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A todos vocês que fazem da razão uma religião, que dividem os sentimentos em pequenas porções de sobrevivência e pensam que estão seguindo o caminho que escolheram, a todos vocês que dizem que conhecer o futuro influencia as escolhas do presente, que esquecer o passado liberta, quero contar como continua a minha história. Quero mostrar que o destino, desprezando qualquer ilusão, arrasta nossas vidas na direção que ele mesmo estabeleceu. E o máximo que nós, almas rebeldes, ansiosas para escapar de sua teia, podemos fazer é tentar mudar seu curso. O dia em que todos finalmente entenderão que a estrada já está traçada e não há nada a fazer além de segui-la está chegando, irremediavelmente. Mas, para mim, esse momento ainda não chegou. Sou uma alma rebelde. Talvez seja por isso que estou deitada, com sensações confusas, num duro piso de madeira com um corpo imóvel caído a meu lado. Um carrossel de imagens e pensamentos gira em minha cabeça. Abro os olhos com dificuldade. A luz queima como se fosse de fogo. E cria uma névoa confusa de formas coloridas que, pouco a pouco, vão ficando mais nítidas. Começo a me lembrar. Estou na papelaria do centro da cidade. Vim até aqui para falar com o homem-anjo. Encontrei a porta aberta e entrei. Ele estava em pé, perto do balcão, e me olhava com intensidade, como se esperasse por mim. Todas as prateleiras ao redor estavam vazias e a atmosfera era estranha, meio decadente. Perguntei se estavam fechando. Ele respondeu que precisava mudar para outro bairro. Por quê? 9
*** Ergo o busto, sem conseguir me levantar. Olho ao redor. E logo encontro o homem-anjo. Ele não está muito longe de mim, imóvel, deitado no chão de madeira dura, como eu. Parece morto. Faço um esforço e consigo chegar mais perto. Toco seu rosto, a pele não passa de uma película fina que transmite apenas uma sensação gelada. Não há nenhum sinal de respiração na boca entreaberta ou de movimento no peito murcho como uma bola furada. Está morto, não há dúvida. Quando examino o outro lado do rosto, os olhos são mais impressionantes do que o resto, escancarados e quase transparentes, as íris sem qualquer cor, como se a vida daquele homem tivesse sido sugada através delas. E até imagino quem pode ter feito isso. As imagens se recompõem como as minúsculas peças de um quebra-cabeça. Foi o Master. Apareceu na loja quando eu estava falando com o homem-anjo, perguntando justamente por que ele tinha me vendido a caneta e o caderno roxo que deram início a meus piores pesadelos. Mas o homem-anjo não teve tempo de responder. O Master entrou e pulou em cima de nós. Não me lembro de mais nada. Estremeço. E penso que preciso ir embora daqui o mais rápido possível. Antes que alguém me encontre. Não há mais ninguém na loja. Apenas um desespero profundo. Se o alvo do Master era eu, por que ainda estou viva e ele não? Os cabelos brancos do velho dono da papelaria, a pele pálida, quase sem rugas, os olhos escancarados, os membros rígidos fazem com que pareça uma estátua de cera. Sinto muito por ele, por sua morte inexplicável e pelas respostas que não pôde me dar. Dou uma olhadinha rápida na direção da porta fechada. Abaixo da cortina que cobre três quartos da porta de vidro, vejo as pernas das pessoas desfilarem na calçada, numa direção e na outra. Estão andando, apenas andando. Não sabem o que acontece do lado de cá da porta. Mas se entrassem... se me encontrassem aqui dentro... Não tenho escolha: preciso fugir. 10
Estico a mão num gesto instintivo e abaixo as pálpebras do cadáver, como vi fazerem no cinema. Sempre pensei que fosse uma coisa estúpida. No entanto, depois que fecho aqueles olhos, percebo que só assim o corpo parece ficar realmente em paz. Quanta força tem um olhar, mesmo vazio? Caminho para a porta com as pernas bambas. Agarro a maçaneta, tão gelada quanto o homem-anjo, giro e puxo a porta para mim. O ar do lado de fora me envolve, estimulante e cheio de vida. Fico quase sem fôlego, até parece que fiquei presa na papelaria por uma eternidade. O barulho e a confusão da rua me invadem, me deixam tonta. Minha cabeça dá voltas, ouço um zumbido nos ouvidos. Reconheço a faixa de pedestres, corro até o botão do sinal, aperto e espero que fique verde. Passo para a outra calçada, procurando um telefone. Preciso avisar a polícia. Ando um pouco e encontro uma cabine. Digito o número da emergência e falo, tentando disfarçar a agitação. Com uma voz incerta, dou o endereço da papelaria. Não digo mais nada com medo de me revelar. Desligo e percorro a área com os olhos. Há várias lojas, um bar, gente, um jornaleiro, mais gente e um pequeno beco, tão escondido que parece um erro, como se o desenhista da cidade tivesse deixado o lápis cair, traçando uma linha que não tinha sido planejada. Entro no beco. Enquanto espero a polícia chegar, encostada na parede, minha respiração volta quase ao normal. A ruazinha é ocupada por uma grande caçamba de lixo cercada de sacos de plástico meio abertos e malcheirosos. As paredes dos edifícios que ficam de um lado e de outro sobem retas, como as margens de um profundo canal. Só dá para ver umas poucas e minúsculas janelas, nuas e escuras. Lá no alto, o céu parece um retângulo de vidro opaco fechando tudo. Não muito tempo depois, ouço o grito torturante das sirenes se destacando entre os mil barulhos da cidade até cobrir todo o resto. Estico a cabeça, me afastando um pouco da parede que me serve de apoio e abrigo. Na frente da papelaria, vejo uma ambulância e dois carros da polícia. De um deles, descem dois policiais e um homem com uma jaqueta de couro. O tenente Sarl. O pequeno grupo entra na papelaria, seguido pelos homens com a maca. Mais dois policiais isolam toda a área com uma fita amarela. 11
Depois, começam a interrogar os comerciantes da vizinhança. O pensamento de que algum deles possa ter me visto corta a minha respiração. Pensando bem, aquele policial pode estar anotando em seu bloco a descrição detalhada da minha pessoa. Talvez em breve o mesmo policial avise Sarl, que mandará seus homens atrás de mim. E então... Trato de me encolher ainda mais contra a parede. Mas nada do que temia acontece. Sarl reaparece na porta da papelaria, sério e espantado. Massageia a nuca com a palma da mão, enquanto a maca desfila às suas costas com o homem-anjo sendo carregado para a outra vida dentro de um reles saco negro. Não há mais nada para ser visto. Está na hora de eu ir embora também. O ônibus que vai me levar para casa para na minha frente, soltando sua fumaça escura e tóxica. Subo num pulo e me enfio num banco desocupado entre dois velhos, como uma peça de Tetris. Realmente, estou me sentindo como um personagem de video game. Do lado de fora da janela, tudo se move, enquanto o ônibus abre caminho na rua que palpita com o tráfego das cinco horas. Impiedosamente, a luz se despede do dia e nos deixa nas garras da escuridão que encobre tudo. Diante dos meus olhos, as cenas do acontecido na papelaria se sucedem: o homem-anjo, a chegada do Master, o chão de madeira dura. Por quê? Não tenho a menor ideia, claro. A última pergunta que me permito fazer antes de desligar o cérebro é: onde está você, Morgan?
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