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MIANMAR: UMA VIAGEM NO TEMPO

Fechada por 50 anos ao turismo, a antiga Birmânia revela segredos, como os milenares Templos Dourados, o balé dos pescadores do lago Inle, monges ativistas e cidades em ruínas esquecidas pela história

Por Eduardo Petta Fotos Carol Da Riva

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A cada passo que dava por Yangon, antiga capital dos tempos em que Mianmar era colônia britânica (entre 1855 e 1948) e a maior cidade do país, penso em me beliscar para ter certeza de que meu relógio não voltou no tempo. Encontro crianças e mulheres lindas com as bochechas besuntadas de thanaka (o tradicional make-up, um pó amarelo feito da casca da cortiça), os homens vestindo saia longa até os tornozelos, chamada de longyis, os velhos mascando chiclete feito de nozes de areca, cujo sumo deixa os dentes vermelhos como sangue.

Não fossem os traços asiáticos teria a impressão de estar no centro de Havana, com os mesmos prédios e carros decadentes.

Paramos para desfrutar um típico chá preto adocicado com leite condensado. As pequenas mesinhas do restaurante parecem feitas para criança. O guardanapo, como nos outros restaurantes locais, é um rolo de papel higiênico. O garçom, assim como a maior parte dos 5 milhões de habitantes de Yangon, praticamente não fala inglês, mas é um mestre em comunicar-se com sorrisos e gestos.

O dia anoitece e, passo após passo, as velhas construções do centro antigo conduzem até o luminoso templo de Shwedagon, uma enorme cúpula dourada. É o lugar sagrado onde estão oito fios de cabelo de Sidarta Gautama, o Buda em pessoa. Uma reluzente estrutura oitavada com quase 100 metros de altura, ladeada por 64 estupas (tipo de construção cônica), em que milhares de estátuas de Buda são reverenciadas todos os dias.

Hoje é dia de iniciação dos noviços, a chamada samanera. Enfeitadas como pequenos Sidarta Gautama, crianças entre 5 e 15 anos desfilam em fantasias coloridas acompanhadas da família, pedindo a bênção de Buda, lavando alguma de suas várias imagens com água pura.

No dia seguinte, todas essas crianças fantasiadas desfilando pela cidade em elefantes, carroças de boi, charretes entrarão para o monastério. “Elas vão raspar o cabelo e vestir o robe escarlate (ou rosa, para as meninas) por um ano”, diz a guia Song Swe. Tradição que se repetirá uma segunda vez na vida, aos 20 anos de idade, dessa vez para viver como um monge ordenado. “Uma questão de honra para suas famílias”, diz Song Swe, mas quase nem posso ouvir sua voz entre os mantras e sinos que dominam o ambiente, enevoado por incensos perfumados.

Libertação e Vida Nova

Do tamanho da Alemanha, tocado ao norte pelas montanhas do Himalaia, ao leste pelas florestas da China e à oeste e ao

sul pelo Golfo de Bengala, Mianmar sempre povoou o nosso imaginário. Mas o que encontrávamos nos guias de viagem era sempre: “Visitar ou não Mianmar?”. O motivo: o regime militar vigente desde a década de 1950, quando o líder Aung San foi assassinado, pavimentando o caminho para o governo atual. Um governo acusado de corrupção, tráfico de heroína e violações dos direitos humanos e que, entre outros atos de barbárie, matou milhares de pessoas em 1988, recusou-se a reconhecer o resultado das eleições de 1990 e, em 2007, sufocou a chamada Revolução Açafrão, liderada pelos monges budistas de Mandalay.

Mas as coisas começaram a mudar para essa nação com 55 milhões de habitantes e uma imensa riqueza em petróleo e gás natural em abril de 2011. De olho no comércio com as ricas vizinhas China, Índia e Tailândia, o país começou uma série de reformas democráticas e abriu combate ao narcotráfico. E, o melhor de tudo, soltou a líder ativista Aung San Suu Kyi, prêmio Nobel da Paz de 1991, depois de 15 anos de prisão domiciliar, permitindo a ela concorrer e ganhar um cargo no Congresso. E o que sentimos ao chegar foi uma atmosfera de paz e harmonia, muito segura para turistas.

Depois de duas noites em Yangon, capital, tomamos o bimotor da Air Mandalay, com capacidade para 30 passageiros, até Heho. Em menos de uma hora já estávamos fora do aeroporto, a bordo de um táxi por US$ 30 (os preços são tabelados), adentrando Shan State. O motorista, que deve ter nascido com o dedo grudado na buzina, ziguezagueava pela estrada esburacada desviando de animais, pedestres e outros veículos. Uma hora depois chegamos a Nyaung Shwe, simpático vilarejo e porta de entrada para o lago Inle.

O balé do lago Inle

Paramos o carro na frente do centenário mosteiro Shwe Yan Pyay e entramos pela sua galeria de budas incrustados em paredes terracota. O silêncio tomava a atmosfera. Quando saímos, alguns pequenos noviços lavavam suas túnicas escarlate, outros se sentavam às janelas ovais vendo a vida passar na rua empoeirada, e outros, ainda, jogavam peteleco, uma espécie de sinuca de dedo. Numa velha e pequena televisão, monges adolescentes assistiam a um filme de Bruce Lee ao melhor estilo Sessão da Tarde. Muito simpáticos, nos convidaram para almoçar e meditar com eles.

Contratamos um barqueiro nativo e adentramos a imensidão do lago Inle, navegando em sua placidez de 116 quilômetros quadrados de água cristalina a 880 metros de altitude, cercado de belas montanhas.

Como o lago é coberto de plantas flutuantes com longas raízes, os pescadores Intha desenvolveram uma maneira única no mundo de remar. Com uma perna eles se equilibram numa das bordas da canoa. Com a outra, impulsionam o remo de madeira, fazendo a embarcação deslizar. Os pescadores vivem e trabalham sobre essas águas. Em cima delas plantam verduras, legumes, grãos; erguem suas casas em palafitas; transitam por vilas e mercados flutuantes. Todo o lago é repleto de canais, nos quais ficam esses vilarejos.

Dá para viajar bastante pelo Inle. Ao seu redor existem mais de cem monastérios e dezenas de pequenas vilas flutuantes onde ocorre o mercado diário, com os nativos das etnias das montanhas que o circundam, como Akha, Pa’O e Karen. Vestidos em seus trajes tradicionais, eles dão um colorido especial ao movimento cotidiano do Inle.

Numa manhã de sol pudemos acompanhar as peças de prata sendo esculpidas a mão pelos artesãos da vila de Na Khin Htay Shwe. A menina Mya Hin Tha nos mostrou como há séculos sua família especializou-se em trabalhar brincos e pulseiras em forma de peixes cheios de escamas e com

movimento. “Leve uma para dar sorte”, ela me disse. Na vila vizinha, Pew Khan, a atração são as senhoras tecelãs. Com suas rudimentares máquinas de tear movidas no pedal, elas tecem mantas e xales com o fio delicado e sensível da flor de lótus que cresce no Inle. As peças ficam lindas, mas supercaras, pela dificuldade em trabalhar a linha. Um xale chega a custar US$ 300.

Fomos surpreendidos no monastério Nga Hpe Kyaung com um show de gatos saltitantes. Mas nada superou o cair do sol no lago, com os pescadores jogando suas tarrafas, equilibrados no balé de uma perna só.

Mergulho no tempo

Foi difícil despedir-se da paz do Inle. Mas tínhamos outro avião nos esperando. Meia horinha de voo e aterrissamos em Mandalay (segunda maior cidade do país), a base para conhecer as chamadas “cidades desertas”: Ava, Amarapura e Mingun, antigas capitais do reino que hoje servem ao turismo e à arqueologia.

Quente, feia, seca e poluída. Suja e de trânsito caótico, sem calçadas nem iluminação nas ruas, Mandalay, com 1 milhão de habitantes, nos desanimou ao primeiro olhar. Impressão que começou a melhorar quando o dia amanheceu e pude ver que sua gente apressada esbanjava gentileza. Fica aqui, no pagode Arakan (também chamado de Mahamuni Paya), a imagem de Buda mais venerada do país, o Buda Mahamuni. Ela teria sido feita na presença do próprio Buda, a pedido do rei de Arakan, em 554. Ao vê-la Buda teria suspirado, e a imagem adquirido sua expressão.

Depois de barganhar, reservamos um táxi com arcondicionado por um dia (custam em média US$ 10 a mais, ou seja, US$ 60) e partimos em nossa expedição pelas cidades desertas. No avião havíamos ficado amigos da guia Zun Thart, que nos deu dicas preciosas. Como a de deixar a cidade às 6 da manhã para curtir Ava, antiga capital do império birmanês do século 14 ao 18, protegidos do sol.

Meia hora de táxi, a travessia do rio Myitnge em uma balsa, e lá estávamos alugando uma charrete para conhecer as ruínas. Foi mais um mergulho no tempo. Sem o som dos automóveis, curtindo a trilha sonora dos cascos do animal a ganhar terreno, fomos desfrutando dos templos pelo caminho, até estacionar a charrete no secular mosteiro Bagaya, todo esculpido em madeira.

Ao nosso lado parou uma charrete de monjas. De cabeças raspadas e vestidas de túnica rosa, elas entraram carregando flores de lótus e embelezando cada uma das imagens de Buda. Não havia outros turistas. Ficamos sentados sentindo

a energia do local, quando a criançada nativa nos cercou para conversar. Quando deu meio-dia, o monge-chefe chamou as crianças para almoçar e nos convidou para a refeição. Praticando ótimo inglês, ele nos falou da alegria de seu povo em receber visitantes. “Eu sei que muitos guias de viagem dizem para vocês não virem para cá. Mas eu penso como o Dalai Lama, quando perguntado se deviam visitar o Tibete: ‘Venham e contem a todos sobre o nosso povo’.”

Tiramos uma siesta e deixamos o sol baixar para conhecer a famosa Amarapura, apelidada de “Cidade da imortalidade”. Ali fica a lendária e fotogênica ponte U-Bein, de 1200 metros, erguida para os pedestres há mais de 200 anos com 984 postes de madeira. Andar pela U-Bein é um exercício antropológico, tamanha a variedade de rostos birmaneses que a utilizam como uma via normal para caminhar. E o sol descendo no rio desenha duas pontes no reflexo do horizonte.

A maior emoção estava reservada para o nosso último dia em Mandalay. Foi quando fomos até a beira do rio Irrawaddy, que atravessa o país de norte a sul, para ter a chance de singrar suas águas. Em um porto movimentado que me lembrou Santarém (PA), com suas gaiolas chegando e saindo abarrotadas de mercadorias, fomos até o cais e tomamos um barco só para a gente por US$ 30. Só a navegação no rio Irrawaddy já valeria o passeio, observando sua gente ribeirinha lavando roupa, a dar banho nas crianças, na lida da pesca. Mas, nem bem o barco aportou, pudemos ver a grandeza do que deve ter sido o Mingun Pahtodawgyi, um imenso pagode que teve sua construção interrompida por um terremoto em 1800, quando se preparava para superar o Shwedagon, em Yangon, como o maior do reino.

Apanhamos um carro de boi-táxi e percorremos as ruazinhas de terra até o pagode Hsinbyume, todo pintado de branco e de formas onduladas representando os sete oceanos para chegar ao paraíso. Fiz amizade com um antigo líder revolucionário de Mingun, Uí Man. Ele me contou que mobilizou o vilarejo na campanha pela eleição de Suu Kyi. Mostrou sua casa, com diversas fotos dela, e me colocou na camiseta um broche com a imagem da ativista e a inscrição “Nossa Líder”. Ao fim do dia, Uí me chamou para bater uma pelota de palha com seus amigos. Aos 70 anos, exibiu maestria no toque da bola, dando de chaleira e calcanhar sem deixar a bola cair no chão na roda.

Mar de templos

budistas às margens do rio Irrawaddy tiveram seu auge no ano 1057, quando o rei Anawrahta trouxe para a região artistas, artesãos, monges e mais de trinta elefantes carregados com as escrituras budistas. Nos dois séculos seguintes, outro rei mandou erguer os magníficos templos, que só foram interrompidos quando o temível Kublai Khan os saqueou, em 1287. O terremoto de 1975 causou outros estragos, mas desde então uma força conjunta de arqueólogos trabalha para restituir a grandeza do local.

Nesses três dias de Bagan tínhamos uma rotina. Acordávamos às 5 horas, ainda no breu, para ver o dia raiar perto de algum templo. Quando o sol esquentava, por volta das nove, retornávamos ao hotel, e só saíamos de lá para ver o fim do dia, o anoitecer e o céu estrelado.

Dos cerca de 3 mil templos, muitos são simples. Mas às vezes é dentro de um desses que está uma imagem sensacional ou um afresco de Buda. E assim passamos os dias como caçadores e fotógrafos de Buda. Ali eu fui testemunha de um bonito gesto de fé e delicadeza. Uma velha monja cega passava as mãos tateando a estátua do Buda deitado, enquanto sua guia, outra monja, mais jovem, a ajudava e descrevia detalhes. Pude vê-la por minutos assim, percorrendo com os dedos desde a cabeça até os pés da imagem de mais de 10 metros de comprimento, sentindo cada centímetro. Para eles, a imagem de Buda é muito mais do que uma simples imagem. Ela representa a presença do sagrado e a lembrança de que, mesmo em tempos de turbulência, é preciso manter a paz de espírito e a alegria de viver. Uma bonita metáfora de Mianmar.

Quem Leva: http://pt.mundus.com.br/

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