando acabou o Magistério e o ensino foi unificado. Na década de 1990, foi retomado o sistema de médio e técnico juntos. Desde o início dos anos 2000, há oferta para os cursos técnicos em duas escalas: na modalidade concomitante, ofertados para os alunos que estão fazendo o segundo ano do Ensino Médio. Ele faz as duas formações simultaneamente. Ao concluir o Ensino Médio, conclui o técnico também. O segundo é o sequencial. São os cursos técnicos ofertados para aquelas pessoas que já saíram do Ensino Médio há um, dois, dez, 15 anos, 20 anos. Para Joézia, hoje o Brasil é um modelo muito mais flexível. “Penso que o governo federal está tentando o melhor modelo para o nosso país”, pontua.

Os instrutores dos cursos técnicos são selecionados pelo Cetam, a partir da sua formação acadêmica e/ou experiência profissional. Há um banco com currículos de pessoas dispostas a viajar para o interior, ajudar na formação. A seleção é feita de acordo com a área que há necessidade.

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vc / livro

Brasil, o n.º 1 da

Em 2013, o Brasil é o país convidado de honra. Evento acontecerá de 9 a 13 de outubro, com o slogan Brasil, o país de muitas vozes

Neiza Teixeira | Escritora

A

Feira do Livro de Frankfurt (Frankfurter Buchmesse) é considerada pelos especialistas como o maior encontro mundial do setor editorial. Ela vem sendo realizada desde 1949 e é promovida pela Associação do Comércio do Livro Alemão (Börsenverein des Deutschen Buchhandels). Desde 1988, em todas as feiras, um país é convidado para expor a sua literatura. No ano de 2013, de 9 a 13 de outubro, o Brasil é o país convidado de honra, com o slogan Brasil, o país de muitas vozes. No ano de 1994, também foi agraciado com o mesmo convite.

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Foto: Jorg Hackemann

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Na condição de país de destaque, o Brasil terá direito a um pavilhão de 250 m2, a um espaço para divulgação da sua gastronomia, no centro da feira, e mais 13 lugares externos, já confirmados, para a divulgação cultural. Além destes, mais um espaço considerado estratégico, com 330 m2, que é o estande coletivo das editoras brasileiras, no qual estarão presentes cerca de cem editoras. Espera-se que compareçam 300 mil visitantes. Na feira, somente são vendidos direitos autorais. Durante a sua realização, são atribuídos dois prêmios: o Prêmio de Paz do Comércio de Livro Alemão (Friedenpreis des Deustchen Buchhandels) e o Prêmio de Literatura Infanto-Juvenil Alemã (Jugendliteraturpreis). O cartaz de divulgação, um cachorro fantasiado como um passista de escola de samba, é resultado de um concurso promovido entre os estudantes das cidades de Wiesband, Offenbach, Darmstadt e Mainz. A vencedora chama-se YvoneWinnefield. A cidade alemã de Frankfurt é uma velha senhora de dois mil anos. No ano de 794, a Quinta Real, na Franconovurt (Cidade dos Francos), é documentada, pela primeira vez, como o local de um sínodo importante de nobreza franca sob a chefia do imperador Karl der Große. Hoje, ela é a maior cidade do Estado alemão de Hesse e é a quinta maior cidade da

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Fotos: Divulgação

Alemanha, com 1.500 pessoas durante o dia, e, como moradores, cerca de 700 mil, ficando atrás de Berlin, Hamburgo, Munique e Colônia. Quando se chega a Frankfurt, para quem vem do norte do Brasil, uma constatação logo se apresenta: a riqueza proporciona a qualidade de vida, o desenvolvimento intelectual, dado as oportunidades, a apresentação e organização da cidade. Isso não é regra geral, mas no caso de Frankfurt não é exagero nem infração a regras pensar assim. Ela é uma cidade de médio porte, coração econômico da Alemanha, todavia uma cidade com uma vasta programação cultural, que vai desde os parques infantis a céu aberto, nas margens do Main, e dos Biergärten, no verão, aos teatros, shows, exposições, até a visitadíssima Margem dos Museus (Museumsufer) ou na rua Schaumainkai. Andar pelas ruas de Frankfurt é cruzar com engravatados que se locomovem de bicicletas, carros, ônibus, metrôs e a pé, mas também com

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pessoas de vários continentes. Esta cidade é sedutora para imigrantes de todos os lugares, pois é o maior centro de transporte da Alemanha e o maior centro financeiro da Europa continental. Ela conta com mais de 400 instituições financeiras, o que faz com que seja um centro de decisões econômicas e políticas. Aqui estão localizadas as sedes do Banco Central Alemão e também do Banco Central Europeu, que decide e controla os rumos do Euro. Outra coisa que chama a atenção, em se tratando de Europa, é a concentração de prédios altos, a maior da Alemanha (Hochhäuser), numa pequena faixa do espaço urbano próximo ao rio Main. Ela é uma cidade de negócios, cuja tradição remonta à Idade Média, por exemplo, no ano de 1150, foi re-

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alizada, pela primeira vez, a Feira de Outono (Frankfurter Messe). No ano de 1240, Friedrich II prometeu aos visitantes da feira o privilégio de proteção real para as suas viagens de ida e volta. Esse ato marcou o início de uma longa tradição de feiras internacionais na cidade, que realiza, por exemplo, a Internationale Automobil-Ausstellung (IAA), a Tendence Messe e a Herbstmesse (Feira de Outono). Em 1241, registra um índice fiscal que Frankfurt é a cidade real economicamente mais importante do império alemão. No ano de 1478, na Frankfurter Messe, pela primeira vez, se fazem presentes representantes de livros. A partir desses fatos, perguntamo-nos se a cidade se ocupa apenas com as grandes transações financeiras

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do mundo, com 37.353 estudantes, dos quais 6.746 são estrangeiros e cerca de 600 professores, em faculdades que vão desde a língua africana até zoologia. Ela tem seu ponto forte nas áreas de economia, finanças e administração, o que fortalece a vocação da cidade. O campus da Universidade classifica-se como um dos mais modernos, com prédios enormes, em linhas horizontais, na cor neutra, com amplos jardins e árvores frondosas. No verão, os jovens estudam, descansam, conversam, namoram sob as árvores. Ela foi fundada em 1914, mantém uma posição independente e manifestou-se em grandes movimentos, por exemplo, contra o nazismo e no Movimento Maio de 1968. Tanto a Goethehaus, a casa que pertenceu a Goethe, situada na rua GroßerHirschgraben 23-25 como a Johann Wolfgang von Goethe Universität são lugares interessantes para uma visita. A universidade é constituída por quatro campus: Westend, rua Grüneburgweg 1; Bockenheimer, Senckenberganlage 31; Riedberg, Max-von-Laue-Straße 9; e Niederrad, Theodor-Stern-Kai 7.

Fotos: Divulgação

O poeta Goethe, autor da obra Fausto, é um dos homenageados pela cidade

e comerciais. A resposta imediata é não. Aqui, nasceu um dos maiores representantes da literatura alemã e universal: Johann Wolfgang von Goethe, em 28 de agosto de 1749, e é também daqui a importante Escola de Frankfurt (Frankfurter Schule), uma das grandes representações alemãs na filosofia. Ao escritor, a cidade presta homenagem, atribuindo o seu nome à maior universidade da cidade e uma das mais importantes

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Diversidade da arte brasileira Para um brasileiro que vem à Feira de Frankfurt, é indispensável a caminhada pela Margem (Museumsufer) dos Museus (rua Schaumainkai), pois, além de poder contemplar a cidade a partir de outra perspectiva, porque ela acompanha um trecho do Main, é bonita, arborizada (no outono, a paisagem e o céu ganham novas cores). Aí está concentrada a maioria dos museus da cidade. Durante a realização da feira, a cidade estará sendo conduzida por uma programação que tem o Brasil como protagonista. Cinco museus de Frankfurt organizarão exposições de arte, obras de designers e de arquitetura brasileira. A Galeria de Arte Schirn (exibirá a diversidade da arte grafiteira do Brasil. A exposição mostra pela primeira vez na Alemanha obras (Schirn Kunsthalle) de grafiteiros brasileiros (Outono/2013). Instalações artísticas também estarão expostas na galeria (Outubro/2013 a Janeiro/2014). O Museu de Arte Moderna de Frankfurt (Museum für Modern Kunst) reservará seu espaço para uma amostra da arte de Hélio Oiticica, um dos mais importantes representantes do neoconstrutivismo. O Jardim das Palmeiras (Palmengarten) também exporá obras deste artista brasileiro.

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A obra do artista plástico Hélio Oiticica será exposta em grande centro de arte da cidade

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Fotos: Divulgação

Wollner levará o design brasileiro para o público alemão

A Römerberg (Montanha dos Romanos) é uma das principais atrações turísticas de Frankfurt

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O Museu de Artes Aplicadas (Museum für Angewandte) fará uma exposição individual de Alexandre Wollner, um dos pioneiros do design visual. Nesse período será desenvolvida uma intensa programação, tendo como centro a presença brasileira. O Museu de Arquitetura Alemã (Deutsche Architekturmuseum) apresentará, em parceria com o Instituto Tomie Ohtake e com Fernando Serapião, editor da revista Monolito, uma exposição sobre novos e promissores arquitetos brasileiros, de setembro a janeiro de 2014. E também serão organizadas as Estações Brasileiras (Brasilianische Stationen), que trata de uma série de eventos culturais em diferentes instituições de Frankfurt. Eles terão início com a Festa dos Museus (Museumfest) em agosto. Esta é uma parte da programação paralela que se estenderá para além do Pavilhão do Brasil e do espaço de exposição dos livreiros brasileiros, que é o maior da feira. Além dos museus, haverá programação na Alte Oper na Deutsche Nationalbibliotek Frankfurt. Acrescente-se que os alemães têm boa simpatia por brasileiros, graças aos jogadores de futebol que não somente são grandes ídolos como também são simpáticos, e a literatura brasileira vive um momento de descoberta pelos alemães, inclusive graças aos incen-

tivos do governo brasileiro para as traduções em alemão. Em se tratando de sugestões para os brasileiros que estarão em Frankfurt, durante a Feira do Livro, os lugares fechados ganham a preferência até mesmo dos alemães, pois nesse período a temperatura varia entre 9º C a 17º C. Mesmo assim, eu não deixaria de fazer passeios a pé, que são maravilhosos, porque dá para sentir um pouco o pulsar da cidade, ver a arquitetura, observar o trânsito, as pessoas e para ouvir uma língua bastante estranha pelas ruas. Frankfurt foi muito destruída na Segunda Guerra Mundial, mas, mesmo assim, apresenta alguns lugares que remetem ao período romano, e a arquitetura moderna é de bom gosto. Na cidade, somos convidados a conhecer, por exemplo, a Römerberg (Montanha dos Romanos). Construída em 1405, ela foi destruída na Segunda Guerra Mundial; todavia, ainda que tenha perdido algo da arquitetura inicial, conserva os traços das origens. Ela é o centro

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Fotos: Divulgação

da Altstadt (Cidade Antiga). Aí se localiza a Rathaus (Câmara de Frankfurt) ─ Der Römer. Também abriga a Alte Nikolaikirche (Antiga Igreja de São Nicolau), igreja evangelista, e o Historischen Museum (Museu de História) fica na mesma área. A Dom St. Bartholomaus (Catedral de São Bartolomeu), uma riquíssima construção gótica, com um prestigiado acervo de arte sacra fica no mesmo quarteirão e, ainda a Schirn Kunsthalle Frankfurt Römeberg, um dos grandes centros de arte da cidade, da Alemanha e com prestígio internacional. Ela exibirá a exposição de grafiteiros do Brasil. Ir a pé da rua Schaumainkai até a Römerberg é um programa inigualável para quem visita Frankfurt e gosta de caminhar. Como em todas as grandes cidades europeias, em Frankfurt encontramos os parques. Na primavera e no verão, é alegria para os olhos ver as flores, os desenhos dos jardins e a quantidade de pessoas que, todos os dias, corre, caminha, desde crianças nos carrinhos empurrados pelos pais até pessoas que acredito terem 80 anos ou mais. Eles não são somente frequentados nas estações mais quentes, também no outono e no inverno, desde que tenha sol, com outra paisagem, vemos muitas pessoas passearem nos parques. Eles fazem parte da vida de muitos habitantes. Dentre muitos, é visita obrigatória o Grüneburgpark, que tem nas suas origens uma bela história de nobres e artistas. O Günthersburgpark oferece uma visão privilegiada da cidade e tem origem inglesa. É muito visitado por crianças durante o verão. Ele possui um laranjal e esculturas de artistas famosos. E são imensos, enquanto se caminha, dá para pensar, encontrar soluções para problemas difíceis, ouvir música ou, simplesmente, ver a paisagem. É interessante uma caminhada de Bockenheimer até o Main, atravessando os parques. A caminhada é saudável, segura e bonita. Se cansar, é só pegar o U-Bahn ou o ônibus, que passam sem atraso e o horário está afixado nas paradas. Há muito para se fazer em Frankfurt: caminhar pelos parques, visitar os museus, ver a cidade a partir da Commerzbank Tower, o Flughafen, um dos centros aéreos mais importantes do mundo, o Porto de Frankfurt, e sem esquecer-se de atravessar a velha ponte de pedra sobre o Main e ver a quantidade de cadeados, com os nomes dos recém-casados, simbolizando uniões eternas. Sejam bem-vindos a Frankfurt!

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vc / livro

Foto: Divulgação

De bióg

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grafo a

psicólogo Gilvan Ribeiro conta como foi a experiência de transformar em livro a conturbada história de vida de Walter Casagrande

Leandro Canônico | Jornalista

C

asagrande e seus demônios. Não haveria nome melhor para a biografia que conta a história do ex-jogador do Corinthians e agora comentarista da TV Globo. Em 264 páginas carregadas de emoção e sinceridade, Walter Casagrande relatou absolutamente tudo sobre a luta contra a cocaína e heroína, vilãs “demoníacas” de boa parte dos seus 50 anos. Quem escutou cada detalhe e transformou em livro foi Gilvan Ribeiro. De biógrafo ele passou a psicólogo. Literalmente.

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“O clima era de terapia, meu!”, conta. Relação bem diferente da que Gilvan sempre teve com Casagrande, personagem de sua primeira experiência como escritor. Os dois se conheceram nos anos de 1990, quando o então atacante ainda atuava na Itália (jogou por Ascoli e Torino). Quando tinha férias, Casão gostava de visitar os amigos no Corinthians, clube com o qual teve maior identificação na carreira. E Gilvan, nessa época, era responsável pela cobertura diária do clube do Parque São Jorge. Iniciou-se, então, a amizade. 39


“Quando ele vinha para o Brasil passar férias e eu o encontrava no Corinthians, sempre fazia matéria. Aí ele sempre comentava quando via e conversávamos a respeito. Comecei a perceber que tínhamos muitas coisas em comum, como gostos musicais (no caso rock) e visões políticas parecidas. Mais adiante nós fazíamos a coluna dele para o Diário de S. Paulo juntos. Eu era o responsável em ligar para ele e montar o texto”, conta Gilvan. Demorou, no entanto, para surgir a Gilvan a oportunidade de escrever a biografia de Walter Casagrande. Na verdade, o projeto inicial havia sido iniciado lá atrás, no final dos anos de 1990, por Marcelo Fromer, guitarrista dos Titãs. A morte do músico, atropelado em junho de 2001, em São Paulo, colocou fim, temporariamente, à ideia. O comentarista da TV Globo ainda tentou recuperar as fitas das entrevistas iniciais com a família de Fromer, mas não obteve sucesso. Era necessário começar do zero. Cada vez mais próximos, Casagrande e Gilvan começaram a conversar sobre a biografia, lançada em 2013, alguns anos depois. Casão insistia em recuperar as fitas gravadas por Fromer e o jornalista rebatia afirmando que era essencial começar do zero, até para que ele tivesse noção de tudo e pudesse colocar nas páginas do livro as suas reais impressões. Já pensando na futura publicação, os dois começaram a conviver mais de perto a partir de 2007. “Quando começamos a conversar sobre a biografia, eu deixei claro para ele alguns pontos, entre eles de que ele precisaria me contar tudo, absolutamente tudo. Não

poderia me esconder nada e ter a noção de que tudo se tornaria público assim que o livro ficasse pronto”, relata. Nessa época, no entanto, Casagrande estava completamente entregue às drogas. O consumo de cocaína e heroína era cada vez mais frequente. Veio em 2007, então, a internação em uma clínica para dependentes químicos. A situação era crítica e pode-se dizer que a decisão de manter o ex-jogador isolado tenha salvado sua vida, tamanha era sua dependência, principalmente de heroína.

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Quando começamos a conversar sobre a biografia, eu deixei claro que ele precisaria me contar tudo, absolutamente tudo”

“Eu convivia com ele e estava preocupado com aquela situação. Teve um dia que quase não conseguimos fechar a coluna dele para o Diário de S. Paulo. Eu mesmo tive de fazer. Comecei a reparar que ele estava sempre de camisetas de manga longa para esconder as picadas de seringas. Depois, alguns detalhes me surpreenderam, como do dia que ele tomou uma overdose, no dia em que iria encontrar o filho, para jantar”, lembra. A convivência de Gilvan com Casagrande nesse período certamente ajudou o escritor a dar molho

às histórias que ele conta no livro. Afinal, ele não apenas ouviu os relatos do ex-jogador, mas conviveu e presenciou muitas situações que o ajudaram a ter a dimensão correta e a sensibilidade necessária para passar ao público exatamente como era o cenário de degradação do ídolo corintiano. “Ajudou muito na reconstituição das cenas na minha cabeça”, diz.

Produção da biografia O primeiro contato da Globo Livros com Gilvan veio apenas em 2008. A diretoria da empresa estava favorável à publicação da biografia. Foi exatamente na mesma época em que Gilvan visitaria Casagrande na clínica – durante a maior parte do tempo o comentarista não podia receber visitas. Nem mesmo da família. A psiquiatra e a terapeuta de Casão, no entanto, acharam muito prematuro que o paciente entrasse tão rapidamente num processo de recordar o sofrimento. “Dessa vez ele me presenteou com a autobiografia do Eric Clapton (guitarrista, cantor e compositor britânico). Disse que ela estava servindo de estímulo para ele”, lembra. Aquela ideia inicial, lá de 2008, já havia esfriado um pouco quando, no final de 2011, um perfil na revista Alfa revelou ao público que Gilvan Ribeiro estava escrevendo o livro sobre Casagrande. O então diretor da Globo Livros, coincidentemente, estava morando no mesmo prédio do ex-atacante e o pressionou para acelerar a produção da biografia. Gilvan, então, teve de começar a planejar efetivamente a biografia. valercultural


quisito. Era um dia chuvoso e ele estava bebendo cerveja com batida de coco. Ele estava daquele jeito por estar lembrando muito do Sócrates, um dos seus grandes amigos e que tinha morrido pouco tempo atrás. Mudei de assunto e fiz uma terapia com ele”, diz. Sucesso de críticas e vendas, Casagrande e seus demônios tem 264 páginas e custa R$ 34,90. É possível encontrar a edição nas principais livrarias do Brasil. Ao que parece, essa será a primeira biografia escrita por Gilvan Ribeiro. O jornalista parece ter gostado da experiência. “Peguei gosto. Com o Casagrande, nesse momento, não pretendo fazer mais nada, mas quero fazer mais biografias. Estou estudando personagens, se vivo ou morto. Ainda não sei. Mas quero fazer. A editora está feliz com o resultado e eu também”, finaliza o biografo de Casagrande. Foto: Arquivo pessoal

O jornalista, então, se reuniu com a direção da editora e acertou que, passada as Olimpíadas de Londres, em 2012, ele iria fazer as entrevistas com Casagrande para, enfim, começar a escrever a tão solicitada biografia. Os dois já tinham o hábito de almoçar juntos aos sábados. A partir daí, esses encontros começaram a virar entrevistas para o livro. Ao todo foram 25 que deram origem às palavras que foram transferidas para as páginas da biografia. “Eu não tinha como deixar de trabalhar no período das Olimpíadas. Eu era o editor do caderno de esportes do Diário de S. Paulo e tinha de estar na redação, mas, depois, eu tirei setembro, outubro e novembro para me dedicar exclusivamente às entrevistas e ao livro. Não falei apenas com ele, mas com familiares, amigos, pessoas importantes na trajetória toda”, afirma. Terminada toda a captação de informações, Gilvan Ribeiro decidiu se isolar na Praia da Almada, em Ubatuba, no litoral norte de São Paulo. Lá ficou por um mês. “Procurei me concentrar para poder cumprir o prazo de entregar até o final de 2012. Aluguei um chalé por lá e fazia minha própria comida. Isolei-me mesmo”, revela.

Lado psicólogo Durante o processo de entrevistas, a rotina de Gilvan Ribeiro era escolher um tema antes de chegar aos almoços com Casagrande. Mas nem sempre dava certo. Eram nessas horas que seu lado psicólogo entrava em cena. Foi algo, aliás, fundamental para a construção do livro. Até porque a sensibilidade de se adaptar ao tema proposto muitas vezes pelo estado de espírito do ex-jogador era necessária. “Uma vez eu já tinha decidido que ia falar sobre drogas, mas quando cheguei ao restaurante, notei que ele estava es-

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Perfil Natural de Bauru (SP), Gilvan Ribeiro tem 48 anos. Desses, 22 foram dedicados ao Diário de S. Paulo, jornal que deixou no último mês de junho. Como repórter, editor e colunista, ele passou também por Folha da Tarde e Folha de S. Paulo. Na televisão, ele teve experiências na TVA Sports e ESPN Brasil. Ao longo de sua carreira, o jornalista teve históricas confusões com dois grandes personagens do futebol: Serginho Chulapa e Luiz Felipe Scolari. Os dois agrediram o repórter

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As histórias de

Vera do Foto: Michael Dantas / A Crítica

Histórias do Rio Negro, de Vera do Val, supera o regionalismo rasteiro e “turístico” que, muitas vezes, tem assolado nossa literatura

Marcos Frederico Krüger | Escritor

V

encedor do Prêmio Literário da Prefeitura Municipal de Manaus, na categoria conto, em 2006, o livro Histórias do Rio Negro, de Vera do Val, surpreende pela tessitura narrativa, graças ao vigor da prosa e a soluções bastante singulares que apresenta. Publicado em 2007 pelas Edições Muiraquitã, do Conselho de Cultura, e, quase simultaneamente, pela Martins Fontes, de São Pau-

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lo, os contos de Vera do Val assumem posição de vanguarda na literatura feita no Amazonas. A primeira surpresa que a leitura nos revela é a percepção de que vários personagens transitam entre os contos. Dessa forma, a título de exemplo, mencionamos o velho Nabor, que aparece em “Rosalva”, a primeira narrativa do livro, é mencionado em “Rodamundo”, reaparece na história que leva seu nome e conclui sua trajetória em “Irerê”.

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Val

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Foto: Heitor Costa

Outro personagem que transita entre vários contos é Seu Jeru, cuja participação se verifica em “A Cunhã que amava Brad Pitt”, “Josué”, “O Jogo” e “A Praça” (neste último, ocorre maior ênfase em sua atuação). E assim outras figuras: Alzerinda, Giselle, Dorvalice, Marlene, Dona Dora, Antenor da Silva. O efeito surpreendente obtido pela autora com essa técnica é a de ter transformado os 26 contos do livro em um romance. Romance fragmentado, é verdade, mas em perfeita consonância com a multiplicidade de aspectos da vida. Ivan Ângelo, em A Festa, usa estratégia semelhante. Após os contos serem narrados à maneira tradicional, ou seja, cada um apresentando personagens e acontecimentos próprios, o autor reúne os protagonistas em uma festa, transformando a série de contos em um romance. Na obra de Vera do Val, o local onde se misturam os personagens é o rio Negro. Ele é o espaço onde esse “romance estilhaçado” acontece, apresentando uma humanidade expressiva da cultura tradicional e também da cidade grande, certamente Manaus. Confirmando essa estrutura de “contos disfarçados”, predispondo-se para a arquite44

tura de um romance, com inúmeros conflitos, observamos que o enredo de um conto, que parecia encerrado no ponto final, prossegue em outro conto, que pode estar logo na narrativa imediata ou mais adiante. Nesse sentido, observamos uma sequência nas seguintes histórias: “Giselle”, “Vida de santo” e “Dorvalice”. Na primeira, Janete, uma moça vinda do interior, consegue se tornar amante de Raimundo, um dentista bastante infeliz no casamento. Na segunda, de teor fantástico, Dorvalice, mulher de Raimundo, “mal passada dos quarenta”, entra na igreja para se lamentar a um santo e pedir a ele que o marido volte para casa. Em seguida, entra Janete, que adotara o nome de Giselle, para agradecer ao santo o fato de Raimundo ter ido viver com ela. Além de fantástico, pois o foco narrativo é conduzido, muitas vezes, a partir da perspectiva do santo, essa narrativa possui bastante humor, pois o santo se sente atraído e perturbado pelas formas físicas de Giselle. Finalmente, no conto (ou capítulo) que encerra essa série, ocorre a morte de Dorvalice. Também em sequência estão os contos “Águas e Rodamundo”. O primeiro é a história de um velho que mora sozinho e espera a morte. Sua mulher, Maria do Socorro, já morvalercultural


rera; dos seus quatro filhos, três o rio Negro matara e um fora embora, cumprindo a sina do nome: Rodamundo. Na narrativa segunda, o protagonista se lembra de quando, na loja do velho Nabor, na cidade grande, ficara maravilhado com uma bússola. Aos quinze anos, conseguiu comprá-la, depois de fazer serviços diversos no porto. Depois de adquirir o objeto, é que pensa em ir embora de casa. É significativo observar que ambos os títulos dessa série expressam o correr da vida, pois as águas correm para o mar e a onomástica de Rodamundo expressa perfeitamente sua inquietação. Nesse sentido, a bússola adquirida é uma antítese ao nome do personagem e metaforiza, quem sabe, um desejo de achar um rumo, de se fixar em um espaço próprio.

Contos encadeados A série mais significativa de contos encadeados é formada por “Curuminha”, “Velho Nabor” e “Irerê”. Na primeira história, uma “curuminha” passeia às margens do rio Negro. Das águas, sai um boto, “nu e moreno”, para possuí-la. Duas narrativas depois, a “curuminha”, que se chama Irerê, deixou-se possuir pelo velho Nabor, que resolveu trazêvalercultural

-la para a cidade. Aí, ela aprendeu a ler e a fazer contas. Um dia, Samir, irmão de Nabor, a viu à noite, vindo nua do igarapé dos fundos da casa, onde tinha ido tomar banho. Samir não teve mais sossego. Um dia, Nabor o flagrou espreitando Irerê. Samir se assustou e Nabor entendeu tudo. Levou então o irmão para o leito de Curuminha e os dois passaram a dividir a mulher. Dois anos depois, nasceu um menino: Ozair. Na continuação, Irerê “evolui” e passa a gerenciar a loja, a qual modernizou. Posteriormente, mudou-se com os maridos e o filho para um moderno edifício na curva do rio (ou seja, na Ponta Negra, habitat da elite manauara). Completamente desambientados no edifício de luxo, os irmãos sofrem e falecem. Essa sequência narrativa é uma alegoria da própria região amazônica por meio de seu percurso histórico. Inicialmente, Irerê faz parte da natureza, inserindo-se no ambiente típico da cultura folclórica regional, pois foi possuída pelo rio-boto. Depois, aceita imigrantes, representados, no caso, pelos dois irmãos de origem estrangeira. Esses imigrantes vão modificar sua formação e dar-lhe outro status cultural e social. Finalmente, vem a ascensão a uma classe média completamente desvin45


culada dos valores tradicionais e alienada em função de um desenfreado consumo.

na forma de prosa, percebe-se no conto o ritmo das redondilhas:

Rio Negro, a personagem Já dissemos que o rio Negro é o local dos acontecimentos, mas ele é também personagem. Tanto que, no conto da “curuminha”, ele se insinua, dizendo, antes de libertar o boto que traz em si:

Vem, curuminha, se perder às minhas margens. Vou lamber teu cio, levante a saia e abre as pernas, espoje na areia fina, espume entre as coxas e uive de gozo.

A faceta de conquistador do rio aparece logo no primeiro conto, intitulado “Rosalva”. Quando a moça casou e foi embora para o mato, fugindo de suas margens, o Negro, enciumado, “turvou, torvelinhou e rugiu o dia todo, a peixarada sumiu assustada e até pescador muito macho se recolheu precavido”. Mais tarde, Rosalva voltou para o Negro. Atraída, ela se deixou levar, “o rio rindo com ela, a malinando toda, até que, de olhos fechados e um sorriso na boca, ela desapareceu no escuro das funduras e da noite que vinha chegando”. Sendo o amante enfeitiçado, é também antagonista perigoso. Afinal, é ele quem, no conto “Águas”, mata os três irmãos de Rodamundo. Tal como os indivíduos, o Negro possui personalidade complexa e contraditória.

Erotismo O erotismo é marca constante nas Histórias do Rio Negro. Sob esse aspecto, é importante registrar o trabalho linguístico e literário que se observa em “Caipora”. Narrado em trechos ritmados, como se fosse um poema, é semelhante a uma cantiga de amigo, gênero do Trovadorismo português. Nessa forma poética, a moça lamenta a partida de seu namorado, o “amigo” que foi lutar ao lado do rei. No conto de Vera do Val, a “amiga” conta para a mãe não o momento da partida, mas o do encontro. Embora, em termos gráficos, esteja posto

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Ai mãe que vi caipora, que tinha língua de fogo, de fogo que arde a carne, a carne que abre as pernas, me espinha toda e jorra de gozo.

As marcas trovadorescas estão presentes também em “Cantilena”. Como em “Caipora”, esse conto, representação de um encontro amoroso, é narrado de modo ritmado, com versos dispostos em forma de prosa. Primeiro fala o homem, dizendo de seu desejo pela mulher, chamada Marinalva. Depois, é a vez de a mulher falar para Dorivaldo, se entregando a ele. É uma cantiga de amor aliada a uma cantiga de amigo, mas sem os clichês proibitivos da tradição medieval. Marinalva e Dorivaldo são nomes com bastantes semelhanças fonéticas, o que é significativo; além disso, cada um dos amantes se declara ao outro em quatro parágrafos. A autora criou, com tais recursos, uma simetria onomástica e visual para o amor. Amor, desejo – são esses os sentimentos que, quase sempre, movem os personagens que vivem às margens do rio Negro recriado em ficção por Vera do Val. Tão intenso pode ser o amor, que é capaz de transformar os indivíduos, como em “Piabeiros”, história que se passa na região da Cabeça do Cachorro, onde o rio Negro nasce. Esse conto nos mostra homens que vão coletar peixes para vendê-los para o exterior. Vicentão é o líder do grupo e é apresentado como um facínora. Do outro lado, está o velho índio Karaó e suas duas esposas: a velha Xipó e a quase menina Araí (definida como toda “mel e delicadeza”). Vicentão quer conquistar Araí e consegue, porque a moça sonha em sair da aldeia e conhecer o mundo. Mas, surpreendentemente, Vicentão se apaixona e amolece o coração, ele que era tão brabo. Na festa da despedida, uma bala perdida, atirada a esmo por um homem que se envolvera em briga, mata Araí. O amor também pode causar desvarios, como aconteceu com Luzilene, a protagonista do conto “A Cunhã que amava Brad Pitt”. Nesse caso, podemos fazer também uma leitura alegórica, considerando Luzilene como metonímia da região em valercultural


seu fascínio pelos valores advindos do estrangeiro. Tal fascínio expressa a mentalidade que foi inculcada em grande número de pessoas, desde os tempos em que éramos Colônia. A morte de Luzilene amplia a alegoria, como se a perda dos valores autóctones significasse a morte cultural. Porém, em “A Cunhã que amava Brad Pitt”, vale destacar passagem de extrema habilidade artística. Em sua precária habitação no Tarumã, afluente do Negro, a protagonista olha um pôster com a imagem de sua paixão: o louro Brad Pitt. Cai a chuva torrencial e o flutuante oscila, antes de ser levado pela torrente. Mas Luzilene nada percebe, pois está no auge do “amor solitário”:

Lirismo Esse momento de lirismo não é único no livro e pode ser frequentemente percebido em diversas figuras de linguagem, cujo uso torna a linguagem nada convencional. Vejamos alguns exemplos: • Em “Das Dores”, temos: “Nessa hora o sol parou e derramou vermelho no mundo”. • Em “Alzerinda”, observa-se o paradoxo “O silêncio esgoelava”.

Quando o flutuante num tranco mais forte soltou-se da poita e danou a galopar rio abaixo, ela viu, com olhos esgazeados, o moço, sem pressa nenhuma, desprender-se da parede e ir tomando chegada. Veio de manso, sorrateiro, o azul do céu se esparramando, fugindo dos olhos dele. No ar tremeluzindo, se era homem, se era Boto, ela não se perguntava. O que queria eram aqueles dedos de leite lhe tocando o corpo e a boca vermelha lhe bafejando a nuca.

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• Em “Tocaia”, Teresa “foi juntando moedas de sangue” e “tirou o amor sem fim da gaveta”. • No conto “Joca”, o protagonista “virava deus alado; lancinante, subia aos céus e descia embalado, pairava no ar, cuspia estrelas”.

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O movimento que o país viveu e vive é o Político, com o P maiúsculo da Pólis, da cidade, em estado bruto, sem a mediação da representação. A história mostra que o povo vai às ruas quando não se sente representado e estamos vivendo uma grande crise de representatividade

Sérgio Freire | Escritor

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Foto: Divulgação

pelos 513 anos e R$ 0,20”. Era o que dizia um dos cartazes nos protestos de rua que aconteceram no Brasil há pouco tempo. Nos estudos da linguagem, uma distinção é feita entre o enunciado e o processo discursivo. O enunciado é o que se fala. O processo discursivo é o que torna essa fala possível. O enunciado é linguístico. O processo discursivo é social e histórico. No nível da enunciação, o que causou toda a ebulição das ruas foi o aumento dos vinte centavos na passagem de ônibus em São Paulo. No nível do processo, as manifestações são a culminância de situações históricas acumuladas que não tiveram espaço para passar por uma simbolização social e que, portanto, voltaram do recalque assombrando o sujeito, nesse caso o sujeito coletivo. Os vinte centavos foram a gota d’água do copo que estava cheio e que não dava mais para engolir. Pulsão, limites e o retorno do recalcado. Mas que não foi sobre os vinte centavos, isso todos já sabemos. O que começou como agenda específica – a tarifa nos transportes – serviu de gatilho, de estopim para arrebentar o cadeado da corrente da porta. As redes sociais potencializaram e serviram de infovias para a circulação do sentido da indignação coletiva. Não foram elas que causaram tudo, mas elas deram condições sem pa49


Fotos: Divulgação

ralelo na história para que o fato acontecesse. A coisa sem nome cresceu e aglutinou indignações de várias naturezas, umas com as quais a gente concorda e outras das quais a gente discorda, afinal se trata de uma indignação coletiva. A insatisfação pontual se anabolizou, muito graças à violência da polícia paulista. Tal qual um buraco negro, ela começou a sugar tudo que se avizinhava. Em situações normais de temperatura, essa pressão se dissiparia na voz e nos atos de uma oposição política que catalisaria para si a insatisfação. Acontece que as oposições políticas no Brasil, modo geral, se esvaziaram. Optaram por não ter agendas políticas, mas por alimentar Fla-Flus contra o político X ou Y, por demonizar o partido W ou Z. O movimento que o país viveu e vive é, portanto, o Político, com o P maiúsculo da Pólis, da cidade, em estado bruto, sem a mediação da representação. A história mostra que o povo vai às ruas quando não se sente representado e estamos vivendo uma grande crise de representatividade. Os cartazes segurados por milhares de pessoas davam voz e forma à indignação. Os temas foram

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os mais variados: educação, mobilidade urbana, sexualidade, saúde, política, corrupção, os gastos com a Copa do Mundo. Do ponto de vista da linguagem, é muito interessante notar algumas características presentes nos textos carregados Brasil a fora. A característica mais forte é a do humor e a ironia. A população que foi às ruas levou consigo uma indignação dita em leveza. Para protestar contra o Projeto de Cura Gay, posto em pauta na Comissão de Direitos Humanos da Câmara, presidida pelo pastor Marco Feliciano (PSC-SP), dois rapazes musculosos carregavam um cartaz que dizia: “Feliciano, olha o que você está perdendo”. Além das pautas nacionais, pautas regionalizadas se apresentam como uma segunda característica a destacar. Em Manaus, era comum ver cartazes com dizeres do tipo “Se o Uarini continuar a subir, como vou comer meu jaraqui?”, referindo-se à alta dos preços da farinha do Uarini, iguaria básica na alimentação local. Fato é que há muito tempo não se via uma mobilização popular desse tamanho. A última vez tinha sido quando o ex-presidente Fernando Collor pediu apoio ao povo clamando que saíssem às ruas usando verde e amare-

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lo. O povo saiu, mas usando preto. E deu no que deu. Duas décadas depois, jovens rebatiam a crítica de apatia política portando cartazes que diziam “Saímos do Facebook!”. Mas, afinal, o que significa tudo isso? Não temos uma explicação finalizada. Só há pistas. Uma delas: a crise de representatividade achatou o movimento, o tornando horizontal, em rede, sem líderes, sem hierarquia, no espírito wiki, que é a marca dessa geração. Alguns se apresentam falando pelas pautas específicas, mas ninguém está autorizado a falar pelo movimento político das ruas. Governistas viam nas movimentações um movimento conspiratório para derrubar a presidente Dilma. Claro que ela, como presidente, virou alvo preferencial das insatisfações. Mas daí a achar que havia um golpe sendo urdido parece ser um pouco demais. O ator José de Abreu, governista histórico, dispensou o trabalho dos iconoclastas ao se destruir sozinho. Ele desqualificou povo, chamando as pessoas de “idiotinhas” porque foram às ruas, “convocados pela Fiat”. A oposição também pensou que tudo isso era sobre derrubar a presidente Dilma, sendo que esses, os opositores, ficaram felizes com a hipótese. Estavam enganados. Ok, era sobre

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isso também. Nas duas nuances. Mas não é somente sobre isso. Aí é que está o equívoco. Nessa etapa, não adianta reclamar por foco, não adianta querer líderes. O líder é a indignação. O foco é não ter foco. A falta de foco é o foco. Trata-se de um movimento Gita: o tudo, o nada, a mosca na sopa, a mão do carrasco. Raul Seixas atualizado nas ruas. Para os que estudam os ecossistemas comunicacionais, o que vivemos é um exemplo perfeito de como funciona uma rede distribuída paralela. Não há centro, só há nós e ligando esses nós há muita informação. Essa forma não tradicional de se organizar, que se reconfigura por si, causou perplexidade em muita gente. “Mas afinal, sem objetivo não se chegará a lugar nenhum!”, “Sem pauta específica não funciona!”, “Cadê a ordem para que haja progresso?”. O ministro Gilberto Carvalho perguntou-se, atônito, o que significava tudo aquilo. “Quem convoca greve é central sindical e sindicato, que defendem direitos dos trabalhadores, não anônimos do Facebook”, disse um atordoado presidente da CUT, Wagner Freitas. Sua indignação soou como se ele dissesse: “Esse pessoal está que-

Para os que estudam os ecossistemas comunicacionais, o que vivemos é um exemplo perfeito de como funciona uma rede distribuída paralela. Não há centro, só há nós e ligando esses nós há muita informação”

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Cozinha-se na hora para saciar a fome com os ingredientes que se tem à mão.

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rendo se apropriar da política? Da “nossa” política?!” Os governos ficaram atordoados porque a falta de líderes não sinalizava quem cooptar. Sindicatos e partidos estavam em polvorosa porque muito dos cooptáveis perderam valor de face. Até mesmo companheiros combativos da política partidária chegaram a acusar jocosamente as manifestações de “micaretas”. De novo, pareceu uma amargura que tem como pano de fundo a desqualificação do movimento pela ousada apropriação do Político pela população em geral, acabando com a exclusividade do seu brinquedinho. É irônico: pessoas que passaram a vida toda reclamando horrores da passividade política reclamando horrores quando ela é posta em xeque pela súbita participação política. “Ora, mas isso não é fazer política direito!”. Quem disse que há uma receita para protestar, cara pintada? Vivemos o fim das receitas prontas. Cozinha-se na hora para saciar a fome com os ingredientes que se tem à mão. O filósofo Jean-François Lyotard dizia isso ainda na década de 1970.

Muito sintomático também foi o silêncio dos políticos em meio aos milhares de gritos. Atordoados, eles permaneceram atentos. Em um primeiro momento, a presidente Dilma veio com um discurso duplo, louvando as manifestações por um lado, mas, por outro, dizendo que seu governo já havia feito um monte de coisa. É como se ela dissesse: “Ei, pessoal! Não há motivo para tudo isso!”. O ex-presidente Lula, que ficou muito tempo calado, avaliou que o desgaste político abriu uma brecha para que algum “aventureiro” venha a ser eleito como o Sassá Mutema da vez, fazendo referência ao personagem de Lima Duarte na novela O Salvador da Pátria. O medo de Lula é localizado em Joaquim Barbosa, ministro do Supremo Tribunal Federal, Supremo que, aliás, também não se pronunciou sobre tudo isso. Para onde vai tudo isso? Em reunião com prefeitos e governadores, a presidente anunciou mudanças. Logo após os protestos, Dilma disse que iria pedir um plebiscito que autorizasse uma Constituinte para fazer a reforma política. Depois, voltou

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Fotos: Alan Marques / Folhapress

“ atrás. Ficaram as propostas: “Eu trago propostas concretas e disposição política para construirmos pelo menos cinco pactos em favor do Brasil”. São eles: a) pacto pela responsabilidade fiscal nos governos federal, estaduais e municipais, para “garantir a estabilidade da economia” e o controle da inflação; b) pacto pela reforma política, incluindo um plebiscito popular sobre o assunto e a inclusão da corrupção como crime hediondo; c) pacto pela saúde, afirmando que quando não houver médicos brasileiros, será feita a “importação” de médicos estrangeiros para trabalhar nas zonas interioranas do país; d) pacto pelo transporte público, anunciando que o governo destinará “50 bilhões de reais a novos investimentos em obras de mobilidade urbana” e e) pacto pela educação pública: Dilma pediu mais recursos para a educação, voltando a falar que é necessário que o Congresso aprove a destinação de 100% dos recursos dos royalties do petróleo para a educação. O Plano Nacional de Educação (PNE), em tramitação no Senado, destina 10% do Produto Interno Bruto (PIB) para a área, além dos royalties. valercultural

Esse anúncio de mudanças foi recebido de muitas formas. Normal ter sido assim, uma vez que está tudo muito fragmentado. Claramente é uma estratégia política para destensionar. O bonde andou e a gente precisa continuar empurrando. A presidente jogou um monte de coisa nas costas dos entes federativos e do Congresso, que vai ter de se virar para dar conta das expectativas. Afinal, quem vai dizer não com fumaça quente ainda saindo do cano do revólver? O anúncio da presidente Dilma não acabou com as manifestações. Elas perderam força por si só porque nessa época em que vivemos tudo cansa e passa rápido. É da constituição do novo tecido social da liquidez. A grande aposta é a de que a coisa vai se desdobrar em um segundo passo: a organização da indignação em movimentos plurais com pautas específicas. É preciso, como dizem, dar ordem ao caos senão nossa cabeça calcada no racionalismo da Modernidade não dá conta. Mas a mudança é irreversível. Isso é inegável. Como diria o músico Chico Science: “um passo que a gente dá e a gente não está mais no

Eu trago propostas concretas e disposição política para construirmos pelo menos cinco pactos em favor do Brasil”

mesmo lugar”. Os deslocamentos já são visíveis. Vimos gente que nunca se preocupou com essas questões falando sobre a PEC 37, sobre o Ato Médico, sobre as propostas polêmicas do deputado Feliciano. Pessoas que só postavam fotos de seus cachorros nas redes sociais de repente estavam clamando por uma reforma política, discutindo a vinda dos médicos cubanos, pedindo aumento de verbas para a educação e a punição dos corruptos. Com a acentuação da crise de representatividade, como vai ficar a política partidária? E as eleições que vêm aí? E o país? Nossa curiosidade cidadã está a toda. Estamos esperando o que vem por aí. Nas ruas. Com cartazes nas mãos.

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o g n i r g e d a r a c m o c o h n i u q o ab A fruta amazônica ganhou espaço na gastronomia internacional e chega à mesa regional com características das cozinhas italiana e francesa Suelen Reis | Jornalista

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s olhos do mundo estão virados para vários aspectos da Amazônia. Na gastronomia não é diferente. Frutas, peixes e ervas da região estão na mira dos chefs de cozinha do mundo inteiro. Um desses produtos amazônicos é o tucumã. Muito consumido no Amazonas, principalmente no café da manhã, o fruto caiu no gosto da população na forma de sanduíche, o tradicional X-caboquinho, feito com pão francês recheado de tucumã, queijo coalho e banana frita.

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Mas agora o fruto não é mais “só” um caboquinho e chega à alta gastronomia em receitas de outras cozinhas, como a italiana e a francesa. A chef Maria do Céu Athayde, que desde meados da década de 1990 faz experimentos com a fruta, acha a mudança positiva até para a valorização do produto dentro da própria região. “Enquanto o mundo está de olho no produto amazônico, nós, amazônidas, estávamos desprezando esse potencial. Em 1996 comecei a fazer experimentos com tucumã nas

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Foto: Diego Reis

Foto: Divulgação

Perfil Maria do Céu Athayde se dedicou a estudar a gastronomia da Amazônia. Está há dez anos no comando do Centro de Gastronomia da Amazônia, pertencente ao grupo Rede Amazônica e que tem como proposta resgatar a cultura gastronômica da região por meio de pesquisas e repassá-la para a população por

Foto: Antonio Lima

meio de cursos e consultorias.

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minhas produções. Criei, à época, a manteiga de tucumã, onde conseguimos tirar toda a fibra, aqueles fiapos que existem na polpa. O resultado é saborosíssimo. Tive oportunidade de mostrar a manteiga de tucumã para o Laurent Suaudeau (chef francês radicado no Brasil). Ele ficou encantado e pediu que eu o ensinasse para usar em um evento com temática amazônica em São Paulo. Eu fui até lá para ajudá-lo”, comenta. Entre as outras iguarias criadas por Maria do Céu, estão o pão de tucumã; o risotto, prato típico da Itália, preparado com o produto amazônico no qual o tucumã é cozido; e a mousse, feita com a técnica original de preparo da famosa sobremesa francesa. “Aquela com leite condensado e creme de leite na realidade não é mousse, é creme”, informa a chef. Quanto ao crescente número de chefs de cozinha especialistas na culinária amazônica, Maria do Céu faz uma ressalva: “Apesar do ponto positivo que é a curiosidade e a divulgação do nosso produto, tem a questão da mistura pela mistura. O que tenho visto são misturas e não composições. Até porque há vários tipos de tucumã: um mais alaran-

jado, outro mais amarelo, porque foi colhido muito verde ou porque é característico de determinadas regiões. E a gente precisa conhecer essas diferenças para fazer uma composição, para harmonizar. Criar um prato para mim é criar um conjunto harmônico”, diz.

Cardápio Vários restaurantes de Manaus já investem no cardápio regional. A iniciativa resgata a identidade e cultura do povo amazonense por meio da culinária, ao mesmo tempo em que dá a ela uma característica mais contemporânea. No Zefinha Bistrô, por exemplo, é possível encontrar canelones de tucumã e queijo coalho ao molho de jambu. “O prato foi criado especialmente para oferecer aos convidados do Kuat Club durante o Festival de Parintins deste ano. Fez tanto sucesso que resolvemos incluir no menu do Zefinha”, diz a proprietária Selma Reis, que também tem um buffet e, no cardápio de seus eventos com temática regional, inclui canapés de tucumã, risoto amazônico (que tem tucumã), croissants de tucumã e queijo coalho, quiche de tucumã e queijos da Amazônia, terrina de tuvalercultural


Foto: Divulgação

Propriedades da fruta O tucumã é um fruto riquíssimo em betacaroteno que é um antioxidante muito procurado atualmente porque tem a capacidade de prevenção de doenças cardiovasculares e alguns tipos de câncer. O tucumã vem sendo bastante estudado por conter alto índice de betacaroteno, um precursor da vitamina A e também porque é rico em ácidos graxos insaturados (gorduras boas, que fazem bem para a saúde) como o azeite de oliva.

Foto: Antonio Lima

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tortas e bolos. A doce tem, além da polpa da fruta, sal e leite condensado. A salgada leva, entre outros ingredientes, creme de leite, sal e requeijão. “Já fiz um pirarucu e um rocambole recheados e também sirvo como recheio de pão de açaí que nós também fazemos”, afirma.

Foto: Daniel Bardan

cumã e queijo manteiga, pãezinhos artesanais de tucumã e boursin de tucumã e castanhas da Amazônia. A microempresária Ana Rosa Bartholo também sentiu a necessidade de incluir iguarias à base de tucumã no seu restaurante, o Delicianas. “Durante algum tempo trabalhei com café da manhã regional e como fiz um curso elaborado pelo Senac, aprendi a fazer pastas doce e salgada de tucumã. Mas eu aprimorei as receitas. Fui testando novos ingredientes para chegar num resultado no qual não perdesse a essência verdadeira do tucumã”, comenta. Ana Rosa diz que as receitas são ótimas para quem costuma receber visitas em casa, pois podem ser degustadas com torradas ou bolachas, e servem como recheio de

Novos produtos O interesse pelo fruto amazônico é tanto que há pesquisas para a criação e industrialização de novos produtos que devem chegar até as gôndolas dos supermercados em breve. É o caso da ricota sabor tucumã, resultado da pesquisa de mestrado em Ciências de Alimentos da agrônoma Anna Carolina de Souza Hanna (foto), com orientação do professor doutor José Merched Chaar. O projeto está em andamento numa fábrica de queijo no município de Autazes. O produto é desenvolvido a partir do soro do leite que já é utilizado na produção de ricota. O trabalho busca, também, dar uma alternativa para o produtor beneficiar esse soro e atribuir valor a ele utilizando um produto muito apreciado e consumido no

O tucumã com queijo coalho está no nível de combinações perfeitas como feijão com arroz e queijo com goiabada. Mas se não tiver bem dosado, o queijo pode se sobrepor ao tucumã, pelas próprias características do queijo coalho que é, quase sempre, muito salgado.

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Nossos sabores são únicos, com aromas ímpares. Não tem como comparar. É uma coisa embriagadora, fascinante”

Fotos: Diego Reis

Amazonas. A tecnologia ainda não pode ser divulgada porque passa por alguns ajustes como quantidade do óleo da polpa de tucumã a ser utilizada, a fim de definir a combinação perfeita do queijo com tucumã. “Na literatura existem várias pesquisas que apontam para a riqueza do soro do leite, até porque 5% das proteínas do leite não ficam no queijo e sim no soro. É um produto riquíssimo em vitaminas, em outros tipos de proteína e que não é tão utilizado. Já o tucumã é rico em ácidos graxos insaturados. Vamos começar a fase sensorial para testar a textura, o sabor, porque queremos desenvolver um produto saudável com gosto que todo mundo ama”, diz a pesquisadora.

Valor nutricional Normalmente as pessoas utilizam o queijo ricota na dieta porque ele não tem muita gordura. Questionada se o uso do óleo de tucumã “engordará” o produto, Hanna diz que não: “Os ácidos graxos da polpa do tucumã são saudáveis,

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reais é o preço médio cobrado por um quilo de lascas de tucumã de boa qualidade. O valor é considerado alto, o que encarece os pratos feitos com a fruta.

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são eles os responsáveis pela absorção das vitaminas, na digestão e no metabolismo como um todo. Vamos utilizar e respeitar os níveis recomendáveis para o consumo na dieta diária. Sem contar os benefícios do tucumã”, afirma. Outro ponto ainda em pesquisa é como esse produto chegará ao consumidor, principalmente em relação ao preço. “Ainda não posso dar precisamente esse tipo de informação, mas basicamente terá um valor aproximado da ricota que a gente compra no supermercado e que não é produzida no Amazonas. A nossa será produzida aqui e eu creio que chegará a um valor aproximado. Só que com um algo a mais”, justifica. A pesquisadora acredita que a ricota sabor tucumã já estará à venda nos supermercados da cidade no primeiro trimestre de 2014. “Ainda vamos passar por um comitê de ética. Há todo um processo para que o produto seja comercializado, condições de segurança para ter uma aprovação. Dentro de seis a sete meses já estará tudo pronto”, pontua.

O mestrado em Ciências de Alimentos da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) é vinculado à Faculdade de Farmácia e tem parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) do qual também se destaca outro trabalho da aluna Neila Picanço, também orientada por Merched, que desenvolveu um molho para salada sabor tucumã, no qual utilizou a polpa e o sumo do fruto e conseguiu manter a cor original do tucumã. O trabalho foi premiado.

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vc / ensaio

Definitivamente

RIO NEGRO

Tenório Telles | Escritor Heitor Costa | Designer e fotógrafo

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assados quatro séculos da conquista europeia, a Amazônia continua fascinando viajantes, pesquisadores, poetas – todos os que se aventuram pela geografia labiríntica de seus rios e mistérios de sua floresta. No espaço amazônico, a fábula dialoga com a história – lenda e realidade se fundem numa simbiose que une cultura e natureza, ser humano e magia. Nesse convívio com as águas e os bichos, com a terra e os mitos os homens foram construindo seus saberes, sua identidade, enraizando-se e forjando os sentidos da própria existência nesse “paraíso perdido”. Bem disse o poeta Alcides Werk, ao falar desse mundo aquoso: “Um belo mundo / de muitas matas / de muitas vidas / elementares”.

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Recentemente vivi, na companhia do fotógrafo e designer Heitor Costa, uma das experiências mais surpreendentes da minha vida. Fui a São Gabriel da Cachoeira, município amazonense na fronteira com a Colômbia e a Venezuela. A cidade representa a presença da civilização num lugar em que a natureza mantém os traços originários, como um éden perdido no tempo. Surpreende o silêncio, o rio encachoeirado, na frente da cidade – rumorejante – como se falasse de histórias que habitam a memória. A paisagem da região do alto rio Negro é marcada por uma geografia particular: com suas montanhas, seus rios milenares e pedregosos.

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Nesse cenário povoado de mistérios, cultura e natureza se imbricam e se metamorfoseiam em vida e realidade. Um novo mundo que se constrói sobre o mito e a memória dos povos ancestrais do rio Negro. Território de falas, costumes, crenças e saberes – forjado ao longo de séculos de convivência com a natureza. O rio Negro é um continente de povos e histórias, que há menos de dois séculos foi incorporado ao mundo civilizado – a partir da presença da Igreja Católica, dos comerciantes que percorriam os rios da região trocando suas mercadorias por produtos extrativos. Mais recentemente, por questões de segurança nas fronteiras, os militares se estabeleceram em São Gabriel, alterando profundamente o cotidiano da cidade.

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Dessanas, BarÊs, Tukanos, Tuyukas, Uananas, Banywas... Tantas falas a nos falar de vidas tecidas nas muitas margens desse rio sem margem�

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A descida do rio Negro, a partir de São Gabriel, é uma viagem pelo tempo – um itinerário mágico em que nos misturamos à paisagem natural, com seus entardeceres inesquecíveis, suas noites como se fossem jardins floridos, amanheceres pintados por um demiurgo enlouquecido. O que é mais belo nessa viagem são as pessoas – homens e mulheres com suas histórias, suas esperanças e anseios de dias melhores. O barco de linha que faz o percurso entre a cidade e Manaus é um barco babel – com passageiros das diversas etnias

que habitam o rio Negro. Dessanas, Barés, Tukanos, Tuyukas, Uananas, Banywas... Tantas falas a nos falar de vidas tecidas nas muitas margens desse rio sem margem – nascido no tempo e tornado realidade na vida de seus habitantes. O rio Negro é uma das últimas fronteiras da terra em que a fábula ainda vive nos mitos das dezenas de povos que se forjaram no convívio com a floresta, os bichos, os rios e seus encantados.

Rostos, olhares e memórias – gentes do rio Negro e suas histórias de resistência e afirmação das suas identidades valercultural

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Este ensaio fotográfico, nascido do olhar sensível de Heitor Costa, mais que um documento histórico, é testemunho estético do convívio do ser humano com a natureza nessa região mágica da Amazônia. Viajar pelo rio Negro é uma aventura pelo imaginário – é uma revelação evocativa de um mundo e de um tempo que vive nas plantas, nas pedras, nos peixes, nas águas, nos mitos e nos sonhos de homens e mulheres que habitam esse território encantado.

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A terra que Abraão deixou para trás Ana Claudia Leocádio | Jornalista

Viaje pelos lugares que conservam a memória de personagens reconhecidas pelo judaísmo, pelo cristianismo e pelo islamismo

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Senhor disse a Abraão: Deixa tua terra, tua família, e a casa do teu pai, e vai para a terra que eu te mostrar”. Assim está escrito no livro de Gênesis, da Bíblia, sobre o começo da história de Abraão quando partiu para Canaã e se transformou no patriarca de três das principais religiões do mundo: o judaismo, cristianismo e islamismo. Qual foi a minha surpresa ao conhecer a cidade de Sanliurfa e o vilarejo de Harã, no sudeste da Turquia, e saber que foi nesses lugares que viveu o profeta.

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Fotos: Divulgação

Nesse caldeirão de fé, Sanliurfa (pronuncia-se chaliurfa), conhecida na antiguidade como Ur e Edessa, é considerado o lugar onde Abraão nasceu, enquanto Harã foi de onde ele partiu para Canaã, a Terra Prometida, atualmente em Israel/ Palestina, deixando para trás ainda muitos familiares que mais tarde, segundo a Bíblia, deram luz às mulheres que se casaram com os descendentes diretos do patriarca. Localizadas na Alta Mesopotâmia, entre os rios Tigre e Eufrates, que nascem na Turquia, Sanliurfa e Harã são lugares que quase nada 72

conservam daquela época nos idos do século 18 antes de Cristo, quando Abraão ouviu o chamado divino e saiu numa longa jornada que é base da crença de judeus, cristãos e muçulmanos até os dias atuais. Para o judaismo, Abraão é considerado o primeiro hebreu, que chegou a Israel e gerou Isaque, de quem descendem os judeus. Para o cristianismo, seu filho Isaque, que nasceu de Sara, é o verdadeiro filho do patriarca pelo qual se fariam cumprir todas as promessas, consolidadas mais tarde em Jesus Cristo. No islamismo, é Ismael, o filho da

escrava egípcia Agar, mais velho que Isaque, a verdadeira descendência do profeta, concretizada em Maomé, o fundador da religião muçulmana. Em seu livro Turquia Bíblica: um guia dos lugares judeus e cristãos na Ásia Menor, o escritor Mark Wilson afirma que, embora Jerusalém seja considerada a principal Terra Sagrada, estudos confirmam ter sido na atual Turquia, o lugar de nascimento e partida do profeta Abraão e onde seus descendentes foram buscar suas esposas. É onde está localizado o Monte Ararat, citado na Bíblia com o lugar onde Noé pousou a arca após o dilúvio. Segundo Wilson, foi turco o destino de muitos judeus em exílio após a perseguição que sofreram desde os tempos dos babilônios e, ainda, onde o cristianismo começou seus primeiros passos por meio valercultural


dos apóstolos e seguidores de Jesus Cristo na difusão da nova religião. Com uma população de aproximadamente 700 mil pessoas, Sanliurfa é uma cidade mística, destino de peregrinos, a maioria islâmicos, que chegam à cidade em caravanas para visitar a caverna que se acredita ser o lugar onde Abraão nasceu e viveu por poucos anos, antes de se mudar para Harã. A caverna é pequena e em seu entorno foi construído um grande parque (Golbasi), que também abrange o Lago do Peixe (Balikli Göl) e uma das mais antigas mesquitas da cidade, ao pé da colina de Damlacik, onde até hoje estão as ruínas de uma fortaleza. Mesmo pequena, a caverna foi dividida em duas entradas: uma para as mulheres e outra para os homens. Para entrar, as mulheres precisam tirar os sapatos e cobrir a valercultural

cabeça com um véu, em sinal de respeito. Dentro, o clima é de emoção e preces. As mulheres chegam a chorar durante as orações e, antes de deixar o local, todos bebem da água (considerada milagrosa) que vem de uma fonte subterrânea. Mas há outra caverna no parque, igualmente muito visitada pelos peregrinos. Eles acreditam que essa caverna é o lugar exato onde Abraão, considerado um dos maiores profetas pelo islamismo, caiu sobre uma cama de rosas, após ser arremessado de uma catapulta em chamas do alto da fortaleza. O profeta teria sido castigado pelo rei assírio Nimrod depois de ter destruído os deuses pagãos do lugar. Segundo a lenda, ao ser arremessado, Deus transformou o fogo em água e o carvão em chamas, numa cama de rosas, onde o profeta pousou com segurança. Acredita-se

também que aquela água formou o atual lago, até hoje cheio de carpas, consideradas sagradas. Quem as levar, fica cego. A cerca de 45 quilômetros ao sul de Sanliurfa está o vilarejo de Harã, na cidade turca de Altinbasak. Envolta nas ruínas de 4 quilômetros da muralha que um dia protegeu a cidade, o lugar é conhecido hoje pela sua arquitetura, com casas feitas à base de barro e com várias domas em forma de cones, que marcam a divisão dos cômodos.

Sanliurfa é uma cidade mística, destino de peregrinos, a maioria islâmicos” 73


Fotos: Divulgação

Harã já testemunhou a passagem de muitos impérios, como dos Hititas (século 17 a.C.), um império poderoso que dominou a Anatólia na Ásia Menor, atual Turquia, e onde durante muitos séculos foi construído o Tempo do Deus da Lua. A maioria das ruínas encontradas atualmente no sítio arqueológico data dos séculos 7 e 8 a.C., como a Grande Mesquita, e dos séculos 11 e 12 d.C., da época dos Cruzados, como o castelo. Mesmo diretamente ligada

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Foto: Ana Claudia Leocádio

às escrituras sagradas, não espere encontrar nenhum vestígio dos tempos de Abraão, pois as casas vistas ali foram construídas há pouco mais de 200 anos e passam por frequentes restaurações. Segundo o Livro de Gênesis, além de Harã ter sido o lugar de onde Abraão partiu rumo à Terra Prometida, foi também para onde ele enviou um servo para procurar uma esposa para o filho Isaque, que se casou com Rebeca. E foi ainda nessa terra que Jacó, filho de Isaque, refugiou-se fugindo do irmão Esaú e encontrou suas duas esposas: Lia e Raquel, filhas de seu tio Labão, assim como suas concubinas. Além da importância bíblica, Harã também foi palco de dois importantes eventos históricos na época do Império Romano; primeiro, quando o exército liderado por Crasso quase foi aniquilado pelos Partos, em 53 a.C., e, segundo, foi onde o Imperador romano Marco Aurélio Caracalla foi assassinado, em 217 d.C., quando chegava para orar pelo deus da lua, Sin. valercultural

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Fotos: Divulgação

Istambul é o destino preferido dos turistas que visitam a Turquia Antalya é famosa por suas praias e resorts

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Diferenças Embora muito conhecidos, esses lugares estão praticamente fora da rota turística comum de quem viaja à Turquia. Dados recentes do Ministério do Turismo mostram que 80% dos visitantes estrangeiros que visitam o país preferem conhecer as cidades de Istambul, que foi capital dos impérios Bizantino e Otomano, e Antalya, uma cidade mediterrânea famosa pelos suas praias e resorts. Uma pena, pois além das paisagens e do conteúdo histórico a visita a essa parte do país revela uma face ainda pouco conhecida. Mesmo falando um pouquinho da língua turca, não é muito fácil entrar num ambiente onde o curdo e o árabe são as línguas que mais se ouvem na região. Isso porque, além de fazer fronteira com Síria e Iraque (onde a língua dominante é o árabe), a Alta Mesopotâmia na Turquia é o lar da maioria curda que habita o país, algo em torno de 15 milhões de pessoas. Outro fator que contribui atualmente para o aumento da população falante de árabe é a chegada de refugiados sírios, que fogem da guerra civil no país, que passa de dois anos sem perspectiva de fim. Somente no hotel onde ficamos hospedados em Mardin, dez funcionários eram sírios, e estima-se que mais de mil estejam morando na cidade. Outra mudança total de cenário é a arquitetura, que mais se aproxima dos modelos construídos na Jordânia e Palestina, por exemplo, em contraposição aos casarões otomanos, comuns nas regiões central e oeste do país. São casas construídas à base de pedra calcária, muito usadas em regiões áridas e quentes, pela sua característica de regular a temperatura no interior dos ambientes. A moda é, também, uma observação à parte, pois o colorido dos vestidos e dos véus dá um ar mais alegre ao ambiente árido nessa parte do país. Nas lojas de escarpes, uma infinidade de estampas é oferecida a preços que começam em torno de R$ 5, dependendo da qualidade do tecido. Os vestidos coloridos de renda são uma herança das vestimentas milenares dos povos da Mesopotâmia, que sobreviveram ao tempo.

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Éfeso

Adana

Lugares bíblicos

Tarsus

Antakya

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Além das cidades do patriarca Abraão e do Monte Ararat (na fronteira com a Armênia), a Turquia abriga também outros lugares citados na Bíblia, como a cidade de Éfeso, no Mar Egeu, onde o apóstolo Paulo fez diversas pregações e cujas cartas estão no Novo Testamento, e muitos outros lugares que os seguidores, em algum momento, passaram. Próximo à cidade de Adana, no sul da Turquia, está localizada a cidade de Tarso, onde nasceu o apóstolo Paulo. Em Tarso, além das vilas otomanas restauradas, é possível visitar o lugar onde acreditam ter sido a casa onde Paulo viveu com a família, que preserva um poço antigo que remontaria à época em que o apóstolo viveu ali. Foi pela Turquia que Paulo fez suas três viagens de pregação, até ser preso e levado para Roma, onde foi martirizado. João é outro seguidor de Jesus que fugiu para a Turquia e, segundo é sustentado aqui, foi para onde levou Maria de Nazaré em segurança a pedido de Jesus, para evitar sua perseguição em Jerusalém. Próximo à costa turca, está situada a ilha de Patmos, atual ilha grega usada pelos romanos para banimento de condenados, onde João foi colocado em exílio e o evangelho e o livro do Apocalipse. A tumba de São João está na atual cidade de Selçuk, a dez quilômetros da Casa de Maria, numa área de montanha, onde viveu até o fim de seus dias. O lugar é de peregrinação, inclusive, para as mulheres muçulmanas, principalmente antes de dar luz a seus filhos. Está atualmente em solo turco na província de Antakya, descrita na Bíblia como a cidade grega de Antioquia, o lugar de nascimento do médico sírio Lucas, que

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Foto: Ana Claudia Leocádio

Deyrul Zafaran

escreveu o Evangelho de São Lucas e o Ato dos Apóstolos, do Novo Testamento. Ele nasceu em Antioquia e, mais tarde, seguiria Paulo de Tarso em sua peregrinação até a Europa e, depois, até o martírio em Roma.

Alta Mesopotâmia

muçulmana, é nessa parte do país que ainda remanescem patrimônios cristãos importantes da Igreja Ortodoxa Siríaca, que foi dominante na região a partir do século 4, como os monastérios de Mar Hanania (Deyrul Zafaran), a seis quilômetros da província de Mardin, e o Monastério Mor Gabriel, a 18 quilômetros Midyat. Esses monastérios são ponto de visitação turística e de peregrinos cristãos e, ainda, onde se celebram

os serviços diariamente para a pequena comunidade cristã que não abandonou a Turquia. Ambos os monastérios estão em funcionamento e abertos à visitação diariamente, com bispos, monges e seminaristas vivendo no lugar, além de hóspedes recebidos semanalmente. Em Deyrul Zafaran, cerca de 40 pessoas vivem em suas dependências, enquanto o Monastério Mor Gabriel abriga em torno de 70 pessoas.

Foto: Ana Claudia Leocádio

A Alta Mesopotâmia do sudeste da Turquia também reserva outras lições. Com 98% da população

Monastério Mor Gabriel

Mosaicos de Zeugma

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Rio Tigre e ruínas

Rio Eufrates, barragem de Biredic

Até o século passado, o Monastério Mar Hanania (Deyrul Zafaran) sediou o patriarcado da Igreja Siríaca, que atualmente está instalado em Damasco, capital da Síria. Por ano, cerca de cem mil pessoas visitam o local, segundo o guia do monastério. Em Mor Gabriel, mais antigo, construído no ano de 397, está o túmulo de São Gabriel, de onde se pode levar de sua tumba um punhado de terra que afirmam ter funções milagrosas. Nesses locais, a língua da liturgia nos serviços é o siríaco, que segundo o seminarista Gabriel, é um dialeto do aramaico ainda falado nas comunidades.

Mudanças Mosaicos de Zeugma

Rio Tigre, Hasankeyf

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Localizados entre ou próximos aos rios Tigre e Eufrates, os Estados do sudeste da Turquia passam por uma controversa transformação por causa do projeto para o sudeste da Anatólia, que prevê a construção de 22 barragens para a produção de energia elétrica e programas de irrigação das áreas de agricultura, abrangendo nove províncias. O rio Eufrates, por exemplo, que já foi o marco que dividiu o Império Romano de leste a oeste na antiguidade, recebeu as maiores intervenções. Com sua nascente no leste turco, o Eufrates tem quase 2.800 quilômetros de extensão, dos quais 40% percorrem a Turquia, uma parte da Síria até chegar ao Iraque, onde se encontra com o rio Tigre, que também nasce em solo turco. Com uma economia baseada na agricultura, essas barragens são a promessa de irrigação das áreas áridas do sudeste, onde os principais produtos que crescem ali são milho, trigo e pistacho. As obras ainda estão em curso, mas em algumas partes já é possível vislumbrar imensas plantações em meio ao horizonte árido.

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Mas se de um lado, as barragens são a promessa de desenvolvimento para essa região, por outro, as consequências ambientais e arqueológicas das inundações são alvos constantes de críticas de organizações não governamentais e outras entidades. Um exemplo é a cidade helenística de Zeugma, em Gaziantep, que foi destruída pelos persas e é considerada importante achado arqueológico, não apenas pela formação arquitetônica, mas porque foi a que melhor preservou os mosaicos que datam dos séculos 2 e 3 d.C. O trabalho de resgate das peças, muitas delas de 60 metros quadrados, teve de ser feito às pressas em 2000, antes que as águas da barragem de Birecik as encobrissem para sempre. Um museu exclusivo para esses mosaicos foi inaugurado na cidade de Gaziantep e é lugar de visitação obrigatório para qualquer pessoa que visite a região. Impressiona a riqueza de detalhes e a beleza de cada peça que conseguiu ser recuperada. No curso do rio Tigre, próximo à província de Batman, a construção da barragem de Ilisu também ameaça outro patrimônio arquitetônico no distrito histórico de Hasankeyf, uma localidade que, por ano, atrai cerca de 500 mil pessoas para visitação. Ali é possível visitar uma antiga mesquita do tempo dos Seljúcidas, assim como uma ponte de pedras em ruínas sobre o Tigre, construídos anos antes de chegada dos otomanos. O governo tenta acalmar os ânimos dos moradores e visitantes assegurando que apenas uma parte será inundada e os principais monumentos serão removidos para um lugar seguro, em construção. Com inauguração prevista para o próximo ano, sorte a nossa que pudemos contemplar esse lindo pequeno pedaço do mundo, por onde passa um dos rios que, segundo a Bíblia, rodeia o jardim do Édem, localizado atualmente no Iraque.

Lugar onde existiu a cidade de Zeugma

Ruínas de Zeugma

Alguns fatos sobre a Turquia • É o único país muçulmano secular entre todos os outros; • Foi o primeiro país Islâmico a reconhecer o Estado de Israel; • Estão em solo turco as sete igrejas mencionadas no Livro das Revelações: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodiceia (Apocalipse, 9); • Papai Noel, que na realidade foi o bispo São Nicolau, nasceu e morreu na cidade de Demre, na costa turca do Mediterrâneo; • A histórica cidade de Troia fica no oeste da Turquia; • A primeira igreja cristã foi construída em Antioquia, no sul do país (Igreja de São Pedro); • Duas das sete maravilhas do mundo antigo estão na Turquia: o templo de Artêmis, em Éfeso, e o Mausoléu de Halicarnasso, em Bodrum.

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vc / música

Para lembrar que

PARI é uma festa

Durante a Fête de la Musique, toda a França para numa celebração à música. O sentido é comemorar a chegada do verão no hemisfério norte

Foto: vvoe

Lucynier Omena | Socióloga

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V

inte e um de junho de 2006, primeiro dia do verão. Saí às ruas e senti um ambiente excitante, alegre e uma sonoridade diferente dominando a cidade. Em determinado momento vi, tomada pela surpresa, que se aproximava O Flautista de Hamelin. Ele tocava a sua flauta e atrás vinha um grupo de crianças, todas vestidas a caráter, igualzinhas às das gravuras dos contos europeus da Idade Média. Encantada, segui aquele grupo e me vi em frente a uma Escola de Música do 11ème Arrondissement: o flautista era o professor e as crianças os seus alunos.

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em dinheiro a quem exterminasse a praga. O flautista aceitou o desafio: atraiu os ratos com sua flauta e desapareceu com eles. Diante da simplicidade com a qual o problema foi resolvido, o rei recusou-se a pagar a recompensa. O flautista, por vingança, encantou as crianças e as levou embora. A cidade se livrou dos ratos, porém seus moradores mergulharam na dor em razão da perda dos seus filhos. A Fête de la Musique, em 21 de junho, é assim: toda a França para, numa celebração à música que, até então, só ouvira falar. Na rua, fechada para circulação de veículos, tudo estava preparado para o início do es-

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Foto: Divulgação

figura do flautista foi providenO evento atravessou cial,Apois assim como no conto, eu também sentira um desejo enorfronteiras, em segui-lo. Para quem não conquistou vários me lembra mais do conto dos Irmãos países francófonos Grimm, a cidade de Hamelin, localizada na Alemanha, foi invadida e até alguns da por ratos, por volta de 1282. O rei prometeu uma grande recompensa América Latina”

A Fête de la musique entrou para o calendário oficial no governo de François Miterrand, em 1983

petáculo, o público aguardava a atração em semicírculo. À plateia foram entregues folhas soltas com um repertório de músicas infantis. Assim, por meio de O flautista de Hamelin e embalada por antigas canções de ninar, mergulhei na experiência de tentar conhecer a França, numa viagem através da sua música. O sentido da Fête de la Musique é comemorar a chegada do verão no hemisfério norte. Embora tenha como referência as antigas festas pagãs, a data entrou para o calendário de festividades oficiais em 1983, no governo de François Miterrand, por iniciativa do então ministro da Cultura Jack Lang. A medida atendeu, em parte, à proposta de Joel Cohen, funcionário da rádio France-France Musique, feita em 1976, de os franceses celebrarem os solstícios de verão e de inverno, 21 de junho e 21 de dezembro respectivamente, com muita música nas casas e ruas de todo o país. Vingou a recepção à chegada do verão. O evento atravessou fronteiras, conquistou vários países valercultural


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Foto: Lucynier Omena

francófonos e até alguns da América Latina, por exemplo, a Bolívia, que fez a sua primeira festa nacional de música em 2012. Nos anos seguintes procurei o meu próprio flautista. Passeei muito pela cidade revigorando a memória com vários gêneros musicais. Encantei-me com um saxofonista solitário tocando jazz na Place do Petit Palais, e quis chorar de emoção ouvindo um coral de músicas sacras na Igreja de Saint Louis en l´Ile. Conseguia viver a magia do dia, mas algo estava faltando. Era até então mera expectadora. Encontrei Joël Dalle em 2008, por acaso. Vi na programação que haveria, no Quartier Latin, a apresentação de um intérprete de antigos sucessos da música francesa. O cenário estava parecido com aquele do primeiro momento da minha descoberta, só que, no lugar de folhas soltas, a plateia recebia cadernos – petit format é o nome dessa brochura – com mais de cem sucessos dos anos que vão de 1930 a 1970. A partir dali, a música francesa passou a fazer parte da minha vida, como a própria música brasileira.

Na França há um cuidado especial com o registro físico das letras de músicas, mas é impressionante como os ouvintes guardam na memória um repertório antológico que vem de gerações muitos remotas. Não por acaso, de um total de 2.650 textos repertoriados, somente 262 possuem partituras. O modo de “guardar música” chegou até aos nossos dias quase sem mudanças. Uma folha de papel, tipo A4, dobrada ao meio. Na primeira página, o título da canção com uma ilustração que poderia ter assinaturas de

Joël Dalle, grande intérprete da música francesa em apresentação no Quartier Latin

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Fotos: Divulgação

Henry de Toulouse-Lautrec

tado por Joël Dalle, comecei pelas letras das canções apresentadas pelo intérprete. Até os anos de 1930 e 1940, a canção francesa era caracterizada pela qualidade de suas letras, e por musicalizar poesias, sobretudo as de autores do fim do século 19, e início do 20. Les feuilles mortes, poema de Jacques Prévert e tornado célebre na voz de Yves Montand foi considerada uma das mais belas canções francesas e logo ganhou notoriedade mundial.

Yves Montand

A partir dos anos 1950, os autores manifestaram o desejo de ser os próprios intérpretes de suas canções. Eram os anos pós-guerra, e surgia um novo “estilo” na arte da música, os ACI – auters-compositeurs-interprétes. A chanson française buscava uma nova identidade. No espaço compreendido entre o boulevard Saint-Michel e o boulevard Raspail, entre o boulevard Saint-Germain de Prés e o rio Sena, jovens que atenderam ao chamado do general de Gaulle para

Fotos: Heitor Costa

artistas como Toulouse-Lautrec. No meio, a letra da canção com a partitura e, na parte de trás, as obras já divulgadas pelo autor. O hábito perdura até hoje e é possível encontrar nas livrarias e bancas de revistas – encontrei um na Gare de Lyon – livros e brochuras contendo canções de todos os tempos. Como assumi a máxima de que na França tudo vira objeto de estudo, encontrei uma grande literatura sobre o tema e várias definições. Interessada pelo período apresen-

Jacques Prévert

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Resistência, que viram o horror da guerra, agora gozavam de uma liberdade até então desconhecida. Os cafés, as caves e os cabarés da rive gauche, fervilhavam. Não só jovens artistas, mas transitavam entre eles intelectuais e escritores que viriam a inovar no pensamento e na literatura como Jean-Paul Sartre, Albert Camus e Merleau-Ponty. Um outro modelo de fazer ciência estava sendo gestado. Foi a partir daí que a canção francesa também se popularizou no Brasil.

Foto: vvoe / Shutterstock

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Foto: Arquivo Life

Fotos: Divulgação

Edith Piaf

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Marleau-Ponty

Jean-Paul Sartre

Albert Camus

Jacques Brel

Jacques Brel e Edith Piaf apresentaram uma canção mais engajada, utilizando a ironia e o sarcasmo para criticar a sociedade

Na França do pós-guerra, talentos como Jacques Brel e Edith Piaf apresentaram uma canção mais engajada, utilizando muito a ironia e o sarcasmo para criticar a sociedade. Ao mesmo tempo passou a utilizar uma nova linguagem, mais coloquial e descontraída, tornando mais acessível sua compreensão. Jacques Brel não fez tanto sucesso assim no Brasil, como intérprete. Sua canção mais conhecida é Ne me quitte pas, muito ouvida na voz de Piaf e regravada por várias brasileiras, entre elas Maísa e Alcione. Foi há alguns anos tema da minissérie Presença de Anita, levada ao ar pela Rede Globo. Edith Piaf logo se tornou um ícone no Brasil, suas músicas foram gravadas e até traduzidas por grandes intérpretes do período. Músicas como L´hymne a l´amour, Je ne regrette rien e La vie en rose, fizeram enorme sucesso e são hoje conhecidas até dos mais jovens. Jacques Brel foi um crítico do seu tempo, mesclou suas composições entre as dores do amor, a raiva, a sensualidade, a esperança, e a fragilidade do homem diante da sociedade e seus novos valores. Sua obra é vastíssima, embora o tempo no palco tenha sido relativamente curto. Além de ter suas músicas constantemente regravadas por artistas francófonos, Frank Sinatra, Jose Carreras e o grupo Nirvana, entre outros, cantaram Brel. George Brassens e Jean Ferrat deixaram uma obra extensa, que transitava entre o lúdico, o amor dos apaixonados e realidade política e a social da época. Brassens considerava que a música deve ser memorizada; uma boa canção para ele era aquela que valercultural


das Américas, então, é quase natural que tenhamos incorporado suas músicas ao nosso gosto e as nossas lembranças. É no número 12 da rue de Seine que, desde 1999, Joël Dalle faz a viagem ao passado com franceses e estrangeiros, um público já fiel, com quem interage e divide a cena. Empresário por toda a vida, ao se aposentar decidiu dedicar-se à música. No resto do ano, ele apresenta-se em casas de repouso e em bailes para terceira idade, levando alegria no seu melhor estilo de homem show. Não por acaso, o endereço está localizado bem no perímetro em que transitavam seus grandes ídolos do passado, próximo ao boulevard Saint Germain de Prés. Quando o ouvi cantar, tive a certeza de que havia encontrado meu flautista. A música que de longe ouvi naquele junho de 2008, Emmenez-moi, sucesso de Charles Aznavour, literalmente me levou a um outro mundo. Charles Aznavour é um dos

grandes representantes da Chanson française ainda em cena, com sucessos enormes no Brasil, no auge de seus 89 anos. La bohème, Que c´est triste Venise, She são músicas que marcaram gerações de ouvintes. Seu estilo de música aparentemente comercial foge ao padrão Variétés Françaises pelo comprometimento do artista com a qualidade das letras que compõe e interpreta. No mesmo estilo e também conhecidos nossos localizam-se Henri Salvador e George Moustaki, este último falecido recentemente. Para mim ainda é mágico pensar no mergulho que faço no mundo da Fête de la musique. Como meu aniversário e o natal, o 21 de junho é também um momento de passagem, um dia de recomeço, de reafirmação do laço com o país que aprendi a amar e admirar. Sempre que for possível, estarei lá à procura do flautista mágico que encanta crianças de todas as idades.

Fotos: Reprodução

podia ser cantada de improviso, a que vem aos lábios naturalmente sem que façamos grandes esforços. Em Bravo Margot e Chanson pour l´Alvernat, Brassens nos leva a lembrar sempre do prazer que é estar cantando. Aimer a perdre la raison e Nous dormirons ensemble foram poemas de Louis Aragon celebradas por Ferrat, que era também comunista militante. Em Ma France, ele faz uma declaração de amor ao seu país. Grande sucesso de público no Brasil fizeram cantores como Gilbert Bécaud, Adamo, Christophe, Johnny Halliday. Eles representam outro estilo da canção, que é classificado como Variétés Françaises. São músicas leves e comerciais que, também, a partir dos anos de 1950, aterrissaram no Brasil com toda força. Títulos, entre eles, Aline, F comme femme e Nathalie, tornaram-se clássicos em nosso repertório de músicas. Paris foi sempre um modelo para nós, aqui

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Foto: Divulgação

vc / cinema

O nome da rosa – Umberto Eco – O nome da rosa – Jean-Jacques Annaud – o mesmo tema, porém duas linguagens que se eternizam: na literatura e no cinema

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O NOME DA ROSA Filme que mexe com os nervos da Igreja Católica em todos os tempos

Neiza Teixeira | Filósofa

A

afirmação latina Stat rosa prístina nomine, nomina nuda tenemus, cuja tradução (A rosa antiga permanece no nome, nada temos além do nome), nomina o livro de Umberto Eco, tido como um dos grandes escritores de ficção, um dos mais respeitados teóricos da semiótica, especialista na filosofia medieval e também um brilhante estuvalercultural

dioso da estética. O livro foi lançado em 1980 e, imediatamente, tornou o seu autor conhecido em todo o mundo. Como se diz sempre: Eco inaugurou o “suspense erudito” resultado da sua formação, dos seus interesses pessoais como leitor, estudioso da estética, da semiótica, interesse pelo ocultismo, pelas pesquisas e pelo apurado levantamento que faz antes de escrever uma obra. 91


Fotos: Divulgação

Jean-Jacks Annaud, cineasta francês, estudou literatura na Sorbonne e cinema no IDHEC – Institut des Hautes Études Cinématographiques

Aqui se faz a leitura do filme O nome da rosa. Devo admitir não ser fácil me afastar do livro de Umberto Eco, porém isso não implica em má qualidade ou em crítica negativa ao filme, pois Annaud consegue caminhar com Eco, criando uma linguagem cinematográfica digna de aplausos. Eco é um grande estudioso do período medieval; por sua parte, Annaud conhece o grego e o latim e tem experiência em fazer filmes difíceis, por exemplo, A guer-

ra do fogo. O livro, e consequentemente o filme, é uma obra ficcional, na qual o autor presta homenagem a autores que admira, como Jorge Luis Borges, significativamente representado pelo bibliotecário Jorge, cego, e que detém o poder do conhecimento não só da abadia como também da cristandade, tendo em vista estarmos falando da maior biblioteca da época; ainda para Borges, a sua Biblioteca de Babel, com seus labirintos, seus espelhos e a infinidade de livros, que é recriada; para Conan Doyle, a homenagem chega por meio do nome de William-Baskerville, recordando o livro O cão dos Baskervilles. O filme tem o formato do gênero policial, no qual o argumento é sustentado a partir dos acontecimentos que se verificam na abadia – a morte dos monges, conforme, para os crédulos e tementes das forças obscuras, as trombetas do Apocalipse e a ação do demônio. E a homenagem aos filósofos nominalistas, principalmente William de Ockham, além de outros que são citados.

O filme é cultuado no meio universitário e sugerido como filme pedagógico, dado a riqueza de conhecimentos sobre a Idade Média e também sobre Filosofia

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O nome da rosa data de 1986. É um filme cultuado no meio universitário e sugerido como um filme pedagógico, dado a riqueza de conhecimentos sobre a Idade Média e também sobre Filosofia. O filme é uma obra cinematográfica de envergadura, pois quando se trata de criar sobre o já criado, é exigida maior capacidade de interpretação e de inventividade. Mas ainda que estejamos com o livro de Eco na cabeça, temos de ver o filme com a lupa exigida pelo cinema. E, neste caso, é impossível não esquecermos Eco e sermos abraçados por Annaud. Trata-se de um filme de memória, de distanciamento, de um velho que pede ajuda ao Deus todo-poderoso para que não permita que o seu relato contrarie os fatos que ele e seu mestre viveram, no ano de 1327, Idade Média, num mosteiro, que prefere não revelar, conseguindo, deste modo, um não lugar para a narrativa. O mosteiro da ordem dos beneditinos estava sob a tutela do demônio, como queriam crer os monges lá residentes. É intevalercultural

ressante refletir sobre o medo, um sentimento que não se descola dos sentimentos do homem medieval. O medo age como um arrimo da fé (inclusive o riso é proibido, porque ele pode diminuí-la), basta que vejamos a arte sacra produzida neste período: o período gótico das catedrais, das representações do diabo, do inferno e também do sofrimento e obediência dos santos; da imensidão das igrejas, das abadias e do isolamento a que os monges eram confinados. É importante frisar que num lugar onde mais o homem perseguia o encontro com o divino, mas ele se tornava humano, ou seja, quanto mais se projetava para o alto, mas a terra determinava a sua força e mostrava-lhe onde era o seu lugar, por exemplo, as querelas entre as ordens religiosas, as trocas fortuitas entre a carne para comer e a carne para proporcionar prazer, as decisões insanas da Santa Inquisição e de um dos pontos-chave do filme: o riso. Alguns detalhes do filme são marcantes e fundamentais. O fil-

me foi feito no início do inverno, o que mostra um ambiente nebuloso, sombrio, propício para a série de crimes que acontecem no mosteiro beneditino do norte da Itália, inclusive contando que as pegadas na neve servem como indícios para a argumentação de William de Baskerville sobre as mortes que vinham acontecendo, o personagem representativo de William de Ockham, eminente filósofo medieval, frade franciscano, lógico e teólogo, escolástico inglês, um dos expoentes da Escola Nominalista – que exclui os universais, privilegiando os sentidos ou a empiria. Para essa Escola, “todo conhecimento tem base na lógica, 93


Fotos: Divulgação

de acordo com os dados proporcionados pelos sentidos”. William de Baskerville é representante de Luís da Baviera. Ele já havia atuado como inquisidor, e por suas discordâncias com as teorias defendidas pela Igreja, tornou-se um alvo a abater, é a figura principal do filme. Ele é o franciscano-detetive, encenado por Sean Connery, que traz na sua bagagem a melhor interpretação de James Bond, desta vez, com a forte presença do detetive de Conan Doyle, Sherlock Holmes, acompanhado do noviço Adso de Melk. O confronto tem como objetivo garantir ao papa João XXII o poder da Igreja e do Estado. A Santa 94

Inquisição vem representada por Bernardo Gui (personagem real), um dos mais temíveis inquisidores, e que tem uma querela pessoal com Baskerville, com o ator F. Murray Abraham. Mas além das questões teóricas abordadas, temos o que poderá ter sido a vida dos monastérios na Idade Média. No meu entendimento, ao assistir ao filme, é inaceitável que não sejamos transportados para a paisagem cinzenta, por sinal, muito bem conseguida pelo diretor de fotografia como também é impossível não se entusiasmar com os silogismos e com as deduções de Baskerville. O filme ainda nos mostra a intransigência da Igreja, que dura até os dias de hoje, por exemplo, na compreensão da homosse-

xualidade como obra do demônio. Note-se que Adelmo de Otrano, o primeiro monge a aparecer morto, era homossexual. Dele, afirma Ubertino de Casale: Havia alguma coisa de feminino; alguma coisa de diabólico no jovem que morreu. Ele tinha os olhos de uma moça, buscando uma relação com o demônio (Aos 13 min. de projeção). Esta fala é um retrato eloquente de como era vista a mulher pela Igreja Católica, de quem se diz que é perversa por natureza, e, também, do perigo que era pressentido nos homossexuais. A trama insiste em destacar a presença deles no filme, pois o segundo monge a aparecer morto era também homossexual, o tradutor grego Venâncio, encontrado na tina de sangue dos porcos. O valercultural


Havia alguma coisa de feminino; alguma coisa de diabólico no jovem que morreu. Ele tinha os olhos de uma moça, buscando uma relação com o demônio (Aos 13 min. de projeção) terceiro também era homossexual, o assitente-bibliotecário, encontrado morto numa banheira. Desses fatos, conclui-se que os crimes, até então, estão ligados a uma relação inaceitável pela Igreja. É importante saber que as mortes eram celebradas pelas trombetas do Apocalipse. Enquanto os monges se inquietavam com o demônio que os estavam matando, Baskerville, seguidor de Aristóteles, proclamava que não nos devemos deixar influenciar por atos irracionais do anti-Cristo, mas exercitar o cérebro e selecionar os enigmas. É o instrumento que ele utiliza para descobrir o assassino da abadia. Bom, mas, afinal, é somente dos crimes que trata o filme? Não, este é apenas um desvio, e que não deixa de se constituir como um ponto-chave, como outros, e que determinarão o nome do livro de Eco e do filme de Annaud. O mosteiro será o lugar do debate entre as ordens beneditina e franciscana para decidir sobre o poder econômico da Igreja e sobre o riso. São perguntas norteadoras: Cristo possuía ou não as roupas que usava? A Igreja deve ser pobre? O clero deve renunciar aos seus bens? Por que o homem não deve rir? Jesus Cristo ria ou não? Estas são questões que incomodam os católicos até hoje, inclusive que vêm sendo questionadas tanto quanto na Idade valercultural

Média, veja-se o exemplo dos carros de luxo dos padres, proibidos pelo papa Francisco, no Vaticano; as manifestações, algumas acintosas, dos homossexuais à tradicional postura da Igreja em relação a eles; e as duras críticas à Igreja pela sua riqueza e pelos escândalos financeiros e de corrupção que envolvem o Banco do Vaticano. E a trama segue seu curso, expondo e expandindo o título – O nome da rosa – como uma obra de Pollock, talvez seja mais seguro essa comparação, pois ela não tem núcleo, não tem uma mensagem, nenhuma tese é mais importante do que a outra. O livro e também o filme seguem o que já nos havia apresentado Eco, no seu livro Obra aberta. Todavia, tudo nos encaminha para a torre da abadia, lugar proibido, e onde se esconde o trunfo e a decadência da Igreja: os livros proibidos, e dentre eles, o principal: O segundo livro da Poética, de Aristóteles, um livro perdido, do qual se ouvia falar por toda a Cristandade, porém que ninguém, além do cego Jorge de Burgos e dos monges mortos, conhecia. A meu ver, este é o mote que determina o título do filme. É em consideração à significação da rosa, ou seja, às suas múltiplas significações, que o filme não significa, mas encaminha, a quem ele se dirige, o que ele pretende alcançar. No momento de crise da Igreja

Católica, dos questionamentos ao emudecimento de Deus e à busca cega de muitos pela divindade, de um mundo, conforme Nistzsche, que perdeu o seu fundamento, é hora de cada um questionar o que espera de Deus ou dos Deuses; da religiosidade como dimensão humana; da significação do papa; e de repensar as bases de sustentação daquela que se pretende condutora dos homens para o paraíso, para a recompensa à fatalidade da morte e ao prêmio por uma vida de servidão ao poder de Deus. E, enfim, num filme de homens, uma bela mulher que presta os favores do corpo pelos restos de comida de feios e truculentos monges; as indulgências, que não pagam lugar em lugar nenhum; a convivência da Igreja com a sua podridão, mostrando que tudo é humano, demasiadamente humano; o conflito fé e razão, que nos faz perguntar o que levou Baskerville, apesar de tudo, a ser o homem de tão poderosa fé. E, para concluir, a exemplo da Biblioteca de Alexandria e da tese do fim do mundo, a biblioteca da abadia é devorada pelo fogo. E o segundo livro da Poética, de Aristóteles, sobrevive, reforçando: A rosa antiga permanece no nome, nada temos além do nome: O nome da rosa.

Em 1986, JeanJacques Annaud troxe para o cinema o filme que tem como protagonista Sean Connery

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Marcus Stoyanovith e Wilson Nogueira | Jornalistas

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eonardo Boff é o tipo de intelectual que não cabe numa especialidade. Por isso, ao invés de apresentá-lo como teólogo ou filósofo, melhor mesmo é designá-lo como pensador que defende a vida na sua mais ampla significação. Editor e autor de inúmeras obras, Leonardo Boff doa seu patrimônio intelectual à defesa do planeta, cujo destino será a destruição total, caso a economia forjada no capitalismo, no lucro pelo lucro, não dê lugar a uma possível ecoeconomia: “uma economia da solidariedade, da cooperação entre os seres humanos e com a natureza, com um consumo sóbrio e responsável”. Em entrevista a Valer Cultural, Boff alerta que não há nenhuma garantia, principalmente, por parte do Brasil, de que a Amazônia não se transformará em deserto dentro das próximas décadas, em razão do racionalismo e do tecnicismo que orientam a sua política e a sua economia, que resultam, por exemplo, na construção de hidrelétricas que inundam muitos quilômetros de florestas. Confira a entrevista.

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Não esqueçamos que o atual deserto do Saara foi, há cerca de 15 mil anos, uma espécie de Amazônia”

Wilson – Qual a sua opinião sobre as obras de grande impacto na Amazônia: rodovias e hidrelétricas, por exemplo?

poderiam evitá-los e ajudar a ter um desenvolvimento adequado ao ecossistema amazônico, como queria Chico Mendes.

Leonardo Boff – Creio que o Governo está ainda fascinado por um modelo do século 21 do crescimento material a qualquer custo para chegarmos a ser uma potência mundial. Não inclui o momento ecológico. Apenas aquele que, juridicamente, é imposto, vale dizer, a verificação dos impactos sobre o ambiente e a sociedade. Mas não é uma perspectiva de trabalhar junto com a natureza. Antes, sacrifica a natureza, não considera o impacto mundial que as intervenções na Amazônia podem causar. Hoje há tecnologias alternativas que apontam para usinas hidrelétricas que não precisam de grandes lagos e inundações da floresta. Mas somos mentalmente atrasados e queremos logo resultados imediatos. Estes resultados, se houver mesmo uma catástrofe ecológico-social previsível, poderão se perder. Quem conhece e preserva a Amazônia são os povos da floresta, aqueles que há centenas de gerações lá vivem. Eles são os grandes mestres e os portadores dos conhecimentos verdadeiros. Eles deveriam ser consultados, entrar em todas as fases do projeto e ajudar a encontrar as soluções que por um lado respeitem a natureza e por outro atendam a necessidade de termos energia para o tipo de sociedade que temos. Mas o intelectualismo racionalista dos gestores públicos não dá valor ao saber originário destes povos. E todos nós perdemos. São arrogantes e cometem, por isso, erros fatais, quando

Marcus – Num dos seus artigos, o senhor afirma não ser possível praticar a sustentabilidade numa economia de mercado. Então a própria sustentabilidade pode indicar um caminho para outra economia? Leonardo Boff – O mercado se rege pela competição de todos com todos e não pela cooperação. Essa competição é sempre conflitiva, quer dizer, quebra o equilíbrio social e econômico. Cria uma dupla injustiça: a social aumentando o fosso entre ricos e pobres e a ecológica, devastando a natureza. A sustentabilidade se rege pela lógica da natureza: essa implica a interdependência de todos com todos; os seres vivem relações de cooperação para que todos possam sobreviver. Como se depreende, as duas lógicas se opõem. Para termos sustentabilidade precisamos de outro tipo de sociedade, com mercado seguramente, mas não somente de mercado, onde tudo vira mercadoria e tudo é colocado em concorrência. É urgente uma sociedade assentada sobre a cooperação e sobre a convivência pacífica com a natureza, respeitando-a como parte de nós mesmos. Marcus – Ainda se comemora quando índices com o desmatamento na Amazônia são menores que os anteriores. O problema é que ainda se desmata em grandes proporções. Esse tipo de comemoração da mídia nos mostra quanto estamos distantes do foco da prática da conservação ambiental?

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Leonardo Boff – Comemora-se a diminuição do desmatamento da Amazônia. Mas se esquece que os desmatadores se transferiram para o cerrado do Brasil Central, onde possuem o agronegócio da soja e a criação de gado. Aí campeia o desmatamento que poucos denunciam. A questão toda deve ser posta de outra forma: qual é o tipo de relação que devemos manter com a natureza? Considerando-a como propriedade nossa, podendo fazer dela o que queremos? Ou entendendo que nós somos parte da natureza, dependemos dela para viver e precisamos nos adequar a seus ritmos e ciclos? Se produzirmos dentro destes limites e deste respeito, haverá sustentabilidade e preservação do capital natural.

não acumularam ainda consciência suficiente sobre a importância que temos como país amazônico. Estão mais preocupadas em garantir dólares com o agronegócio e a exportação de carne do que com preservação de uma riqueza natural que, uma vez perdida, não será mais refeita. Não esqueçamos que o atual deserto do Saara foi, há cerca de quinze mil anos, uma espécie de Amazônia. A mudança dos climas e a irresponsável atuação de depredadores e de caçadores propiciaram o surgimento daquilo que é o deserto atual que cresce 1,5 quilômetro por ano.

Marcus – Como a Organização das Nações Unidas – ONU acompanha o que acontece na Amazônia? Quais são as prioridades dela, na prática com relação à região?

Wilson – O governo Obama acaba de anunciar, tardiamente, um programa para redução de gases poluentes. Essa medida pode influenciar a China a fazer o mesmo?

Leonardo Boff – A ONU e posso confirmá-lo, porque por um ano fui assessor da presidência da ONU em 2009, tem uma preocupação sobre a situação global do planeta. Os dados que ela levantou especialmente na Avaliação Ecossistêmica do Planeta em 2009 mostram que dos 24 itens importantes para a vida, 15 estão em estado crescente de degradação como água potável, alimentos, sementes, fertilidade dos solos, desertificação, fibras etc. E na ONU há a consciência de que a região amazônica, que engloba nove países, é fundamental para o equilíbrio climático do planeta, para a reserva de água potável e para a manutenção da biodiversidade. As autoridades governamentais brasileiras

Leonardo Boff – Obama tomou esta decisão não por amor à ecologia e à Terra, mas por razões econômicas. Estava percebendo que a poluição está atingindo os negócios. O mesmo faz a China. Sua preocupação não é ecológica. Assume da ecologia aquilo que favorece a produção econômica, sem a consciência de que é exatamente a forma como produzem e consomem a causa principal do caos ecológico global do planeta. De todas as formas, ajuda a minorar os efeitos maléficos do aquecimento global.

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Marcus – O que diz a ciência com relação aos efeitos que a Amazônia sofrerá se manter acelerado o consumo humano atual?

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Leonardo Boff – A ciência pode muito, mas não pode tudo. Só ajuda a ciência feita com consciência, a ciência orientada para a vida e não apenas para o mercado. Se houver um desastre ecológico na Amazônia com a mudança da umidade que vem do Atlântico e com a alternância de secas e enchentes, poderemos perder grande parte da Amazônia. O Brasil inteiro será afetado e também outros países, inclusive a fertilidade dos solos da Califórnia que receberão menos umidade que depende da Amazônia continental. Marcus – Alguns defendem que já passamos do ponto de retorno e que o que se pode fazer agora é desacelerar o consumo e a poluição para tentar amenizar os efeitos dos eventos extremos. Numa sociedade global tão individualizada e imediatista como é possível essa desaceleração? Como poderá haver uma mudança radical de comportamento? Leonardo Boff – Esta questão é central, pois da resposta que dermos a 100

ela garantiremos nosso futuro ou colocamos a biosfera, o futuro de nossa civilização e até da espécie humana sob grandes riscos. Sobre isso escrevi um livro inteiro: Proteger o planeta e cuidar da vida: como evitar o fim do mundo (Record, 2011). Não vamos ao encontro do aquecimento global. Estamos já dentro dele. Por aí se explicam os eventos extremos, os tufões, as secas, as enchentes e a crescente desertificação de vastas áreas afetando a produção de alimentos. Sempre dizíamos não poderemos ultrapassar uma linha vermelha que era não chegar a 400 ppm de dióxico de carbono na atmosfera. Ora, neste ano, este limite foi rompido em vários pontos do Norte do mundo. Isto significa que a Terra se aqueceu e não vai retornar ao que era antes. Muitas espécies não conseguem se adaptar e acabam morrendo. Cientistas norte-americanos, já há três anos, vêm alertando que há indícios claros, devido ao degelo que libera metano, que é 23 vezes mais agressivo que o dióxido de carbono, valercultural


que, dentro de alguns anos, lá pelos anos 2050-2060, a Terra poderá conhecer o aquecimento abrupto. Ela saltará a 4-6 graus Celsius. Com esta temperatura quase nenhuma forma de vida hoje existente vai sobreviver. A Terra ficará coberta de cadáveres. E a própria espécie humana será dizimada, restando vida apenas em oásis e portos de salvamento.

O que se nota é que os chefes de Estado, todos eles dominados pelo capitalismo especulativo, se sentem reféns dos mecanismos econômicos que já não funcionam e não tomam as devidas medidas necessárias para evitar o pior. Cada país pensa apenas no seu, especialmente, em salvar seu crescimento material e seus interesses econômicos. E assim poderemos ir ao encontro do pior. Meu sentimento do mundo me diz que vamos conhecer uma aterradora crise mundial de natureza socioecológica que abalará todo o sistema-Terra e o sistema-vida. Então acordaremos. E se ainda tivermos tempo faremos o necessário para sobrevivermos e salvarmos nossa espécie e a civilização humana. Wilson – As noções de sustentabilidade pedem um novo modelo econômico global. Por que não organizar um pensamento no sentido de uma nova economia?

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Leonardo Boff – Esse pensamento está sendo elaborado por muitos grupos de cientistas sociais, economistas, ecologistas e movimentos sociais mundiais, como a Via Campesina, Greenpeace e outros. No meu livro Sustentabilidade: O que é e o que não é (Vozes, 2012) enumero as várias alternativas presentes hoje. A tendência dominante destas alternativas é definir uma forma de habitar o planeta, diferente da atual, que vai na linha de um novo paradigma de produção e de consumo. Devemos produzir para atender as demandas humanas, mas produzir em conformidade com os limites da Terra e com a capacidade de suporte de cada ecossistema, em sintonia com a lógica da natureza que precisa de tempo para se refazer e repor o que tiramos dela. Seria uma biocivilização centrada na vida, na vida humana e 102

na Terra viva (Gaia). Vigoraria uma ecoeconomia, uma economia da solidariedade, da cooperação entre os seres humanos e com a natureza, com um consumo sóbrio e responsável. Isso está crescendo, mas não possui ainda a hegemonia para poder impor-se. Talvez depois da grande catástrofe, será ela a dar as cartas. O “bien vivir” dos povos andinos que pressupõe um equilíbrio de todos os fatores e uma economia do suficiente e decente, e não da acumulação, é uma alternativa interessante e fonte de inspiração, bem como o Índice de Felicidade Bruta do Butão. Wilson – Como deveria ser conduzida a política de fronteiras na Amazônia? Leonardo Boff – Não tenho conhecimentos técnicos sobre essa área.

Mas intuo que a visão militarista é curta demais, custosa e acaba sendo ineficaz. Quem deve cuidar das fronteiras não são apenas os militares. Mas todo o povo brasileiro. Especificamente quem deve cuidar de nossas fronteiras são as populações que vivem aí. Se o Governo quisesse segurança, bastava educar estas populações, dar-lhes os meios objetivos, técnicos e informações de como exercer a vigilância e resguardar o que é nosso, até contra os que traficam drogas, os que sequestram recursos farmacêuticos e corantes valiosos para a tecnologia atual e para a medicina. Isso seria eficaz, custaria pouco e elevaria o nível de vida daquelas populações. E até poderia promover certa colonização, vinda de outras partes do país, para se instalar lá, produzir e ao mesmo tempo vigiar as nossas fronteiras. valercultural



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