1 Um breve relatório sobre Thomas Cale, Lunático. Três conversas no Priorado da Ilha de Chipre. (N. B.: Esta avaliação aconteceu após o derrame da Madre Superiora Allbright. As anotações que ela arquivou se perderam junto com os detalhes da admissão de Cale. Este relatório precisa ser lido à luz dessa ausência, e portanto não assumo a responsabilidade por qualquer uma das minhas conclusões.) CARACTERÍSTICAS FÍSICAS Estatura mediana, anormalmente pálido. Dedo médio da mão esquerda faltando. Fratura em depressão do lado direito do crânio. Queloides severos em cicatriz de ferimento no ombro esquerdo. O paciente diz sentir dor intermitente em todos os ferimentos. SINTOMAS Forte ânsia de vômito, geralmente no meio da tarde. Exaustão. Sofre de insônia e, quando consegue dormir, tem pesadelos. Perda de peso. HISTÓRICO Thomas Cale não sofre de ilusões histéricas ou qualquer comportamento descontrolado além de seu azedume natural. As ânsias vespertinas o deixam mudo de exaustão, depois das quais ele dorme. À noitinha, já consegue falar, embora seja a mais sarcástica e ofensiva das criaturas. Alega ter sido comprado por seis centavos, de pais dos quais não se lembra, por um padre da Ordem do Redentor Enforcado. Thomas Cale é sarcástico, o que não é sua característica menos irritante, e sempre tenta deixar seu interlocutor sem saber se está sendo ridicularizado ou, num contraste desagradável, tornar abundantemente claro que está. Ele conta a história de sua criação no Santuário como se estivesse me desafiando a desacreditar das crueldades diárias que suportou. Recuperando-se de um fe15
rimento que causou a mossa em sua cabeça, ele alega — mais uma vez, não é possível dizer com que grau de seriedade — que sua destreza já considerável (em retrospecto, ele parece estar contando vantagem, mas não causa essa impressão no momento da conversa) aumentou significativamente em decorrência do ferimento e que, desde sua recuperação, ele sempre consegue antecipar os movimentos de qualquer oponente. Isso parece sem propósito; declinei sua oferta de uma demonstração. O resto de sua história é tão improvável quanto a mais absurda narrativa infantil de proezas e bravatas. Ele é o pior mentiroso que já conheci. Sua história, resumidamente: sua vida de privação e treinamento militar no Santuário teve um fim dramático quando, em uma noite, flagrou acidentalmente um Redentor de alto escalão realizando a vivissecção de duas jovens, algum tipo de experimento sagrado para descobrir um meio de neutralizar o poder das mulheres sobre a humanidade. Matando esse Redentor na luta que se seguiu, ele fugiu do Santuário com a jovem sobrevivente e dois de seus amigos, com mais Redentores vingativamente em seu encalço. Escapando de seus perseguidores, o quarteto foi parar em Memphis, onde, de maneira compreensível, Thomas Cale fez muitos inimigos e (um tanto menos plausivelmente) um número de aliados poderosos, incluindo o famigerado IdrisPukke e seu meio-irmão, o chanceler Vipond (essa era a sua patente na época). Apesar dessas vantagens, a natureza violenta de Cale se mostrou numa altercação brutal, mas estranhamente não fatal, com, diz ele, meia dúzia de jovens de Memphis, da qual (é claro) ele emerge triunfante, mas rumo à prisão. Apesar disso, o lorde Vipond mais uma vez interveio misteriosamente em seu benefício, e ele foi enviado para a zona rural com IdrisPukke. A paz da residência de caça dos Materazzi que os dois habitavam foi interrompida pouco depois de sua chegada por uma mulher que tentou assassiná-lo, por razões que ele não conseguiu esclarecer. Seu assassinato foi impedido, não por suas habilidades maravilhosas — ele nadava nu no momento do ataque —, mas por um estranho misterioso, invisível e insolente, que matou a suposta assassina de Cale com uma flechada nas costas. Seu salvador desapareceu em seguida, sem dar explicações ou deixar vestígios. A essa altura, os padres do Santuário haviam descoberto seu paradeiro aproximado e tentaram desentocá-lo, alega Cale, sequestrando Arbell Materazzi, filha do Doge de Memphis. Quando lhe perguntei por que os Redentores correriam o risco de uma guerra catastrófica com o maior de todos os poderes 16
temporais por causa dele, Cale riu na minha cara e me disse que me revelaria sua magnífica importância no momento certo. Os megalomaníacos, na minha experiência, levam sua importância muito a sério, mas uma característica de Thomas Cale é que seu estado de demência só se torna aparente algumas horas depois que a conversa com ele chega ao fim. Enquanto estamos em sua companhia, até as histórias mais improváveis que ele conta nos fazem suspender a descrença até várias horas mais tarde, quando uma sensação muito irritante se apossa de nós, como se tivéssemos sido convencidos por um charlatão de feira a esvaziar os bolsos em troca de uma garrafa de tônico universal. Já vi isso em lunáticos, embora raramente, pois alguns são tão poderosamente iludidos, e de forma tão estranha, que suas ilusões contagiam até os anomistas mais cautelosos. Naturalmente, Thomas Cale resgata a linda princesa dos perversos Redentores, mas, é preciso dizer, não por meio da luta justa e nobre em circunstâncias esmagadoramente adversas, e sim apunhalando a maioria de seus oponentes enquanto dormem. Essa é outra característica incomum de sua ilusão — cada um de seus infinitos triunfos, em geral, não é alcançado por heroísmo e nobre audácia, mas mediante esperteza brutal e um pragmatismo impenitente. Em geral, loucos assim se apresentam como galantes e cavalheirescos, mas Thomas Cale admite abertamente que envenena a água dos inimigos com animais podres e mata seus oponentes enquanto dormem. Vale registrar resumidamente um de nossos diálogos a esse respeito. EU É algo normal, para você, sempre matar prisioneiros desarmados? PACIENTE É mais fácil do que matá-los armados. EU Então você acha que vidas humanas são objeto de sarcasmo? PACIENTE (NENHUMA RESPOSTA) EU Você nunca pensou em ter misericórdia?
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PACIENTE Não, nunca. EU Por quê? PACIENTE Eles não teriam por mim. Além disso, se eu os libertasse, acabaria tendo que lutar com eles de novo. Aí eu poderia me tornar prisioneiro deles — e me matariam. EU E quanto às mulheres e crianças? PACIENTE Eu nunca as matei deliberadamente. EU Mas já matou? PACIENTE Sim. Já matei.
Cale alega ter construído um campo para concentrar as esposas e os filhos da insurreição da Tribo, e que como ele estava em outro lugar, quase todo o acampamento de 5 mil almas morreu de fome e de doenças. Quando lhe perguntei o que sentia por isso, respondeu: “O que eu deveria sentir?” Voltando à sua história. Depois do resgate brutal da bela Arbell Materazzi (existe alguma princesa sem graça no mundo dos mitômanos?), ele foi promovido, junto com seus dois amigos, para a guarda particular da jovem pela qual ele manteve, durante todas as nossas três longas conversas, um profundo ressentimento pela ingratidão e desdém da mesma por ele. Essa amargura parece influenciá-lo muito devido à sua convicção de que, quando Memphis foi subsequentemente tomada pelos Redentores, isso aconteceu porque os Materazzi deixaram de executar o plano de Cale para derrotá-los. (A propósito, ele insiste que sua habilidade como general é até maior do que seu talento para a selvageria pessoal.)
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Normalmente sarcástico e objetivo ao se vangloriar de sua grande ascensão ao poder — mais uma vez, seu tom jocoso faz com que ele não pareça estar se vangloriando, até que refletimos com tranquilidade sobre suas alegações —, ele revelou muita indignação ao narrar a forma como foi capturado pelos Redentores depois da Batalha de Silbury Hill (certamente um desastre para todos nós, Thomas Cale estando envolvido ou não). É possível que ele tenha mesmo tido algum pequeno envolvimento na batalha; sua descrição do que aconteceu ali tem a marca da experiência real. Como qualquer romancista habilidoso, ele consegue usar fatos reais para tornar os imaginados verdadeiramente plausíveis. Por exemplo, ele manifesta com frequência arrependimento por quaisquer ações nobres ou generosas que realizou. Diz que arriscou a vida para salvar um jovem Materazzi que o havia perseguido e atormentado — um ato de santidade do qual diz agora arrepender-se amargamente. Quando perguntei se era sempre ruim agir generosamente com os outros, ele disse que, em sua experiência, pode não ser ruim, mas é sempre uma “catástrofe dos infernos”. As pessoas têm o bem em tão alta conta, ele disse, que no final sempre decidem que devem fazê-lo pela espada. Os Redentores tinham o bem em tão alta conta que queriam matar todo mundo, inclusive a si próprios, e começar de novo. Por esse motivo, seu antigo mentor, o Redentor Bosco, quis Cale de volta a qualquer custo. Thomas Cale não é (claro) um menino comum, e sim a manifestação da ira de Deus, destinado a varrer Seu maior erro (você e eu, só para não restar dúvidas) da face da Terra. Já cuidei de comerciantes que pensavam ser grandes generais e homens que mal sabiam escrever que pensavam ser poetas de gênio sem paralelo, mas nunca encontrei uma megalomania dessa magnitude — muito menos numa criança. Quando lhe perguntei há quanto tempo ele tinha essa sensação de importância, ele começou a se contradizer e — de um jeito muito mal-humorado — disse que isso era o que Bosco achava, não o que ele, Thomas Cale, achava. De forma mais circunspecta, perguntei se ele achava que o Redentor Bosco era louco, e ele respondeu que nunca encontrou um Redentor que não fosse. Cale disse que em sua experiência muitas pessoas que pareciam ser certas da cabeça, quando você os via “no sofrimento”, eram “completamente fora” — uma expressão que eu jamais ouvira, embora seu significado fosse bastante claro. Portanto, ele é astuto em evitar as implicações de suas ilusões de grandeza: na opinião de homens grandes e poderosos, ele é forte o suficiente para destruir todo o mundo, mas essa ilusão não é dele, mas deles. Quando lhe perguntei se ele faria algo assim, sua resposta foi extremamente obscena, mas 19
revelando que ele não faria. Quando lhe perguntei se teria a capacidade de fazer algo assim, ele sorriu — não agradavelmente — e disse que já foi responsável pela morte de 10 mil homens num só dia, portanto era uma questão de quantos milhares e quantos dias. Depois de sua recaptura pelo Redentor Bosco, seu papel de Anjo da Morte do mundo lhe foi explicado em detalhes, e ele foi posto para trabalhar por seu antigo mentor. Esse “Bosco” (o novo papa se chama Bosco, mas Thomas Cale claramente gosta de mentiras grandiosas) é muito odiado por Cale, embora, já que o comprou por seis centavos, o treinou e depois elevou à potência quase de um Deus, Bosco seja, paradoxalmente, a fonte de toda a sua excelência. Quando ressaltei isso, ele alegou já saber, embora eu pudesse perceber que ganhei pontos com sua vaidade (que é imensa). Então Cale detalhou uma série interminável de batalhas, que me pareciam todas iguais, e nas quais ele foi, naturalmente, sempre vitorioso. Quando perguntei se, durante todos esses sucessos, ele não sofrera nenhum percalço, Cale me olhou como se quisesse cortar minha garganta, e então riu — mas de forma muito estranha, mais como um único latido, como se não conseguisse reprimir algum sentimento muito diferente do bom humor ou até da troça. Esses numerosos triunfos o levaram, por sua vez, a ser menos vigiado por Bosco do que antes. E depois de mais uma grande batalha, na qual derrotou o maior de todos os oponentes, ele saiu de fininho no caos resultante e foi parar na Leeds Espanhola, onde sofreu o primeiro dos ataques cerebrais que o trouxeram para cá. Testemunhei um desses ataques, e eles são alarmantes de se ver e claramente angustiantes de se suportar — seu corpo todo é tomado por convulsões, como se ele estivesse tentando vomitar, mas não conseguisse. Ele insiste que foi enviado para cá por amigos que têm algum poder e influência na Leeds Espanhola. Inútil dizer que desses benfeitores importantes não há nem sinal. Quando perguntei por que eles não vieram visitá-lo, ele explicou — como se eu fosse idiota — que acabara de chegar em Chipre, e que a distância era grande demais para permitir que viajassem para vê-lo regularmente. Essa grande distância foi uma escolha deliberada para mantê-lo a salvo. “Do quê?”, perguntei. “De todos aqueles que me querem morto”, ele respondeu. Ele me contou que chegou com um médico particular e uma carta para a Madre Superiora Allbright. Pressionado, contou que o médico voltou 20
para Leeds Espanhola no dia seguinte, mas passou várias horas com a Madre Superiora antes de partir. Claramente, Thomas Cale deve ter vindo de algum lugar, e pode de fato ter havido algum atendente que chegou com ele trazendo uma carta e falou com a Madre Superiora antes de seu derrame. A perda, como aconteceu, tanto da carta quanto da Madre Superiora deixa esse caso, de certa forma, no limbo onde se diz que as crianças pagãs ficam por toda a eternidade. Dada a natureza violenta de suas fantasias (embora não, justiça seja feita, do seu comportamento), o mais sensato parece ser colocá-lo na ala restrita até que a carta seja encontrada ou a Madre Superiora se recupere o suficiente para nos falar mais dele. No momento, não tenho nem para quem escrever e perguntar a seu respeito. Esta é uma situação insatisfatória, e não é a primeira vez, nem de longe, que arquivos desaparecem. Discutirei um tratamento para aliviar seus sintomas quando o herborista vier, depois de amanhã. Quanto a essas ilusões de grandeza — na minha opinião, seu tratamento vai requerer muitos anos. Anna Kahane, Anomista Durante semanas Cale ficou na cama, tentando vomitar e dormindo, tentando vomitar e dormindo. Ele notou, depois de alguns dias, que a porta no fim da enfermaria de 20 camas estava trancada o tempo todo, mas isso era algo a que ele já estava acostumado e, naquelas circunstâncias, pouco importava: ele não estava em condições de ir a lugar nenhum. A comida era adequada, os cuidados, bastante gentis. Ele não gostava de ter que dormir novamente no mesmo quarto com outros homens, mas eram só 19, e todos pareciam viver em seus próprios pesadelos e não se importarem com ele. Cale conseguia ficar quieto e suportar.
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