Um amor de verão na cidade de São Salvador

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ESCOLA MUNICIPAL HENRIQUE DA SILVA BARRADAS


Comissão Organizadora: Célia Oliveira de Jesus Sacramento Vice Prefeitura José Antonio Nascimento Fundação Gregório de Matos (FGM) Lourdes de Fátima Santos Pinto Plano Municipal do Livro, da Leitura e da Biblioteca de Salvador (PMLLB) Roseli dos Santos Andrade Araújo Secretaria Municipal de Educação (SMED) Solange Sousa do Espírito Santo Biblioteca Comunitária

Comissão Julgadora: Antonio Alberto da Silva Monteiro de Freitas Universidade Católica do Salvador (UCSAL) Antonio Luiz M. Andrade Fundação Gregório de Matos (FGM) Daniel Dourado Nolasco Universidade Federal da Bahia (UFBA) Elton Linton Oliveira Magalhães Universidade Católica do Salvador (UCSAL) Jones Oliveira Mota Universidade Federal da Bahia (UFBA) Liliane Vasconcelos de Jesus Universidade Católica do Salvador (UCSAL) Lourdes de Fátima Santos Pinto Plano Municipal do Livro, da Leitura e da Biblioteca de Salvador (PMLLB) Maria Clara de Luz Vasconcelos Secretaria Municipal de Educação (SMED) Maria de Jesus Ribeiro B. Oliveira Universidade Católica do Salvador (UCSAL) Norma Lúcia Reis Souza Universidade Católica do Salvador (UCSAL) Tereza Cunha Sales de Almeida Fernandes Secretaria Municipal de Educação (SMED)


1º Jonatham de Jesus Campos

Um Amor de verão na terra de São Salvador

Esse texto é vencedor do Concurso Municipal de “ Literatura Prêmio Jorge Amado - 2014, promovido pela Prefeitura do Salvador.

Professora orientadora

FABIANA PRUDENTE CORREIA

ESCOLA MUNICIPAL ADROALDO RIBEIRO COSTA GRE: CABULA



Capítulo 1

Um amor de verão na terra de São Salvador Acordei, impulsivamente jogo meu lençol para os lados. Levanto-me, dirigindo minha visão diretamente para o espelho que, sem dúvidas, não poderia estar mais certo: eu precisava de uma boa ducha! Calço meus chinelos, agarro minha toalha, e caminho até a porta do quarto. Como por coincidência, ao abri-la, ouço os incessantes gritos de minha mãe, dizendo-me que estou atrasada. Após sair do banheiro, pego minhas malas, que já foram arrumadas na véspera, e desço as escadas de dois em dois degraus. Chego à cozinha, agarro uma pera e sigo até a garagem, onde minha mãe estava a me esperar: ─ Bom dia, Sarah, está entusiasmada? ─ Ela diz, notando a Pera mal acabada em minhas mãos. ─ Claro! Como se eu fosse perder a oportunidade de ir para Paris! ─ Bem, quanto a isso... ─ Dizia ela, pesarosa, enquanto eu entrava no carro e fechava a porta. ─ Isso? Tem algo errado acontecendo?! ─ Filha, espero que entenda. Lembra que a última parada do seu pai foi em Salvador, para visitar sua avó, que está doente? Bem... Ele espera que estejamos ao seu lado amanhã. - MÃE! O QUÊ?! Após este horrível comentário, minha mãe acabou por me obrigar a ir até o aeroporto e tentarmos, com muito custo, uma compra emergencial de passagens. Minha mente demorou de processar a informação. Aos, poucos, visualizava todos os meus planos para as férias dos sonhos na Europa embarcando sozinhos, sem mim, no avião. Uma singela lágrima cruzou todo meu rosto. Meu pai era de Salvador. E, pelos comentários e por tudo o que eu via na TV, aquela cidade não era a minha preferida para desfrutar das férias. Passamos por todo o processo burocrático dos aeroportos e finalmente conseguimos passagens ainda pelo turno da manhã, num voo sem escalas que só demoraria duas horas. Quando, enfim, estou sentada na poltrona do avião (que por vontade minha, é ao lado da janela), dou uma última olhada no Rio de Janeiro, a cidade em que eu passei seis anos da minha vida. Os primeiros dez foram em Salvador. Curiosamente, não me lembro de como foi meu tempo por lá. A janela 1


do avião era meu último consolo agora. Minhas férias estavam, definitivamente, arruinadas. E sem chance de reconstrução. Acordo repentinamente, pensando já estar no meu destino. Mas era uma aeromoça que passava ao lado de nossas poltronas, com uma bandeja carregada de doces. Peguei rapidamente uma guloseima qualquer e, sem diferenciar seu nome, abri-a e joguei o conteúdo garganta abaixo. Voltei a dormir. Algum tempo depois, minha mãe me acordou com algumas tapinhas no braço. Olhei pela janela e tínhamos acabado de pousar. Descemos do avião juntamente aos outros passageiros, e lá o encontrei. Quarenta e cinco anos, cabelos grisalhos, camisa larga tentando disfarçar a barriga. Meu pai. ─ Amor, Sarah! Dois meses sem vê-las. Como andam as coisas no Rio? ─ Ele diz, beijando minha face e abraçando minha mãe. ─ PAI! Simplesmente pergunto. Por qual motivo eu estou aqui, enquanto poderia estar a caminho de Monte Carlo?! ─ Filha, provavelmente sua mãe já deve ter-lhe avisado que minha mãe não está muito bem de saúde, e, bem... Ela já está bem velha, filha, espero que entenda minha preocupação, afinal, seu pai também não é um dos mais novos. ─ Ele diz, ao nos levar a um táxi. Após este breve diálogo, percorremos de São Cristóvão até o bairro da Ondina, no Sul da cidade. Meu pai não parava de falar do quanto eu iria gostar das minhas férias, pois Salvador era uma cidade feita para o turismo. Dizendo isso, ele apontava insistentemente para o bambuzal que fechava a pista de acesso ao aeroporto, formando belos arcos naturais com uma iluminação especial, por onde passávamos deslumbrados pela placa de Bem-vindo a Salvador. Eu, achando até bonita a paisagem, não parava de pensar que essas promessas não seriam cumpridas e minhas férias estavam já fadadas ao fracasso absoluto. Meu pai animava-se. Como um guia turístico, fazia questão de apontar para todos os monumentos e ruas por que passávamos, dizendo onde elas levariam e contando histórias curiosas, como a do monumento Luis Eduardo Magalhães, no meio da Avenida Luiz Viana, onde dizem estar enterrado o coração do deputado. Minha vontade era colocar o fone no ouvido e fechar os olhos, mas, sob o olhar reprobatório de minha mãe, fechei a bolsa e desisti de ouvir música. Não sei ao certo quanto tempo se passou naquele city-tour improvisado, chegamos à entrada do bairro, onde ficam as famosas Gordinhas, e seguimos para a Rua do Escravo Miguel, até o último edifício, atrás de vários hotéis. Subimos as escadas, até o 3° andar, onde minha avó residia. Meu pai abre a porta, e lá está ela, aparentando 80 anos, sentada no sofá, assistindo a algum noticiário. Algo, porém, me chamou a atenção: sentado ao seu lado, estava um garoto, de

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provavelmente 18-20 anos, corpo atlético, cabelos negros soltos na testa, olhos castanhos. ─ Aqui estão elas, mãe, Jorge. ─ Ele diz, fazendo uma pequena reverência em direção a eles. ─ Olá, vó. ─ Digo, com um pouco de vergonha em minha voz. ─ Como vai? ─ Sarah... Como você cresceu. E está tão bonita. ─ Ela exclamou com voz fraca. Seu comentário fez Jorge olhar para mim, confirmando a opinião de minha avó sobre minha beleza. ─ Bem, estou tentando continuar a vida de forma normal, mas a idade não permite. Este aqui é o vizinho do apartamento ao lado, Jorge. Jorge, esta é minha neta, Sarah. ─ Olá, prazer. ─ Ele diz pegando minha mão, e a beijando. ─ Oh, olá Jorge. ─ Digo, profundamente corada. Afinal, beijar mãos deve ser um cumprimento tão antigo quanto a minha própria avó. ─ Penso que já conheça Salvador, a primeira capital do Brasil. ─ Bem, vivi aqui por algum tempo, porém não me lembro muito bem, gostaria de me reapresentar a cidade? ─ Digo, olhando para baixo. Segundos depois me dei conta do quanto eu poderia ter parecido oferecida com esse comentário. ─ Ah, seria um prazer. Após isso, minha avó nos levou para comer alguma coisa, ela é uma perita quando o assunto é satisfazer a fome alheia. Como é de praxe a todo anfitrião baiano que recebe um convidado de outro estado, hoje teríamos vatapá e caruru livremente. Tenho que admitir que não posso rejeitar estes pratos e, mesmo morando no Rio, sempre pedia para minha mãe prepará-los, embora o dendê carioca não seja saboroso como o das terras de Salvador. Depois de nos empanturrarmos de comida até não aguentarmos mais nada, fui para o sofá, ouvir meus pais e minha avó conversarem sobre seu dia a dia, o que simplesmente era entediante para mim. Olhando para o lado, percebia Jorge, em pé, ao lado dos três tagarelas: ─ Vocês não fazem ideia, do quanto ele tem me ajudado todos os dias. Simplesmente um garoto gentil, sempre vem aqui por volta das 12h, checar se está tudo bem comigo. ─ Diz minha avó, lançando um carinhoso sorriso de gratidão na direção de Jorge. ─ Deve ter tido uma ótima educação, certo Jorge? ─ Pergunta minha mãe, erguendo as sobrancelhas. ─ Bem... é... Siiim.. senhora. ─ Responde, totalmente corado. ─ Aquela sugestão de me apresentar novamente à cidade, ainda está de pé? – Pergunto, olhando para ele em tom descontraído. ─ Sim, quando você puder. Caso eu não esteja aqui no dia, sabe onde me encontrar. ─ Ele responde, abrindo um singelo sorriso, mostrando-me dentes saudavelmente lindos. ─ Oh, claro!

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Após nosso breve diálogo, ele desconversou e, com algumas saudações à minha família, abriu a porta da sala, e se foi, descendo as escadas provavelmente em direção ao seu edifício. O resto do dia foi simplesmente um tédio. Permaneci quase o tempo todo esparramada no sofá, enquanto conversava com minhas amigas pela Internet. O diálogo entre minha avó e meus pais notavelmente não acabava, e avançavam para uma descrição minuciosa de cada dor e cada consulta médica dela, com grande detalhamento na explicação dos diferentes diagnósticos sobre o seu quadro clínico, cuja doença ainda não havia sido identificada. Isso se passou por longas e longas horas, até a noite, quando minha mãe e meu pai se acomodaram no quarto da minha avó, enquanto eu tive que repousar no antigo sofá da família, na sala de TV, onde eu já me encontrava. Ele tinha um cheiro, ou melhor, um perfume difícil de esquecer rapidamente... Não o sofá, digo... Jorge, aquele jovem garoto tão gentil a ponto de diariamente vir para ajudar minha avó, e ainda me prometeu um passeio para me apresentar novamente à “grande Salvador”, com a referência de primeira capital do Brasil a que só os baianos parecem achar grande coisa. Suspiro profundamente em meus pensamentos. Espero que EU esteja errada em achar que essa cidade não é digna de estadia. Bem, só há um jeito de descobrir, certo?

Capítulo 2 Após uma aconchegante noite de sono, tomamos um delicioso café da manhã, com direito a aipim, cuscuz de milho, e até ovo frito com carne do sol, reforçando minha opinião de que, pelo menos em termos gastronômicos, minhas férias estavam salvas. A culinária de Salvador é mesmo divina! Passei a manhã inteira desfazendo as minhas malas, pondo tudo em algumas prateleiras que minha avó me emprestou, no armário dela. Quando terminei, como por instinto, lanço um olhar varrendo o quarto, para ver se havia esquecido algo. Reparei, pela primeira vez, numa janela, e, através dela, uma imensa e bela praia, com rochedos pequenos, onde as ondas batiam com brutalidade, espirrando água em uma altura significativa. Não havia uma nuvem sequer para atrapalhar o brilho absoluto daquele sol intenso do verão. Dois homens velhos, de aspecto pobre, com chapelões de palha e bermudas jeans desbotadas, manobravam redes de pesca entre uma onda e outra, do alto de alguns rochedos. O cenário era digno de pintura. ─ Como não a notei antes? ─ Sussurro a mim mesma, enquanto tirava meu primeiro selfie com um cenário tipicamente soteropolitano.

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─ Pai!!! Mãe!!! ─ Grito, com um tom entusiasmado em minha voz. ─ POR FAVOR! VENHAM AQUI!!. ─ Filha, o que aconteceu?! ─ Eles completam, totalmente pasmos com meu escândalo. ─ Qual o nome dessa praia? ─ Pergunto, apontando pela janela, enquanto digitava no celular uma legenda para a foto que iria postar, esbanjando um #semfiltro. ─ Ah, bem. É a Praia de Ondina, eu lhe mostrei quando você ainda era bebê. ─ Responde meu pai, com um sorriso sarcástico no rosto. ─ Bem, seria pedir muito irmos até ela algum dia?! Como combinado, meu pai me prometeu de me levar até ela no fim de semana (ainda era terça-feira). Para retribuir, prometi me esforçar para me aproximar mais da minha avó, que era como uma estranha para mim. A manhã fria e de tédio daquele apartamento climatizado contrastava com o calor que a imagem da praia prometia. Nem as minhas amigas online bastaram para me distrair, pois deviam estar curtindo suas férias longe dos smartphones. Pontualmente ao meio-dia, Jorge apareceu. Totalmente arrumado, da cabeça aos pés, estava usando roupas que o caracterizavam como um jovem rebelde, uma leve blusa listrada, com uma estampa do que me parecia, um barco em direção ao horizonte, e uma calça jeans apertada, que o deixava sensualmente belo. Após cumprimentar minha família, veio até mim e perguntou: ─ Então, vamos? ─ O quê?! Retribui, pasma. Ele com certeza estava pensando na apresentação da cidade. Bem, eu não achei que ele viria logo hoje, mas assim que ele propôs, disparei em direção ao quarto com “armário”, e tranquei a porta. Rapidamente peguei o primeiro vestido que encontrei pela frente, meu cabelo não estava devidamente arrumado para um passeio, simplesmente o ajeitei num coque que combinasse com o sol brilhante da minha janela, e saí pela casa. ─ É, bem, vamos então. ─ Disse eu, interrompendo sua conversa com minha avó. ─ Ok. Até mais, se cuide Dona. ─ Ele se despediu, me acompanhando até a porta, e acenando para minha avó. ─ Então aonde vamos? ─ Pergunto, entusiasmada ─ Bem... Você já conhece o Pelourinho? É um dos nossos maiores atrativos turísticos. ─ Acho que só ouvi falar pela TV. Não lembro. Então ele me acompanhou até um táxi que, por ventura, ele mesmo pagou, e me levou até o centro histórico. Quando eu estava no meio do caminho, comecei a me dar conta de que eu estava andando por uma cidade que mal conheço, com um estranho de quem só sei o primeiro nome. Bem, penso eu, se minha mãe, meu pai,

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e minha avó permitiram, esse Jorge deve ser de confiança. Então resolvi relaxar e esvair a tensão, para aproveitar o passeio. Após algum tempo, chegamos ao que parece ser uma praça. Ao sairmos do táxi, ele inclinou sua mão em minha direção, ao que eu retribuo, segurando-a. ─ Bem, esta é a Praça da Sé... ao certo, deve ser uma das praças mais frequentadas por turistas, por causa da vista para o mar, do Elevador Lacerda e de todos os monumentos históricos que vemos por aqui. ─ Ele diz, apontando para um casal de forma curiosa, ambos notavelmente não eram daqui, tinham uma pele muito clara, com as bochechas vermelhas, usavam roupas diferenciadas dos demais, com alguns adereços chamativos, que atraíam olhares dos que passavam. A atenção deles dedicava-se ao ato de fotografar o monumento da Cruz Caída de todos os ângulos possíveis, enquanto um guia explicava que aquele símbolo representava uma homenagem à antiga Sé da Bahia, que foi demolida para dar lugar aos trilhos dos bondes. Hoje, sem Sé e sem bondes, resta-nos o monumento de Mário Cravo com sua história para contar. Após algum tempo de caminhada, avistando diversos monumentos, museus e igrejas que, de fato, me entusiasmaram, ele me levou até o chafariz do Terreiro de Jesus. ─ Espere aqui, vou trazer algo para comermos. ─ Disse, virando e indo em direção a um carrinho de cachorro-quente. Após alguns minutos, ele volta até mim e me oferece um dos cachorros-quentes para aliviar minha fome descomunal. Acho que essa era a primeira refeição não-regional que eu fazia desde que desci do avião e experimentei o acarajé do aeroporto. ─ Então o que está achando de Salvador? ─ Pergunta, olhando nos meus olhos, que vagavam em direção às diferentes expressões culturais da baianidade que se encontravam naquela praça: rodas de capoeira, baianas de acarajé, trançadores de cabelos e de palha. Todo o lado pitoresco e singular da Bahia encantava os turistas. ─ Para ser sincera, me impressionei com quase tudo que Salvador tem a oferecer, já mudei de ideia quanto ao lugar, porém quanto às pessoas... ─ O que há de errado com as pessoas?! ─ Ele pergunta intrigado. ─ Oh, não há nada de errado com as pessoas, simplesmente, não conheço ninguém daqui, além da minha avó. Não posso criar uma opinião com apenas ela, entende? ─ Ah claro. Bem, o museu que eu queria lhe levar está fechado, como pode ver. ─ Ele aponta para um edifício laranja, muito bem feito, chamado Museu da Cidade. Daria a impressão de ser uma casa de alguma família rica, se não fossem os visitantes que avistei de fora.

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─ Então o que faremos? ─ Pergunto, levantando a sobrancelha. ─ Bem... Ah, já sei! – Ele agarra minha mão, chama novamente outro táxi. Abre a porta para mim, e entramos. Ele cochicha algo para o motorista, e lá vamos correr por Salvador novamente. ─ Acho que você não deve mesmo se lembrar de quem sou... Achei que, vindo comigo, teria vagas lembranças. ─ Ele diz, olhando tristemente nos meus olhos. ─ Eu... Já te conhecia? Me perdoe, sinceramente não... ─ Uma memória chega repentinamente à minha mente. Eu e outro garoto, nos encarando em um pequeno parque, numa pracinha. Subitamente, lembranças de brincadeiras e peraltices acompanham minha mente, junto à imagem embaçada de um companheiro. Olho então para Jorge, e é como se imagem da infância se tornasse nítida. ─ Jorge??? Você foi o meu vizinho do jardim de infância, até eu sair de Salvador. Automaticamente me impressiono por ter me recordado algo que me ocorreu há anos, ultimamente minha memória anda tão fraca... ─ Parece que o vento lhe trouxe de volta para sua terra natal. ─ Ele diz, abrindo um enorme sorriso em seu belo rosto. ─ Acho melhor nós nos reapresentarmos também. Então foi assim, durante todo o percurso, nós conversamos e trocamos perguntas ávidas, ansiosos por colher o máximo de informações sobre o outro. Caso a memória não chegasse a mim, eu não saberia que ele gostava de rock e adorava o som de Pitty, uma cantora local que hoje faz sucesso no Brasil todo, ou que a cor predileta dele era laranja, ou, simplesmente, que quando ele era menor, tinha uma queda por mim (essa última eu deixei passar, como se não tivesse ouvido). Então descemos uma ladeira que ostentava uma das paisagens mais belas que eu já havia visto, a Baía de Todos os Santos, com seus barcos estacionados e o sol sem nuvens que brilhava na linha do horizonte e cravejava o mar com cristais dourados. Chegamos a uma construção moderna, retangular e laranja, onde o táxi estacionou. Jorge abriu novamente a porta para que eu saísse, então pagamos o taxista e nos dirigimos à entrada do local. ─ Sejam bem-vindos ao Restaurante Amado, reserva para o casal? ─ Nos pergunta um senhor de paletó, que nos encontra olhando pela entrada. ─ Ahn... Bem, não somos um casal. Mas tudo bem. Poderia ser uma no Deck? Com visão para o mar, claro! ─ Ele responde entusiasmado. O recepcionista nos levou a uma mesa, perto de um lindo arco de pedra, com uma visão para o mar que me fez contestar a ideia de que a ladeira da Avenida Contorno oferecia a melhor vista da Baía de Todos os Santos. De onde eu estava, dava para cheirar o mar e ouvir o fraco barulho da água sobre as pedras 7


do aterro do Comércio. De súbito, reparo a posição do sol e percebo que já estamos no final da tarde. “Oh, Droga! Que horas devem ser?”, eu pensava, dando-me conta de que havia saído sem relógio e nem tinha mexido no celular a tarde inteira. Então eu sentei em uma das cadeiras, e continuei a visualizar o mar, até que Jorge se sentou ao meu lado. ─ Bem, eu acho que você está com fome, né?! O que gostaria de comer? ─ Ele perguntou ansioso. ─ Antes de tudo, onde estamos? ─ Retribuo secamente. ─ Bem, - Ele diz, tomando a posse do cardápio. ─ Estamos no Restaurante Amado, uma grande referência da culinária baiana, achei que aqui teríamos chances de conversar melhor, com uma linda visão... ─ Ah, então tá, o que temos para hoje? ─ Pergunto, envergonhada, no esforço de ser descontraída. ─ Pode escolher, confio no seu gosto gastronômico. ─ Ele responde, colocando o cardápio na frente do meu rosto, avalio alguns pratos, até chegar a um que lembro ter marcado minha infância. ─ Camarões empanados, o que acha? ─ Digo com ênfase. ─ Ótima escolha! ─ Ele chama um dos garçons que estavam passando, e sussurra o pedido ao seu lado, então o garçom se vira, e vai em direção de algo que parece ser a cozinha. ─ Então... Como foi o tempo sem mim aqui? ─ Pergunto, corada. ─ Bem, acho que eu meio que fiquei solitário na escola até a 5° série, não tinha muitos amigos, porém eu encontrei alguns verdadeiros, que carrego até hoje no 2° Grau, e você? ─ Eu? Bem... ─ Demorei de pensar no que responder. Imaginei meu celular com infinitas mensagens das amigas nas redes sociais, curiosas por mais informações sobre minhas férias e dividindo as fofocas da semana. Quantas vezes pude contar com elas para dividir um problema real? Quantas delas sabem sobre o problema de saúde de minha avó e o real motivo de eu estar em Salvador hoje? Respirei fundo e respondi, com sinceridade. ─ Eu não tenho muitos amigos, simplesmente poucas amigas com quem compartilho meu dia a dia, coisas interessantes que às vezes acontecem comigo. Pois é, só isto. Nunca tive alguém em quem pudesse confiar, que já fizesse alguma diferença para mim... ─ Corei e virei o rosto. Sentia-me a mais superficial das garotas. Olhar o mar nessa hora dava-me a sensação de consolo... era como se o mar fosse minha única companhia no mar de gente e solidão em que eu me encontrava. ─ Nossa. Não posso me imaginar tendo uma vida solitária. ─ Ele diz olhando para o mar.

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Neste exato momento, o garçom chega com os camarões empanados, acompanhados de dois refrigerantes. ─ Bem, o dinheiro que eu guardei só vai dar para isso, espero que compreenda. ─ Ele diz, olhando para as bebidas, desconcertado. ─ Oh, não se preocupe, está de ótimo tamanho. ─ Eu digo, levando um pedaço do camarão à boca. O sabor estava surpreendentemente bom, e me fez lembrar das profundezas do mar, algo que eu já experimentei quando menor. ─ É perfeito, não acha? ─ Diz ele, fechando seus olhos, como se estivesse por concentrar suas forças. ─ A visão do por do sol, ou o camarão? ─ Respondo com um singelo riso. ─ Ambos... ─ Ele responde, olhando para o mar, enquanto mastiga. ─ Se eu pudesse, gostaria de ter esta visão pelo resto de minha vida. Porém, nem tudo é como gostaríamos que fosse... certo? ─ Sim... ─ Digo, sem palavras para continuar. ─ Meu pai costumava me dizer, que “O que a memória ama, nela permanece para sempre”. Isso deve ser de autoria de algum escritor, mas este sempre será meu lema... Espero que entenda o que quero dizer. “Nossa! Ele está apaixonado por mim, será que há seis anos?? Não, isto não pode estar acontecendo, eu acabei de chegar aqui.” Novamente, ignorei seu comentário, e continuei a comer, até acabarmos com os pratos. Ele chamou outra vez o Garçom, que traz consigo a conta, eu insisti em rachar a conta (mesmo sem saber se o dinheiro que trazia comigo trago seria suficiente), porém ele me ignorou, e pagou tudo sozinho. Aproveitei o tempo dessa transação para conferir o celular, que estava esquecido na bolsa a tarde inteira. Meu celular afirmava que já eram 18:30, eu havia saído de casa às 13:00. Provavelmente meus pais já deviam estar preocupados na casa da minha avó. Jorge, segurando minha mão, chamou outro táxi, enquanto sussurra perto do meu rosto. ─ Espero que o dinheiro que me sobrou seja suficiente, para não precisarmos usar o seu. Ele abriu a porta traseira do táxi, e fez uma pequena reverência. Quando estava prestes a entrar no táxi, vi uma criança bem pequena, que deveria ter não mais do que seis anos, próxima do táxi, olhando para mim. Era de se notar, que se tratava de uma moradora de rua. “Como uma criança desta idade...”. Não terminei meu pensamento. Ao invés disso, segui o impulso de retirar todo o dinheiro que carregava comigo da minha bolsa, e com um solene gesto, fui até o pequeno menino. Abaixei-me e coloquei o dinheiro em suas mãos, e ele me retribuiu, dando um sorriso. Como eu queria que aquele garoto de pele negra e cabelos 9


pelas ruas. Voltei pensativa e triste para o táxi. Minha cabeça fazia parcos cálculos matemáticos de tudo o que havíamos gastado em apenas uma tarde, entre táxis e restaurantes de luxo. Fechei a porta do carro enquanto via a criança, ainda parada, guardando o dinheiro embolado dentro do short rasgado e me acenando com um gigantesco sorriso de janelinhas entre os dentes de leite. ─ Eu vi o que você fez, simplesmente incrível, um gesto que aquele garoto não irá esquecer tão cedo. ─ Diz ele, quase com a boca em minha orelha. ─ Não foi nada, foi o mínimo que poderia ter feito. ─ Retribuo, olhando pela janela, vendo o garoto se afastar enquanto o táxi seguia para a Ladeira da Montanha. ─ Bem, então, será que à tarde no restaurante lhe impressionou? ─ Sério isto?! ─ Perguntei surpresa. ─ Não como um camarão tão saboroso há anos... ─ Bom saber... E esse foi o único diálogo de todo o percurso. Jorge simplesmente resolveu se fechar de tudo, ficando com o olhar perdido pela janela do táxi, como se esperasse algo acontecer, apesar de que tudo estava normal para mim, exceto pela conversa que tivemos e pela criança de rua. Era estranho perceber o quanto eu era sozinha, e o quanto aquele riso do pequeno órfão tinha sido o mais sincero e amigo que eu recebia em toda a minha juventude. Acho que em outros tempos, eu não estaria tão sentimental, parece que é coisa da Bahia, que mexeu comigo para essas coisas. Ao chegarmos à porta do edifício da minha avó, ficamos aliviados porque o dinheiro que Jorge carregava consigo foi o suficiente para pagar a travessia, fomos até o portão. ─ Bem... Até amanhã. ─ Ele diz, dando um leve beijo em minha testa, fico corada e retribuo. ─ Ah, okay. Obrigada pelo passeio. ─ Digo, totalmente envergonhada, e vou edifício adentro, apenas tenho um tempo para dar uma leve olhada, e ver ele saindo da frente do portão. Como já estava escuro, não pude confirmar, mas tive certeza de que ele estava chorando, pois atravessou a rua de cabeça baixa, enxugando os olhos.

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Capítulo 3 A noite passou muito depressa, embora, na maior parte dela, eu estivesse acordada. Não conseguia retirar a imagem de Jorge enxugando o rosto da minha mente. Qual seria o motivo? Eu não faço a menor ideia, apesar de crer que, provavelmente tenha sido algo relacionado a mim. Absorta em pensamentos, sem lembrar em que parte da noite eu dormia e em que parte estava sonhando acordada, acordei, levantei-me da cama e, instintivamente, abri a porta e me dirigi à cozinha. Antes de chegar ao fim do corredor, lembrei que ontem havia chegado e ido para o meu quarto improvisado no sofá da sala de TV, sem nem mesmo falar com minha família. Bem cheguei à cozinha, e lá estavam eles. Bastou que eu pusesse um pé no cômodo: ─ Bom dia! Como foi o passeio ontem?! ─ Perguntaram todos, como se por coincidência. ─ Foi... le-legal. ─ Respondi, ainda com os sintomas do sono em minha voz. ─ Bem, sente-se aqui, e nos conte tudo! ─ Dizia minha mãe, entusiasmada. Sentada na cadeira, entre ela e minha avó, olhando para a mesa, vejo que teremos um bom café da manhã, enquanto as duas metralhavam perguntas de todo tipo sobre o passeio da véspera. ─ Bem, antes de tudo que horas são? ─ Pergunto, fugindo do assunto. ─ Exatamente 10:45. ─ Respondeu meu pai ao olhar pelo relógio em seu pulso. ─ Nossa! Como puderam me deixar dormir tanto? ─ Achávamos que você estava cansada... Então, se não quiser falar como foi o passeio agora, pode comer. ─ Sugere minha avó, indicando a mesa. ─ Tudo isto... para mim? Um enorme sorriso se abre em minha face, comer aquele delicioso pão preparado da minha avó, com um café... Diga-se suculento! Simplesmente me fez esquecer tudo que aconteceu na véspera. Dizem sempre que as pessoas, depois de um tempo, escolhem uma linguagem, uma forma de demonstrar carinho e amor. Eu tinha certeza de que minha avó fazia isso com a comida, pois qualquer um que fosse servido por uma refeição preparada e dedicada por ela, sentiria-se amado, acabei me lembrando com esta reflexão, de que mal tinha resolvido saber mais, sobre sua doença, e acabei por resolver, que aquele não era lá o momento, então, prometi á mim mesma que iria fazer isso depois. Pensando nisso, comi toda a comida da mesa severamente, até que minha mãe resolveu me chamar para conversar a sós na sala. Fui até lá, e ela se sentou no sofá, fazendo um gesto, sugerindo que eu a acompanhasse 11


─ Bem, então, o que eu fiz de errado?! ─ Comecei, tentando acelerar a parte chata. ─ Nada eu espero... Simplesmente gostaria de saber, por qual motivo vocês demoraram tanto ontem... Ele pode ser um conhecido amigo, porém não deixa de ser um jovem rapaz, que pode ter alguns interesses... ─ Ela respondeu, levantando a sobrancelha. Pelo visto, minha mãe se lembrava muito bem de quem era Jorge. ─ Ah mãe, ele não é esse tipo de pessoa, e eu não sou mais uma criança! ─ Disse irritada, enquanto saía da sala e entrava no quarto batendo a porta. Resolvi me isolar, até ouvir um barulho, vindo da direção da janela. Cuidadosamente, olho por ela e encontro Jorge, em seu apartamento, sentado no sofá, de costas para uma pequena janela. Não imaginava que do apartamento da minha avó era possível ver o seu. Não sei explicar por quanto tempo fiquei observando o seu comportamento. Ele parecia tão calmo quanto no passeio da véspera, embora ele não estivesse tão arrumado quanto costumava estar, mas não havia motivos para me impressionar com isso, afinal, ele estava em sua casa. Da janela de minha avó, dava para ver que estava de samba-canção, na intimidade de sua casa, lendo. Quase não se mexia e, como estava de costas, não pôde perceber detalhes do seu corpo, apesar de saber que era atlético. Fiquei apreciando seu comportamento e depois voltei a me deitar, enquanto pensava... “Como ele já pôde algum dia ter gostado de mim? Sempre fui antipática, tímida, fechada e MUITO mimada”. Bem... Pelo menos isso é passado. Hoje ele deve reconhecer meus defeitos. Com estas reflexões, me pergunto por qual motivo ele me levou para aquele restaurante na véspera, já que queria, “me levar para conhecer Salvador”, mesmo sabendo que eu já vivi aqui. Bem, isto é simplesmente algo para ignorar por um tempo, provavelmente ele não virá hoje “checar” minha avó, pois estamos aqui. Caí no sono no meio do pensamento. Tive um pesadelo horrendo, com a escuridão me encobrindo, e acordei repentinamente. O relógio que se encontrava na cômoda, marcava 11:45. ─ Droga! Não cheguei a descansar por nem uma hora! ─ Resmungo, jogando o relógio na cama, e decido voltar para a cozinha. Não esperava por isso, mas o que posso fazer? Ele estava lá. Cheguei à porta da cozinha, e me encolhi atrás dela. ─ Bem Jorge, acho que não precisa mais vir diariamente visitar-me, eles estão aqui. ─ Diz minha avó. ─ Ah, não se preocupe... Eu nã-não li-ligo para isto... ─ Ele retribui, com uma voz trêmula.

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─ Oh, bem, se você deseja, será sempre bem-vindo. ─ Então, como foi o passeio ontem com a Sarah? ─ Inquiriu minha mãe. ─ Ah, fo-foi bem legal, levei-a ao Restaurante Amado. Gastei boa parte das minhas economias, mas valeu a pena. Após ouvir esta última frase cai no chão sentada. “Como ele pode ter gasto suas economias em um restaurante comigo?”. Disparei cozinha adentro, sem dar a mínima para quem me viu ou ouviu, e bati a porta que ia em direção às escadas, impulsivamente desci, até me dar conta que estava de pijamas. Voltei timidamente à porta do apartamento, e lá estavam eles, um pouco perplexos pelo meu comportamento, ou pelas minhas vestes, afinal, já era quase meio-dia. ─ Sarah? ─ Indaga minha mãe, enquanto todos olhavam para mim pasmos. ─ O que é?! ─ Pergunto irritada. ─ Me perdoe pelo vexame Jorge! ─ Mas... Não foi nada... ─ Poderia me explicar o motivo para tanto? ─ Novamente minha mãe diz, olhando com reprovação para minhas roupas. ─ Ah, mãe... Por favor, esqueçam o que acabaram de ver... ─ E com esta me dirijo outra vez para a sala de TV. ─ Ei! Sarah... O quê...?! ─ Era o Jorge, mas já não pude ver seu rosto novamente, pois andava desgovernada à sua frente. Fechei a porta da sala de TV atrás de mim. E lá estava eu novamente no sofá-cama. Fiquei olhando para o teto irritada, enquanto refletia: “Não acredito, cara... Pra quê tudo isso?” ─ Pensava, enquanto lembrava da pobre criança que estava à porta do restaurante. Que contraste! ─ Ei, Sarah, qual o problema? ─ Era o Jorge, batendo suavemente na porta que, por sorte, estava trancada. Rapidamente troquei de roupa e fiquei sentada na cama, esperando outro chamado. ─ Sarah? Poderia abrir a porta, por favor? ─ Novamente ele. Fui até a porta, destranquei, e girei lentamente a maçaneta. Lá estava ele e, com aquela confusão, nem notei como estava belo, com seus cabelos molhados e o perfume fresco de quem acabara de tomar banho. ─ Então, qual o problema? TPM ou algum distúrbio psicológico? ─ Ele brinca, sorrindo sarcasticamente. ─ Claro que não! ─ Retruco, sentindo meu rosto começar a ficar vermelho. E por que deveria haver um distúrbio?

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─ Bem... Por favor, se expresse sinceramente, a verdade é inevitável. ─ Sinceramente? Acho que você anda lendo romances além do que devia. ─ Respondo, abrindo um leve sorriso e devolvendo a provocação. ─ É provavelmente. ─ Disse, retribuindo o sorriso, e se dirigindo ao sofá-cama onde eu estava. ─ Posso? ─ Faço que sim com a cabeça, e lá ficamos, olhando fixamente pela janela. O tempo havia mudado e caía uma típica chuva de verão. Admirávamos um casal de pombos que se aninhava no teto do edifício vizinho. Tenazmente inocentes, como podem simples animais mostrar o que é o prazer do amor? Isto é algo que nem a própria “limitada” ciência algum dia poderá explicar, afinal, está além da ignorância humana. ─ Lindo, não? ─ Ele pergunta, quebrando o silêncio do quarto. ─ Sim... Lá iam os dois pássaros, voando na companhia um do outro. Até os perdemos de vista. Então Jorge se levantou, ajeitou o sofá-cama, e me disse: ─ Bem, acho que já devo ir, me perdoe por incomodá-la. ─ Pela primeira vez, ele falou sem a costumeira vergonha, e sim com determinação em sua voz. ─ Ei... ─ Disse eu, quando ele já estava a dois passos da porta. Era a minha vez de ter voz trêmula. ─ Seria muito se eu lhe pedisse para ficar, mais um pouco? ─ Ele sorriu com minha pergunta, como se estivesse desejando isso. ─ Não, claro que não. ─ Gostaria de lhe perguntar... ─ Começo, enquanto ele voltava para o sofá-cama e se ajeitava um pouco longe de mim, provavelmente não invadindo minha privacidade. ─O motivo que levou você a gastar suas economias, que eu nem mesmo sei de quanto tempo, comigo. ─ Eu ouvi você dizendo isso à minha família, enquanto devia achar que eu estava neste quarto, me perdoe por bisbilhotar seu pequeno diálogo. Porém, era algo que necessitava de atenção. ─ Olha, eu gastei minhas economias porque sempre me prometi que, quando chegasse a hora, eu as gastaria com algo que valesse à pena. ─ O que isso implica? ─ Pergunto impaciente, porém cada vez mais reconfortada com suas palavras. Imagino como eu poderia estar tão calma se, há alguns minutos atrás, estava completamente irritada. ─ Como você?... ─ Ele pergunta intrigado.

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─ Eu ouvi você dizendo isso à minha família, enquanto devia achar que eu estava neste quarto, me perdoe por bisbilhotar seu pequeno diálogo. Porém, era algo que necessitava de atenção. ─ Olha, eu gastei minhas economias porque sempre me prometi que, quando chegasse a hora, eu as gastaria com algo que valesse à pena. ─ O que isso implica? ─ Pergunto impaciente, porém cada vez mais reconfortada com suas palavras. Imagino como eu poderia estar tão calma se, há alguns minutos atrás, estava completamente irritada. ─ Bem... O que você acha? Sou digno de ter a chance de atravessar essa galáxia, por você? Antes que se pergunte: sim, este sentimento está aqui guardado, desde quando você se foi, desde que eu nem sabia direito o que era gostar de alguém. ─ Ah, cara, você é tão previsível. ─ Reclamo. E, com essa última frase, ele veio para perto de mim, tão perto, que eu podia escutar seus batimentos cardíacos. Então aconteceu. Ele veio e, por impulso, eu fui também, e assim nos beijamos. E foi algo que eu não sentia há muito tempo. Por instinto, tentei empurrá-lo, mas meu coração foi mais forte. E lá ficamos, num beijo inocente, puro como os dois pombos que se amavam na chuva. Ao sabor o vento, desinteressados de tudo o que acontecia ao redor. Alheios aos problemas do mundo. Até minha mãe atravessar a porta aos gritos.

Capítulo 4 ─ Sarah!! ─ Grita minha mãe, fazendo-me soltar Jorge, e ficar totalmente corada. ─ Mãe? Como pode vir entrando aqui deste jeito? Eu tenho dezesseis anos, lembra? ─ Retribuo, também aos gritos. ─ Perdoe-me, senhora, pela falta de respeito. Bem, estou indo. Até mais, Sarah. ─ Ele diz, dando-me um beijo na bochecha que me fez ficar como um tomate de tão vermelha. ─ A-até... Eu e minha mãe o acompanhamos até a porta, e então ela começou o show ─ Sarah! ─ Ela exclamava enquanto eu tentava silenciosamente voltar ao quarto. ─ O que eu fiz de errado, mãe? A senhora me incentivou a vir para Salvador, eu nem gosto dele... Digamos que foi “sem querer”, agimos por impulso, ok?

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─ Sarah... Até que enfim filha! Sempre achei que você fosse “fechada” para o mundo, aí você vem com essa... ─ Mãeeee... ─ O que aconteceu? ─ Flagrou meu pai, que estava observando nós duas. E lá ficamos eu, minha mãe, e meu pai na sala, sentados no sofá, enquanto minha mãe exagera com os supostos “fatos”, e eu tento redimir minha “imagem”. Minha avó, por sorte, estava no seu quarto, a cochilar, se não seria uma a mais no meu pé. Ao fim da longa série de diálogos, fomos até a cozinha, e já eram 14:00 da tarde, havia me esquecido do almoço, porém por sorte, ainda estava requentado. Então acordamos minha avó, que não estava lá em seus melhores dias, mas fazia questão de almoçar conosco, foi tão bom quanto nos últimos dias. Após o almoço, fiquei no notebook navegando pelas redes sociais, para conversar com minhas “amigas”. Permaneci por algumas horas no quarto, até ouvir algo por fora da janela. Levantei da cadeira em que estava, e dirigi-me até ela. E novamente lá estava ele. Após alguns minutos em que desfrutava do voyeur, consigo entender melhor a cena: ele estava a discutir com sua mãe. Foi um pouco demorado até eu conseguir interpretar um provável motivo que, pelo menos me parecia, era algo relacionado a contas ou algo assim, pois havia alguns papéis pelo chão, que, de longe, me pareciam recibos. Pelo tempo em que a cena ocorreu, vi sua mãe tentar acalmá-lo de alguma coisa, até que ele gritou com ela, de uma maneira que, nestes dias não vi, então ele saiu do apartamento, o que pude ver, foi ele sair pela portaria, e se sentar em um banco de uma praça em frente aos edifícios. “Vai lá, o que está esperando? Fazem apenas algumas horas desde que você deu um beijo nele!” Iniciei um diálogo mental. “Ei, eu não dei um beijo nele, ele que veio até mim... E quem disse que eu quis?”, “vai querer que ele tenha uma má impressão de você? Vai lá...”. E esse foi o debate entre mim e minha consciência, dificilmente consigo escapar de tais dilemas, como neste exato momento. Olhei o relógio, eram 17:00. Peguei alguma blusa diária, e fui até a saída do apartamento. Por sorte, todos estavam dormindo, senão precisaria de algumas explicações... Abri a porta com total cuidado, desci as escadas e, quando cheguei à portaria, consegui observá-lo, chorando, sentado no banco da praça. “Fofo não? Agora vá até lá, e esquece que foi sua consciência que lhe trouxe até aqui...” É, acho que minha mãe está certa quando fala que ando muito solitária. Acabei de uma vez esta pequena conversa improdutiva, e fui cautelosamente até o banco, como ele estava um pouco inclinado para a rua, não conseguiu me ver, até que cheguei perto e comentei:

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─ Parece que hoje o dia está bom para surpresas, certo? ─ Sarah?! ─ Respondeu impressionado, limpando rapidamente as lágrimas que sobraram em sua bela face. ─ O que está fazendo aqui? ─ Posso garantir que não vim abaixar o seu astral. ─ Respondi com um pequeno sorriso no rosto. ─ Ah, okay... Então ficamos lá, expliquei para ele que a distância entre o quarto em que fico e sua casa é ínfima, e que vi a discussão com sua mãe. ─ Às vezes, gostaria de poder mudar minha vida sabe? Com pouco dinheiro, não podemos fazer nada além de lamentar as dívidas, enquanto tentamos trabalhar para quitá-las. Você não sabe o que é isso, certo? ─ Ele indaga, já recuperado das lágrimas. ─ Sinceramente, não sei como é pessoalmente, mas faço ideia de um modo que você nunca imaginaria. ─ Respondo, colocando uma das minhas mãos em seu ombro. ─ Esse apartamento em Ondina... ─ Ele continuou, apontando o queixo em direção à sua janela. ─ É, ou era, tudo o que sobrou em nossa família, desde que meu pai se foi... Era o nosso único bem. Infelizmente, agora o banco hipotecou o imóvel, sequer podemos vendê-lo para recuperar nossa dívida. ─ Ele enxugava uma lágrima teimosa enquanto sofria uma dor adulta. Do meu lado, eu imaginava quantas dificuldades ele havia passado na vida para ter amadurecido tanto. Pensei por um momento como seria se meu pai morresse hoje... Certamente eu não viveria o conforto das viagens internacionais de todas as férias. Minha mãe estaria em depressão, é fato. Jorge estava certo, eu não fazia ideia do tamanho do problema que ele tinha e, até hoje, hipoteca era uma coisa que eu só havia visto em dramas cinematográficos. Então ele continuou: ─ Me perdoe pelas coisas que fiz você passar esses dias, certo? Eu só gosto de você. Gosto, gosto mesmo. E quis demonstrar isso de algum jeito, porém me parece que trouxe algumas consequências para ambas as famílias. ─ É... Trouxe. Poderia me dizer se foi bom, ou muito molhado? ─ Deixei escapar, sem pensar. ─ Ahn? ─ Ele retruca, com espanto, saindo da onda de tristeza. ─ Quero dizer... O beijo... – Digo corada. ─ Ah, sabe. ─ Ele olha para o céu, já estamos no pôr do sol, e de onde estamos a visão é quase que perfeita. ─ Foi... Perfeito, como esta visão. E para você? ─ Bem... Faz algum tempo desde que senti meu coração esquentar como hoje.

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Só acho que está tudo acontecendo muito rápido, ainda vai completar uma semana desde que eu vim para Salvador. E já estou gostando de você. ─ Está... Gostando de mim? ─ Os olhos dele brilhavam. Parecia que os problemas financeiros da sua família estavam se pondo junto com o Sol, tão distantes quanto o horizonte inatingível. ─ Ah, vai me dizer que aquele beijo foi simplesmente por instinto... E com isso ficamos, olhando a noite cair devagar. De repente, o romantismo foi interrompido por um rápido e crescente som de um carro a toda velocidade, em zigue-zague até a praça, onde estávamos. Antes de chegar ao seu possível destino, ele bate em uma árvore da rua, assustando aos porteiros e a nós dois. Quase simultaneamente à batida, ouvimos a voz de alguém, bastante abafada, vindo do local da batida. Sincronicamente olhei para Jorge, enquanto ele dirigiu o olhar para mim, e corremos, sem repensar as ações até a árvore em questão. Enquanto ele conferia o estado do motorista, eu checava se a árvore corria risco de ser derrubada, onde carro bateu. Aterrorizada, descubro que a voz abafada não vinha de dentro do carro, mas estava estirada sob ele. Em pânico, grito ao ver o corpo de um garoto, bem pequeno, estirado perto da árvore que, por sorte não oferecia risco de queda, era uma amendoeira adulta com um tronco bem firme. Abaixei-me ao lado da criança que gemia, enquanto o sangue escorria da sua cabeça e manchava o asfalto. ─ Ei?! Acorde! Fique consciente. Alguém ajude aqui! Socorro! ─ Grito em pânico, olhando para todos os lados, enquanto esperava que algum porteiro fizesse algo. Jorge berrava para que alguém chamasse a SAMU e o DETRAN, o Serviço de Atendimento Médico de Urgência e o Departamento Estadual de Trânsito, que precisava estar presente, em casos e acidentes com vítimas. Um porteiro apareceu entre nós, munido de um celular, e acionava as unidades para resgate. Eu permanecia parada, em choque. Mirava assustada o rosto angelical e sujo da criança. Em minha cabeça, súplicas desesperadas a Deus eram repetidas. Os trajes da criança e a lata velha de leite com a linha enrolada denunciavam: sim, era mesmo uma criança de rua. Provavelmente estava subindo o Morro do Escravo Miguel para aproveitar o vento e empinar arraia na encosta da maré, como era comum em tempos de verão. Meus instintos me levaram a carregar o garoto, que já estava inconsciente, e vou até Jorge, e lá está ele com o motorista do carro apoiado entre os ombros, praticamente ileso, não fosse o fato de ele estar mancando. ─ Está tudo bem com você? ─ Pergunto para o motorista, enquanto mostro o estado do garoto para Jorge.

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─ O-Obrigado. ─ Diz ele, tossindo severamente. Como ele está? Me perdoem, o volante travou, não consegui frear em tempo. ─ Não está vendo? – Jorge diz, olhando para a criança. ─ Temos que levá-lo a algum hospital rapidamente! E você também... ─ Disse eu, apontando-lhe o joelho machucado. ─ B-Bruno! ─ Respondeu o rapaz, novamente às tosses, enquanto o porteiro trazia um copo e uma garrafa de água. ─ Vocês não podem sair daqui! Explanava ele, enquanto chegava com a água. Precisam aguardar a chegada da SAMU e do DETRAN, já foram acionados. ─ MAS ESTA CRIANÇA ESTÁ PERDENDO SANGUE! PRECISAMOS FAZER ALGO IMEDIATAMENTE. ─ Berrei, indignada. ─ Ele está certo. ─ Disse Bruno. ─ Pelo Código de Trânsito, se teve vítima, somente a SAMU pode retirar o corpo... e você não poderia nem ter tocado nele... E a fala de Bruno foi cortada pelo barulho da sirene de uma ambulância da SAMU que entrava rua acima. Rapidamente a equipe de socorristas colocou o menino dentro da ambulância, imobilizado e com soro. Bruno também entrou, teriam ambos de ser encaminhados ao Hospital Geral do Estado, o HGE. Um dos socorristas pergunta se algum de nós está em condição de responder legalmente pela criança, para acompanhá-lo ao HGE, o que obviamente não podíamos fazer, na condição de menores. Então acabamos ligando para minha mãe, afinal, que se prontificou em pedir um táxi para seguirmos a ambulância da SAMU. O porteiro, que foi testemunha ficou para terminar de esclarecer o acontecido para os agentes de trânsito, que já haviam chegado quando deixamos o local. No HGE, acabamos por ouvir melhor as explicações de Bruno, quanto ao que aconteceu, e descobrimos que ele estava vindo visitar sua filha de dois anos que morava na casa da sua ex-mulher, em um dos prédios da rua. Ele que não havia como comunicar à sua esposa, afinal, apenas trouxemos seus documentos. Mas logo ele foi encaminhado a um hospital particular, para onde iam as pessoas que podiam pagar por um plano de saúde. Quanto ao garoto, que dependia da saúde pública... Ficamos ao lado dele no hospital e, após receber o tratamento emergencial na ambulância da SAMU, que enfaixou sua cabeça para conter o sangramento, aguardava um encaminhamento do HGE. Remexendo os bolsos da imunda bermuda que o menino usava, encontramos um desenho de três pessoas, uma mulher, que parecia significar sua suposta mãe, seu pai, e ele que, pelo desenho, se chamava Isaac. Uma enfermeira se aproximou para checar sua pressão e disse que não havia registro em cartório daquela criança, tratava-se de um indigente. Eu não parava de

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olhar para ele e mentalizar minhas preces desesperadas e inúmeros pedidos e barganhas que eu jurava caso o menino sobrevivesse ao acidente. Sua pressão estava muito baixa, além da perda de sangue, parecia que ele não comia há dias, pois estava bem magro. A enfermeira encaminhou o menino para um raio X de crânio, para investigar se ele estava apenas desmaiado ou se o estado era de maior gravidade.

Capítulo 5 Às 20:00, ainda estávamos na recepção do hospital, aguardando notícias sobre o atual estado do Isaac. Soubemos, pelo telefone, que Bruno acabou por levar alta, com apenas um severo inchaço no joelho esquerdo, o que não o impediu de voltar para sua casa e encontrar sua família. Ainda assim, ele precisou registrar ocorrência no DETRAN e resolver toda a burocracia que envolve um acidente com vítima. Seu carro não escapou de ser levado para investigação, afinal, era preciso comprovar se o acidente decorreu de uma falha mecânica ou de mau uso do condutor. Eu e Jorge estávamos sentados um ao lado do outro, enquanto esperávamos meu pai chegar para substituir minha mão no hospital, pois ele não iria nos deixar passar toda a noite aqui. Acabei por notar como aquele Hospital estava extremamente cheio, de todo tipo de gente. Adultos, jovens, crianças e idosos se amontoavam pelos cantos, à espera de notícias sobre parentes das suas famílias. Continuei observando por algum tempo as pessoas, até que ele me chamou. ─ Ei, Sarah! ─ Ah, não é nada. ─ Ele diz bocejando, quando me dou por notar, está com os olhos fechados, provavelmente estava cochilando. ─ Só queria ter certeza de que ainda estava aí. ─ Bobo, hein?! ─ Digo, soltando um pequeno riso. ─ Ei... Como foi ver aquela cena de lá do seu quarto? ─ Ele pergunta, ainda com os olhos fechados. ─ Que... Cena? ─ Pergunto, levantando uma sobrancelha. ─ Eu e minha mãe, hoje à tarde. ─ Ah, bem. No começo, achei que estava implicando com sua mãe, o motivo, obviamente, eu não sabia. ─ Jorge? Qual o problema? ─ Perguntei, num susto.

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─ Bem, vou lhe explicar. Tudo começou quando minha mãe descobriu a quantia que eu havia gastado alguns dias atrás. Ela simplesmente se irritou, veio até mim na sala me mostrar as diversas contas pendentes que temos, foi aí que, por algum motivo, me enraivei e fui até a praça, refletir sobre como eu fui insensato. Mas ela devia entender que gastei o dinheiro com algo que era importante para mim... ─ Você achou que eu gostaria mais de você, caso me levasse para algum lugar muito procurado, e caro? ─ Pergunto, com alguma ironia em minha voz. ─ Não é bem assim... Eu gostaria de ter um tempo para conversarmos, e nos reapresentarmos melhor, saindo para um passeio era um bom modo de sua família aceitar. E... Eu também queria que fosse um encontro inesquecível. ─ Ah, mas mesmo assim, será que aquele investimento deu mesmo resultado? ─ Pergunto, corada, e olhando para ele, quando ele acaba abrindo os olhos, e olhando para mim de modo suspeito. ─ Não sei, deu? ─ Ele devolve também envergonhado. Nesse momento, ouvi algum estranho chamando minha mãe, olhei para os lados, e vi um senhor em pé, usando um jaleco branco. ─ Sra. Rodrigues? ─ Diz o suposto doutor, dirigindo sua visão à minha mãe e, em seguida, a mim. ─ Sim, é o doutor que está examinando o Isaac? ─ Pergunto curiosa. ─ Ah, sim. Poderiam me acompanhar? ─ Vamos, Jorge? – Falo para ele, que se ergue da cadeira. ─ Sim, claro. ─ Responde, entusiasmado. Então, me levanto, e o doutor nos guiava pelos corredores. ─ Ei, doutor... ─ Carlos. ─ Responde ele, ainda nos guiando. ─ Dr. Carlos. ─ Ele se apresentou. ─ Poderia nos dizer, o que aconteceu com o Isaac? Melhor dizendo, como ele está? ─ Aquele garoto, morador de rua... Bem, ele teve alguns pequenos ferimentos na cabeça, nada muito grave, além de alguns hematomas pelo corpo. O raio X não apresentou nenhum problema no crânio, provavelmente ele desmaiou porque perdeu sangue e sua pressão já devia estar baixa, pois ele está bem magro e anêmico. Mas eu gostaria de avisar-lhe que não é sempre que alguém aparece por aqui, trazendo um morador de rua. Achei sua iniciativa genuinamente bela. ─ Ele diz, após olhar para minha mãe e abrir um sorriso. ─ Na verdade, Doutor Carlos, a iniciativa foi de Sarah.

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─ Que bom, Sarah! É muito bonito perceber que jovens como você ainda têm consciência social. Aqui em Salvador temos um grande problema quanto aos moradores de rua. Eles existem em grande número, e a sociedade pouco se importa com tais. ─ Oh, não sabia que a situação era essa. ─ Digo, pesarosa, pensando em quantos garotos como o Isaac devem existir pelo subúrbio de Salvador, sem ao menos ter alguém que se preocupe com eles. Rastreava minhas memórias e tentava me recordar da vida que eu vivia no Rio de Janeiro, na orla da Barra da Tijuca, e dos bairros nobres que eu visitava por lá. Eu sabia da realidade dos morros e das favelas do Rio, eu via as favelas ao longe, no alto dos morros quando cruzava a cidade para ir para escola, mas nunca havia convivido com a pobreza de perto. Aqui em Salvador, ricos e pobres se misturam, em bairros e festas populares que atravessam a cidade. Chegamos, enfim, até o fim do corredor. O doutor fez sinal para pararmos, e apontou pela janela da porta, eu e Jorge nos esprememos para enxergar diretamente pelo quarto. Então o vi, deitado numa maca em uma sala repleta de pacientes, acompanhado de aparelhos que monitoravam pulso e batimento cardíaco, e com sondas em suas veias. Lembrei das horas, e olhei para o relógio na mão do Jorge, eram 22h. “Como o tempo está passando tão rápido?”, pensava. Mas isso não importava mais. Virei para o Doutor, perguntando: ─ Há quanto tempo ele está dormindo? ─ Perguntei, com preocupação relevante em minha voz. ─ Sinto informar, porém ele não acordou desde o momento em que chegou a este hospital. Ele está fraco e não foi alimentado como deveria. Está vendo aqueles tubos ligados às suas veias? Estamos dando soro para fortalecê-lo. Esperamos que ele acorde a qualquer momento. Subitamente, penso novamente no acidente, lembro-me da grande árvore, do carro amassado, e do Isaac, deitado no chão, da poça de sangue no asfalto. ─ Podemos entrar? ─ Pergunta Jorge, finalmente se pronunciando. ─ Normalmente, só permitimos entrada de familiares aqui. Mas, nessa situação, como ele não deve ter nada grave, posso permitir que vocês visitem o garoto durante dez minutos. ─ Diz o Dr. Carlos, dando um passo à minha frente, e abrindo a porta. ─ Só peço que tomem cuidado com o que dirão para ele, caso acorde, afinal, ele ainda não os conhece, segundo o que me disseram. ─ E, com isto ele fecha a porta, e fica pela janela a observar. Minha mãe não quis entrar. Ela havia recebido uma ligação do meu pai, informando que chegara ao hospital para nos buscar. Ela provavelmente estava na recepção aguardando eu

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eu e Jorge e convencendo meu pai a esperar um pouco, embora soubesse que ele havia deixado a minha avó sozinha em casa. ─ Pois é, como será que ele está se sentindo? ─ Pergunto. Por algum motivo não específico, lembrei da minha avó. Meu pai havia me dito que ela estava muito doente, e me fez vir para Salvador, temendo que este fosse seu último verão. Agora eu olhava para Isaac e me dava conta de que havia sido muito egoísta, indignada por ter perdido minha viagem para a Europa, e não dei a devida importância à situação da minha avó. Uma culpa amarga cortava meu peito e eu comecei a me sentir culpada... Por Isaac, pela minha avó Clara (pela primeira vez pensava em seu nome durante todas essas férias), pelas economias falidas de Jorge, pela vida corrida de meu pai, tentando conciliar trabalho e família. Culpo-me por todas aquelas crianças deitadas nas macas daquela sala de emergência, e pela tristeza desesperada das suas mães que choravam. Culpo-me até pelo aquecimento global, pela guerra do Iraque, pela fome na África. Mas Isaac ainda dormia. E eu, continuando a olhar para ele, pegava sua mão, examinava cada canto de sua pele, onde há algumas horas atrás havia feridas e agora estavam localizadas algumas ataduras, cuidadosamente colocadas, para reter os sangramentos. Percebia que tinham limpado sua pele, e que ele estava com vestes hospitalares. Olhando-o assim, ninguém o julgaria como criança de rua. Será que ele ficaria bem? ─ Sinceramente? ─ Jorge finalmente respondia à minha pergunta. ─ Não há muitos casos de pessoas que levam algum morador de rua a um hospital, e ele volta com casa, carro, família, dinheiro, comida... Ainda mais uma criança. Provavelmente ele voltará para as ruas. Instantaneamente, me lembro do garoto que se mostrou para mim no dia em que fomos ao Restaurante Amado. Lembro de sua pele suja, de suas vestes rasgadas, e de seu rosto angelical, como crianças como ele, poderiam parar nos subúrbios da Cidade de Salvador? Penso em muitos fatores que poderiam levá-los a esta situação, poderiam ser abandonados por famílias inescrupulosas, poderiam ter se perdido de alguém que estavam lhe acompanhando. Sinceramente, eram diversos fatores que nunca me passaram pela cabeça enquanto vivia em outra cidade. ─ Será que podemos ajudá-lo de alguma forma? ─ Pergunto, olhando para ele. ─ Sabe, levar um morador de rua, para sua casa, não é como se fosse um animal de estimação. ─ Ele responde, secamente. ─ Me perdoe... Às vezes, mudanças repentinas de comportamento tomam conta do meu dia a dia. ─ Ele relança, e acabei por notar que sua face voltou a se tornar triste, embora continuasse com aquele belo brilho em seus olhos, e cada vez mais, me apaixonava secretamente por tal.

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Então, ouvi uma batida no vidro da porta, virei-me vi o Dr. Carlos fazer com suas mãos um sinal para que saíssemos do quarto. Soltei a mão de Isaac, olhei de relance para os outros doentes, oxalá quisesse que todos saíssem dali com saúde. Caminhei em direção ao local onde Jorge já estava, segurando a porta aberta para eu passar, cheguei até sua orelha, e suavemente sussurrei, nas pontas dos pés, pois ele deveria ter 10 centímetros a mais do que eu. ─ Olhe, eu gostaria muito que você ficasse comigo durante a estadia do Isaac no Hospital, preciso muito de alguém para me acompanhar... ─ Como se fosse preciso você me pedir para isso... ─ Ele retribuiu, abrindo o leve sorriso, e fechou a porta atrás de mim. Caminhamos todo o percurso de volta do corredor, enquanto o Dr. Carlos informava alguma coisa sobre os cuidados com Isaac e os riscos de ele ter batido a cabeça, porém não conseguia prestar atenção em uma única palavra, apenas observava o vai e vem dos enfermeiros, e os pacientes em seus quartos. O que era possível graças às janelas transparentes. Ao chegarmos novamente à recepção, nos despedimos do Doutor, e fomos em direção imediata a uma máquina de refrigerantes, enquanto inseríamos algumas notas, ele ponderava: ─ Olhe, não podemos passar toda a noite aqui, é um hospital público, e, além disso, não quero, amanhã, vê-la rigidamente cansada. ─ Ele diz, acompanhando-me com uma latinha de Coca-Cola. ─ Está bem, acho que meu pai está no estacionamento nos esperando. Alugamos um carro para as férias. Poderíamos ir para casa. ─ Retribuo, também bebendo um pouco do saboroso conteúdo da latinha. ─ Provavelmente, mas você está com seu celular aí? ─ Ele pergunta, retirando a latinha da boca. ─ Ah, bem... Um minuto. ─ Respondo, jogando a latinha mal acabada no lixo, enquanto vasculho minha pequena bolsa que carregava pendurada no braço, até que encontro no fundo, o smartphone de última geração. ─ Ah, aqui está. ─ Digo, dirigindo o aparelho em sua direção. ─ Hum... Você precisa ligar para seu pai. É impossível encontrar alguém no estacionamento imenso que tem neste hospital. ─ Ele comentou, após olhar para mim levantando a sobrancelha, como se dissesse o óbvio. ─ Ah, é verdade. Sem problemas. ─ Completo, enquanto mexia no aparelho e notava uma série de ligações perdidas dos meus pais. ─ Novamente agradeço, Sarah. Liguei para meu pai, ouvi todos os impropérios sobre a minha avó deixada sozinha em casa. ─ Bem... Acho bom esperarmos meu pai aqui. Ele vai passar na porta para nos buscar. Já são 23h, não dá para ficarmos rodando o estacionamento. ─ Ele pediu, notavelmente envergonhado. 24


─ Eu também preciso dar notícias para minha mãe, você tem créditos para ligações para me emprestar? ─ Claro. São ilimitados. Jorge se afastou de mim e, com uma das mãos abafando a boca, sussurrou ao telefone durante alguns minutos. ─ Olha, ─ Disse eu, quando ele voltou, um pouco incomodada com o telefonema sigiloso e com a estranha demora de meus pais, que já deviam estar no estacionamento ─ enquanto esperamos, poderia me dizer, o que você viu em mim? ─ Lancei, sendo o mais sincera que pude. ─ Cedo ou tarde... Essa pergunta viria, certo? ─ Ele disse, sarcástico, ainda com um sorriso no rosto. ─ Inevitável, certo? ─ Sorrio. ─ Olhe. ─ Ele agarrou minha mão, e me levou até algumas cadeiras que estavam vazias. Ele me dirigiu até uma delas, e se sentou em outra, soltando finalmente minha mão. ─ Quer mesmo saber o que eu vi em você? ─ Claro! Qualquer pessoa que nos rodeia, deve estar se perguntando o mesmo... ─ Neste momento, repentinamente corei, coloquei minhas mãos sobre minhas pernas, que agora estavam subitamente fechadas, enquanto eu esperava a resposta da pergunta que eu esperava há dias. ─ Não sei se você sabe ao certo. ─ Ele olhou para o chão, enquanto provavelmente procurava as palavras certas. ─ Mas existem diversas coisas que se combinam neste mundo, como o cravo e a rosa, a lua e as estrelas, morango e chocolate, ruffles e Coca-Cola, caruru e vatapá. Sabe, foi isso o que eu vi em você... Eu vi em você o que faltava em mim... Então nossos olhos se cruzaram, fomos lentamente nos aproximando, até que, numa dose doce de paixão, nossos lábios se encontraram, e foi como se meu corpo não me obedecesse mais, não resistia àquele encontro de desejos. A força do amor era mais forte do que eu, era como se eu tivesse ido à Lua e voltado. Não podia conter a emoção, que foi beijar novamente o garoto, que me fez descobrir o prazer que é amar.

Capítulo 6 Após o breve e belo momento do nosso segundo beijo, meus pais chegaram para nos buscar. Pelo rosto dos dois, entendi que deveriam estar discutindo antes de pararem à porta da emergência infantil do HGE. Percebi, depois de um tempo,

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que meus pais estavam orgulhosos pelas ações minhas e de Jorge, mas meu pai havia se zangado porque estava preocupado com minha avó, que havia ficado sozinha em casa. Eles nos levaram para casa, deixando com a recepção do hospital os nossos números de telefone, caso Isaac tivesse algo relevante (apesar de que eu sabia que passaria diversos dias ao seu lado). Percorremos o percurso para casa lentamente, por conta de um congestionamento causado por uma das típicas festas que animavam o verão de Salvador, perguntava-me como o trânsito poderia estar travado àquela hora da noite. Fiquei a maior parte do tempo olhando pela janela, procurando por outros moradores de rua. Não foi uma ideia muito brilhante, afinal, eles já deviam estar escondidos, embaixo de viadutos e nos canteiros centrais, por exemplo. Ao fim do percurso, saímos do carro, Jorge agradeceu ao meu pai, veio a mim e sussurrou: ─ Por favor, não passe sua noite preocupada com Isaac, ele está bem, só quero, não... Só preciso que, por favor, dê atenção às pessoas que estão em um caso mais delicado. ─ Disse ele, olhando para a janela do apartamento da minha avó, e me deu um leve beijo na bochecha. Jorge voltou para o seu apartamento, após acenar para nós, meu pai havia me dito, enquanto subíamos ás escadas para que eu entrasse silenciosamente, pois minha avó não estava muito bem essa noite. Ela havia desmaiado durante o dia, após dar sinais de enjoo. Abri a porta e fui para o quarto. Pude ouvir meu pai indo para o quarto onde ele estava alojado também. Antes de deitar, tomei um bom banho, estava exausta. A água me refrescou e muito, coloquei algum pijama, retirei a bolsa da cama, jogando-a na cômoda, e me agarrei ao travesseiro. Pela primeira vez em Salvador, minha noite foi tranquila, sem pesadelos. Somente sonhos, onde o Jorge estava presente, e eu não conseguia parar de pensar nele, nem mesmo nos sonhos, aquele era “O Cara”, da música do Roberto Carlos. Acordei com um abafado, porém notável, som. Abri os olhos, sentindo a luz do sol em meu rosto, e percebi minha bolsa vibrando com o celular que tocava dentro dela. Ignorei-o, voltando a me jogar no travesseiro, e novamente adormeci. Após o que me pareciam horas ainda dormindo, acordei novamente com o toque do celular. Irritada, levantei, jogando o travesseiro para os lados, peguei a bolsa, e voltei para a cama. Após tê-la aberto e pego o aparelho, notei que era um número desconhecido, ignorando isso, atendi: ─ A-alô? ─ Pergunto, indignada pela pessoa do outro lado da linha, me acordar a essa hora da manhã. ─ Olá, Jorge, lembra-se de mim? A Flávia da Vara de Adoção de ontem à noite. Tenho ótimas notícias! ─ Diz a moça ao telefone. Minha voz deveria estar mesmo embolada, para ela ter me confundido com Jorge. Mas, curiosa, resolvi aproveitar da situação.

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─ Ah, sim. Poderia me dizer quais são? ─ Pergunto, forçando a minha voz. ─ Eu pesquisei por algum tempo aqui, e obtive algumas informações sobre o garoto de rua que você encontrou, provavelmente algum adulto poderá adotá-lo. Com essa frase, minha respiração cessou. “Ele... Ele estava pensando em conseguir alguém para adotar o Isaac?! Ele é mesmo fantástico!”, eu pensava. ─ Bem, Flávia, estou bastante ocupado agora... Você poderia me ligar mais tarde? Agradeço. E com isto, desliguei o telefone. Surpreendida, joguei o celular na cama e fui até a cômoda, o despertador indicava 8h. Coloquei uma blusa regata estampada, e um short jeans, arrumei meu cabelo e me dirigi até a cozinha. No caminho, prometi para mim mesma que mudaria minha relação com minha avó, então, passei no seu quarto, aproveitando que ainda dormia, e dei-lhe um beijo na testa, e sussurrei, na esperança de que entenderia: ─ Vó, por favor, me perdoe pelo meu desleixo familiar, mas, por favor, não se preocupe... Eu te amo, ok? ─ Digo, alisando o seu cabelo e me retirando do quarto. Após ter passado pelos corredores, cheguei à cozinha e encontrei minha mãe e meu pai sentados na mesa tomando café da manhã. ─ Bom dia! Como estão? ─ Pergunto, sentando em uma das cadeiras. ─ Hum... Me parece que alguém está muito contente hoje. ─ Sugere meu pai. ─ E não se preocupe, hoje me ligaram do hospital dizendo que ele está se recuperando rapidamente, porém ainda está dormindo, provavelmente estava muito cansado desde o acidente. ─ Ainda bem, afinal, precisamos dele inteiro, certo? Então comi o máximo que aguentava e fui em direção de onde meu pai estava sentado. ─ Pai, você poderia me acompanhar em um passeio? ─ Perguntei. ─ Ahn? ─ Ele perguntou espantado. ─ É... Preciso comprar algumas coisas. Você poderia me levar a um shopping? ─ Bem, acho que é o meio de te recompensar por não termos ido à praia, certo? Se sua mãe puder ficar com sua avó hoje... ─ Minha mãe já estava sorrindo e consentindo com a cabeça. ─ Vou colocar alguma roupa adequada, e já te levo, ok? Com isso, esperei alegremente na cozinha, enquanto meu pai foi se trocar, e informar minha mãe dos cuidados com minha avó. Saímos de casa, na rua, percebi que levaram o carro do Bruno, e interditaram o local do acidente. "Nossa, como foram rápidos", pensei. Meu pai insistiu que o carro ficasse em casa, para minha mãe usá-lo em caso de emergência, e chamou um táxi. Ele deu ao taxista um endereço por mim desconhecido, e fomos em direção a tal lugar. No caminho, perguntei ao meu pai, o que os homens gostam de receber de presente. Ele sorriu, provavelmente supondo minhas intenções, e disse: 27


─ Bem, nós gostamos de ser surpreendidos... Chegamos a um centro gigantesco chamado Salvador Shopping. Era uma construção nova, bastante iluminada, com plantas e vitrines belíssimas. Entramos, e eu fui rapidamente guiada pelo meu pai, que esbanjava juventude, conduzindo-me pelas vitrines, acabei por comprar um livro, um álbum de fotografias, e um colar, daqueles que tem um porta-retrato minúsculo no centro. Voltamos para casa mais ou menos ao meio-dia, fui diretamente para o quarto da minha avó, coloquei no colar uma foto nossa de quando eu era menor, na qual ela estava me segurando em seus braços, e ambas sorríamos, eu a encontrei dentro de uma caixa antiga no armário do quartinho em que eu ficava, e o deixei em uma cômoda ao lado da cama, me retirando dando lhe um beijo na testa novamente. Passei o resto do dia trancada no quarto, escrevendo uma mensagem para colocar no livro. A mensagem foi sem dúvidas razoavelmente grandes, por fim, quase 3/4 da folha inicial do livro estava preenchida por caneta azul. Ao fim do dia, minha avó chegou ao meu quarto, agradecida pelo presente, e passamos alguns minutos conversando, algo que eu não fazia normalmente há anos com ela. Acabamos tendo diversos papos, sobre o que eu estava achando de Salvador, e sobre o que aconteceu ontem à noite. Em determinado momento da conversa, aproveitando o clima de intimidade, finalmente tive coragem, e perguntei: ─ Vó, qual doença a senhora tem? ─ Bem, ainda não me diagnosticaram, entende Sarah? Mas tenho algumas suspeitas... ─ Ela disse, e percebo a preocupação em sua voz. Lá pelas 18h, ainda no quarto, fui até a janela, e observei o apartamento vizinho, e por coincidência, ele estava lá, olhando pela própria janela também. Quando, por ventura, nossos olhos se encontraram, fiz um gesto indicando para ele vir aqui, mas mudei de opinião rapidamente e acenei para a portaria. Saímos das nossas janelas, corri para a cozinha imediatamente, e abri a porta. Desci as escadas e, quando cheguei à portaria, pude vê-lo pela janela da porta de entrada do Hall, abri-a velozmente e me joguei em seus braços. Pude sentir a breve surpresa em seu comportamento, antes dele jogar seus braços ao meu redor e assim ficarmos até eu o soltar. ─ Jorge, o que te levou a fazer isso? ─ Pergunto, sem a costumeira vergonha que eu tinha ao falar com ele. ─ O que é exatamente, isso? ─ Ele retribui. ─ “Alô, sou a Flávia de ontem à noite, lembra de mim, Jorge?” ─ Falei, com uma convincente imitação de voz. ─ Ah, bem, era para ser surpresa, sabe...

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Passamos uma boa parte da noite ali, erguidos como dois coqueiros, enquanto ele me explicava o que achava que poderíamos fazer por Isaac. Ele disse que sua mãe não teria condições para criá-lo, por isso, era improvável que conseguissem adotá-lo. Eu sabia, porém, que os meus pais eram diferentes. Tínhamos uma boa renda financeira, e uma situação familiar estável, o que nos tornavam aptos para isso. Eu ainda sabia que meu pai tinha muita vontade de ter um segundo filho, garoto, para levar aos jogos de futebol e vesti-lo com a camisa tricolor do Bahia. ─ Ei, tem algo que eu gostaria de lhe dar. ─ Fiz um gesto para que ele ficasse no mesmo lugar, e subi freneticamente as escadas, entrei no apartamento, e fui diretamente em direção ao quarto. Peguei o livro que se encontrava no mesmo local recente, embrulhei-o no papel vindo da loja. Voltei para o playground. Ele continuava no mesmo lugar, olhando para o céu. ─ É algo simples, mas é de coração. ─ Estendi o livro para ele, que subitamente se espantou, e disse: ─ Seja o que for, não posso aceitar. ─ Ele diz, orgulhosamente. ─ Jorge... ─ Apoiei o livro em um banco. ─ Você não imagina o quanto me mudou, você me fez ver que a vida é rebelde, como você. Não podemos deixá-la passar sem nos arriscarmos diante dela. Você me mostrou isto, quando gastou suas economias naquele restaurante, lembra? – Disse, cada vez mais perto dele, que já estava em pé também. ─ Ah, você também não faz ideia do que eu era antes de te reencontrar... Novamente, nos beijamos, de modo lento, que passou sem que nós notássemos o tempo, pude sentir que, desde o começo, ele era a pessoa destinada a me encontrar. Na brisa da noite que caía em Salvador, sob o barulho das ondas quebrando nas praias, nosso amor reluzia.

Capítulo 7 O resto daquelas férias em Salvador não foi simples. Isaac, segundo ele próprio, tinha 7 anos. Depois que ele acordou, assustou-se com nossa presença, porém conseguimos chegar perto dele, cada dia mais. Fizemos com que ele se acostumasse às diversas coisas com que não tinha muito contato, como banho quente, parques de diversões. Meus pais tentaram a guarda dele, e acabamos descobrindo que ele não tinha família definida, foi deixado na rua ainda pequeno e não tinha registro, com um único nome para que se afeiçoar. Cada dia era um desespero diferente para a criança, que, por sorte, acabou sendo criado por um morador de rua, que ele chamava de pai. Entretanto, o “pai” desapareceu há algum tempo, sem que nunca mais Isaac ouvisse seu chamado. Ao fim de todo o processo

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legal de adoção de menores abandonados, meus pais o registraram como: Isaac da Silva Rodrigues. A partir daquele dia, ele se tornou meu irmão, que até hoje, me acompanha em todo lugar, com sua bela juventude. Quanto à minha avó? Ela foi diagnosticada com câncer em estado avançado, uma doença silenciosa, que a estava matando por dentro. Ela veio morar no Rio de Janeiro com a gente e fez o possível para continuar sua vida de forma normal, cozinhando, cuidando da casa, enquanto passava por uma quimioterapia que, frequentemente, deixava-a fraca. E para completar, Jorge... Hoje faz quatro anos que eu o conheci e toda essa aventura aconteceu. Estamos juntos por todo este tempo e já estamos preparando uma cerimônia de casamento, afinal, daqui a alguns meses voltarei a Salvador, para residir de vez nesta bela cidade, acompanhada do lindo garoto rebelde, que me mudou tanto, em tão pouco tempo, naquele verão inesquecível e ensolarado de Salvador.

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