Consumidos - David Cronenberg

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Naomi estava na tela. Ou, mais exatamente, estava no apartamento dentro da janela do QuickTime na tela, o apartamento pequeno, descuidado, acadêmico de Célestine e Aristide Arosteguy. Ela estava lá, diante deles, que sentavam lado a lado num velho sofá — cor de vinho? o forro de veludo cotelê? —, conversando com um entrevistador fora da câmera. E, com os fones de plástico branco nos ouvidos, estava acusticamente na casa dos Arosteguy, também. Ela sentia a profundidade da sala e a tridimensionalidade das cabeças do casal, cabeças sagazes com rostos sensuais, um casal que combinava, como irmão e irmã. Podia sentir o cheiro dos livros que abarrotavam as prateleiras às suas costas, o vigoroso calor intelectual que emanava dos dois. Tudo dentro do enquadramento tinha foco — o vídeo fazia isso, aqueles pequenos sensores CCD ou CMOS; a natureza do meio, pensou Naomi —, e assim a percepção de profundidade da sala, dos livros, dos rostos era realçada. Célestine falava, um Gauloise aceso na mão. Suas unhas estavam pintadas de vermelho-arroxeado — ou o esmalte seria preto? (a tela tinha uma tendência ao magenta) —, e seu cabelo estava preso no alto, num coque habilmente bagunçado, com cachos encaracolados soltos descendo em torno da garganta. “Bom, é, quando você não deseja mais nada, você está morto. Até mesmo desejo por um produto, um bem de consumo, é melhor do que não desejar nada. O desejo por uma câmera, por exemplo, mesmo se for vagabunda, sem qualidade, é suficiente para manter a morte a distância.” Um sorriso maldoso, os lábios dando uma tragada no cigarro. “Se o desejo é real, claro.” A fumaça exalada num gesto felino, e uma leve risada.


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