Cinema e Teoria Social: ensaios circunstanciais - vol.2

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Universidade do Estado do Rio Grande do Norte Reitor Pedro Fernandes Ribeiro Neto Vice-Reitor Fátima Raquel Rosado Morais Diretora de Sistema Integrado de Bibliotecas Jocelânia Marinho Maia de Oliveira Chefe da Editora Universitária – EDUERN Anairam de Medeiros e Silva Conselho Editorial das Edições UERN Emanoel Márcio Nunes Isabela Pinheiro Cavalcante Lima Diego Nathan do Nascimento Souza Jean Henrique Costa José Cezinaldo Rocha Bessa José Elesbão de Almeida Ellany Gurgel Cosme do Nascimento Wellignton Vieira Mendes

Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.

Cinema e teoria social: ensaios circunstanciais (Vol. 2). / Jean Henrique Costa, Raoni Borges Barbosa (Orgs.) – Mossoró – RN: EDUERN, 2020. 181p. ISBN: 978-65-88660-09-6 (E-book)

1. Sociologia. 2. Teoria social. 3. Cinema. I. Costa, Jean Henrique. II. Barbosa, Raoni Borges. III. Universidade do estado do Rio Grande do Norte. IV. Título.

UERN/BC

CDD 301

Bibliotecária: Petronio Pereira Diniz Junior CRB 15 / 782


Jean Henrique Costa Raoni Borges Barbosa (Organizadores)

Ana Maria Morais Costa Antonio Elder Nolasco Arrilton Carlos de Brito Filho Bergson Henrique Nunes Bezerra Débora Monique D’Angelo Lopes Elisabete Stradiotto Siqueira Fernanda Grasiane Bezerra Costa Francisco Wilton da Silva Júnior Gessica Raquel Clemente Rodrigues Hellen Damália de Sousa Andrade Lima Luciana Lobão Campos Maria Cristina Rocha Barreto Monijany Lins de Góis Rosa Adeyse Silva Stamberg José da Silva Júnior Tássio Ricelly Pinto de Faria


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PREFÁCIO Mauro Guilherme Pinheiro Koury GREM-GREI, PPGA-UFPB

É com satisfação que apresento o livro, no formato de ebook, organizado pelos professores Jean Henrique Costa e Raoni Borges Barbosa da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN, intitulado Cinema e Teoria Social: ensaios circunstanciais, já em seu volume 2. Livro importante que tem por objetivo específico refletir sobre a relação tensa e estimulante entre o cinema e a teoria social. Neste livro há um encontro entre a teoria social e o cinema, explorando a linguagem fílmica como uma linguagem do cotidiano contemporâneo e presente na vida das pessoas. Reflete o cinema como um modo de propor representações sociais que se encontram presentes nas relações entre as pessoas, ampliando nessa proposição os significados das atitudes e comportamentos humanos, como produtos elaborados pelos próprios homens e mulheres em relação, mas vividos como se fossem dados. A discussão presente nos 11 capítulos reunidos neste volume 2 do Cinema e Teoria Social: ensaios circunstanciais, portanto, reflete criticamente a filmografia a que se debruçam. Tentam caminhar, através do imaginário fílmico, para uma discussão sobre a negociação estabelecida entre os significados expandidos da realidade criada cinematograficamente em contraponto com a análise social da realidade do ponto de vista das ciências sociais, vista essa última também como uma construção social (Berger; Luckmann, 1985). Os artigos presentes nesse volume 2, assim, dialogam com a produção cinematográfica como invenção crítica do e sobre o real. Para tal, cruzam o imaginário fílmico sobre cristalizações culturais, –

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–experiências novas sobre o fazer cotidiano de pessoas em busca de construírem trajetórias de vida pessoais e coletivas, com os conceitos e noções presentes na teoria social. As análises refletem - científico-socialmente, - destarte, sobre como a imaginação cinematográfica trabalha a dramaticidade das trajetórias pessoais e coletivas no fazer-se cotidiano enquanto pessoas e modos e estilos de vida. Ao assim refletirem os ‘filmes’, os artigos e seus autores buscam compreender e compará-los com a realidade social e cultural, e com a realidade conceitual da teoria social e da cultura que têm nas mãos. Os caminhos imaginários propostos pelos filmes analisados, assim, são sentidos nas análises como propondo ou pressupondo memórias, histórias e historicidades ao nível individual e coletivo. E, desse modo, são vistas e analisadas como representações fílmicas do social, vista em sua dramaticidade totalizante, de um lado. Ou, de outro lado, como representações do cotidiano sobre a vida humana, individual ou comunitária, ou mesmo societal. São buscados noções e conceitos da teoria social e da cultura sobre o real, para compará-los às representações fílmicas dos processos representados nos filmes. Desde noções sobre ciclos de vida - nascimento, crescimento, maturidade e morte, -, sobre rituais de interação e comportamentos em público (GOFFMAN, 2012, 2010) - encontros, desencontros, amores e ódios, que dão sentido às vidas e fundamentam culturas emotivas (KOURY, 2017) específicas e delimitadas historicamente pelos que a vivenciam, entre outros, são comparadas com a realidade e com a realidade representada pela imaginação fílmica presente em um dado filme, de um determinado autor. Ao assim proceder, as análises fílmicas presentes parecem propor, desse modo, uma ponte entre a linguagem cinematográfica e a teoria social e da cultura, como uma matéria prima, ou um campo dado a mais para pensar o social e a cultura. A cinematografia do mesmo modo é vista como um produto social e no interior de uma cultura e de uma sociabilidade dada. Como tal, é também um objeto de análise social. Tendo esse objeto dado e nas mãos, os artigos buscam discutir o processo fílmico como um processo social da imaginação produzida por indivíduos sociais - os cineastas e sua equipe, - que se utilizam das formas sociais e culturais objetificadas como

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moralidade, para repensá-las e dialogar com elas, recriando o real como ilusão vivida como verdade, de um lado, e desmistificando a objetificação dos sentidos, de outro lado, no apontar caminhos outros possíveis que permitam pensar que os que observam e sobre o que e o como veem nas suas vidas. Nessa direção, o livro trafega a análise fílmica e produz teoria social e cultural da realidade fílmica, para perceber, também, através dessa ousadia, o cinema como imaginação humana sobre a realidade em que se vive e se pronuncia. O que estabelece um interessante diálogo entre cinema, realidade e imaginação; e entre a imaginação científico-social. Ao lerem a produção da cultura e da sociedade, e lerem a produção cinematográfica como uma leitura sobre a cultura e sociedade através da tematização dos processos interativos que conformam sociabilidades, enquanto cultura emotiva e enquanto moralidades, refletem sobre o objeto das ciências sociais e a representação fílmica como parte deste objeto. Para tal, de um lado, cruza os conceitos da teoria social e da cultura com as temáticas exploradas nos filmes analisados e se debruçam sobre as hierarquizações, estigmatizações, receios, medos, subalternidades, acomodações, medos, pânicos morais e físicos, angústias, estados depressivos, fome, miséria, assassinato, genocídio, indiferença, desesperança, horror; bem como, alteridades, individualidades, pessoalidades, solidariedade, aventura, rebeldia, resistência, mudança pessoal e coletiva, sonhos, projetos, vitórias, vida, etc. e nesse cruzamento, discute as representações fílmicas como um campo de possibilidades aberto para pensar a produção humana de um dado tempo e espaço, e, como tal, analisar as possibilidades e limites dessas representações como ideologia que permite categorizar o social e o cultural vivido como natural em simbólico (BOURDIEU, 1998), isto é, como construção do humano, do imaginário que se baseia, e do jogo tenso de constituição de memórias, individual e social, e das relações tensivas entre as duas. As análises fílmicas trabalhadas nesse Volume 2 do Cinema e Teoria Social: ensaios circunstanciais no cruzamento com a teoria social e o imaginário científico-social, desse modo, abrem espaço para ver o cinema como um produtor crítico de memórias. Produção esta que parte da memória individual e social roteirizada, de um dado tempo e espaço individual e societário vivido, para conversar

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sobre os sentimentos e propósitos nela presente e discutir simbolicamente os seus limites e tragédias. Ou, mesmo, para apontar os caminhos de fuga, de resistência e de possibilidades novas geradas pelos que a viveram, agora representados imaginariamente nos roteiros e presos em cenários e representações fílmicas no interior de um filme dado. Este tipo de análise, portanto, revela o cineasta, o roteirista, os atores, assim como o fotógrafo, os câmeras, o figurinista e decoradores de ambientes, etc. como sujeitos dos próprios limites sociais em que se produzem, como pessoas, e como profissionais do cinema, que se juntam como equipe para produzirem uma realidade fílmica baseada em tempos e espaços sociais (existentes, que já existiram, ou supostos imaginariamente, porém dentro do imaginário social por eles experienciados). Ao trabalhar os limites do cinema nesse contexto, os artigos presentes neste livro revelam possibilidades exploratórias da análise do social e da cultura caros às ciências sociais. O que permite, - ao serem analisados à luz da teoria social e da cultura, explorar a própria teoria a partir do imaginário fílmico, e rever os quadros conceituais teórico e metodológicos, renovando-os em suas cristalizações e ousando uma crítica da crítica à teoria social e cultural de que partiram, tornando-a dinâmica e sempre em processo. Por fim, parabéns aos organizadores e autores desse livro de encontro entre cinema e teoria social. Um útil e importante trabalho para todos os que se dedicam em explorar um pouco além a teoria social da realidade como construção permanente.

Referências BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1985. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

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GOFFMAN, Erving. Comportamento em lugares públicos. Petrópolis: Vozes, 2010. GOFFMAN, Erving. Rituais de interação. 2ª. Edição. Petrópolis: Vozes, 2012. KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Etnografias urbanas sobre pertença e medos na cidade. Estudos em Antropologia das Emoções. Coleção Cadernos do GREM, vol. 11. Recife: Bagaço; João Pessoa: Edições do GREM, 2017.

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INTRODUÇÃO O presente livro é uma continuação da obra intitulada Cinema e Teoria Social: ensaios circunstanciais (vol. 1), editada em 2019 e publicada no mesmo ano pelas Edições UERN. Assim como o seu volume predecessor, objetiva-se neste volume 2 apresentar reflexões diversas – oriundas das ciências humanas e filosofia – acerca da relação entre cinema e teoria social. Buscamos realizar o encontro de reflexões que destaquem como o cinema pode servir de material empírico potencializador do aguçamento de uma certa imaginação sociológica (MILLS, 1969). Essa capacidade imaginativa, para Mills, permite que o sujeito vá além das aparências fenomênicas e experiências pessoais para, então, aguçar a compreensão de temas de maior amplitude. Inferimos, portanto, que o cinema, mesmo sendo a expressão de um produto reificado e fetichizado, pode servir também como material empírico de passagem de uma experiência fenomênica imediata para a construção de reflexões mais amplas sobre a tessitura do Real. Assim, o cinema, apesar de constituir um campo administrado pelos majors do entretenimento de massa e, não raro, servir como um narcotizante para o encobrimento de certas realidades, não deixa também de carregar consigo a possibilidade quase sempre aberta de democratização da cultura (ainda que nivelada por baixo) e de questionamento de certas estruturas sociais. Walter Benjamin sabia que a produção cinematográfica estava nas mãos do grande capital e a este não interessava um cinema crítico que servisse como instrumento de educação das massas; contudo, Benjamin entendeu as possibilidades abertas advindas de uma nova arte pós-aurática não restrita a uma pequena elite. Benjamin (1994), então, passa a examinar alguns aspectos positivos da perda da aura e, com eles, as possibilidades de um uso progressista da técnica na era de sua reprodutibilidade técnica, tendo o cinema como instrumento para o cumprimento de novas funções sociais.

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Deste modo, apesar da pujança da indústria cultural em estabelecer, sustentar e reproduzir determinados esquemas de dominação a partir do cinema, não raro encontramos películas sumamente críticas que questionam a própria lógica da indústria cultural (há disputas, tensões e contradições na própria lógica dominante) ou, ainda, encontramos tal questionamento não nas entrelinhas da obra, mas na capacidade de decodificação por parte dos espectadores. Para Martin-Barbero (2009, p. 268), começa a surgir, então, “uma nova percepção sobre o popular enquanto trama, entrelaçamento de submissões e resistências, impugnações e cumplicidades”. Igualmente, parafraseando Stuart Hall (2003), uma recepção preferencial (dominante), isto é, sem resistência por parte do espectador, não passa de um sonho de poder (uma audiência totalmente passiva) por parte daqueles que produzem a indústria cultural. Por conseguinte, entendemos que a experiência do cinema pode – apesar dos muitos limites de capital cultural (BOURDIEU, 2007) presentes nos espectadores – constituir um exercício crítico para entender o mundo e portar-se nele como sujeito. A obra em tela apresenta, portanto, um conjunto de ensaios em ciências sociais e humanidades que explora as possibilidades teóricas e metodológicas de usos e abusos de narrativas fílmicas para o exercício da imaginação crítica e reflexiva sobre os problemas reais e imaginários do cotidiano presente. Os onze capítulos desse volume 2 de Cinema e Teoria Social: ensaios circunstanciais, nesse sentido, abrangem enorme variedade temática no âmbito das rubricas emoções e moralidades, trabalho e luta de classes, modernização conservadora, violência urbana e exclusão social, bem como construções imaginárias, identitárias e religiosas de atores e agentes sociais em pluralidades de situações: underdogs, espíritas neste e no outro mundo, artistas imigrantes fracassados, povos nativos devorados por Estados nacionais oportunistas, operários em chão de fábricas, camponeses que se despedem de verdes anos pré-fabris e industriais. Se algumas análises, por um lado, exploraram mais exaustivamente a narrativa fílmica e buscaram visibilizar as entrelinhas do discurso artístico enquanto correspondências exotéricas de uma realidade semiótica a uma realidade real alienada de seus tabus; outras análises, por sua vez, buscaram na narrativa

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fílmica uma ilustração ou mesmo um experimento demonstrativo das próprias teorizações apresentadas ao leitor. O cinema, portanto, ora é enxergado como oportunidade laboratorial para a condução de uma situação paradigmática, - ainda que no reino encantado do faz-de-conta, - ora é percebido como um conto moral ou como um argumento axiomático que sustenta encadeamentos teóricos a posteriori e de grande valia para quem se situa do lado de cá da quarta parede, indiferente se um ideólogo com interesses imediatos ou se um pesquisador e ensaísta de motivações mais genuinamente científicas. Desde uma perspectiva simbólico-interacionista goffmaniana (GOFFMAN, 2012), a narrativa fílmica, com efeito, pretende, - quando não está subsumida em sacralidades e panfletarismos que elidem o caráter catártico e emancipatório da arte, - a formatação tonalizada de aspectos tidos publicamente como indizíveis, interditos, malditos, segredados e problemáticos do complexo interacional real; e que, por esta mesma razão, pressionam o discurso público na forma criativa e acolhedora da fantasia, da ironia, da jocosidade e da brincadeira. Formas discursivas estas que a ludicidade artística bem permite abarcar sem maiores interrupções do trânsito simbólico-interacional normal e dos mais sérios jogos de poder e de hierarquização social. A narrativa fílmica nos atuais formatos industriais de produção em massa e em série pode, assim, como bem pontua AbuLughod (2003), ser entendida como uma técnica social de formação do self, isto é, dos elementos motivacionais e identitários mais profundos da linguagem inconsciente a partir da qual se organiza o indivíduo social em seus múltiplos papéis, projetos e horizontes morais e emocionais. A autora aponta, com esse argumento, como as telenovelas, - esse cinema caseiro e aparentemente bonachão, afeito a malabarismos narrativos, - influenciam os fluxos de fofoca, de intriga, de humores, de organização de problemas públicos e de definição da situação em vizinhanças e bairros populares, onde o consumo dos personagens novelísticos é intenso a ponto de exigir uma quase que fusão existencial entre os atores de novela e os personagens fictícios que eles encarnam. O cinema, - enquanto linguagem mais elaborada e, até pouco tempo, tida como um momento extraordinário de lazer das classes médias, - pode ser também inserido, na lógica argumentativa de

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Abu-Lughod, como uma tecnologia social de organização pública da cultura emotiva (BARBOSA, 2019). Cultura emotiva entendida como precipitado simbólico-interacional das trocas intersubjetivas, e que se cristaliza na forma de sentimentos e circuitos de afetos publicamente emblematizados e narrados em contos morais, em estratégias banais de desculpa e de acusação e em justificativas de projetos individuais e coletivos. Assim a narrativa fílmica desponta como uma mensagem reveladora do social e da cultura ao mobilizar repertórios simbólicos específicos; mas também como um empreendimento moral (BECKER, 2008) que sutilmente impõem condutas públicas e trajetórias idealizadas, desfiguras fachadas e reputações, proclama heróis e sedimenta pedestais. Enquanto desabafo público dos injustiçados, tribunal performático dos vencidos, diário íntimo dos fracassados ou mesmo aventura transgressora dos excluídos, a narrativa fílmica promove temporalidades meramente simbólicas e imaginárias em que o self individual testa novas experiências de espelhamento em relação ao outro generalizado (MEAD, 1973); ao passo que impacta gradualmente nos modos de ação e de realidade das coletividades. O cinema, desde essa perspectiva de análise, configura, assim, uma ferramenta de formação e de informação de lugares psicossociais e de suas respectivas demarcações no jogo interacional, haja vista que empreende leituras e releituras do passado e da herança cultural que o self precisa dominar conscientemente em sua jornada de nascimento, de maturação e de afirmação no mundo social. A influência dos contos morais, dos modismos, linguagens e habilidades performáticas dessa arte supostamente pós-aurática não pode ser negligenciada no cotidiano simbólico-interacional das atuais sociedades de massa mobilizadas pela virtualidade da imagem em movimento: de nomes de crianças às variedades mercadológicas, passando pelos padrões estéticos e pelas fronteiras da ética, da ciência e da tecnologia e da apropriação de memórias e histórias do passado, o cinema tem se imposto como um espelho glamourizado dos desejos e do inconsciente contemporâneo. O cinema, como vocalização desse outro generalizado agora declinado em sentido psicanalítico lacaniano (JUSTO, 2004), se organiza como indicador das múltiplas experiências culturais, simbólicas e imaginárias, - do self; isto é, como os processos comunicacionais em que este self se confronta com os personagens

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da sua sociedade e cultura em modo virtual de aprendizagem da normatividade do jogo interacional. As performances lúdicas das narrativas fílmicas, assim, comunicam de forma espelhada os possíveis lugares psicossociais do mundo social e cultural que retratam, pois bebem dessa infinita, mas limitada geratriz de repertórios simbólicos que é o inconsciente coletivo. Os onze capítulos desse volume 2 de Cinema e Teoria Social: ensaios circunstanciais, portanto, provocam o leitor para discussões sobre os infernos morais e emocionais, cognitivos e comportamentais que permeiam o cotidiano simbólico e imaginário contemporâneo. Aparecem, assim, na tela mágica do cinema e nos ensaios aqui expostos: a crise generalizada que assola a civilização brasileira e as suas guerras intestinas invisibilizadas em mantos de passado, de minorias e de geografias longínquas, como nas narrativas fílmicas de Bacurau e na série Guerras do Brasil; a dinâmica de estigmatização institucional dos pobres urbanos, problematizada na película Olhos que condenam; os projetos coletivos de ruptura com a modernidade capitalista da megalópole de riscos e perigos privatizados, de modo que medievalismos caricatos são avençados, como exposto de forma ingenuamente irônica no filme A Vila; a experiência de desenraizamento de modos tradicionais de organização da vida e a consequente luta pelo reconhecimento em sociabilidades urbanas industrializadas e individualistas, como retratado em Como era verde o meu vale e em A classe operária vai ao paraíso; a trajetória de modernização forçada da cultura tradicional e de empreendimento moral de novas sacralidades mundanas no comer e no consumir o mundo, vistos desde as astúcias de um homem de negócios em Fome de Poder; a luta de estudantes pobres para alcançar o êxito acadêmico e o sucesso econômico, tal qual debatida na perspectiva do filme Escritores da Liberdade; o luto melancólico e a reorganização moral e emocional da família de um migrante que sonha em ser artista no estrangeiro e se depara com o fracasso e a falência moral, como confidenciado em Elena; a construção relacional do potencial de liderança enquanto comunicação de carisma e de condução de interações estratégicas em situações limite, problematizada na narrativa de Henrique V; e, por fim, mas não menos instigante, a discussão sobre a cosmologia e o imaginário modernista do século

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XIX em tons da doutrina espírita, com seu sistema ritual e sua noção específica de pessoa, como discutido na narrativa fílmica Nosso Lar. Este segundo volume do projeto Cinema e Teoria Social: ensaios circunstanciais afirma o projeto de ciências sociais e humanidades como construção coletiva de uma massa crítica de consciência e compreensão dos assuntos humanos. A de-construção teórica da realidade social, - que implica na percepção da complexa interdependência entre indivíduo, cultura e sociedade, - pode ser realizada somente com a mobilização da imaginação do pesquisador que se distancia e se aproxima criticamente do seu objeto analítico: em última instância, o próprio pesquisador em figurações espelhadas da humanidade encarada como outro generalizado de um self em expansão. A experiência objetiva e as vivências subjetivas do pesquisador imerso em mundos da vida, sistemas de crenças e de conhecimento, portanto, colocam o desafio de compreensão e de explicação do social e da cultura desde o imperativo da identidade, e não da oposição, entre o sujeito e o objeto da pesquisa. A narrativa fílmica, nesse sentido, assim como outras linguagens artísticas, permite, de forma privilegiada, o debruçar-se sobre o real enquanto desejo, fantasia, conto moral, repositório inconsciente, discurso irônico, ideologia narrada e empreendimento moral. Eis, então, a proposta de discussão e reflexão da presente obra.

Referências ABU-LUGHOD, Lila. Melodrama egípcio: uma tecnologia do sujeito moderno? Cadernos Pagu, n. 21, pp. 75-102, 2003. BARBOSA, Raoni Borges. Emoções, lugares e memórias: um estudo sobre as apropriações morais da Chacina do Rangel. Mossoró – RN: EDUERN, 2019. BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

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BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: ______. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educação. In: NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio (orgs.). Pierre Bourdieu: escritos de educação. 9. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. GOFFMAN, Erving. Os quadros da experiência social: Uma perspectiva de análise. Petrópolis: Editora Vozes, 2012. HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução de Adelaide La Guardia Resende et al. Belo Horizonte, MG: UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003. JUSTO, José Sterza. A Psicanálise Lacaniana e a Educação In: Kester Carrara (Org.), Introdução à Psicologia da Educação: Seis abordagens. São Paulo: avercamp, 2004, p. 71-107. MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Tradução de Ronald Polito e Sérgio Alcides. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009. MILLS, Wright C. A imaginação sociológica. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969. MEAD, George H. Espíritu, persona y sociedad: Desde el punto de vista del conductivismo social. Buenos Aires: Paidós, 1973.

Jean Henrique Costa Raoni Borges Barbosa Mossoró, RN, 08 de maio de 2020

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CAPÍTULO 1 Ressentimento e estratégias de desfiguração moral: uma breve abordagem antropológica da cultura brasileira desde a narrativa fílmica de Bacurau Raoni Borges Barbosa1 Monijany Lins de Góis2

Resumo: Este capítulo discute a polêmica e premiada obra Bacurau, lançada em 2019 por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, desde uma breve abordagem antropológica da cultura brasileira. A narrativa fílmica aborda, de forma um tanto folclorizada (e mesmo carnavalizada) o pequeno urbano nordestino em um contexto generalizado de crise e falência moral das instituições públicas, - o que gerou, por sua vez, enorme afinidade e alvoroço do público brasileiro deveras abalado pelos desdobramentos políticos nacionais desde 2015. No contexto fílmico de tensões e de buscas por novas recomposições e remontagens morais, os moradores do antigo sítio Bacurau, - então já um nucleamento urbano quase que ilhado no sertão pernambucano, - enfrentam uma investida estrangeira de extermínio físico em paralelo às investidas de desfiguração moral historicamente produzidas pela elite local. Em forma midráshica, com efeito, a narrativa fílmica de Bacurau desestabiliza as expectativas do 1

Professor Visitante da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN, lotado no Departamento de Ciências Sociais e Políticas – DCSP; Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas PPGCISH UERN. Pesquisador Associado do Grupo de Pesquisa em Informação, Sociedade e Cultura – BITS, da UERN. Pesquisador Associado do Grupo de Estudos Culturais–GRUESC, da UERN. Vice-coordenador do Grupo de Pesquisa em Lazer, Turismo e Trabalho– GEPLAT, da UERN. Editor da Revista Turismo: Estudos e Práticas – RTEP, do Grupo de Pesquisas em Lazer, Turismo e Trabalho–GEPLAT. E-Mail: raoniborgesb@gmail.com. 2 Mestre em Engenharia das Energias Renováveis pelo PPGER, na UFPB. Graduada em Economia pela UFCG. Tem interesse em estudos econométricos em pequenas cidades. E-Mail:monijani.lins@cear.ufpb.br.

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público ao apresentar a cordialidade e a violência próprias da cultura brasileira sem referências reflexivas diretas, mas inversas, isto é, que convidam a recorrente instrumentalização da narrativa fílmica como mera alegoria de um real histórico que a sustente. Este real histórico, assim, aparece no filme enquanto experiência reiterada de estratégias de desfiguração moral exercida pela elite brasileira, em associação com elementos estrangeiros ressentidos, em relação aos sentidos culturais, sociais e políticos de Bacurau. Palavras-chave: cultura brasileira, ressentimento, desfiguração moral, pequeno urbano nordestino, falência e pânico moral

Introdução Este capítulo, intitulado Ressentimento e estratégias de desfiguração moral: uma breve abordagem antropológica da cultura brasileira desde a narrativa fílmica de Bacurau, discute a polêmica e premiada obra lançada em 2019 por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, desde uma breve abordagem antropológica da cultura brasileira. Percebida desde o contexto do pequeno urbano nordestino tensionado entre lógicas actanciais e interacionais tradicionais e modernizantes, locais e globais em choque, em um primeiro momento; e, em um segundo momento, e com maior ênfase, sob a ótica do ressentimento3 (ANSARTDOURLEN, 2009; ANSART, 2009) e das estratégias de desfiguração moral4 (GOFFMAN, 2010) que caracterizam as vivências cotidianas 3

Para Ansart-Dourlen (2009), o ressentimento deve ser entendido como uma experiência reiterada de humilhação, de rebaixamento e de inferiorização moral que impele à ação compensatória. 4 Goffman (2010) define como estratégias de desfiguração moral as ações de ataque à fachada, à linha e à reputação de um ator e agente social, de modo que as suas possibilidades e horizontes simbólico-interacionais são consideravelmente constrangidos, quando não destruídos. As estratégias de desfiguração moral abarcam, entre outros, a produção de fofoca negativa e de rumores vexatórios, de intrigas, de revelação de segredos comprometedores e de escandalização de situações sensíveis. Goffman (2011, p. 13-14) entende por linha (line) o padrão comunicativo e comportamental que orienta a ação cotidiana dos atores e agentes sociais em relação. Por fachada (face) Goffman entende o valor positivo que o ator e agente social reivindica para si, - enquanto jogador social e personagem público de matrizes interacionais, - por meio da imagem que projeta sobre como os outros o classificam durante uma situação dada.

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das clivagens sociais no Brasil contemporâneo, - ainda mais na atual conjuntura de crise social generalizada e de discursos de falência e pânico moral, - a cultura brasileira é retratada como um pitoresco quadro moral-emocional em suspenso, prenhe de indefinições e de provocações políticas e moralizantes. A narrativa fílmica de Bacurau, nesse sentido, explora o tópico literário (ECO, 2004) do pequeno arruado interiorano nordestino com seus personagens típicos5 sob ameaça de extermínio por parte de uma modernidade fracassada e ressentida, ora tonalizada6 (GOFFMAN, 2012) na ação e no discurso de personagens do “sul” brasileiro, ora no empreendimento de estrangeiros, - também apresentados como típicos imperialistas, que veem em Bacurau a oportunidade de realização de um safári humano. A trama ficcional, assim, problematiza a ameaça de desenraizamento e de ataque ao especificamente étnico enfrentada pelos moradores do antigo sítio Bacurau, alto sertão pernambucano e topos paradigmático do Nordeste profundo; bem como as estratégias sociais e culturais de enfrentamento e resiliência destes moradores em relação a uma elite política nativa parasitária em conluio com estrangeiros ressentidos que os percebem desde posturas niilistas de desfiguração moral e de desumanização. Impressiona em Bacurau, cabe enfatizar, a condução do roteiro de forma aparentemente deslocada do cenário político social brasileiro que atualmente recepciona a obra como uma quase 5

Os conceitos de tópico literário e de personagem típico, no entender de Eco (2004), apontam para o uso crítico, apelativo e ousado de situações e figuras já artisticamente consagradas em um discurso facilmente assimilável pelo consumidor médio, de modo que prescinde de narrativas densas e originais, ao passo que é rapidamente capturada em abstrações conceituais do tipo pobre virtuoso, viúva sofredora, sertão miserável, terceiro mundo sob exploração imperialista e etc. Esta argumentação em muito se aproxima das leituras feitas por Ginzburg (2014, p. 7-14) dos repertórios de iconografia política da tradição ocidental como representações públicas, e passíveis de ampla popularização, ao mobilizar fórmulas de emoções (pathosformel) e fórmulas de ideias (logosformel), condensando-se na memória social como tópicos narrativos e como figuras típicas. 6 Goffman (2012) entende por tonalização o jogo criativo e reflexivo de desestabilização, de provocação, de devaneio e de fantasia, de jocosidade e de irreverência, de brincadeira e de roteirização reinventada da tradição, de modo a compor narrativas críticas e reflexivas novas sobre o já tradicional, antigo e velho; o que configura processos complexos de reinvenção cultural (WAGNER, 2012).

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afirmação panfletária e caricata, - bem ao gosto do consumidor médio adaptado à linguagem da indústria cultural (BEZERRA et. al., 2019), - de uma narrativa já conservadora nas representações culturais brasileiras: as disputas morais entre os vários Brasis por afirmação política e identitária oficial e pública. Nesse diapasão, Bacurau configura mais um jogo alegórico sobre temas consolidados do que um refinado esforço artístico que resulta em uma narrativa de personagens densos e originais; pelo contrário: o topos (ECO, p. 209-238) da narrativa fílmica antecede à obra. E é justamente no imediato reconhecimento do topos que contextualiza social e culturalmente a narrativa fílmica de Bacurau, - em suas cenas de violência urbana e rural generalizada, de corrupção política endêmica, de vida materialmente precária e simbolicamente rica em comunidades engolfadas (SCHEFF, 1990), de rituais pessoalizados e dadivosos de amizade, assim como densas performances comunitárias nos processos de morte e morrer e etc, - que o brasileiro médio se escandaliza moral e emocionalmente com os ousados e surpreendentes jogos de tonalização de signos próprios dos repertórios simbólicos, paradigmáticos e sintagmáticos (BARTHES, 2013, p. 14) tradicionais da cultura brasileira7. De modo que o leitor da narrativa fílmica se vê constrangido a tomar partido em relação às exigências axiológicas impostas pelo conto moral que conforma o drama. Como em uma forma narrativa midráshica (MANDELBAUM, 8 2003) , portanto, que aparentemente paira em suspenso 7

Nas palavras de Barthes (2013, p. 41): “Todo signo inclui ou implica três relações. Primeiramente uma relação interior, a que une seu significante a seu significado; em seguida, duas relações exteriores: a primeira é virtual, ela une o signo a uma reserva específica de outros signos, da qual o destacamos para inseri-lo no discurso; a segunda é atual, junta o signo aos outros signos do enunciado que o precedem ou lhe sucedem”. 8 No entender de Mandelbaum (2003, p. 166): “Assim opera a forma midráschica. O midrasch não referencia o texto fundante, mas é referenciado por ele, numa orientação, portanto, que inicialmente não vai do midrasch, do comentário, ao texto fundante, mas deste ao midrasch. Cada midrasch não nomeia o texto fundante propriamente dito, não o descreve, mas, tornamos a dizer, o exemplifica através da situação que expõe. Cada midrasch comporta-se como [...] um feixe de sentidos advindos do poder conotativo resultante tanto da fabulação organizada quanto das palavras utilizadas, aponta para o texto fundante de um modo que o esclarece, desdobrando-o em sua significação, e não o amarrando numa definição fechada”.

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deslocamento de seus referenciais históricos da realidade histórica real, o filme Bacurau apresenta o pequeno urbano interiorano do Nordeste brasileiro sob ataque de estrangeiros organizados em uma proposta de jogo de safári e caça humana organizada na deep web9, esquivando-se, contudo, de limitar a experiência do espectador em possibilidades hermenêuticas definidas pelo passado nacional recente e pela atualidade10 de crise generalizada, de entrincheiramento moral e de discurso de ressentimento e desfiguração moral no espaço público real e semiótico. Este combinado circunstancial de elementos da narrativa fílmica e da conjuntura sociopolítica brasileira, portanto, fez de Bacurau uma obra mais explosiva do que suas composições artísticas. O presente capítulo, em sua abordagem antropológica da cultura brasileira desde a narrativa fílmica de Bacurau, parte do entendimento de Ingold (2019, p. 8)11 de antropologia como filosofia com as pessoas dentro, de maneira que à análise em tela interessa perceber o uso concreto e histórico por atores e agentes sociais dos signos publicamente utilizados em seus respectivos preenchimentos e associações simbólicas, paradigmáticas e sintagmáticas cotidianos. Esta abordagem antropológica do fenômeno semiótico, com efeito, remete à seguinte reflexão de Geertz (2015, p. 100): “Semiótica” se tornou uma palavra um pouco delicada e muitas vezes de referência incerta a ponto daquilo que ela significa mudar e proliferar. Meu uso dela é simplesmente o original proposto por 9

A deep web tem se consolidado como oportunidade de encontro virtual sistemático de atores e agentes sociais marginais, emocionalmente ressentidos e politicamente radicalizados, fanatizados e extremistas, tais como jovens de agremiações neofascistas, supremacistas e etc. 10 O leitor deve considerar, nesse sentido, o quadro político-social brasileiro desde 2014, momento em que o país adentrou em uma espiral de destruição material e simbólica de seus consensos tácitos mais elementares. 11 Nas palavras de Ingold (2019, p. 8): Os antropólogos, ao contrário, praticam a sua filosofia no mundo. Eles estudam – sobretudo por meio de um envolvimento profundo na observação, no diálogo e na prática participativa com os povos entre os quais eles elegem trabalhar. A escolha depende das experiências e dos interesses particulares, mas, em princípio, poderia ser qualquer povo, em qualquer lugar. Na minha definição, a antropologia é a filosofia com as pessoas dentro.

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Saussure, “a ciência da vida dos signos na sociedade”, sem outro compromisso seja com as variedades formalísticas dela que se desenvolveram na tradição estruturalista seja com as variedades escolásticas que se desenvolveram na tradição peirceana. A concepção de Wittengenstein, segundo a qual o pensamento (sentimentos, crenças interpretação, juízos) é uma atividade pública, veiculada não na “cabeça”, no “coração”, ou em algum outro lugar público inatingível, mas no mundo em plein air por meio de sistemas de sinais – em que o significado surge no uso, e o uso é social – é a noção fundamental. O resto deve provir da análise descritiva. E embora os signos envolvidos sejam, até aqui ao menos no que concerne aos entes humanos, predominantemente linguísticos, não são exclusivamente assim: imagens, números, melodias, gestos e, no caso em discussão, objetos do ambiente construído (ou, igualmente, do não construído) se entrelaçam com as palavras, e as palavras, com eles, para produzirem a rede de percepções que debilmente chamamos “experiência”.

A apreciação da narrativa fílmica de Bacurau se situa, portanto, como um exercício de compreensão da vida dos signos na sociedade, isto é, das dinâmicas morais e emocionais, expressivas e comportamentais de enunciação, negociação, segregação e reinvenção de sentidos no lugar público. Mais que um texto encerrado em si mesmo, o conto moral se insinua como pretexto para a reinvenção cultural da experiência. O resto, como bem pontuou Geertz, deve provir da análise descritiva. O pequeno urbano do interior do Nordeste: tradição e modernização conservadora no lugar Bacurau A narrativa fílmica de Bacurau inicia com uma interessante provocação à plateia ao situar seu roteiro como possível desdobramento político-social de um futuro breve em relação ao atual presente histórico, e distópico, brasileiro de pânico e falência moral generalizados. Com efeito, o espectador é lançado inicialmente em uma viagem de caminhão-pipa, - desde os olhos de Erivaldo (o motorista) e de Teresa (moça que circunstancialmente retorna do urbano moderno de volta ao antigo sítio Bacurau), - rumo

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aos rincões interioranos de Pernambuco, percorrendo uma estrada precária e erma que paulatinamente revela o peculiar da paisagem natural sertaneja e da paisagem social nordestina.

Figura 1: Abertura da narrativa fílmica, com Erisvaldo e Teresa na boleia do caminhão-pipa a caminho de Bacurau, apresentado como lugar geográfica e socialmente distante.

Fonte: Print retirado do Filme Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019.

Já de partida o roteiro de Bacurau surpreende o espectador com insinuações sobre o problema social em torno do qual gravita o conflito existencial que inspira toda a trama: a questão do direito de acesso à água pelas populações nativas historicamente empobrecidas e exploradas pelos terratenentes locais. O acesso desta população marginalizada à água, nesse sentido, perpassa as tensões políticas e os modos e estilos de vida locais, configurando uma cultura de resistência e de resiliência às estratégias externas de dominação política e de desfiguração moral. O fato de os personagens típicos Erivaldo e Teresa abrirem a narrativa fílmica a bordo de um caminhão-pipa a caminho de Bacurau, nesse sentido, é revelador enquanto chave-analítica da narrativa. Na boleia do caminhão-pipa, Erivaldo e Teresa avançam com água e medicamentos para o povoado de Bacurau, deixando para trás uma cena trágica de acidente envolvendo um caminhãobaú carregado de caixões e uma moto (em breve alusão à chacina que está para acontecer em Bacurau), ao passo que ouvem a rádio

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regional oferecer uma vultosa recompensa a quem entregar às autoridades públicas o paradeiro de Lunga, - personagem típico e expressão caricata da rebeldia jovem e da revolta política dos moradores pelo livre acesso à água. Esta cena de abertura da narrativa fílmica de Bacurau se completa quando Erivaldo e Teresa atingem um planalto de onde divisam o suposto esconderijo de Lunga e comparsas (nos confins remotos da paisagem) e de onde também apontam para o local exato do bloqueio, - por parte dos terratenentes locais, - do canal recém-construído de transposição e de integração das bacias hidrográficas para o abastecimento de água da região12. Este momento de reflexão política, que sintetiza a situação de humilhação dos nativos de Bacurau, é rapidamente interrompido por capangas que disparam desde longe suas armas de fogo. Ante este alerta de amedrontamento e de desfiguração moral, Erivaldo atualiza para Teresa o ato de valentia de Lunga e comparsas em ter enfrentado episodicamente o poder político e econômico local com uma intensa troca de tiros. A narrativa fílmica sugere, - desde esta cena, muito embora só retrospectivamente se torne claro, - que as autoridades locais ofereceram o antigo sítio Bacurau e a fazenda Trarairú, partes do município de Serra Verde, como oportunidade de safári humano a um grupo norte-americano caricaturalmente WASP – White AngloSaxon Protestant de matadores organizado na deep web, justamente para poderem se livrar dessa população indesejada que luta pelo acesso à água. Luta esta que, consequentemente, consolidará a afirmação política, cultural e identitária de Bacurau enquanto paradigma do Nordeste profundo. Passada esta cena, a viagem de Erisvaldo e de Teresa a bordo de um caminhão-pipa prossegue sem sobressaltos até Bacurau, em cuja entrada, à beira da estrada, vive um casal que acena boasvindas aos que chegam, ao passo que, - via mensagens viralizadas de celular, -também informa aos moradores dos novos visitantes. Como uma espécie de encarregados por este entreposto avançado do sistema informal de defesa de Bacurau, este casal, ao longo da 12

A narrativa fílmica de Bacurau permite, nesse momento, uma associação direta ao contexto histórico brasileiro de construção e de uso da obra faraônica da Transposição do Rio São Francisco e de seus famosos trechos conhecidos, entre outros, como Canal da Redenção.

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narrativa fílmica, informará das entradas e saídas do prefeito de Serra Verde Tony Jr. e de sua comitiva, bem como alertará das investidas e emboscadas dos estrangeiros. Na passagem de Erisvaldo e de Teresa pela entrada de Bacurau ouve-se, assim, as boas-vindas do casal de guarda, enquanto o bom malando Erisvaldo sussurra para Teresa, referindose à promiscuidade das relações entre o casal: “Se toda gaia fosse assim!”. A tônica da narrativa fílmica engata, a partir de então, um tom jocoso e irônico, descrevendo os coloridos e sabores de uma convivialidade do pequeno urbano interiorano, ainda acentuadamente rural. Teresa apeia da boleia do caminhão-pipa na rua central de Bacurau, um estirão de barro batido esburacado e ladeado de casas populares, em estilo nordestino tradicional. O primeiro contato de Teresa em Bacurau se dá com Domingas, médica do posto de saúde local e um dos empreendedores morais (BECKER, 2008) da comunidade. Domingas, senhora branca de idade avançada, bate as janelas, de onde espiava a chegada de Teresa, e não devolve a gentileza do cumprimento. Teresa, em gesto irônico, segue seu caminho até a casa do pai, o professor Plínio, e da sua avó, Carmelita, que lhe aguarda já em leito de morte, para a derradeira despedida. Ao chegar no terreiro de casa, Teresa se depara com uma multidão que vela o corpo da avó Carmelita: moradores de longa data de Bacurau e sítios das adjacências. A multidão a recepciona em um caloroso ritual de boas-vindas, ao passo que ela entrega os medicamentos e sua bagagem nas mãos do povo, que em corrente os conduz até o terraço da casa nas mãos do seu pai e professor Plínio. Teresa, então, despede-se da avó Carmelita, a matriarca negra de Bacurau, curandeira e benzedeira de renome. A cena seguinte da narrativa fílmica desperta a atenção do leitor ao pôr em foco a personagem Domingas em prantos e em gritos de acusação chula à Carmelita e sua família. Ao longo do filme se perceberá, contudo, que Carmelita e Domingas, como um par de gêmeas espiritualmente conectadas, mas relativamente opostas, dispendia os cuidados à saúde dos moradores. Neste momento, porém, o professor Plínio acode ao público e do alpendre de sua casa defende a honra da mãe: em 94 anos dona Carmelita teria

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gerado filhos e netos, tendo eles sido putas, michês, pedreiros, doutores, cientistas, mas nenhum ladrão. Domingas, silenciada pelo discurso do professor Plínio e tomada nos braços pelos moradores, cede espaço ao cortejo fúnebre de Carmelita, que percorre as ruas de Bacurau conduzido por Plínio, Teresa, o repentista local e, mais à frente, pelo DJ Urso. Estes personagens típicos, como já aludido anteriormente, conferem contornos de personalidade à multidão de moradores de Bacurau, em si indiferenciada, mas não são explorados enquanto subjetividades e curvas de vida (VELHO, 1986, 1999, 1999a, 2003) de fato individuais e individualizadas no sentido da pessoa individual ocidental (MAUSS, 2003; SIMMEL, 1970, 1998, 1998a, 1998b, 1998c, 2005), entendida enquanto fenômeno existencial único de contornos espirituais e existenciais singulares em um universo relacional de iguais em valor moral. A trama narrativa em Bacurau, nesse sentido, quebra a frieza dos moradores tomados em conjunto e sem rostos definidos somente ao destacar algumas figuras pitorescas, tais como a curandeira (Carmelita) e a médica do posto de saúde (Domingas), o repentista e o DJ local (DJ Urso, a pancada do Araripe), o professor do grupo comunitário (Plínio) e o jovem malandro em quem todos confiam (Pacote), o prefeito corrupto (Tony Jr.) e o rebelde transgressor (Lunga) que, enquanto atores sociais caricatos excessivamente integrados, ainda que de forma ambígua, à funcionalidade do todo social em que estão inseridos, demonstram pouca ou nenhuma agência, deslocando-se segundo a lógica geral dos cenários e situações da narrativa fílmica. O elemento da ação, da reflexão, da criatividade, da negociação e da tensão, nesse sentido, está projetado discursivamente na comunidade de moradores de Bacurau, cuja composição se mostra bastante aberta à diversidade e à diferença geracional, de gênero, racial e de estilos de vida.

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Figuras 2 e 3: Domingas apresenta-se alterada no velório de Carmelita e lança ofensas morais à antiga comadre (primeira imagem). Cortejo fúnebre de Carmelita deixa a casa da matriarca (segunda imagem).

Fonte: Print retirado do Filme Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019.

A mensagem da narrativa fílmica, assim, é clara ao apontar a convivialidade no pequeno urbano interiorano como intensamente pessoalizada e relativamente pacífica no que tange à grande violência entre iguais. As cenas, nesse sentido, mostram um acentuado sentimento de pertença (KOURY, 2001 e 2003) que une os moradores no lugar Bacurau como família extensa, como compadres e amigos, como rede de intrigas e fofocas e como

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hierarquias morais que administram um mundo comum de papéis sociais, trajetórias e curvas de vida em ampla cordialidade. Ao longo do cortejo fúnebre e do sepultamento de Carmelita alguns elementos da cultura popular tradicional nordestina chamam a atenção de um leitor mais atento aos pormenores da narrativa fílmica de Bacurau. O ritual de morte e morrer, por exemplo, iniciado com o velório do corpo na casa do morto e findo com os acenos e bênçãos da comunidade no cemitério, - performatiza o uso do popularíssimo bate queixo ou caixão de pobre, isto é, aquele caixão que enterra o morto, mas é devolvido para usos subsequentes. Este elemento da cultura local é simetrizado com tantos outros hábitos, costumes, vestimentas e linguagens que marcam o primeiro momento da narrativa fílmica (concluído exatamente aos 33:40min da obra), em que praticamente se abusa do pitoresco, do exótico e do propriamente nativo e local da cultura nordestina contemporânea, seja em seus traços mais tradicionais ou mais modernizantes. A proposta de Bacurau, nesse sentido, é de jogar com as expectativas do leitor de uma narrativa fílmica que se inicia com a provocação “Brasil, daqui há alguns anos” e, paradoxalmente, se vê confrontado com tradições de um passado em negociação com usos e costumes atuais. Este nordeste profundo cheio de modernismo, mas sem modernidade, é apresentado, por exemplo, no caminhão que traz as putas e o puteiro ali mesmo improvisado; na circulação de estilos sexuais desviantes pelo arruado, sobre os quais os moradores democraticamente se divertem; na mistura oportunista de política e favores sexuais, muitas vezes perpassados por violência simbólica e mesmo física; na casa de banho público frequentada por todos ou quase todos em uma cidade com grave problema de desabastecimento de água; no uso do posto de saúde local para lidar com os problemas interacionais entre casais, famílias e vizinhos, como o completar um sono depois de ter sido expulso de casa pela mulher em razão de uma bebedeira; na feira livre organizada pelos próprios moradores e animada pelo DJ local, figura animada e curiosa, que conecta a comunidade às novidades da sociedade da informação; na comensalidade e na religiosidade comunitárias; no uso tradicional de psicoativos; nos jogos de capoeira; na relação sempre coletiva com o político local. Trata-se, em síntese, de um

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mundo social construído na experiência coletiva de segurança ontológica proporcionada pela pessoalidade, pela copresença e pela pertença; elementos sociais e culturais estes cotidianamente vivenciados na circulação de crianças, no uso jocoso de apelidos, na partilha das dificuldades individuais somente passíveis de solução negociada pelo grupo, na promiscuidade ironizada como amancebo e gaia, na rede de fofocas e rumores, nas parcerias profissionais e lúdicas, e, enfim, nas intrigas e solidariedades que colorem uma vida comum a longo prazo. A primeira parte da narrativa fílmica de Bacurau descreve e discute, portanto, a cultura brasileira, em sua variante nordestina, como moeda paradoxal: a face relacional encanta pela resiliência, pela criatividade e pelo gosto de viver em tradições de pessoalidade e pertença. Enquanto que a face institucional intriga e amedronta pelos elementos pré-modernos de violência, pobreza e exclusão de amplas parcelas da população por parte de uma elite local oportunista, ressentida e historicamente treinada para a imposição de condutas mediante estratégias amplas de desfiguração moral (GOFFMAN, 2010 e 2011). O momento da festividade, da comensalidade, da religiosidade, da dádiva e do reconhecimento entre iguais da cultura popular, com efeito, é posto de lado no segundo momento da narrativa fílmica de Bacurau. Então se traz à discussão o histórico de violência física e simbólica que assola os rincões do país na forma de pistolagem, emboscada, sequestro, tortura, expulsões de lavradores de suas terras, grilagem, escravidão e ações de silenciamento e extermínio de populações em uma roteirização, forma tonalizada de disposição do discurso público (GOFFMAN, 2012), - de invasão estrangeira à Bacurau por fascistóides (VINCENT, 1995) supremacistas brancos, em conluio com a elite local. Esta busca pela solução final na forma de tentativa de extermínio de uma população já desfigurada moralmente e desumanizada simbolicamente se processa em espirais de vergonha (SCHEFF, 1990) e de ressentimento (ANSART-DOURLEN, 2009; MILLER, 1995) desencadeados por experiências coletivas de trauma e de rebaixamento moral, reais ou imaginários, e que, no mais das vezes, envolvem a produção de bodes expiatórios que canalizem, no jogo interacional de desculpas e acusações, as violências miméticas entre as facções em disputa para alvos mais frágeis que possam ser

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utilizados como elemento de catarse. No cenário global de crise generalizada do capitalismo neoliberal e de crise social e política no Brasil, personagens ressentidos, assim joga o discurso tonalizado de Bacurau, teriam vindo para o Nordeste profundo do Brasil, - sua mais problemática variante de atraso cultural e de falência civilizatória, - para a prática do safári humano, - último estágio de uma escalada de desfiguração moral e de desumanização do outro. Ressentimento e estratégias de desfiguração moral: a tonalização das clivagens sociais e culturais no Brasil sob o pretexto de invasão estrangeira Em suas considerações sobre os processos sociais e culturais de formação do samba como gênero musical popular, oportunamente alçado pelos empreendedores morais e políticos da emergente república brasileira (BECKER, 2008) a formato estético narrativo do urbano periférico e da identidade nacional, - Lira Neto discorre sobre o contexto de disputas morais entres os brancos bem-nascidos e os negros recém libertos da senzala em franco processo de disputa moral no Rio de Janeiro de então. Nas palavras do autor (2017, p. 34s), o contexto moral-emocional de então era ativamente construído por uma elite branca envergonhada e ressentida de seu atraso civilizatório em relação às nações modernas e que, consequentemente, mobilizava contra a pobreza negra e parda suburbana um amplo repertório de estratégias de desfiguração moral e de violência física tonalizados como argumento de modernização, de civilização, de progresso, de ordem, de branqueamento, de europeização dos costumes das classes perigosas: Desafricanizar a capital da República, aliás, era uma missão que as autoridades vinham pondo em prática em nome da modernidade e da civilização. ⁂ O regime republicano, instaurado em 1889, um ano e meio depois da abolição dos escravos, dizia-se inspirado nos postulados científicos da filosofia positivista do francês Augusto Comte. Não por acaso, tinha como lema a máxima comtiana “O amor como princípio, a ordem como base e o progresso como meta” – divisa imortalizada, em versão sintética, na

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própria bandeira instituída pelo governo federal então recém-instalado e que, até hoje, serve de símbolo nacional aos brasileiros: “Ordem e Progresso”. Por semelhante perspectiva, os velhos cortiços eram considerados a principal insígnia do atraso, a representação eloquente de um passado a ser combatido e um mal a ser extirpado, como um asqueroso tumor, em nome da pretendida assepsia dos novos tempos e dos ares renovadores do novo modelo civilizatório. Daí a “campanha cívica” pela derrubada do maior de todos eles, o Cabeça de Porco, composto por um labirinto de casebres, cocheiras, estábulos, pocilgas e galpões, situado à rua Barão de São Félix, no coração da Pequena África. Classificado pela imprensa como um “valhacouto de capoeiras e assassinos”, “mundo de imundície”, “atestado negativo da nossa civilização” e do nosso bom senso em matéria de higiene”, o local acolhia em torno de 2 mil moradores, a maioria deles negros e mulatos, gente que engrossava a legião de estivadores, pedreiros, serventes, costureiras, ambulantes, marceneiros, doceiras, sapateiros, lavadeiras, biscateiros, prostitutas, punguistas, rezadeiras, embromadores, ventanistas e desempregados em geral da cidade. Às setes e meia da noite do dia 26 de janeiro de 1893, um batalhão de infantaria, com soldados armados de fuzis, carabinas e mosquetões, ficou encarregado de iniciar a ação, cercando o local e impedindo qualquer pessoa de romper os cordões de isolamento. Um piquete de cavalaria deslocou-se para a área, investido da missão de guarnecer as ruas e os becos transversais e desestimular, de espada em riste, possíveis focos de resistência. Forças policiais auxiliares infiltraram-se pela retaguarda, depois de se embrenhar nas matas quase virgens do morro da Providência, elevação encravada entre a zona portuária e a região central da cidade. Por volta das nove da noite, cerca de 150 homens, funcionários da prefeitura municipal, municiados de marretas, alavancas e pés de cabra, obedeceram à voz de comando e arremeteram contra o alvo. O bruxulear dos archotes usados para iluminar a operação militar conferia maior dramaticidade à cena. Uma multidão, contida ao largo pelo contingente armado, assistia à distância, como a um

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espetáculo sinistro, à destruição madrugada a dentro. O elemento surpresa impediu possíveis reações organizadas por parte dos desalojados. Em meio à barulheira e à penumbra, homens, mulheres e crianças, antes encafuados nos desvãos dos pequenos imóveis, corriam atônitos pelas ruelas tentando salvar um ou outro pertence tido como mais valioso: colchões, alguns poucos móveis, trouxas de roupa, tralhas de cozinha. Na manhã seguinte, no entanto, sob o sol de verão carioca, foi possível constatar o tamanho do estrago: nada escapara à demolição. Restou, no local, apenas uma montanha poeirenta de entulho.

A descrição densa de Lira Neto não deixa margem a dúvidas sobre os processos de construção violenta, em termos materiais e simbólicos, da cultura brasileira. O século XX, nesse sentido, marca uma fase deveras criativa, por parte da elite ou dos empreendedores morais e políticos nacionais, no acosso, na perseguição, na apropriação cultural e na administração da pobreza, urbana e rural, como elemento de ameaça à normalidade normativa e aos códigos civilizatórios que o Brasil oficial pretende alcançar no jogo das nações modernas. Um país oficioso, invisível ou invisibilizado, informal, de miseráveis, de pobres, de excluídos, de analfabetos, de deserdados do secular sistema escravista e dos não preparados para o jogo de relações mercantis capitalistas, teima, entretanto, em ocupar, enquanto resíduo indesejável, amplas parcelas do mundo relacional brasileiro. Não obstante, a pobreza, principalmente urbana, tem logrado ela mesma ser o momento de singularidade da cultura nacional, restando aos resquícios de cultura branca europeia do colonizador somente um formato envelhecido e rococó de práticas nostálgicas. A análise socioantropológica da cultura brasileira sintetizada por Schwarcz (2015), nesse diapasão, enquadra bem o cenário relacional distópico brasileiro, - mas prenhe de esperanças, - ao situar os vários gradientes axiológicos, comportamentais, políticos e estéticos que o caracterizam: a nação de recente passado escravista e colonial se pretende um projeto político moderno de cidadania; o país da mestiçagem, da hibridez e da diversidade cultural se apresenta como unidade linguística, jurídica e políticoadministrativa; o jogo cotidiano de autoritarismo, de personalismo

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e de violência é oficialmente silenciado por agências oficiais que negam as fronteiras de cor e que afirmam a cordialidade como modo de navegação social amplamente aceito na terra da falta e do excesso. Seguindo esse argumento, Lira Neto (2017), Darcy Ribeiro (1995), DaMatta (1986, 1997), Gilberto Velho (1999, 1999a, 2003), Octávio Ianni (2004), Alba Zaluar (2003), Mauro Koury (2017, 2017a), entre outros estudiosos da cultura e do social no urbano contemporâneo brasileiro construído a partir de uma agenda secular de modernização conservadora (BARBOSA, 2015 e 2019), têm apontado para a pulsante criatividade do Brasil do samba, dos encontros raciais, do povo malandro das ruas, dos sujeitos urbanos, das narrativas oficiosas dos vários Brasis, do homem comum pobre urbano, dos bailes e galeras das favelas; ao passo que estes mesmo autores tem também apontado para a perversa construção do Brasil oficial, institucional e dominado por um punhado de empreendedores morais e políticos distanciados das urgentes causas nacionais. Ianni (2004), nesse sentido, percebe o Brasil como um país ainda em busca de conceito, moralmente entrincheirado entre as narrativas nacionais identitárias oficiais e oficiosas. No entender de Ianni, a questão nacional brasileira permanece em suspenso e perversamente emaranhada como uma complexa problemática cultural sobre o que é a sociedade civil, a relação entre Estado e Sociedade, as identidades regionais, os povos nativos, os imigrantes abrasileirados, a relação entre campo e cidade, as relações de gênero, os valores da modernidade ocidental (tais como cidadania, direitos humanos, igualdade formal, liberdade individual, responsabilidade social) em face da violência urbana e, sobretudo, diante da secular e jamais resolvida questão racial, elemento explosivo fundante da cultura e da sociedade brasileira. A narrativa fílmica de Bacurau, com efeito, opera uma tonalização destes signos próprios dos repertórios simbólicos, paradigmáticos e sintagmáticos (BARTHES, 2013, p. 14) de violência tão tradicionais da cultura brasileira, - como bem pontuou Lira Neto (2017) em seu estudo sobre a sociogênese do samba, - que são os processos ressentidos de desfiguração moral dos marginalizados pela elite local pretensa e performaticamente modernizante e estrangeira. Bacurau, nesse sentido, mais que uma narrativa de afirmação de culturas populares subalternas sobre a cultura oficial,

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- paradoxalmente estrangeira, muito embora lugar comum em uma sociabilidade de gênese colonial, - pode ser lido como uma narrativa sobre ressentimento expresso em estratégias de desfiguração moral. Nas palavras de Ansart (2009, p. 22): “A humilhação não provém apenas de uma inferioridade. Ela é a experiência do amorpróprio ferido, experiência da negação de si e da autoestima suscitando o desejo de vingança”. O ressentimento enquanto juízo de valor aponta para uma experiência de desordenamento do mundo, ou seja, o sistema socioafetivo e de posições foi transgredido ou corrompido. Goffman (2012), neste sentido, aborda o ressentimento de jogadores que gradualmente se descobrem como o “marca” (o otário) da relação, enquanto que, na teoria eliasiana sobre o poder social, o ressentimento é entendido como o sentimento de exclusão ou de inferiorização do self dos círculos de pertença e de reconhecimento, de modo que pode ser desenvolvido tanto pelos fracos ou escravos, quando experimentam a frustração de sua ascensão ou emancipação social, quanto pelos senhores, quando experimentam situações de perda de privilégios e decadência material. Konstan (2009, p.61-62), por seu turno, trata do ressentimento como fenômeno emocional e moral objetificado em um vocabulário expressivo e comportamental próprio. O autor, deste modo, identifica um sentido psicológico, um sentido social e um sentido existencial para esta emoção ou gramática moral. Em sua dimensão psicológica, o ressentimento se apresenta como uma raiva e irritação duradoura, cultivada e acalentada perante uma frustração ou quebra de confiança que põe em xeque a ordem moral e interacional, confundindo desejos, projetos e memórias individuais e coletivas. De uma perspectiva social, o ressentimento compreende uma humilhação reiterada, ou vergonhosa desgraça, em razão da desqualificação do sentimento de pertença. O ressentimento, assim, extrapola o sentimento de perda ou de medo da perda da fachada individual em uma situação de ofensa ou injúria à pessoa, mas responde mais particularmente ao preconceito ou discriminação da pessoa enquanto membro de um grupo e identidade coletiva em uma relação entre estabelecidos e outsiders.

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Enquanto fenômeno existencial, Konstan (2009, p. 61) valese de Max Scheler para pontuar que: [Ressentimento é] uma atitude mental duradoura, causada pela repressão sistemática de certas emoções e afetos que são componentes normais da natureza humana. A repressão dessas emoções leva a uma tendência constante de se permitir atribuir valores incorretos e juízos de valor correspondentes. As emoções e afetos primordialmente referidos são vingança, ódio, malícia, inveja, o impulso a diminuir e desprezar.

O ressentimento, neste sentido, emerge como uma paixão vil, obsessiva e duradoura que envenena a subjetividade e o humor do indivíduo atomizado e desfigurado por humilhações reiteradas, incapaz de participar da ordem interacional normal, com suas exigências de decoro, aprumo e vergonha cotidiana, sem recorrer a recursos de ironia, sarcasmo e ofensa moral. Trata-se, assim, de uma emoção que gradualmente se desloca de um objeto ou evento real, pois se volta contra tudo e contra nada em particular. A quebra da narrativa fílmica por volta do minuto 44, - que dá início a um modelo thriller e western de roteiro banhado a perseguição, tiroteio e sangue, - joga, assim, com a expectativa do leitor até então maravilhado com o utópico cenário de convivialidade entre os mestiços brasileiros. Este primeiro momento da narrativa fílmica dedicado ao confronto entre os marginalizados, a comunidade de Bacurau, e a elite local (tonalizado como invasão estrangeira) é performatizado com um drone tipo disco voador que perversamente persegue um morador de Bacurau à noite: naves estrangeiras que fortuitamente aportam no Novo Mundo são paradigmáticas no imaginário sintagmático de violência nas Américas. A cena seguinte de uma tropa de cavalos invadindo a rua principal de Bacurau à noite insiste no mesmo tópico de invasão estrangeira e quebra da normalidade normativa local mediante a disseminação do pânico. Os moradores, então, saem às soleiras de suas portas e percebem que se trata do plantel da fazenda Trairú, situada a alguns quilômetros. Isto somado ao fato de o sinal de internet ter sumido de Bacurau, bem como o fato de a localização da comunidade ter

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sumido dos mapas virtuais, acendendo o alerta dos moradores de que possíveis ameaças estão em curso, haja vista a ligação da comunidade com Lunga e seus comparsas em luta pelo acesso à água. Já no dia seguinte dois amigos enlaçam os cavalos fugidos e seguem para a tal fazenda, onde se depararão com toda a família brutalmente chacinada e serão igualmente assassinados. Na cena seguinte o personagem Pacote, - um líder juvenil destacado de Bacurau, amante de Teresa e bastante próximo do professor Plínio, pai da moça, - recebe do entreposto avançado à entrada de Bacurau a informação de que um casal de motoqueiros vestindo capacete avança para o centro do arruado: trata-se de dois brasileiros do sul do país, de traços caucasianos, cuja missão é espionar a situação atual para a breve investida violenta dos estrangeiros. Imediatamente reconhecidos como estranhos à comunidade, esse casal de motoqueiros é embaraçado e constrangido por Pacote e pelo repentista local, que percebem os sinais de ameaça. Pacote, nesse ínterim, tenta desesperadamente fazer contato com os amigos em Trairú, que, como se saberá mais adiante, já se encontram mortos. Daí em diante a narrativa fílmica apresentará os dois partidos em disputa, - os nativos conduzidos por Lunga, Pacote, Teresa e Plínio; e os estrangeiros invasores, - em situações típicas de preparação para o combate, como diálogos jocosos, pequenas rusgas internas e desabafos ressentidos; e de trocas de tiros e mortes violentas. Chama a atenção do leitor da narrativa, no conjunto de movimentações que resultará na vitória da comunidade de Bacurau sobre os invasores, a morte violenta e o âmbito do jogo de safári humano do casal brasileiro de motoqueiros que apoiou os estrangeiros. Muito embora eles se autopercebessem como brasileiros sulistas brancos e mais europeus, definitivamente social e culturalmente distantes e diferentes do Nordeste profundo expresso na mestiçagem idílica de Bacurau, foram classificados como este outro a ser exterminado pelos invasores estrangeiros brancos caucasianos, bem dentro do típico caso do comportamento vira-lata brasileiro que se dá mal. Não bastasse o envergonhamento por não terem se assumido como brasileiros, estes dois personagens sofrem a intensa humilhação de terem suas pretensões públicas de

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honra, prestígio e privilégio moralmente desfiguradas e destruídas. Nas palavras de Miller (1995): Uma das distinções mais salientes entre vergonha e humilhação é que, na raiz, a humilhação depende da deflação da pretensão. Embora tanto a vergonha como a humilhação produzam o efeito do rebaixamento moral, ao contemplar a vergonha o observador mais provavelmente será movido para a piedade do que para a alegria. Em um sentido áspero, mas muito crucial, a vergonha envolve justiça trágica, já a humilhação desencadeia a justiça cômica. A vergonha é o material da seriedade e da austeridade, enquanto a humilhação muitas vezes participa da farsa e do engodo; tal é o caso, pelo menos, da perspectiva de terceiros [...] Ao contrário da vergonha, a humilhação pode atravessar os limites fechados do grupo de honra. Na verdade, a humilhação é a experiência emocional de ser pego inadequadamente atravessando as fronteiras do grupo na direção de um território em que não se tem negócios a tratar. Se a vergonha é a consequência de não viver o que devemos, então a humilhação é a consequência de tentar viver no contexto em que não temos direito para tal. (MILLER, 1995, p. 138-145).

Nesse mesmo diapasão de exercício de desfiguração moral e humilhação do outro, a exposição das cabeças decapitadas dos invasores no adro da igreja matriz de Bacurau remete a uma simbologia paradigmática da tradição violenta nacional: o banditismo social expresso no cangaço vitorioso sobre as práticas coronelistas locais. Com efeito, em um último ato de reação às investidas ressentidas de desfiguração moral e de violência física da elite local aos pobres, os moradores de Bacurau imobilizam o prefeito Tony Jr., - logo quando este adentra a comunidade com sua comitiva política na expectativa frustrada de receber os estrangeiros bem sucedidos no massacre à Bacurau, - e o entregam despido e montado em um burro às durezas ambientais da caatinga, em uma clara alusão a um medievalismo picaresco tradicionalmente associado às práticas culturais populares nordestinas. A mensagem da narrativa fílmica é a de vitória coletiva dos marginais sobre os poderosos, de triunfo da resiliência e da resistência popular.

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Inversamente à cena descrita por Lira Neto (2017) de destruição total do cortiço carioca pelos empreendedores morais e políticos da nascente República brasileira, entretanto, Bacurau é um libelo às culturas subalternas brasileiras (dos pobres, negros, mulheres, indígenas, minorias étnicas, religiosas, sexuais e regionais) em constante disputa moral pelos valores, símbolos, heróis e narrativas da nação. Enquanto a cultura dominante tem afirmado o debate sobre a construção da nação como uma questão de dominação ressentida das massas humanas e de trabalhadores, e não de construção da cidadania, variando em discursos oligárquicos, racialistas, autocráticos e populistas de desfiguração moral e de ênfase no processo de conquista territorial, de consolidação da estrutura político-econômico autoritária e exploratória e na adaptação da cultura europeia nos trópicos; a cultura popular e suas correspondentes narrativas subalternas, por sua vez, enfatizam os processos cotidianos de sobrevivência, de marginalidade, de estigma, de precarização, de perseguição e de enfrentamento da ordem oficial estabelecida. Policarpo Quaresma e seu quixotesco enfrentamento dos Bruzundangas, em Lima Barreto, ou o herói Macunaíma sem nenhum caráter, de Mário de Andrade, compõem a trincheira de personagens destas narrativas subalternas das Vidas Secas descritas por Graciliano Ramos e que uma e outra vez retornam ao palco da história brasileira em momentos críticos como a Praieira, a Farroupilha, a Cabanagem, a Sabinada, Canudos, Contestado, entre outros. Seja no Cangaço, nas Ligas Camponesas e nas experiências liminares (TURNER, 2008 e 2013) dos sem-terra, dos sem-teto, dos estudantes e dos moradores dos rincões do pequeno urbano, a cultura dominante, - tonalizada em Bacurau na narrativa de invasão estrangeira, - e as culturas dominadas, - abordadas no filme como utopia carnavalizada de convivialidade, - se enfrentam em uma relação dialética ressentida entre o oficial e público (minoritário) e o oficioso não midiatizado (majoritário). Considerações finais Este capítulo discutiu a polêmica e premiada obra Bacurau, lançada em 2019 por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, desde uma breve abordagem antropológica da cultura brasileira,

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tensionada em seus processos tradicionais de produção de ressentimento e de desfiguração moral. No contexto fílmico de tensões e de buscas por novas recomposições e remontagens morais, os moradores do antigo sítio Bacurau enfrentam uma investida estrangeira de extermínio físico em paralelo às investidas de desfiguração moral historicamente produzidas pela elite local, enquanto estes mesmos invasores justificam e desculpam suas estratégias ressentidas de desfiguração moral. Em forma midráshica, a narrativa fílmica de Bacurau desestabiliza as expectativas do leitor ao apresentar a cordialidade e a violência próprias da cultura brasileira sem referências reflexivas diretas, mas inversas; isto é, que convidam a recorrente instrumentalização da narrativa fílmica como mera alegoria de um real histórico que a sustente. Com efeito, o enfrentamento violento entre terratenentes que impõem o controle social da água e comunidades locais em busca de acesso à água acontece no cotidiano dos rincões pernambucanos, paraibanos e cearenses, mesmo em contextos de solução técnica para o problema de abastecimento de água. É comum, nesse sentido, grupos de capangas, mais ou menos envolvidos em redes lícitas e ilícitas de poder político e econômico, aterrorizarem as populações locais que lutam pelo acesso à terra e à água na região. Este real histórico, assim, aparece no filme enquanto experiência reiterada de estratégias de desfiguração moral da elite brasileira, em associação com elementos estrangeiros ressentidos, em relação aos sentidos culturais, sociais e políticos de Bacurau. Bacurau, como meta-narrativa do processo brasileiro de construção da nação, tonalizou uma experiência histórica de violência ao substituir os matadores locais de sempre por um grupo facistóide estrangeiro de supremacistas brancos. Este, portanto, foi o argumento teórico desenvolvido no presente capítulo de livro. Referências ANSART, Pierre. História e Memória dos Ressentimentos. In: Stella Bresciani e Márcia Naxara (Orgs). Memória e (Res)sentimento: Indagações sobre uma questão sensível. Campinas: EdUNICAMP, p. 15-36, 2009.

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CAPÍTULO 2 A Agonia da Memória em Guerras do Brasil.doc Stamberg José da Silva Júnior13

Resumo: Este trabalho é fruto de uma análise imagético-discursiva do primeiro capítulo da narrativa seriada Guerras do Brasil.doc, intitulado As Guerras da Conquista, presente no serviço de streaming da Netflix. No artigo, abordamos os conflitos existentes em uma contenda pela representação do real a partir de recursos simbólicos que permeiam a mnemônica quando associada a traumas históricos, à guerra e a uma certa “holocaustização” das práticas de memória nacional. A partir disso, visamos dialogar a narrativa seriada com autores pós-colonialistas, historiadores e filósofos modernos e contemporâneos a fim de entender os processos de subjetivação cognitiva desses discursos nos novos meios de produtos audiovisuais, entendendo estes enquanto agentes na apreensão do conhecimento, do real e da construção de um imaginário hodierno. Palavras-chave: Memória. Guerra. História Pública. Narrativas Seriadas. Ressentimento.

Introdução Não existe paz quando se trata da natureza humana. O caos ao qual estamos todos submetidos faz parte de um ser que é, em si mesmo, agonístico, trágico - como bem argumenta Nietzsche (1992) em O Nascimento da Tragédia - contraditório e ambivalente. A agonia em nós torna-se, assim, o elemento fundamental para que nos tornemos demasiadamente humanos. Nessa luta interna, para o filósofo, a contingência exige que a nossa existência se dê em toda a sua potência, em sua máxima plenitude. Diante de um mundo 13

Mestrando do Programa Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanas da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. E-mail: stambergjunior@gmail.com.

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interno repleto pelas contradições, o homem, que é movido pelos desejos, conforme Freud (1978), luta desde o início dentro de si mesmo para sobreviver. Seguindo a lógica da evolução darwiniana, que considera os mais fortes como os que sobreviveram às intempéries da expansão da vida, a luta foi e é necessária para a sobrevivência dos seres que aqui habitam. Estamos sempre em dissonância dentro e fora de nós. O conflito, que já se inicia internamente, parte também para o social. Se em estado de natureza estamos sempre nos defrontando com o outro como sendo o predador, segundo o argumento de Hobbes (2003), precisamos de alianças para lidar com a existência em troca de segurança e proteção, o que nos confere uma natureza movida pelo interesse. Não podendo fugir de sua forma ontológica, de luta pela sobrevivência e disputa de poder - visto que somos seres políticos, segundo Aristóteles (2007) - os seres humanos transplantam a agonia dentro de si para fora, resultando, muitas vezes, em guerra. A existência humana sempre foi marcada pela guerra. Há possibilidade de estarmos em disputa desde os primeiros hominídeos, visto que apenas alguns de nossos ancestrais resistiram e chegaram àquilo que somos hoje: os rastros do que restou de nós. Em sua Microfísica do Poder, Foucault (1979) nos apresenta o conjunto de forças existente nas relações sociais mais triviais da existência: o ser humano parece precisar do conflito para a manutenção de sua sobrevivência. Não existe paz quando a guerra, a disputa pelo poder - a busca incessante pela satisfação do desejo - é o motor da ação humana. Ao nos relacionarmos com o outro, o poder faz com que o processo dialógico estranhe o que é diferente de nós. Nessa disputa, a história passou, durante muito tempo, a ser contada a partir da perspectiva daquele que vence o conflito. Os “vencedores”, aqueles que impõem o seu poder não apenas de maneira bélica, mas também simbólica, narram as vivências a partir de suas perspectivas, o que acaba sendo perpetuado pelo tempo. Assim, construímos vários mitos, por exemplo, em relação ao processo de colonização brasileiro - os chamados mitos “fundadores” ou “fundacionais”. Entre eles, a ideia de que os povos nativos não foram escravizados porque eram “preguiçosos”; ou que a colonização possa ter ocorrido de forma harmônica - como sugere, segundo alguns críticos, Gilberto Freyre (2001), em Casa Grande e Senzala; ou pinturas como Primeira Missa

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no Brasil (1860 - Victor Meirelles) e ratificada pela literatura romântica brasileira em livros como Iracema de José de Alencar (1958). O primeiro capítulo da série Guerras do Brasil.doc, intitulado As Guerras da Conquista, apresenta uma versão distinta daquela reconhecida como a oficial. Dirigido por Luiz Bolognesi, o documentário de 26 minutos traz um olhar que rememora os tempos conflituosos da época do Brasil Colonial a partir da perspectiva dos “vencidos”, que apresentam seus discursos como forma de ressignificação de um passado doloroso. São apresentadas as resistências, os focos de tensão que tomam o indígena não como objeto aos olhos do colonizador europeu, mas como um semelhante em disputa pelo território, mostrando registros não de uma sobrevivência bem sucedida, mas de uma memória que se faz presente também em imagens, apesar de tudo (DIDI-HUBERMAN, 2012, p.15). Assim, esse trabalho objetiva discutir o primeiro capítulo da série da Netflix, buscando a compreensão da importância da memória - e da guerra - e debatendo a relevância dos meios de comunicação como alimentadores no processo de divulgação e apreensão do conhecimento e da memória; e também como requerentes na subjetivação dessas mensagens, entendendo essas narrativas como uma “contenda pela representação da realidade” (GINZBURG, 2007). As séries, elementos fundamentais para a compreensão das subjetividades contemporâneas associadas a novas formas de consumir e experienciar o conhecimento e a arte, são um “micromuseu imaginário vivo, que pode ser considerado metáfora (se não, caricatura) da sociedade contemporânea” (AZUBEL, 2018, p.32). Assim, para compreender que esses produtos são narrativas que podem manifestar formas de ver, pensar e sentir o mundo, visamos analisar de que forma isso acontece na prática a partir do foco na emissão da mensagem midiática e seus efeitos em discursos como memória, traumas históricos, guerra e conhecimento. Para isso, buscaremos como método de análise uma revisão bibliográfica que trate o estudo das semelhanças e diferenças entre diversos grupos, sociedades ou povos como contribuição “para uma melhor compreensão do comportamento humano. Este método realiza comparações com a finalidade de verificar similitudes e explicar divergências” (MARCONI, 2003).

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Colonialismo, Guerras e Memória Quando os brancos chegaram, eles foram admitidos como mais um na diferença. Se os brancos tivessem educação, eles podiam estar vivendo no meio daqueles povos e produzido outro tipo de experiência. Mas eles chegaram aqui com a má intenção de assaltar essa terra e escravizar o povo que vivia aqui. E foi o que deu errado. [...] Se você se sente parte dessa continuidade colonialista que chegou aqui, você é um ladrão: seu avô foi, seu bisavô foi. (Ailton Krenak em Guerras do Brasil.doc).

O discurso do historiador e filósofo indígena Ailton Krenak é apresentado nos primeiros minutos de As Guerras da Conquista, parte integrante da narrativa seriada Guerras do Brasil.doc, da Netflix. A trama, que se apoia em depoimentos de antropólogos, historiadores e militantes da causa indígena, mostra as causas e consequências dos conflitos entre as populações indígenas e os colonizadores brancos desde os tempos coloniais e que reverberam até a contemporaneidade. Buscando confrontar o discurso que considera harmônico o processo civilizacional brasileiro, a narrativa traz argumentos que se baseiam não apenas nos ditos científicos de verdade, mas também na oralidade daqueles que buscam legitimidade por meio do que chamam de uma guerra pela manutenção da memória de seu passado. A fim de manter viva uma mnemônica que não se quer ser esquecida, afinal, “o esquecimento do extermínio faz parte do extermínio, efetivamente” (DIDIHUBERMAN, 2012, p.32), a produção utiliza-se do espaço da História Pública como meio para construir uma ressignificação acerca do que é chamado, na série, de “aniquilamento dos povos originários” a partir da ideia de resistência. Por esse caminho, o documentário assemelha-se à retórica sartriana sobre o processo de colonialismo nos países em desenvolvimento. Mantidos por um sistema opressivo, ao nível do animal, não se lhes dá nenhum direito, nem sequer o de viver, e sua situação piora a cada dia: quando um povo não tem outro recurso senão escolher seu tipo

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de morte, quando não recebeu de seus opressores senão um único presente, o desespero, que lhe resta perder? É sua desgraça que se transformará em coragem. (SARTRE, 1968, p. 46).

Nesse sentido, o discurso da narrativa parece buscar uma produção testemunhal cuja linguagem e imagem compense lacunas propagadas pelo senso comum por meio dos mitos (incluindo os fundacionais supracitados), trazendo a convicção de que a “imagem surge onde o pensamento - a reflexão - parece impossível, ou pelo menos suspenso: estupefato” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p.50). O percurso do capítulo também é consonante com o pensamento póscolonialista de Frantz Fanon (1961). Ao apresentar um processo contínuo de disputa pelo território e por poder, o documentário parece trazer um elemento de ambiguidade ao afirmar que os indígenas foram receptivos aos colonizadores e ao mesmo tempo resistiram ao processo de violência sofrido incessantemente pelas populações originárias. Também é mostrado que os portugueses se “utilizaram das disputas entre as tribos” que eram originalmente guerreiras, para o “aniquilamento” dos povos nativos. Para Fanon (1961), no entanto, esta aparente passividade é o motor de uma violência contida que “transborda e resiste” por meio de diversas formas na busca por reconhecimento e poder. O colonizado [...] está dominado, mas não domesticado. Está inferiorizado, mas não convencido de sua inferioridade. Espera pacientemente que o colono relaxe a vigilância para lhe saltar em cima. Em seus músculos, o colonizado está sempre à espera. Não se pode dizer que esteja inquieto, que esteja aterrorizado. Na realidade está sempre pronto a abandonar seu papel de caça para tomar o de caçador. O colonizado é um perseguido que sonha permanentemente em se tornar um perseguidor. (FANON, 1961, p. 16).

O processo de colonização dos países em desenvolvimento se deu de forma violenta, invasora e exploradora, conforme argumenta Fanon (1961) em consonância com o roteiro seguido pelo documentário. O colonialismo, para o pensador, foi um sistema de dominação que ia muito além da economia: sua hegemonia também se dava no controle social e político da população

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dominada; seu legado era “rejeitar os direitos do homem”; submeter a população nativa à violência; conservá-la na ignorância e miséria; subjugá-la a um estado de desumanidade. O Outro, ou seja, o colonizado, era visto como um não-homem. Esse ponto de vista pode ser encontrado em As Guerras da Conquista nas seguintes passagens: Lévi-Strauss mostrou isso muito bem: essa diferença de mentalidade entre os europeus e os povos indígenas americanos. Ao contrário dos europeus, os indígenas muito abertos à alteridade, a incorporar o outro, à diversidade, né, como parte sempre integrante de sua visão de mundo. Enquanto os europeus, não. Eles não veem o outro. Eles quando veem algo, eles projetam sobre o outro o que…o que eles querem ou o que eles não querem. No caso, por exemplo, o demônio, o pagão, o infiel”. (fala do antropólogo João Pacheco de Oliveira). Enquanto os índios ‘tavam’ [sic] querendo saber que tipo de corpo esse pessoal que chegou tem, né? Se eles são mortais, se eles apodrecem, se eles morrem, se eles ‘cagam’ fedido [sic]… Os espanhóis tavam discutindo… Os espanhóis, os portugueses, eles ‘tavam’ discutindo se esses caras tinham alma ou não, se podiam ou não serem escravizados, né? (fala do antropólogo Carlos Fausto).

No livro O Espetáculo das Raças, a historiadora Lilia Schwarcz (1963) também ratifica a ideia de que o europeu construiu uma imagem pessimista acerca de um outro que não fosse oriundo do velho continente. Com efeito, as formulações simpáticas não viajaram entre os portugueses, que passaram muitas vezes ao largo do mito do “bom selvagem” e tenderam a ver a colônia americana mais através das pesadas lentes que denunciavam a antropofagia ou a visão pessimista dos jesuítas, preocupados com a gestão das almas. (SCHWARCZ, 1993, p.47).

A máxima fanoniana de que o mundo colonial é um mundo maniqueísta, onde forças antagônicas estão em uma divergência

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constante, ampara-se no modelo socrático-platônico, mas também na teoria do materialismo histórico-dialético e no existencialismo sartriano. Aquilo que chama de relação perversa entre colonizado e colonizador só pode ser desfeita a partir da violência, conforme sugere o autor. Isso acontece porque a violência que presidiu o arranjo do mundo colonial, segundo ele, destruiu os sistemas de referências econômicas e culturais da antiga colônia – algo que só poderá ser reivindicado no momento em que a “massa colonizada” decidir ser “a história em atos”. Contenda pela representação do real As imagens da guerra, do horror, do desespero, da revanche e da resistência constituem o processo de significação construído no primeiro capítulo de Guerras do Brasil.doc. A “contenda pela representação da realidade”, conforme argumenta Ginzburg (2007), está presente no filme analisado e constrói uma relação que deve ser repetidamente analisada: o “conflito de desafios, empréstimos recíprocos e hibridismos” (GINZBURG, 2007, p.35), visto que as populações indígenas também buscam legitimidade em seus discursos por meio das chamadas “guerras culturais”. Conforme Frisch (2016), estas foram as batalhas que tiveram um crescimento expressivo nas reivindicações e movimentos populares dos últimos anos. As chamadas "guerras culturais" ao redor do multiculturalismo e as reivindicações de comunidades ligadas a identidades de raça, gênero e sexualidade desafiaram os pressupostos da cultura nacional em muitos casos e em muitos lugares, e têm tido um valor especialmente forte na história pública. (FRISCH, 2016, p.37).

Frisch (2016) argumenta que muito embora a História Pública ganhe novos contextos e contornos a partir de uma prática que se quer refletida e institucionalizada (ou não), torna-se “uma espécie de variável dependente moldada pelas diferenças contextuais, pela constelação de forças em jogo na história de cada país e, por conseguinte, na representação pública de sua história” (FRISCH, 2016, p.49). A busca incisiva pelo reconhecimento da

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história e do passado dos povos indígenas como pauta de reivindicação é o tema central da narrativa em análise, a fim de construir um outro modo de narrar “uma história, mas somente uma história dentre inumeráveis histórias que podem ser encontradas e contadas pelos outros” (FRISCH, 2016, p.47). Para Nietzsche (1999), a memória sempre foi um “problema” para o ser humano: a mnemônica nos limita aos acontecimentos pregressos, tornando-os inapagáveis em nossa consciência. O resultado, para ele, é a inibição da nossa força, da ação correspondente a cada momento e não apenas à reação. Nietzsche (1999) acredita que a memória nos apequena à dor e ao medo de partir para o desconhecido, o novo. Ao abrirmos espaço para a memória, o passado nos alcança e reflui dentro de nós, tornando a dor “o mais poderoso auxiliar da mnemônica” (NIETZSCHE, 2009, p.43). É como se o que passou não se esvaísse, mas permanecesse obstruindo o presente e impedindo o futuro em sua máxima plenitude. A consequência direta disso é que acabamos por entrar em um ciclo: o do ressentimento. Para o autor, esse ciclo nos faz desenterrar as vísceras do pretérito e do presente “atrás de histórias escuras e questionáveis, em que possam regalar-se em uma suspeita torturante, e intoxicar-se de seu próprio veneno de maldade” (NIETZSCHE, 1999, p. 117), tendo todos ao redor como propensos inimigos. Nietzsche (2009) acredita que essa força afetiva interioriza os sentimentos guardando-os na memória, no subterrâneo de si, impedindo uma ação ativa e retroalimentando a memória. Essa volta ao passado traz a emergência da memória como uma das inquietudes não apenas do campo progressista, mas enquanto característica central das sociedades ocidentais pósséculo XX. Isso se deve, entre outros fatores, ao fato de que a civilização hespérica, incapaz de conviver com as diferenças e alteridades e de “tirar as consequências das relações insidiosas entre a modernidade iluminista, a opressão racial e a violência organizada” (HUYSSEN, 2001, p.56), retorna à memória como um meio para que a “verdade não canse de faltar”, segundo a filósofa Hannah Arendt (2005). E caso aconteça, Encontraremos, contudo, instantes de verdade, e esses instantes são, de facto, tudo aquilo de que

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dispomos para ordenar este caos do horror. Estes instantes surgem de improviso, como um oásis no deserto. São anedotas que, na sua brevidade, revelam aquilo que está em causa. (ARENDT, 2005, p.33).

Para a pensadora, a memória social se faz necessária para a coesão da pluralidade dos grupos que compõem a sociedade, possibilitando um diálogo político que respeite as diferenças entre todos. É a mnemônica que mantém viva as características que compõem a identidade e a diversidade dos povos, de acordo com a filósofa. Por isso, a “cultura da memória” (HUYSSEN, 2001, p.38) torna-se um jogo político discursivo que em Guerras do Brasil.doc parece ser o mote necessário para apresentar a luta e a resistência dos povos originários. Isso faz com que se crie esferas públicas de memória do “real” contra as “políticas do esquecimento”, reforçando ou limitando as práticas de memória nacional. É claro que os debates sobre a memória nacional estão sempre imbricados com os efeitos da mídia global e seu foco em temas tais como genocídio e limpeza étnica, migração e direitos das minorias, vitimização e responsabilização. Quaisquer que possam ser as diferenças e especificidades locais das causas, elas sugerem que a globalização e a forte reavaliação do respectivo passado nacional, regional ou local deverão ser pensados juntos. Isto, por seu turno, faz perguntar se as culturas de memória contemporâneas podem ser lidas como formações reativas à globalização da economia. (HUYSSEN, 2001, p.45).

Assim, para o Huyssen (2001), não é possível que se discuta a memória social sem considerar as novas tecnologias de mídia como veículos para todas as formas da mnemônica. Dessa feita, é necessário levar em conta que o trauma histórico associado à memória dos povos originários e ao processo de violência que eles dizem sofrer incessantemente também está ligado à mercadorização e à espetacularização midiática.

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Holocaustização, Memória e políticas do esquecimento Esse processo de uma certa “holocaustização” das guerras a partir de um trauma - bem como o divertimento - que é comercializado, preenche uma função importante nas transformações contemporâneas da experiência temporal a partir da percepção e sensibilidade humanas: o passado vende tanto ou mais que o futuro. O termo do genocídio - que se refere especificamente às tragédias ocorridas no século XX contra a população de origem judia - é utilizado no documentário como forma de reconhecimento de uma sensibilidade compensatória a partir da memória, conforme segue o trecho: O que se passou aqui durante o processo colonial é da (...) Se você colocar a demografia, como os estudos sugerem, na ordem de 80 milhões (de indígenas) pras Américas, isso em 1500, 1492, você verá que desapareceu boa parte da humanidade em 100 anos, né? Então...a gente normalmente não tem essa dimensão do fato. Talvez tenha sido, proporcionalmente na história da humanidade, um dos maiores holocaustos populacionais que a gente tem notícia. (Fala do antropólogo Carlos Fausto, grifo nosso).

Essa disseminação de um discurso midiático associado a uma perspectiva globalista de memória local indica, como sugere Huyssen (2001), que “algo mais está em jogo”. Para o autor, este debate é uma febre mnemônica “provocada pelo cibervírus da amnésia”, que ameaça consumir a própria memória. Ao discutir o bombardeamento massivo de informações na transmissão da mnemônica nas sociedades atuais, Candau (2006) também corrobora com a ideia de que isso acaba por gerar o próprio esquecimento e pode ter como corolário a “indiferenciação dos acontecimentos, das lembranças, dos saberes [...] uma incapacidade de conferir sentido à gigantesca quantidade de informações adquiridas” (CANDAU, 2006). No entanto, ainda que essa descentralização ocorra, o jogo político que se faz presente nas práticas de memória acaba, segundo Huyssen (2001), por contestar os mitos do cibercapitalismo em sua negação de tempo, espaço e

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lugar e talvez esse seja o ponto nevrálgico do capítulo analisado. Para o autor, As atuais culturas críticas de memória, com uma ênfase nos direitos humanos, em questões de minorias e gêneros e na reavaliação dos vários passados nacionais e internacionais, percorrem um longo caminho para proporcionar um impulso favorável que ajude a escrever a história de um modo novo e, portanto, para garantir um futuro de memória. (HUYSSEN, 2001).

Para o filósofo britânico Theodore Dalrymple (2016), essa prática de memória resulta naquilo que chama de “sentimentalismo tóxico”. Fruto da forma romântica de enxergar o mundo, esse modo de visualização da existência humana traz consequências para a modernização, o que inclui a educação. O papel midiático na propagação de um modelo dicotômico também se faz presente de maneira ascendente, principalmente a partir de novos meios de comunicação, o que acaba por provocar uma espécie de moralismo sentimental que pode limar processos de compreensão mais complexos do real. A tentativa de preencher de informação mentes sob outros aspectos inocentes teve como resultado a doutrinação do sentimentalismo. O único composto químico de que as crianças ouviram falar é o dióxido de carbono, por ser um gás gerador do efeito estufa; elas querem salvar o planeta, ainda que não consigam achar a China no mapa nem definir a curva de nível. Elas sabem que a história tem sido uma luta entre opressor e oprimido porque os episódios históricos de que estão cientes são o comércio de escravos no Atlântico e o Holocausto (não necessariamente nessa ordem). [...] Assim, pareceu-me que a história que elas estavam estudando era uma forma de moralismo sentimental, uma espécie de declaração de virtude pessoal para concluir que matar muita gente sem uma boa razão é errado. Lição que, mesmo hoje, praticamente não precisa ser ensinada, porque ninguém argumenta em contrário (DALRYMPLE, 2016, p. 30).

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Assim, por meio das imagens das vítimas e de suas reivindicações, o documentário lida com uma forma de memória a partir da mídia visual, capaz de ser partilhada por diversos povos, não importando a língua que se fale. O audiovisual “vive de memórias reconhecidas ou não reconhecidas, uma fonte de conhecimentos, pública ou privada, que brilha com maior intensidade para uns e menor para outros” (CARRIÉRE, 2006, p.20), como argumenta Jean Claude Carriére (2006), em A Linguagem Secreta do Cinema. Para o autor, essa linguagem - a memória de imagens - “pode, às vezes, ser mais forte e duradoura do que a de palavras e frases” (CARRIÉRE, 2006, p.22). Logo, segundo Thompson (1998), os indivíduos interpretam as formas simbólicas midiáticas e as incorporam na compreensão que eles têm de si mesmos e dos outros, usando-as como veículos para reflexão e autorreflexão. Para o autor, Apropriar-se de uma mensagem é apoderar-se de um conteúdo significativo e torná-lo próprio. É assimilar a mensagem e incorporá-la à própria vida - um processo que algumas vezes acontece sem muito esforço, e outras vezes requer deliberada aplicação. É adaptar a mensagem à nossa própria vida e aos contextos e circunstâncias que normalmente são bem diferentes daqueles em que a mensagem foi produzida. (THOMPSON, 1998, p. 45).

Por conseguinte, nessas formas de recepção e apropriação das mensagens midiáticas, os indivíduos se envolvem em um processo de formação pessoal e de autocompreensão incorporando-as às próprias vidas. Além disso, modificamo-nos ativamente por meio de mensagens e de conteúdo significativo oferecido pelos produtos de mídia de forma lenta e paulatina, retendo algumas dessas mensagens e esquecendo outras: algumas, inclusive, tornam-se fundamento de ação e reflexão, enquanto outras se perdem no fluxo e refluxo de imagens e ideias (THOMPSON, 1998, p.46). O acesso a conteúdos de diferentes perspectivas simbólicas pode ser capaz de produzir experiências significativas na formação do indivíduo, uma vez que além dos produtos dispostos no catálogo do serviço de streaming, em nosso

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caso, a possibilidade da escolha torna o processo de autoformação ainda mais estimulante. As experiências da Netflix sugerem que, quando dispõem do recurso de escolher qualquer filme de uma seleção de dezenas de milhares, os clientes não se limitam a mergulhar nos nichos de documentários sobre a Segunda Guerra Mundial para nunca mais sair. Ao contrário, tornam-se extremamente ecléticos em suas preferências, redescobrindo os clássicos num mês e migrando para a ficção científica no outro. (ANDERSON, 2006, p. 188).

Larrosa (1999) afirma que “o que somos ou, melhor ainda, o sentido de quem somos, depende das histórias que contamos e das que contamos a nós mesmos. Em particular, das construções narrativas nas quais cada um de nós é, ao mesmo tempo, o autor, o narrador e o personagem principal” (LARROSA, 1999, p.52). Dessa forma, é de fundamental importância entender como a dimensão simbólica trazida pela narrativa altera a formação das subjetividades dos indivíduos. Estes se tornam viajantes no tempo e no espaço, envolvidos em um intercâmbio de experiências mediadas de outros tempos e lugares com suas próprias experiências cotidianas. Essas mensagens podem fazer com que os receptores se relacionem com as informações recebidas de maneira a compreendê-las, apreciá-las e integrá-las em suas vidas a partir de atributos sociais e subjetivos de quem as recebem (THOMPSON, 1998, p.102). Considerações Finais Ao término dessa análise, entendemos que a apreensão do conhecimento e do real por meio das narrativas seriadas é importante para debatermos o conteúdo simbólico desses produtos audiovisuais. No caso da trama em análise, vimos que a tentativa de apelo ao passado e à mnemônica como um construto para a rememoração a um estado doloroso e contínuo de guerra, revela um discurso de disputa política de apelo à memória para reprodução de um dito de verdade. Ao olharmos para a memória em algumas de suas inúmeras facetas, como sendo aquela que provoca ressentimento - conforme argumenta Nietzsche (1999) - gerando,

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segundo Dalrymple (2006), sentimentalismo tóxico e inibição da força interior; ou também como aquela que é capaz de manter a coesão e a pluralidade dos grupos em suas identidades e subjetividades - conforme Arendt (2005) - visamos ampliar a perspectiva a fim de deixar em aberto as possibilidades de efeitos de sentido trazidos pelo documentário. A mídia audiovisual é condutora de uma linguagem simbólica e política que visa apresentar suas ideias, resultando em uma fonte para o conhecimento e para a compreensão da realidade. Nesse sentido, As Guerras da Conquista apresenta um discurso que parece avaliar o presente como consequência de uma constante e incessante disputa por território e poder a partir da busca pela legitimidade da causa indígena. O documentário, assim, apresenta a visão do lado ambivalente do homem em sua contradição e agonia: ao passo que consegue ter uma sociedade que conseguiu se estabelecer enquanto nação, gerou um passado sombrio à custa do genocídio de povos nativos. Referências ALENCAR, José de. Iracema. In ALENCAR, José de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1959, vol. III. ANDERSON, Chris. A cauda longa: do mercado de massa para o mercado de nicho. São Paulo: Elsevier Brasil, 2006. 256 p. ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. ARISTÓTELES. Política. São Paulo, SP: Martin Claret, 2007. AZUBEL, Larissa. Uma série de contos e os contos em série: o imaginário pós-moderno em Once Upon a Time. Tese. Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2018. CARRIÉRE, Jean Claude. A Linguagem Secreta do Cinema. Tradução de Fernando Albagli e Benjamin Albagli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

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CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011. DALRYMPLE, Theodore. Podres de Mimados: as consequências do sentimentalismo tóxico. Editora: É Realizações; Edição: 1ª, 2016. DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. KKYM; Lisboa, 2012. Tradução de Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Ed. Civilização Brasileira, 1961. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. FREUD, Sigmund. Cinco lições de psicanálise; A história do movimento psicanalítico; O futuro de uma ilusão; O Mal Estar na Civilização; Esboço de Psicanálise. São Paulo: Abril Cultural, 1978. Coleção Os Pensadores. Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala. 42. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. FRISCH, Michael. A História pública não é uma via de mão única, ou, De A Shared Authority à cozinha digital, e vice-versa. In: MAUAD, Ana Maria; ALMEIDA, Juniele R.; SANTHIAGO, Ricardo (orgs.). História Pública no Brasil: sentidos e itinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016. SANTHIAGO, Ricardo (orgs.). História Pública no Brasil: sentidos e itinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016, p. 57-71. GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. HOBBES, Thomas. Leviatã. (Tradução de João Paulo Monteiro, Maria Beatriz Nizza da Silva e Cláudia Berliner) 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001. JOHNSON, Steven. Tudo que é ruim é bom para você: como os games e a TV nos tornam mais inteligentes. Rio de Janeiro, Zahar, 2012. 184p MACLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 1964. Tradução de Décio Pignatari. MARCONI, Maria de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de Metodologia Científica. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2003. NIETZSCHE, F. W. Humano, demasiado humano. São Paulo: Companhia das letras, 2002. Tradução de Paulo César de Souza. _____. Assim Falou Zaratustra. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1998. Tradução de Mário da Silva. _____. Escritos sobre História. São Paulo: Loylola, 2005. Tradução de Noéli Correia de Melo Sobrinho. _____. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das letras, 1999. Tradução de Paulo César de Souza. _____. O nascimento da tragédia. São Paulo, Companhia das Letras, 1992. Tradução de J. Guinsburg. SARTRE, Jean Paul. Colonialismo e Neocolonialismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.

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CAPÍTULO 3 Olhos que Condenam: o estigma como forma de encarceramento Débora Monique D’Angelo Lopes14

Resumo: A minissérie Olhos que Condenam15, de Ava DuVernay, lançada pela Netflix, em 2019, possui quatro episódios e conta a história de cinco adolescentes – ao tempo do fato – negros, que foram condenados por um crime ocorrido no Central Park, em 19 de Abril de 1989, contra Patrícia Meili, mulher branca, de 28 anos. Patrícia fora encontrada desacordada pelos policiais, depois de ter sido estuprada e espancada. Os garotos – Antron McCray, Kevin Richardson, Yusef Sallam, Raymond Santana, menos Korey Wise – passeavam neste dia pelo parque e, por fim, foram acusados pela polícia de Nova York e coagidos a confessar o crime, o que lhes rendeu anos de injustiça e privação de liberdade, como conta a trama. A polícia, o sistema de justiça criminal dos Estados Unidos e a mídia, encarceraram cinco jovens, sem que houvessem provas materiais, além das confissões fabricadas pelos investigadores. O estigma do tipo “desacreditado”, como 14

Bacharela em Direito pela Unifip; Advogada; Especialista em Direito Administrativo e Gestão Pública pela Unifip; Mestranda em Ciências Sociais e Humanas pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte-UERN. E-mail: monique_dangelo@hotmail.com 15 “Olhos que condenam”, minissérie estadunidense, lançada em 2019, do gênero drama, retrata a história do crime que ficou conhecido como “Central Park Five”, Os Cinco do Central Park, contada, dessa vez, a partir do ponto de vista dos homens condenados injustamente pelo crime e de suas famílias. A minissérie tem como diretora Ava Duvernay, conta com a produção de Amy J. Kaufman, Ava DuVernay, Christiana Hooks, Jane Rosenthal, Jeff Skoll, Jonathan King e Oprah Winfrey. Traz no elenco Ariel Shafir, Asante Blackk, Aunjanue Perrineau, Blair Underwood, Caleel Harris, Chris Chalk, Ethan Herisse, Famke Janssen, Felicity Huffman, Jasmin Walker, Jharrel Jerome, Jimmy Gary Jr., Jonh Leguizamo, Joshua Jackson, Jovan Adepo, Kate Easton, Kylie Bundury, Mark Borkowski, Marquis Rodriguez, Marsha Stephanie Blake, Michael K. Williams, Nicy Nash, Reginald L. Bernes, Storm Reid, Vera Farmiga, Willian Sadler. Foi lançada, originalmente, pela Netflix.

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conceitua Erving Goffman, foi o fator primordial no que diz respeito à suspeição em face desses jovens e a posterior condenação deles. Condenaram-lhes a partir de uma lógica racista – que continua excluindo, encarcerando e vitimando pessoas negras. Somente após 14 anos a verdade vem à tona e os rapazes – já adultos – são inocentados. Desta forma, o presente ensaio buscará demonstrar a correlação existente entre o estigma racial e a seletividade no encarceramento da população negra, a partir da narrativa retratada na série “Olhos que condenam”. Palavraschave: estigma racial, encarceramento, criminalização, seletividade.

Introdução A minissérie Olhos que condenam, dirigida por Ava DuVernay – baseada em fatos reais – traz à baila a história de cinco jovens negros que foram condenados, ainda adolescentes, por crimes que não cometeram contra uma mulher branca, chamada Patrícia Meili. A história é contada a partir dos relatos de Antron McCray, Kevin Richardson, Yusef Sallam, Raymond Santana e Korey Wise, e aí reside sua maior relevância, visto que os “Cinco do Central Park”, como ficaram conhecidos através da mídia, tiveram seus direitos violados, bem como suas vozes caladas durante todo o tempo do julgamento e encarceramento. Na minissérie, eles tiveram oportunidade de contar as minúcias do caso: como foram coagidos; como se deu o cumprimento da pena; como foi ao sair – já que Antron, Kevin, Raymond e Yusef saíram através da condicional, antes de constatada a inocência deles – e como enfrentaram dificuldades para se reinserirem na comunidade, na família e no mercado de trabalho. Assim sendo, neste ensaio será observada, principalmente – a partir da análise da minissérie – a força do estigma racial na seletividade quando da criminalização de determinadas pessoas, de maneira quase imediata, em decorrência da cor que possuem. No decorrer da trama é possível notar como a polícia e o sistema de justiça criminal trabalharam para criminalizar cinco adolescentes que sabiam ser inocentes. Criaram depoimentos, coagiram garotos física e psicologicamente e os fizeram confessar crimes que não cometeram.

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Embora não houvessem provas materiais que comprovassem a veracidade das alegações, os “Cinco do Central Park” foram considerados culpados e tornaram-se vítimas de um sistema tendencioso e racista que continua a criminalizar e encarcerar pessoas negras. Somente após 14 anos, em 2002, o verdadeiro criminoso confessou o crime, os cinco foram inocentados e as condenações restaram revogadas. Em 2014, um Juiz Federal determinou o pagamento de 41 milhões de dólares a título de indenização a Antron McCray, Kevin Richardson, Raymond Santana, Yusef Sallam e Korey Wise. Este caso serve para evidenciar o que Erving Goffman (2008, p. 15) diz ao exemplificar um dos efeitos do estigma. O autor fala que ao tomarmos atitudes estigmatizantes, podemos diminuir as chances de vida dos indivíduos estigmatizados. No caso abordado na minissérie Olhos que condenam, foram arrancados injustamente anos de liberdade destes homens e todo esse período deixou feridas impossíveis de serem cicatrizadas. A seletividade na criminalização da população negra como forma sistematicamente produzida Na noite de primavera de abril de 1989, Patrícia Meili, de 28 anos, mulher branca, saiu de sua casa em direção ao Central Park, onde, habitualmente, corria. Nesta mesma noite, um grupo de mais de trinta jovens negros e latinos estavam pelo parque, dentre eles, Antron McCray, Kevin Richardson, Yusef Sallam e Raymond Santana. A polícia fora acionada, pois alguns desses jovens tinham amedrontado ciclistas, emitindo sons de animais, fazendo “arruaça”, como denominariam depois. No momento em que a polícia chegou ao parque, o grupo começou a correr e se dispersar, tendo alguns sido detidos e outros não. Nesta mesma noite, policiais encontraram – à beira da morte – uma mulher branca, vítima de estupro e espancamento. Alguns dos jovens que foram detidos estavam para ser enviados à Vara de Família, quando Linda Fairstein – Chefe da Unidade de Crimes – diz, ao ler os depoimentos e constatar que eles estavam no Central Park naquela noite, que todo jovem negro que estava no parque era suspeito de ter estuprado Patrícia Meili.

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É montada uma lista e os policiais dão início à caçada de todos os meninos que constavam nela. Antron McCray – que conseguiu chegar em casa sem ser pego – é chamado para depor. Kevin e Raymond já estavam na delegacia e Yusef foi encontrado enquanto passeava com seu amigo Korey Wise pelas ruas do Harlem. Korey, embora tenha sido chamado para ir ao Central Park com os colegas na noite do dia 19 de abril de 1989, não o fez, ficou com sua namorada Kennedy em uma lanchonete do bairro. Porém, como estava junto de Yusef no dia em que este foi levado pelos policiais para depor, o acompanhou, para que o amigo não fosse sozinho. A frase de Linda de que “todo jovem negro que estava no parque naquela noite era suspeito”, demostra a força dos estigmas que pesam sobre a população negra, selecionando seus indivíduos e criminalizando-os de pronto. Ao tratar do estigma, de um modo geral, Goffman (2008, p.7) diz que tal atributo se perfaz na “situação do indivíduo que está inabilitado para a aceitação social plena”. A ideia de estigma teve origem na Grécia, tendo os gregos criado tal termo para evidenciar algo que fosse extraordinário ou mau no que tange à moral da pessoa que apresentasse tal característica. Esta pessoa era marcada na pele e esta marca determinava se ela era escrava, traidora ou criminosa, o que implicava dizer que as demais pessoas deveriam manter-se distantes delas. (GOFFMAN, 2008, p. 11). A sociedade termina por criar padrões e características como meio de categorizar os grupos existentes, determinando quais atributos são naturais, normais e quais não são. As pessoas que estão fora do padrão de normalidade são excluídas, e isso impossibilita a ascensão social destes indivíduos por privação de oportunidades, bem como faz com que sejam a clientela predileta nas prisões. Para Goffman (2008, p. 14) existem dois tipos de estigmatizados, quais sejam, os do tipo desacreditado, que ocorre quando é imediatamente evidente o que faz com que o indivíduo seja discriminado, e os do tipo desacreditável, o qual acontece de maneira não imediata, ou seja, o atributo estigmatizante não é percebido de pronto.

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Os “Cinco do Central Park”, como ficaram conhecidos, são negros. Carregam na pele o estigma do tipo desacreditado, o que delineou toda a atuação da polícia, do sistema de justiça criminal e da mídia dos Estados Unidos na condenação desses garotos, que tinham – ao tempo do fato – entre 14 e 16 anos de idade. Linda Fairstein precisava de respostas urgentes, pois a imprensa estava em cima e para tanto reuniu os detetives e os avisou que não era para pegar leve, porquanto não se tratavam de crianças, mas de estupradores que deixaram Patricia Meili à beira da morte. Linda começa a montar convicções com base nas informações que possui e ordena que os detetives entrem em ação. Na série, o primeiro a ser ouvido é Kevin Richardson, de 14 anos. Ele estava sozinho em uma sala e os policiais não hesitaram e começaram a interrogá-lo, cientes de que estavam indo de encontro à lei. Os detetives começam a perguntar em que local ele viu a moça. Kevin diz não ter visto nenhuma moça e é neste momento que eles começam a inserir os outros garotos na narrativa. Dizem que Antron McCray e Raymond Santana o viram mexer com ela, sendo que nenhum deles conhecia um ao outro, com exceção de Yusef Sallam e Korey Wise. Os demais interrogatórios serão feitos desta maneira, jogando os garotos uns contra os outros, prometendo-os que voltariam para casa caso colaborassem com a polícia, configurando outra ilegalidade e criando narrativas a partir dos depoimentos forçados. Quando os detetives começam a criar uma linha do tempo, Linda percebe que há uma discrepância de 45 minutos entre o local em que os garotos estavam no parque e o lugar em que a corredora fora encontrada. Neste momento, percebem que não é possível que os garotos tenham espancado e estuprado Patrícia, no mesmo momento em que amedrontaram ciclistas, mesmo assim continuam a acusá-los e persegui-los. Os depoimentos e confissões que foram criados pelos detetives foram assinados pelos adolescentes Antron, Raymond e Kevin e pelos seus responsáveis, que também acreditaram que cooperando com a polícia – depois de horas sem que os garotos comessem, bebessem água e sob forte pressão psicológica e física – sairiam da delegacia e iriam, enfim, para casa.

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Nesta perspectiva, entende Andrade (2012, p. 137): A seletividade16 é, portanto, a função real e a lógica estrutural de funcionamento do sistema penal, comum às sociedades capitalistas patriarcais. E nada simboliza melhor a seletividade do que a clientela da prisão, ao revelar que a construção (instrumental e simbólica) da criminalidade – a criminalização – incide seletiva e de modo estigmatizante sobre a pobreza e a exclusão social, majoritariamente de cor não branca e masculina, e apenas residualmente (embora de forma crescente), feminina.

No mesmo sentido, dispõe Dias e Andrade (1984, p. 385): [...] conclui-se que a regularidade verificada na distribuição seletiva da criminalidade (imunização das classes altas e criminalização das baixas) e traduzida no predomínio de pobres nas prisões e nas estatísticas oficiais da criminalidade, não pode imputar-se ao acaso, mas deve ser interpretada como “grandezas sistematicamente produzidas”.

Tanto é assim que, embora a polícia e o sistema de justiça criminal não dispusessem de provas materiais que incriminassem Antron McCray, Kevin Richardson, Raymond Santana, Yusef Sallam e Korey Wise, fizeram de tudo para que o Júri os julgasse culpados e tudo isso fez parte de uma lógica racista que é difundida por meio da atuação deste sistema e pela mídia, que fomentam o estigma racial. 16

Angela Davis, em seu livro “Estarão as prisões obsoletas?” (2019), nos traz dados que demonstram que há uma maior incidência de criminalização da população negra, basta que analisemos a quantidade de pessoas de cor encarceradas nos EUA. A autora dispõe que, em 2002, existiam 803.400 presos negros e 283.000 latinos, totalizando um montante de 1.086.000 de pessoas de cor cumprindo pena no País. Sendo que no ano anterior, em 2001, o total de pessoas presas nos EUA era de 2.100.146 pessoas. Levando em conta que, infelizmente, esse número só cresce a cada ano, é possível compreender que a lógica da seletividade quando da criminalização de pessoas negras e latinas, se mantém. O caso brasileiro é bem semelhante, pois de acordo com o Infopen de 2019 existem, no sistema penitenciário, 46,2 % de pessoas pardas, 17,37% de pessoas pretas, perfazendo um montante de 63,57% de pessoas de cor encaradas no Brasil.

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Corpos negros: inimigos do direito penal Erving Goffman, além de explicar no que consiste o estigma, também fala a respeito das suas consequências. Para o autor, por exemplo, é possível que em decorrência da discriminação proveniente do fator estigmatizante, a pessoa do estigmatizado tenha suas chances de vida reduzidas (GOFFMAN, 2008, p. 15). No caso da minissérie analisada, baseada em fatos reais, embora os adolescentes não tenham perdido a vida propriamente dita, perderam vários anos dela, enquanto estiveram encarcerados injustamente. Vale frisar que houve um clamor popular para que eles fossem condenados à pena de morte. Donald Trump, por exemplo, protestava pela condenação à morte dos garotos e pagou em torno de 85 mil dólares pelos anúncios que mandou veicular nos jornais impressos e na televisão a respeito do caso. Voltando à trama e suas nuances, foi possível notar como os julgamentos foram apressados e tiveram motivação racial. Não haviam provas materiais, o teste do sêmen encontrado na cervical e numa meia – onde o estuprador ejaculou – foi incompatível com o DNA de Antron, Kevin, Yusef, Raymond e Korey. Além do mais, nos depoimentos criados, nenhum dos meninos disse ter feito parte do ato diretamente, acusavam-se uns aos outros. Elisabeth, promotora do caso, percebe que as provas são incongruentes e que nenhum depoimento bate com os fatos centrais do crime, mas diante da proporção midiática que o caso toma e da necessidade de apresentar respostas – mesmo sabendo inverídicas – continua a acusação. Antron McCray, Kevin Richardson, Raymond Santana, Yusef Sallam e até mesmo Korey Wise – que sequer estava no Central Park na noite do crime – foram considerados culpados e, consequentemente, encarcerados. Korey Wise foi o único que não foi para reformatórios juvenis e sim para prisão de adultos. Sofreu muito, era perseguido, espancado e como uma tentativa de permanecer vivo, longe da ira dos demais apenados, passou, a maioria do tempo em que esteve preso, na solitária. Todos saíram da prisão, na condicional, menos Korey, que só veio ganhar a liberdade 14 anos depois, quando o verdadeiro

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criminoso, Matias Reyes, confessou os crimes praticados contra Patrícia Meili e sua culpa foi comprovada através dos testes realizados, que tiveram resultados compatíveis com o seu material genético. O sistema de justiça criminal e a polícia dos EUA – sob a égide da discriminação racial e da seletividade quando da criminalização da população negra – criaram depoimentos, coagiram adolescentes a confessarem crimes que eles não cometeram e só descansaram quando os viram encarcerados, mesmo sabendo que eram inocentes. Antron, Kevin, Raymond, Yusef e Korey foram vítimas de um sistema tendencioso e racista, ansioso por resolver um crime contra uma mulher branca a qualquer custo. O sistema, por sua lógica de atuação, vem aumentando a violência institucional e promovendo uma espécie de desproteção humana, porquanto, a depender da classe que ocupe, da cor que possua, etc., o indivíduo pode ser declaradamente um inimigo do direito penal. Acerca do inimigo do direito penal, entende Zaffaroni (2013, p. 21): “A negação jurídica da condição de pessoa ao inimigo é uma característica do tratamento penal diferenciado que lhe é dado” (grifos do autor). Desta forma, cai por terra a falácia de que o Direito Penal é um direito que promove a igualdade entre os indivíduos, que, segundo Baratta (2002, p. 162) é um mito, pois: O direito penal não defende todos e somente os bens essenciais, nos quais estão igualmente interessados todos os cidadãos, e quando pune as ofensas aos bens essenciais o faz com intensidade desigual e de modo fragmentário; a lei penal não é igual para todos, o status de criminoso é distribuído de modo desigual entre indivíduos; o grau efetivo de tutela e a distribuição do status de criminoso é independente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à lei, no sentido de que estas não constituem a variável principal da reação criminalizante e da sua intensidade.

Assim, a população negra sente a força dos estigmas, literalmente, na pele, visto que é excluída, criminalizada e perseguida, em decorrência da cor que possui e percebe barreiras – mesmo que invisíveis – ao seu redor. Os estigmas supliciam corpos,

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mentes, almas e constroem muros que dificilmente serão transpostos, e que são postos muito antes de existirem grades e até mesmo sem que elas venham a existir. Considerações finais O estigma racial do tipo desacreditado, como observado, desumaniza as pessoas que o carregam. O racismo serve, assim, como uma forma de catalogação dos indivíduos, determinando os lugares em que estão ou devem estar. É como se certas atitudes fossem esperadas de determinados segmentos da sociedade e isso se comprova na acusação e condenação descabidas e desarrazoadas apresentadas no decorrer da minissérie Olhos que Condenam. Na trama é possível ver um Estado atuando de maneira a punir indivíduos que ele próprio – por meio de sua atuação – determina como inimigos do direito penal e da sociedade, propensos ao desvio e que merecem sofrer a coerção estatal e, a depender da situação, serem encarcerados e tirados do convívio social para preservar a ordem. Partindo-se desta perspectiva, nota-se que há uma separação entre as pessoas que são escolhidas para compor a massa carcerária, ou seja, sujeitos que presumidamente “infringem” as regras determinadas pelo Estado – regras estas que objetivam a persecução da paz social, alcançada através do controle – e as pessoas que previsivelmente, pelo menos quando vistas pelos olhos do Estado e da sociedade, não são ou não aparentam ser desviantes. Antron McCray, Kevin Richardson, Raymond Santana, Yusef Sallam e Korey Wise, foram vítimas de um modelo de coerção estatal tendencioso, seletivo e racista, como são tantos outros jovens negros nos Estados Unidos, bem como no Brasil, que reproduz uma lógica bem parecida com a utilizada pelos EUA. A minissérie é imensamente emocionante ao mesmo passo que revoltante. Suscita muitas inquietações porque demostra como um sistema todo se volta para criminalizar meninos negros que ele sabe que não são culpados, somente para dar respostas imediatas, pois não é possível que um caso que envolva uma mulher branca demore a ser resolvido, mesmo que para isso, conscientemente, se condene inocentes.

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Para além disso, Olhos que condenam, como o próprio nome já diz, apresenta o que Goffman (2008, p. 12) fala sobre as expectativas, ou seja, a maneira como olhamos para os outros e o que esperamos deles. O autor fala que sempre criamos expectativas em relação às pessoas e, neste caso, em se tratando do estigma racial, ele acarreta uma série de tendências atreladas ao estigma que é carregado. Por fim, constatou-se, a partir da análise da minissérie, que o estigma racial conferido à população negra é uma espécie de suplício social, o qual impõe a ela uma inferioridade da qual parece ser impossível se livrar, pois é imediatamente perceptível e suscita uma série de violências ao corpo e ao psicológico do sujeito estigmatizado, marcando-o com sinais negativos, que são reproduzidos pela mídia, pela sociedade e pelo sistema penal, que se utiliza dos estigmas, no momento em que faz uso do seu poder coercitivo e sancionador. Referências ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2012. BRASIL, ______. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Levantamento nacional de informações penitenciárias InfoPen. 2019. Disponível em: <http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatoriossinteticos/infopen-jun-2017-rev-12072019-0721.pdf>. Acesso em 03 de março 2020. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica ao direito penal: Introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, Instituto Carioca de Criminologia, 2002. DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Trad. Marina Vargas. 3 ed. Rio de Janeiro: Difel, 2019.

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DIAS, Jorge Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra, 1984. GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. When they see us (Olhos que condenam). Direção: Ava DuVernay. Netflix, 2019. ZAFFARONNI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Trad. Sérgio Lamarão. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2013.

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CAPÍTULO 4 Medo e Segredo: Análise do filme A Vila de M. Night Shyamalan Luciana Lobão Campos17 Maria Cristina Rocha Barreto18

Resumo: Este artigo é parte de uma pesquisa de mestrado e discute o medo como uma emoção presente e, ao mesmo tempo, organizadora da sociedade, dando-lhe coesão. Trata-se de uma discussão teórica sobre o medo, a partir do filme A Vila, de M. Night Shyamalan, e como ele estrutura a vida de um grupo de pessoas que, depois de passar por experiências traumáticas de violência urbana, fundam uma vila, isolada das influências da vida moderna, do dinheiro, das tecnologias, do individualismo, em suma, das relações sociais capitalistas. Foram abordados alguns aspectos da sociabilidade contemporânea, destacando conceitos como medo, sociabilidade, segredo, coesão social e cultura emotiva, que serviram de base para a ideia do medo como orquestrador do social. Palavras-chave: medo, segredo, sociabilidade.

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Possui graduação em História (2007) e Direito (2011), pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Especialização em Segurança Pública e Cidadania pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e é mestre pelo Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Possui pesquisa na área de socióloga das emoções, conflitos sociais e violência. E-mail: lulobaoicapui@yahoo.com.br 18 Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela UFPB (1985), mestre em Ciências Sociais (1996) e doutora (2005) em Sociologia pela Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Sociologia, respectivamente, na Universidade Federal da Paraíba. Atualmente é Professora Adjunto IV na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas da UERN. E-mail: cristinabarreto@uern.br

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Introdução Este trabalho é um recorte de uma pesquisa de mestrado que tem como premissa que o medo é uma emoção organizadora da sociedade. O escrito se desenvolve através da análise do filme A Vila de M. Night Shyamalan, trazendo a discussão dos conceitos de medo, sociabilidade, segredo, coesão social e cultura emotiva. Em breve síntese, o filme relata a história de um grupo de pessoas que se conheceram frequentando uma terapia para indivíduos que sofreram traumas com a violência. Cinco pessoas desse grupo se reúnem e decidem fundar uma comunidade isolada da influência das grandes cidades. Essa comunidade foi organizada numa clareira de uma floresta privada, de modo que isolada do resto do mundo, não conhecia o mundo de fora da floresta e não era conhecida por ele. No seu interior o estilo de vida era comunitário e sem nenhuma influência do capitalismo e da modernidade, sendo baseado na autossuficiência. Para manter a comunidade, o grupo de anciões criou alguns mecanismos de proteção, dentre os quais merecem destaque o medo e o segredo, elementos que serão discutidos neste livre ensaio. A ideia inicial dos anciões era uma comunidade com coesão social, aos moldes delineados por Durkheim (1999), mas ao longo da narrativa fílmica será percebido que tal coesão não pode ser obtida, pois as normas permitem sua manipulação. Nesse sentido Koury (2016) afirma não serem as normas um todo coerente e compacto. Assim, o próprio desenrolar do filme aponta para a impossibilidade de obtenção dessa coesão social. O medo e o segredo, portanto, permeiam toda a forma de organização social no interior da Vila, estabelecendo uma cultura emotiva e delineando a sociabilidade naquele lugar, sendo o segredo um aspecto que potencializa o medo e que garante ao grupo dos anciões o controle dos demais membros da comunidade. Medo e Segredo O diálogo abaixo representa uma das partes principais do filme, tendo em vista que dele podemos extrair os motivos que levaram um grupo de pessoas a abandonarem o estilo de vida

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urbano para a criação de um espaço (a Vila) afastado e contrário do ideário urbano abandonado. Devido à desesperança, o grupo foi em busca de algo melhor e correto aludido pelo Sr. Walker, apontando para o tipo de organização social, política e culturalmente implementado na vila. Um estilo de vida elaborado para que os anciões e seus familiares permanecessem naquele lugar e para que fossem repassados aos mais novos. Sra. Clarck- O que você fez? Sr. Walker- Ele foi vítima de um crime. Sra. Clarck- Mas concordamos em nunca retornar, nunca! Sr. Walker- Qual foi o motivo da nossa partida. Não nos esqueçamos que foi a desesperança. Desejávamos algo melhor e correto. Robert- Não devia ter tomado a decisão sem nós. Você foi longe demais. Sr. Walker- Eu sou o culpado, Robert. Eu decidi com o coração. Olho nos olhos dos outros e vejo o mesmo olhar que observo no de August, injustificado. É doloroso demais, eu não posso suportar. (esbravejando) Sra. Clarck- Você pôs a perder tudo que fizemos. Sr. Walker- Quem você acha que perpetuará este lugar, essa vida? Pretende viver para sempre? É neles que está nosso futuro. Depende de Ivy e Lucius a continuação deste modo de vida. Sim, eu arrisquei, eu espero sempre poder arriscar tudo, tudo pela causa correta. Se não tomássemos essa decisão não poderíamos mais nos considerar inocentes e isso é o que há de mais importante a proteger aqui, a inocência. Disso eu não posso abrir mão. Sr. Nicholson- Deixa ir. Se acabar acabou. Só podemos ter esperança, é o que há de belo neste lugar. Não podemos fugir do sofrimento. Meu irmão foi morto nas cidades, o restante da minha família morreu aqui. Sofrer faz parte da vida, agora sabemos. Ivy está indo em direção a esperança, deixe-a ir. Se esse lugar for digno ela terá sucesso em sua busca. Sra. Clarck- Como pôde mandá-la, ela é cega? Sr. Walker- Ela é mais capaz do que a maioria de nós. Ela é guiada pelo amor, e é o amor que move o mundo. O amor é capaz de tudo.

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A discussão que segue trabalha aspectos da sociabilidade existente no interior da vila e analisa a coesão social nos moldes propostos por Durkheim (1999), quando afirma que a causa desta está numa certa conformidade entre as consciências particulares e as consciências sociais. Destaca o autor que: Com efeito, nessas condições, não só todos os membros do grupo são individualmente atraídos uns pelos outros, por se assemelharem, mas também são apegados ao que é a condição de existência desse tipo coletivo, isto é a sociedade que formam por sua reunião. (DURKHEIM, 1999, p.78-79).

Para Durkheim (1999), existe nessa ideia de indivíduos que se aproximam por terem os mesmos valores, sentimentos e crenças, o que ele vem a denominar de solidariedade por semelhança, ou solidariedade mecânica. Nessa perspectiva os indivíduos que se associam, como no caso da vila, possuem valores comuns e a coesão social se efetiva no seio dessa sociedade. Com base nesse conceito de solidariedade mecânica, os anciões, que enquanto moradores das cidades enfrentaram situações de violência e sofrimento típicos dos meios urbanos, se reuniram sob uma crença única, buscando uma fuga da desesperança e um lugar melhor e correto, como enunciado no diálogo citado no início deste tópico. Durkheim (1999) utiliza o exemplo do crime, apontando o choque que este causa na sociedade, fazendo surgir uma forma repressora do mesmo, como um produto das similitudes sociais, cujo efeito é manter a coesão social que resulta dessas similitudes. Exemplo significativo dessas similitudes sociais é o sentimento de desesperança que move os anciões da Vila no sentido de sua fundação. No filme, o crime causou o choque e levou aquele grupo a fundar uma vila, com base em um segredo, sendo o medo a forma de coesão social usada para manter esse segredo. A visão de mundo elaborada pelos anciões parte de dois elementos: o medo e o segredo. Aquele protótipo de sociedade foi criado sob uma atmosfera de medo, que permeia todos os espaços da vila. Nesse ideário do medo, alguns elementos se destacam: a existência das criaturas que habitam a floresta e as pessoas das cidades. No tocante às criaturas, – “aqueles que não mencionamos”

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– alguns símbolos são preestabelecidos para intensificar esse sentimento social de medo, como a cor vermelha, os ruídos emitidos das florestas e a suposta existência de um pacto de não invasão de seu território. Já em relação aos habitantes das cidades, a manutenção de uma justificativa para mantê-los distantes é a de que “a cidade é um lugar ruim habitado por pessoas ruins”. A principal forma de manter este isolamento é a criação da história de um pacto com as criaturas que habitavam as florestas. Isto se percebe conforme o diálogo abaixo, no qual o Sr. Walker ministra aulas para as crianças da vila, repassando para estas as regras que informam a sociedade na vila: 1ª criança- Eu examinei, o pescoço dele foi quebrado e parte dos pelos arrancados. Sr. Walker- Sei. 2 ª criança- Foi assassinado! Sr. Walker- Mas quem é o culpado? Quem teria cometido esse crime? 1ª criança- Foram aqueles que não mencionamos. Sr. Walker- Muito bem! Por que essa ideia lhe veio à cabeça? 3ª criança- Eles são carnívoros. Sr. Walker- Hunrum. 4ª criança- Tem garras enormes. Sr. Walker- Crianças, aqueles que não mencionamos não entram nos nossos limites há muitos anos. Nós não entramos na floresta deles, eles não entram no nosso vale. É um acordo. Não os ameaçamos. Porque eles fariam isso?

Em um determinado momento da narrativa fílmica, o personagem Lucius quebra o referido pacto dos moradores com as criaturas e invade a floresta. Na ocasião, um ataque das criaturas à vila é simulado como forma de punir a ação de Lucius: Sr. Walker- Pelas marcas que encontramos em nossas casas pela manhã, acredito que as criaturas estão nos avisando, agiram como se estivessem ameaçadas. Sr. Nicholson- As criaturas nunca nos atacaram sem motivo. Alguém aqui conhece um motivo para esses eventos terem ocorrido?

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Este suposto ataque é a realização do controle social através de espécie de pena para os que transgridam às normas. Mesmo os anciões sabendo da inofensividade das atitudes tomadas por Lucius, tendo em vista ser um jovem de caráter e conduta reta na vila, bem como, por saberem que as criaturas são histórias por eles criadas, a repressão é necessária para manter a coesão social. Assim como o crime precisa ser punido nas diversas sociedades, no contexto da Vila a infração a uma regra de conduta também requer punição, ainda que não exista uma real ofensa para a sociedade. A ação de Lucius viola um sentimento coletivo de medo que dá coesão social ao grupo. Nesse mesmo sentido, Gros (2012), ao descrever o poder instrumental proposto na teoria sociológica de Heinrich Popitz, afirma que tal poder se baseia na dinâmica de recompensas e castigos, onde o forte cria medos e esperanças manipulativos nos mais fracos: De este modo el fuerte le impone una definición de la situación al débil; lo coloca ante una alternativa, ante un o bien-o bien (Entweder-Oder): su comportamiento futuro será visto o bien como signo de obediencia, o bien como muestra de desobediencia (Ibíd.). Es fundamental señalar aquí que no es necesario que el hombre o grupo fuerte disponga efectivamente de la capacidad de sancionar negativa y positivamente que disse poseer. Es suficiente con que el débil crea que esto es así. Es por ello que muchas veces “la estrategia del ejercicio de poder instrumental consiste en la construcción y mantenimiento de esta credibilidade (Glaubhaftigkeit)” (Ibíd.). (GROS, 2012, p. 13).

Gros (2012) cita Durkheim, que remete à integração da criança, ser pré-social e egoísta regida por impulsos imediatos, através de mecanismos de coesão social. O autor destaca o problema da socialização na teoria geral de Heirinch Popitz, argumentando que, neste campo, Popitz convive com duas concepções do termo: holista-mecanicista, vista em Durkheim; e subjetivo-interacionista, tratada por Simmel e outros. Para Gros (2012), a ideia de socialização em Popitz está mais próxima de Durkheim. Vejamos:

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Popitz encuentra respuesta a la pregunta par excellence de la reflexión sociológica clásica: ¿cómo es posible la sociedad? “Las normas limitan evidentemente la arbitrariedad (Willkür) en las relaciones entre hombres. Ellas hacen posible que los hombres puedan ajustarse recíprocamente con cierta seguridad y durabilidad” […]. En una palabra, para el sociólogo de Freiburg las normas sociales son la condición de posibilidad de la vida humana conjunta. Como se señaló más arriba, la respuesta popitziana a este interrogante es más durkheimiana que simmeliana, es decir, más normativa que gnoseológica. (GROS, 2012, p. 13).

Ao falar sobre a moralidade emergente da cultura objetivada, Koury (2016), de maneira diferente de Durkheim e apontando as ideias de Simmel, fala de uma submissão do “eu” ao “nós”, porém destaca que os elementos subjetivos individuais, ou culturas subjetivas, ficam em estreita relação e não desaparecem. O indivíduo, ao se socializar, não perde suas características individuais, sendo a junção dessas várias culturas subjetivas que dão fundamento a esta moralidade objetiva. Destaca o referido autor: Cada sujeito relacional continua presente, enquanto subjetividade, na cultura objetiva e na moralidade fundada na relação, e reage favorável ou desfavoravelmente a cada novo ato como nós, isto é, como manutenção e gerenciamento desse nós situacional e contextualmente erigido. (KOURY, 2016, p. 24).

Koury (2016) segue refletindo que as normas, diferentemente do proposto por Durkheim, não são um todo coerente e compacto, mas permitem sua manipulação e driblam, no sentido de favorecimento aos objetivos pessoais dos indivíduos. Para o autor, essas relações interpessoais formam e ao mesmo tempo informam uma cultura emotiva em necessidade de constante negociação: As relações sociais, deste modo, estão sempre em negociação, sempre em um jogo de conformação e teste de legitimidade e ânsias de liberdade entre as partes que a configuram. Elaboram redes tensas e

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repletas de negociação que originam conflitos entre as partes relacionais e entre as partes e a cultura emotiva e a moralidade que tendem a se cristalizar como únicas e desejáveis possíveis. (KOURY, 2016, p.25).

Nesse sentido, as individualidades dos anciões e de seus familiares, reunidas para criar, consolidar e manter um novo modo de vida, geraram uma uniformização e produziram uma lógica discursiva no sentido de autossuficiência, intensa pessoalidade, solidariedade, autocontrole e recusa da modernidade. As individualidades são deixadas de lado para formar o todo da vila, sendo necessário uma cultura emotiva e uma moral que dê sentido à permanência e continuidade desse novo modo de vida. Tal socialização nos remete ao conceito de habitus em Bourdieu. Setton (2002), ao trabalhar o conceito de habitus de Bourdieu, afirma que, para este, a cultura não se trata apenas de um repertório comum de respostas a problemas comuns, sendo de fato uma infinidade de esquemas particulares. O autor utiliza-se da metáfora da escrita musical, que apresenta um certo número de notas que permitem uma serie de combinações. Segue Setton destacando que o conceito de habitus surge como: Um conceito capaz de conciliar a oposição aparente entre realidade exterior e as realidades individuais capaz de expressar o diálogo, a troca constante e recíproca entre o mundo subjetivo das individualidades, socialmente constituído de disposições estruturadas (no social) e estruturantes (nas mentes) adquirida nas e pelas experiências práticas (em condições sociais específicas de existência, constantemente orientado para funções e ações de agir cotidiana). (SETTON, 2002, p.63).

Setton (2002) prossegue afirmando que pensar a relação indivíduo/sociedade, com base no conceito de habitus, é o mesmo que afirmar que o individual, o pessoal e o subjetivo são orquestrados no meio social. A autora, lendo Bourdieu, traz à tona o conceito de campo, estando este relacionado diretamente ao habitus. Assim, o conceito de campo estaria ligado a um espaço de

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relações entre grupos com distintos posicionamentos sociais; espaço de disputa e jogo de poder. Segundo Bourdieu, a sociedade é composta por vários campos, vários espaços dotados de relativa autonomia, mas regidos por regras próprias (SETTON, 2002, p.64). No nosso estudo, o campo seria a vila, compreendida como a organização social – a estrutura orquestrada socialmente –, e o habitus seria a cultura que informa as relações sociais em seu interior. Nesse sentido o conceito de habitus não se compatibiliza com uma sociedade estática, como a sociedade inicialmente pensada pelos fundadores da vila, como as sociedades utópicas que buscam uniformidade e ausência de transformação. Como afirma Setton: Enfim, o conceito de habitus não expressa uma ordem social funcionando pela lógica pura da reprodução e conservação; ao contrário, a ordem social constitui-se através de estratégias e de práticas nas quais e pelas quais os agentes reagem adaptamse e contribuem no fazer da história. (SETTON, 2002, p.65).

Setton (2002) segue questionando a possibilidade de se pensar o conceito de habitus tendendo a reproduzir as estruturas das quais é o produto, como concluiu Durkheim (1999) ao justificar que tal fato sugeriria uma realidade utópica. Daí, no contexto de nossa análise fílmica, a ideia inicial dos anciões ser tributária do pensamento utópico, mas no desenrolar da narrativa cada história individual vai tomando forma no sentido de embaraços, colisões, pluralidade de estímulos, que formam e informam uma cultura emotiva própria. Dentre as “verdades” criadas pelos anciões está, conforme já dito, a necessidade de se manterem-se isolados para preservar o estilo de vida, mesmo que este isolamento representasse a renúncia a alguns benefícios da modernidade. No início do filme, ocorre o velório de uma criança, Daniel Nicholson, que provavelmente morreu por alguma enfermidade, ou causa natural, estando implícito nesse fato o sacrifício da vida, que poderia ter sido salva caso tivessem buscado medicamentos nas cidades.

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Ocorre que o pacto de não adentrar nas cidades prevaleceu e a criança morreu para manter a ordem, sendo tal fato a motivação para que o jovem Lucius buscasse insistentemente a permissão para ultrapassar a floresta e ir até as cidades. Nessa busca, Lucius tentava quebrar as regras da sociedade movido por um sentimento pessoal de solidariedade. Vejamos um trecho de uma conversa de Lucius com Ivy, na qual tenta convencer sua amada que seu propósito é pertinente: Ivy- Vamos cuidar da criança esta noite, Kitty e eu vamos ficar com ela. Até amanhã! Ouvi os meus pais falando de você. Sobre o seu pedido de ir até as cidades. Acho isso nobre, mas não acho que seja certo. Lucius- Não tem raiva por não poder enxergar? Ivy- Eu vejo o mundo, Lucius Hunt, mas não como você vê. Lucius- E quanto a Noah? E se existir remédios que façam com que ele melhore e possa aprender. (barulho da noite, grilos).

Dentre as motivações de Lucius existe uma bem pessoal: fazer Ivy voltar a enxergar. Tal passagem do filme ilustra bem as negociações que originam conflitos no seio das relações sociais, destacados por Koury. A vontade de ir às cidades de Lucius vai de encontro à cultura emotiva da vila. Os anciões começam a discutir a possibilidade, mesmo que com bastante reserva e emergência de conflitos, de se abrir a possibilidade da modificação dessa cultura. Essa cultura emotiva, de fato, será rompida pelo próprio senhor Walker, quando ele dá permissão para que Ivy vá até as cidades em busca de medicamentos para salvar a vida de Lucius, após este ter sido ferido criminosamente por Noah. Nesse contexto, o sr. Walker passa pelo que Goffman (2002 apud Koury, 2016, p.25) denomina de constrangimento e embaraço, que se formam a partir de um momento relacional quando os indivíduos são absorvidos pela cultura emotiva por eles próprios construída e objetificada no encontro relacional. Nesse sentido Koury afirma que os: Constrangimentos e embaraços são assentados, deste modo, no jogo societário do encontro social enquanto etiquetas e normas morais de

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comportamento. Quando consolidados se tornam incômodos, limitativos, em um determinado contexto ou situação onde um cenário é montado e um exercício de trocas sociais é disposto. Situação e contexto que se processam em um cenário sempre tensionado, e em constante negociação para a possibilidade da continuidade desta sociabilidade exercitada. (KOURY, 2016, p.25).

Assim, a própria regra de isolamento da vila, componente da cultura emotiva de seus habitantes, foi quebrada pelo sr. Walker para ajudar sua filha a salvar seu amado Lucius, além do fato de Lucius ser filho da Sra. Hunt, por quem o sr. Walker nutre um afeto em segredo. Naquele momento a regra do isolamento se tornou um embaraço para os interesses pessoais do sr. Walker e de sua filha. Quando dessa quebra de regra, o próprio sr. Walker se vê constrangido pelos demais anciões. Isso se verifica no diálogo abaixo quando ele vai contar para sua esposa sua decisão: Sra. Walker- Preciso lhe falar. Você tem uma natureza indócil. Eu sei o que se passa na sua cabeça. Está pensando em ir às cidades. Diga que estou errada. Você fez um juramento. Edward? Assim como nós nunca voltar. E isso é muito doloroso. Mas não se consegue nada sem sacrifícios. São as suas palavras que estou dizendo, não pode quebrar o juramento, é sagrado. Sr. Walker- É um crime o que aconteceu com Lucius! Sra. Walker- Você fez um juramento. Você e todos os anciões. Você está me ouvindo. Você fez um juramento. (Chora).

A Sra. Walker representa o “nós”, o social, a cultura emotiva impregnada no indivíduo; enquanto o Sr. Walker mostra o equilíbrio do indivíduo com a sociedade, expressando o movimento desse jogo de relações. Em relação ao outro elemento formador da vila, o segredo, este move a ideologia organizatória de manutenção da Vila pelos anciões. Sendo dois os aspectos que envolvem esse segredo, o primeiro é a existência de criaturas na floresta e o pacto de nãoinvasão das fronteiras. O segundo aspecto é temporal, pois os habitantes da vila acreditam estar vivendo cronologicamente em

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uma outra época, uma época desvinculada da modernidade e das influências das grandes cidades. Para analisar sociologicamente o segredo na vila, utilizamos algumas ideias trazidas por Simmel (2011) quando este trata o segredo como algo mais do que um conteúdo que perde o sentido ao ser contado, tendo em vista que envolve uma dinâmica comunicativa, feita de retóricas, silêncios, maneiras de revelação e formas de sociabilidade. Afirma o autor: Não significando apenas ocultação, exclusão, distanciamento ou iniciação, o segredo implica também em atitudes como a habituação ao silêncio, a cooperação, a confiança, elementos sem os quais ficaria difícil viabilizar as relações sociais. Tais atitudes, não raro, são produtos e objeto de processos educativos nos quais a sociedade se reproduz, estando imbricados na ética e na moralidade sociais. (SIMMEL, 2011, p.98).

O referido autor afirma ser a transparência total inatingível, ou seja, uma parcela de desconhecimento, de segredo, se faz presente em qualquer sociedade e informa suas relações sociais. Na vila, as pessoas se conhecem, confiam e cooperam umas com as outras, mas paira uma atmosfera de segredo que alimenta o medo e até o intensifica, em um ciclo autorreprodutivo no interior da vila. Assim, na perspectiva de Simmel (1999), o segredo possibilita um mundo manifesto e um segundo mundo, sendo que o mundo manifesto sofre influências deste segundo mundo. O mundo manifesto seria a vida no interior da vila. Já o segundo mundo, seria tudo que está fora da vila, a vida urbana, as cidades, a floresta e que é conhecido pelos anciões. A vila, mundo manifesto, é uma negação do primeiro mundo, sendo toda ambientada para excluir os problemas que assolam as cidades, tendo sido sua construção fundamentada sob influência do mundo manifesto. Para Simmel (2011) o segredo situa a pessoa numa posição de exceção, na medida em que o que é negado para muitos possui um valor especial. Os anciões, criadores e detentores dos segredos da vila, mantêm os segredos que circundam a comunidade e, por tal razão, ocupam posição de poder diferenciada dos demais moradores.

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A exclusão tão enfatizada dos que não o detém traz um forte sentimento de posse. Para muitos indivíduos, a propriedade não adquire significado com a mera posse, mas só com a consciência de que os outros não a detém. A base para tal, evidentemente, é a impressionabilidade dos nossos sentimentos através das diferenças. Além disso, estando os outros excluídos da posse, deixa sugerir que o que é negado a muitos tenha um valor especial. (SIMMEL, 1999, p.222).

O grupo de anciões se desentende e a maioria é contrária a ideia de revelar o segredo para Ivy, pois a revelação do segredo seria o fim de seu poderio, isto é, o fim da vila. Lucius sabe que há um segredo que os anciões escondem dos demais moradores, porém compreende não poder ter tal conhecimento, pelo menos até começar a questionar o motivo de tanto mistério. Para o homem comum, todas as pessoas e as realizações superiores e diferenciadas têm algo de misterioso. É como se o ser e o fazer humanos fluíssem de forças enigmáticas (SIMMEL, 1999, p. 222). O personagem Lucius, que é o jovem mais inquieto e desafiador da vila, questiona sua mãe a respeito desse segredo, e ao mesmo tempo revela como é fascinado por esse desconhecido. Alice Hunt- Seu pai foi ao mercado na terça, eram 9h15 da manhã. Ele foi encontrado espancado e nu dentro de um rio imundo dois dias depois. (Lucius chora) Lucius- Por que está me contando essa tragédia? (Choro) Alice Hunt- Para que entenda a natureza do que deseja. Lucius- Eu não desejo isso! (Chorando). Minhas intenções são verdadeiras. Penso apenas nas pessoas do vilarejo. Alice Hunt- Perdoe-me, mas eu temo pela vida do meu único filho. Lucius- Não sou eu que guardo segredos! Alice Hunt- O que quer dizer? Lucius- Existem segredos em cada canto desse vilarejo. A senhora não sente, a senhora não vê?

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Alice Hunt- Isso é para o meu próprio bem. Alice Hunt- Para que as coisas ruins do meu passado estejam próximas e não sejam esquecidas.

O segredo exerce um fascínio, assim, foi fácil para os anciões disseminar histórias que serviram de pano de fundo para a formação da vila, passando para as novas gerações a ideia de um segredo supremo, que só eles conheciam e que era objetivado através de caixas pretas que guardavam em suas casas. Simmel (1999) fala de um impulso natural do ser humano para idealizar seu temor e intensificar o desconhecido através da imaginação que muitas vezes não corresponde à realidade. Da mesma forma o segredo, objeto de temor dos moradores da vila, é irreal, porém idealizado e intensificado pela imaginação das pessoas. O poder do segredo está na sua não revelação. Simmel (1999) fala em um fascínio da traição, no qual a revelação desse segredo é o ápice, o momento de sua maior importância e ao mesmo tempo da perda de seu poder: O segredo contém uma tensão que se dissolve no momento da revelação. Este momento constitui o apogeu no desenvolvimento do segredo: todos os seus encantos se reúnem uma vez mais e alcançam o clímax assim como o momento da dissipação nos permite gozar em sua inteireza o valor do objeto que se compra: a sensação de poder que acompanha a posse do dinheiro se concentra para o comprador, da maneira mais sensual e mais completa, no próprio instante em que o dinheiro lhe saiu das mãos. (SIMMEL, 1999, p. 223).

O ápice do filme se dá quando o Sr. Walker conta para Ivy toda a trama dos anciões na construção e manutenção da sociedade da vila: Ivy- Que cheiro estranho! Sr. Walker- Está diante de você. Ivy- O que é? Sr. Walker- Não posso explicar com palavras. Só mais alguns passos. (Grito de espanto de Ivy) Ivy- Aqueles que não mencionamos!

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Sr. Walker- Não tenha medo, não tenha medo. Não é real. Não precisa ter medo. Não tenha medo. (Suspiro de Ivy)

Segundo Simmel (1999), o segredo se desenvolve melhor em sociedades mais complexas, como as que possuem a economia do dinheiro. Na comunidade da vila, a existência de laços estreitos dificulta a manutenção de segredos, já que todos sabem o que se passa na vida privada dos outros. Essa talvez tenha sido a causa da revelação do segredo ao final do filme, pois se tornaria insustentável sua manutenção com a ocorrência do hipotético assassinato de Lucius. Sobre essa necessidade de complexidade social para manutenção do segredo, Simmel afirma: É como se, com o crescimento da conveniência cultural, os negócios públicos em geral se tornassem ainda mais públicos e as questões individuais sempre mais secretas. Em estágios menos desenvolvidos, como já tem sido observado, o indivíduo e suas condições não podem proteger-se de olhares e intromissões na mesma medida ou no estilo moderno de vida, que produziu uma nova medida de reserva e de discrição, sobretudo nas grandes cidades. (SIMMEL, 1999, p. 225).

O segredo, guardado por tanto tempo, desperta a curiosidade dos jovens, que começam a buscar as cidades. Assim, com base na análise de Simmel sobre o segredo, podemos ter uma compreensão da função do segredo na ordenação e transformação social no interior da vila. No desfecho da narrativa fílmica, o segredo se mantém, porém sofrendo algumas alterações que o fortaleceram. Como podemos perceber, nas palavras do senhor sr. Walker: PC da casa de Alice Hunt, que cuida de Lucius cercados pelos anciões, que aguardam o retorno de Ivy. Pessoas correm e um jovem vem informar que Ivy voltou. Os anciãos ficam de pé ao ouvirem o sr. Walker, no sentido de concordar com sua ideia de perpetuação do lugar. Ao fundo Ivy vem chegando e entra na casa e se coloca ao lado do leito de Lucius.

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Jovem- Ivy voltou com os remédios das cidades. Ela foi atacada por uma criatura e a matou. Ouve-se o choro da mãe de Noah. Mãe de Noah- Aí, meu filho. Sr. Walker- Nós vamos achá-lo. Daremos a ele um funeral digno. Diremos aos outros que ele foi morto pelas criaturas. Seu filho tornou nossas histórias reais. A chance de perpetuar esse lugar nos foi dada por Noah. Se esse for realmente o nosso desejo. Ivy- Eu voltei Lucius.

Considerações finais Medo e segredo são formas delineadoras do social. O filme A Vila retrata metaforicamente o delineamento de uma sociedade através da criação de um segredo criado por um grupo que se encontra em posição de superioridade, tendo em vista ser uma das funções do segredo: segregar. Este segredo criado pelos anciões é baseado no medo, em um movimento de retroalimentação, ajudando a manter o segredo e ampliando o medo, já que o desconhecido tem a função do mistério e do fascínio. Ao fundar a vila, os anciões buscavam uma comunidade com o estabelecimento de uma coesão social, onde as normas estabelecessem o comportamento dos indivíduos. Era uma tentativa de manter qualquer tipo de desvio do lado de fora da vila, sendo esta um lugar de ordem, paz, harmonia. Porém, tal estilo almejado pelos anciões só existiria como uma idealização desprovida de referências históricas sob a modernidade capitalista. Logo, a cultura objetiva é sempre informada e modificada pela cultura subjetiva. É um jogo, tem movimento, tem mobilidade e a própria sequência do filme demonstra a impossibilidade do estilo de vida proposto pelos anciões diante das novas gerações, que vão trazendo aspectos de sua subjetividade para informar a cultura objetiva e por ela serem informados, dando novos rumos àquela comunidade. O medo e o segredo vão sendo modificados de acordo com as necessidades e interesses individuais dos membros do grupo, cuja revelação do segredo em algum momento será necessária para sua própria manutenção.

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Referências DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho Social. Tradução. Edwardo Brandão. 2ª Ed. – São Paulo. Martins Fontes, 1999. GROS, Alexis Emanuel. El problema de la socialización en la teoría sociológica general de Heinrich Popitz. Nómadas - Revista Crítica de Ciencias Sociales y Jurídicas. nº 35, 2012, p.1-29. KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Medo, Vida Cotidiana e Sociabilidade. Revista Política & Trabalho, v. 18, p.09/19, set/ 2002. KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Cultura Emotiva e Processo Social: Medos Corriqueiros, Risco e Sociabilidade. Revista Brasileira de Sociologia das Emoções, v. 5, n. 14, 2016. SETTON, Maria da Graça Jacintho. A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea. Revista Brasileira de Educação, n. 20, maio/jun/jul/ago 2002, p. 60-70. SIMMEL, Georg. Sociologia. (organizador da coletânea) Evaristo de Morais Filho: Tradução de Carlos Alberto Pavanelli...et al. São Paulo: Ática, 1983. SIMMEL, Georg. A metrópole e a Vida Mental. In: VELHO, Otávio Guilherme. O Fenômeno Urbano. 2ª ed. Zahar, Rio de Janeiro, 1973. SIMMEL, Georg. O segredo. Revista Política & Trabalho. nº15, setembro, 1999, p. 221-226. SIMMEL, Georg. George Simmel: sentidos e segredos/ Simone Maldonado (organização, tradução e comentários) 1 ed. Curitba: Honoris Causa, 2011. SOUZA, Jessé e OELZE, Berthold. Simmel e a Modernidade. Brasília: UNB. 1998. VANOYE, Francis Anne Goliot-Lété. Ensaio Sobre a Análise Fílmica. Tradução Marina Appenzeller, 2ª ed. Campinas: Papirus, 1994.

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CAPÍTULO 5 Reestruturação capitalista e resistência operária no filme “Como era verde meu vale” (1941) Jean Henrique Costa19 Hellen Damália de Sousa Andrade Lima20

Resumo: Este ensaio investiga a problemática da resistência operária no filme “Como era verde meu vale” (How green was my valley), dirigido por John Ford e baseado no livro homônimo de Richard Llewellyn. O escrito busca compreender, sob a forma de livre ensaio, como os trabalhadores se organizam e se percebem em momentos de reestruturação capitalista e mudanças econômicas. Percebe-se que o filme “Como era verde meu vale” revela que a formação de uma cultura operária não se deu somente nas entranhas das minas de carvão, mas, sobretudo, para além delas. Não foi uma resistência somente aos baixos salários, mas, especialmente, ao desmantelamento das relações sociais comunitárias que estruturavam a vida no Vale. Palavras-chave: Trabalho; Mineração; Desemprego; Cultura operária.

O filme “Como era verde meu vale21” (How green was my valley), dirigido por John Ford e baseado no livro homônimo de Richard Llewellyn, apresenta uma narrativa construída a partir das 19

Sociólogo e doutor em ciências sociais. Professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). E-mail: prof.jeanhenriquecosta@gmail.com 20 Advogada e professora universitária. Graduada em Direito. Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho e em Direito Previdenciário. Mestranda em Ciências Sociais e Humanas (UERN). E-mail: hellen_sjp@hotmail.com 21 “Como era verde meu vale é uma produção de 1941 da Twenty Century Fox, conduzida por Darryl F. Zanuck. O elenco principal é encabeçado por Walter Pidgeon, Maureen O’Hara, Donald Crisp, Roddy McDowall e Sara Allgood. Recebeu dez indicações para o Oscar – filme, direção, ator coadjuvante (Donald Crisp), fotografia em preto e branco, direção de arte em preto e branco, atriz coadjuvante (Sara Allgood), som, roteiro, montagem e música –, ganhando as cinco primeiras” (MELO JÚNIOR; SILVA JÚNIOR, 2018).

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memórias trazidas por seu personagem principal, Huw Morgan. A narrativa se passa no País de Gales no final do século XIX, quando a crise econômica afetou o cotidiano dos trabalhadores das minas de carvão no Reino Unido e desestruturou seus modos tradicionais de vida. Huw, já com idade avançada, está saindo do seu vale (deixando-o de vez) e passa a lembrar de sua infância. Para Bosi (1987, p. 31), a criança recebe do passado não só os dados da história escrita, mas também “mergulha suas raízes na história vivida, ou melhor, sobrevivida, das pessoas de idade que tomaram parte na sua socialização”. Neste caso, trata-se das memórias de uma infância marcada pela autoridade patriarcal, relações desiguais de gênero, dureza do trabalho físico e invisibilidade da criança, características ordinárias em contextos conservadores. Mesmo assim, as lembranças de Huw oscilam entre as imagens de uma infância feliz em seu verde Vale e as representações de uma vida que decide, preferencialmente, por evadir. A saída de Huw do Vale acontece não somente pelo desemprego criado nas minas de carvão, mas também por consequência da desintegração da comunidade mineira daquele local. Relembrando aqui a obra de Ferdinand Tönnies (1995), há três padrões básicos de sociabilidade comunitária: os laços de consanguinidade, de coabitação territorial e de afinidade espiritual, representados por laços de sangue (parentesco), de lugar (vizinhança) e de espírito (“amizade”). A vida comunitária imperava nas memórias de Huw ao recordar as experiências de uma vida pacata, amistosa e familiar em uma pequena cidade mineradora galesa, onde tudo parecia unir e dar coesão social mesmo diante das muitas adversidades materiais imperantes. Mesmo já apresentando traços de desenvolvimento societário, dados pelo avanço do capitalismo sobre a vida social do Vale, o essencial do núcleo inicial da narrativa se passa na tessitura de uma comunidade de parentesco, vizinhança e amizade. Contudo, aquele elo comunitário vai se desfazendo com algumas transformações, dentre elas, a escassez de trabalho digno, as mudanças na estrutura de sua família com a emancipação de seus irmãos mais velhos (além a morte de seu pai) e pelas transformações socioespaciais inerentes ao Vale. O próprio trabalho nas minas de carvão foi, na narrativa, o elemento que cimentava as relações sociais, mas que, também, desintegrava

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os laços sociais mais sólidos com as transformações estruturais vindouras. A vida familiar de Huw Morgan foi muito influenciada pelo cotidiano de trabalho do seu pai e de seus irmãos, todos mineiros do carvão. O pouco de salário que recebiam da mineradora já os deixavam felizes. Portanto, mesmo as custas de um trabalho brutalizado, restava algo de dignidade material que mantinha a comida em casa e certos laços comunitários de união. Em casa, a mesa estava quase sempre abastecida e não faltava comida e momentos de festividade. Esses laços sociais, revestidos de ritos e simbolismos, serão afetados pelo rebaixamento salarial e pelo desemprego que estavam por vir, alterando o cotidiano e as perspectivas subjetivas de longo prazo. Apesar da expressiva distância temporal do filme com o advento do toyotismo, é salutar relembrar que o capitalismo de curto prazo (SENNETT, 2012) e de acumulação flexível (HARVEY, 1994) não permite a densidade de relações sociais mais sólidas, implicando projetos pessoais mais imediatistas e individualistas (SENNETT, 2012) e, com isso, o trabalho deixa de ser o eixo seguro em torno do qual as identidades são construídas (BAUMAN, 2001). No Vale, as relações entre a “casa” e o trabalho eram muito próximas. O trabalho estava situado no próprio vale onde a família habitava, o que reforça a ligação espacial entre o tempo de labor e o tempo familiar. O trabalho na mina de carvão era importante para a localidade, visto que grande parte das pessoas que ali moravam trabalhavam nela. A mina, portanto, integrava o cenário do Vale, misturando poeira e lixo à beleza paisagística do local, o que também foi um construto importante na narrativa, visto que já retrata os impactos das atividades industriais no meio ambiente. Huw era filho de Gwilym Morgan e Beth, sendo o filho caçula entre os sete irmãos, quais sejam, Owen, Ianto, Davy, Ivor, Gwinlyn filho e a sua irmã Angharad, a qual não trabalhava fora, visto que desempenhava com sua mãe os trabalhos domésticos da casa, reproduzindo o papel social destinado à mulher e reforçando as assimetrias estruturais de gênero. As lembranças de Huw estruturam o enredo do filme. Em meio a um passado ambíguo, marcado ora por elementos nostálgicos, mas também, ora marcado por conflitos, o personagem narrador rememora sua biografia imersa no Vale minerador e em

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suas relações sociais tradicionais. Huw, mergulhado em suas lembranças, relata: “Fecho os olhos no meu vale como é hoje, e ele some, e eu o vejo como era na minha infância, todo ele verde e impregnado da força da terra, em toda Gales nenhum era tão belo”. Quando criança acompanhou o início da instalação da mina de carvão, a qual aos poucos iria alterar a paisagem verde do Vale. Seu pai, Gwilym Morgan, representava o perfil de muitos dos habitantes do Vale, sendo um homem sério, disciplinado, metódico e reconhecedor do valor do seu emprego como possibilidade de garantia de sustento de sua família. Beth era a típica mãe/esposa zelosa. Seus filhos também eram homens bem-educados e organizados, no entanto, um pouco diferentes do pai. Enquanto o pai tinha uma postura disciplinada, sendo habituado e decidido a continuar seguindo as regras do emprego, os filhos eram mais sonhadores e desejosos de vida melhor e, para isso, não receavam em lutar por melhores condições de trabalho e de vida. O pai e os irmãos mais velhos de Huw trabalhavam na mina de carvão. Valorizavam o trabalho que desempenhavam e mostravam orgulho por serem trabalhadores daquele local. Beth, juntamente como a sua filha Angharad, ao final de cada dia, aguardavam o retorno do seu marido e filhos da mina, os quais chegavam sujos e suados do trabalho. Chegavam felizes e satisfeitos, mesmo tendo cumprido jornadas de trabalho exaustivas e percebendo uma precária contraprestação pelo trabalho realizado. Huw relata a sua disposição em realizar pequenos serviços domésticos enquanto seu pai e irmãos se lavavam para tirar o pó preto do carvão o qual “ele tanto invejava”, ou seja, havia admiração pelo trabalho realizado na mineração pelos seus entes. Há ainda o enaltecimento da figura do chefe da família, o qual prezava pelas boas maneiras e reproduzia o papel nuclear – e desigual – da organização doméstica. Os trabalhadores da mina eram sujeitos simples, esforçados e animados em busca de uma vida melhor. Ao final de cada dia, esses trabalhadores se dirigiam até suas casas, retornando do trabalho sempre cantarolando em espécie de coro. Huw observava a rotina de ida e vinda do pai e de seus irmãos, conhecendo bem as dificuldades dos mineiros e a dureza das atividades que eram desempenhadas na mina. Apesar dos ares de satisfação do seu pai,

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o garoto percebia a dureza da vida e as ameaças de miséria e pobreza que rondavam a vida dos trabalhadores. Os trabalhos na mina corriam dentro da normalidade para todos os empregados, até se aproximar um acentuado período de crise. Diante da baixa lucratividade o Sr. Evans, dono da mina, decide reduzir o valor dos salários pagos aos trabalhadores da mineradora. Tal fato impacta diretamente na vida dos empregados, os quais, uma vez atingidos, decidem lutar por melhorias salariais. Os mineiros ganhavam pouco, diante da quantidade de trabalhos desempenhados e das várias horas de dedicação. Com a diminuição do valor do salário, cresceu a insatisfação por parte dos trabalhadores. A redução da escala de salário fora justificada pela empresa pelo fato de que “o carvão não mantivera o preço antigo”; no entanto, o verdadeiro motivo seria o fechamento de uma usina de ferro e a existência de homens desempregados que vieram atrás de emprego, aceitando qualquer coisa que os pagassem. Portanto, a mineradora não pagaria um salário melhor aos trabalhadores se já existiam pessoas disponíveis para trabalhar recebendo muito menos. Relembrando Marx, esse quantum de força de trabalho sempre disponível revela que a produção capitalista possui como tendência formar um exército industrial de reserva sempre disponível, criando, independentemente das barreiras ao aumento real da população, o material humano explorável e sempre disponível para as necessidades de valorização do capital (MARX, 1988)22. Neste contexto, diante da busca pelos motivos da redução salarial, surge no filme a primeira indicação de que o empregador é forte por si só, devendo os trabalhadores para obterem tal força se reunir em um sindicato, ideia esta rechaçada por Gwilym por se referir a ideais socialistas. Antunes (1980) nos lembra que os sindicatos possuem duas funções básicas, quais sejas: evitar que os salários se coloquem abaixo do necessário para a reprodução material do trabalhador e sua família, bem como evitar que o capitalista trate isoladamente com cada trabalhador. Assim, o ápice dos conflitos se inicia a partir do conservadorismo do Sr. Gwilym em apoiar o movimento grevista em prol da união da categoria. 22

Seção: Progressiva produção de uma sobrepopulação relativa ou de um exército industrial de reserva. O Capital, Livro 1.

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Logo, a família Morgan se divide com a ideia da greve. O patriarca Gwilym, sendo um sujeito conservador, não concorda com a greve em curso e consequentemente diverge de seus filhos, convictos e adeptos do movimento paredista. Nesse ínterim, as formas precárias de trabalho na mineradora se intensificam e os trabalhadores decidem iniciar o movimento grevista. A greve se estendeu ao longo de 22 semanas, enquanto a fome e o desespero começaram a tomar conta do raciocínio dos homens que preenchiam as ruas do Vale, levando-os a se opor à Gwilyn por não ter apoiado a greve. Os trabalhadores adeptos da greve reagem contra Gwilym, visto que o mesmo se insurgiu em desfavor do movimento de paralisação das atividades. Diante das circunstâncias, os que são adeptos da paralisação resolvem se reunir para determinar uma punição em desfavor de Gwilym. Conhecendo a ameaça iminente à Gwilym, sua esposa se dirige juntamente com Huw até a mina em uma tentativa de evitar que seu marido seja agredido. Após conversar em tom de ameaça com os mineiros, a senhora Morgan inicia a volta para casa com seu filho. Porém, no caminho ocorre um acidente e mãe e filho caem em um lago de águas geladas. A situação fica ainda mais perigosa devido a severidade do inverno. Após serem socorridos pelos mineiros, mãe e filho são levados ao médico. Huw acaba perdendo os movimentos dos membros inferiores e fica algum tempo sem andar. Sua mãe também fica machucada e sem andar por um bom tempo, até a chegada da primavera. Nesse período recebem a visita dos mineiros, que por se sentirem culpados pelo acidente, ofertam flores à senhora Morgan. Tal acontecimento reintroduz um período de tranquilidade e reconciliação com a família Morgan, marcado pelo retorno dos filhos de Beth ao lar, os quais são recebidos calorosamente pela mãe protetora e convidados a sentar-se à mesa. Os momentos da refeição eram sempre momentos de harmonia, união e boas trocas entre os filhos e os pais na família Morgan. Esta cena dá ao filme um certo retorno aos laços comunitários mais marcantes do início da película. Ianto Morgan, ao ser questionado por um pastor (não creditado) por não se fazer mais presente na capela, afirma que anda ocupado e replica o questionamento acerca das “tolices” que prega na capela. O pastor Gruffydd lhe pede licença para expressar

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a sua opinião e lhe diz: “Primeiro, façam seu sindicato, precisam! Sozinhos são fracos, juntos são fortes. Mas lembrem-se, com a força vem a responsabilidade, com os outros e com vocês mesmos, pois não se pode conter injustiça com mais injustiça, somente com a justiça e a ajuda de Deus”. O Sr. Gruffydd é um progressista que conclama os trabalhadores a se unirem e lutarem pelos seus direitos. Logo, com a ajuda do Sr. Gruffydd e do Sr. Gwilym Morgan, a greve chega ao fim e os trabalhadores sobem novamente a colina para a mineradora; no entanto, ainda haviam homens demais para os empregos vagos. Alguns sabiam que não havia emprego para eles no seu próprio vale, situação esta que ascende o desejo do sonho americano em dois dos filhos de Gwilym. Ao ser finalizada a greve, muitos aspectos da vida dos habitantes do Vale são transformados. Os mineiros que retornam ao trabalho voltam mudados e com outra forma de enxergar o cotidiano e suas relações de trabalho. Os sujeitos que ficam de fora do trabalho da mina têm que deixar o Vale, como é o caso de dois dos filhos da família Morgan. Ivor Morgan, um dos filhos, é convidado para cantar para a Rainha e ganha posição de destaque no coral daquela localidade. Já Huw Morgan, por ser o caçula da família, teve a oportunidade de frequentar a escola, sendo o primeiro de sua família a ter o privilégio de frequentar uma escola pública. Foi vítima de muito desrespeito, chacota e piadas ácidas, provenientes inicialmente do próprio professor Sr. Jonas, o qual utiliza de castigos físicos para punir Huw por ser filho de trabalhador da mina. Seu pai incentivara muito sua ida para a escola, pois queria um futuro diferente para seu filho em termos de trabalho. Assim, sonhava com uma profissão melhor para seu filho, pois sabia da dureza do trabalho na mina. Mesmo assim, após alguns de anos de estudo, Huw se vê qualificado para a universidade, mas escolhe ficar no Vale trabalhando na mina. A decisão de Huw de trabalhar na mina surge após a morte de seu irmão Ivor. Huw, além de trabalhar na mina, toma ainda para si a missão de sustentar e cuidar da esposa de seu irmão morto, Sra. Bronwyn e do seu sobrinho. Na verdade, a mina leva a vida e os sonhos da família Morgan. Ianto e Davy são dispensados e substituídos por outros trabalhadores que aceitam receber menos pelo mesmo trabalho, situação que os leva a sair do Vale em busca de trabalho e melhores condições de vida. O próprio pai é morto em

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um acidente na mina e, apesar de ser um mineiro experiente, tem sua vida tomada em acidente. O filme deixa a incógnita acerca da responsabilização da mineradora sobre os acidentes de trabalho. As memórias de Huw são revividas com a beleza de quem foi feliz, no entanto, o conteúdo delas revela uma existência perpassada por angústias familiares, paixões terminadas e sonhos destruídos. O que se tem são memórias de um adulto que ainda na infância vivenciou as truculências da desigualdade social, da desintegração comunitária e das transformações estruturais que tanto agoniaram o seu verde Vale. Tudo no Vale e na família Morgan possuía um tom ritualístico, ancorado por densos laços subjetivos. A família de Huw vivia em harmonia e concórdia, mas nas memórias de Huw, percebese que a chegada do “progresso” (?!) – representado pelo avanço da mineração e expansão da vida econômica no Vale – reforçou a precarização das relações de trabalho e ampliou a ausência de segurança e identidade no trabalho. O que restou foi um Vale não mais tão verde e projetos de vida despedaçados pela maquinaria capitalista. A poeira do carvão tingiu de preto não somente a pele dos mineiros, mas principalmente aquele elemento comunitário que unia e dava liga ao tecido social do Vale que, desta vez, já não era mais tão verde. Diante disso, o filme mostra não somente a luta por melhores condições de trabalho, mas, sobretudo, um processo de construção de uma cultura operária como uma autoatividade da classe trabalhadora no seu processo histórico. Como destaca McNally (1995, p. 04), “la clase obrera inglesa no sólo se construyó bajo los patrones de la acumulación del capital y la competencia del mercado, sino también por ideas, aspiraciones y luchas que los trabajadores opusieron a la influencia que condicionaba sus vidas”. E. P. Thompson (1987a, p. 20) nos brinda com uma maneira de ver o “fazer história” a partir dos pobres tecelões de malhas, dos meeiros, dos artesãos, mineiros etc., sem perder de vista, é claro, todo o peso estrutural herdado e em construção. Para Thompson, mesmo diante da exploração capitalista e das perseguições políticas, as classes trabalhadoras inglesas, a partir da segunda metade do século XVIII, participaram ativamente do processo de construção de sua consciência, seja reivindicando melhores condições de vida, seja reivindicando liberdade de pensamento. Para ele, a liberdade de consciência era o único grande valor que o

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povo inglês comum preservara. O campo era governado pela pequena nobreza, as cidades governadas por corporações corruptas e a nação pela mais corrupta instituição de todas. Contudo, a capela, a taberna e o lar eram do povo. Havia espaço para vivências de uma vida pensante ‘livre’ e experiências democráticas, mesmo diante de uma realidade material (e educacional) tão adversa. Aqui podemos perceber elementos socializadores da comunidade, em Tönnies, e o olhar historicizante, ainda que um tanto romântico, de E. P. Thompson. O elemento central da obra de Thompson, com efeito, reside em pensar a formação da classe operária inglesa (entre 1790 e 1830) para além das visões subsocializada e supersocializada da sociedade, ou ainda, da visão da fábrica tenebrosa ou das aspirações de progresso. Isso é revelado, em primeiro lugar, no crescimento da consciência de classe e, em segundo lugar, no crescimento das formas correspondentes de organização política e industrial. No século XIX, havia instituições da classe operária solidamente fundadas e autoconscientes – sindicatos, sociedades de auxílio mútuo, movimentos religiosos e educativos, organizações políticas, periódicos. Assim, Thompson mostra que o fazer-se da classe operária é um fato tanto da história política e cultural quanto da história econômica. Importante destacar também que a consciência de classe não foi gerada espontaneamente pelo sistema fabril. Por conseguinte, “a classe operária formou a si própria tanto quanto foi formada” (THOMPSON, 1987b, p. 17-18). Para Thompson, por um lado, os trabalhadores sofriam as pressões da disciplina e da ordem (fábricas, escolas dominicais, etc.) e essa coação se estendia a todos os demais aspectos da vida cotidiana: lazer, relações pessoais, conduta moral, sexualidade, etc. Prontamente, a diversão dos pobres foi alvo de grande oposição religiosa e fabril. Assim, a narrativa fílmica explora, nesse sentido, as tensões emocionais e os desencontros e rupturas morais no interior da família Morgan e também na dinâmica simbólico-interacional entre os mineiros do Vale. Tensões e desencontros estes contextualizados nas relações precarizadas de produção, cujo impacto provoca a recomposição moral da comunidade tradicional e familística pessoalizada, mas já em tessituras desagregadoras de anonimato, em que o parentesco, a vizinhança e a amizade perdem espaço para a lógica mercantil e monetária de exploração da força

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vital das famílias do Vale (SIMMEL, 1973). Por outro lado, para além das pressões tradicionais de conformação social, “[...] o processo de imposição da disciplina social não deixou de encontrar resistências” (THOMPSON, 1987b, p. 293). Destaca Thompson que a escassez material cotidiana era quebrada pelas festas e outros acontecimentos circunstanciais, quando se comprava “um pedaço de carne de boi” e todos iam às feiras. Nelas, vendiam-se pães de gengibre, frutas e brinquedos, havia representações da batalha de Waterloo, apresentações de Polichinelo e Judy, tendas de jogos e swings, além do habitual ‘mercado do amor’, em que os rapazes cortejavam as moças. “Poucos trabalhadores podiam ler e entender um jornal, mas era comum a leitura em voz alta das notícias nas ferrovias, barbearias e tavernas” (THOMPSON, 1987b, p. 298). Como considerações finais, a obra de Thompson mostra que é certo que a Revolução Industrial não destruiu totalmente as tradições locais. Conforme a nova disciplina fabril avançava, a autoconsciência de classe e das posições no jogo social também se acentuava; na medida em que os trabalhadores sentiam determinadas perdas com o advento do ritmo de vida fabril, aumentava a sensibilidade na cultura operária. “Tratava-se de uma resistência consciente ao desaparecimento de um antigo modo de vida [...] a perda do tempo livre e a repressão ao desejo de se divertir, avarias que tiveram tanta importância quanto a simples perda física dos direitos comunais e dos locais para recreio” (THOMPSON, 1987b, p. 300). Daí que, mesmo diante de uma educação errante e duramente obtida e, a partir de sua própria experiência, “os trabalhadores formaram um quadro fundamentalmente político da organização da sociedade. Aprenderam a ver suas vidas como parte de uma história geral de conflitos” (THOMPSON, 1987c, p. 304). De 1830 em diante, os trabalhadores amadureceram uma consciência de classe (no sentido marxista tradicional), com a qual estavam cientes de continuar por conta própria em lutas remotas e novas. “Lutaram, não contra a máquina, mas contra as relações exploradoras e opressivas intrínsecas ao capitalismo industrial” (THOMPSON, 1987c, p. 440). Para Fortes (2006), Thompson oferece uma leitura dos trabalhadores não como redenção da humanidade, mas como uma mostra de sujeitos que, explorados e oprimidos, vivenciaram a destruição de seu modo tradicional de vida e, por caminhos diversos

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(não raro contraditórios), paulatinamente construíram uma nova ‘cultura’. Essa nova cultura foi feita por homens concretos a partir de escolhas e apostas conscientes, embora em condições pelas quais muitas vezes não optassem e por meio de processos cujos desdobramentos escapassem ao seu controle. Diante disso, “Como era verde meu Vale” revela que a formação de uma cultura operária se deu não somente nas entranhas das minas de carvão, mas, sobretudo, para além delas. Não foi uma resistência somente aos baixos salários, mas ao desmantelamento das relações sociais comunitárias que estruturavam a vida no Vale. Referências ANTUNES, Ricardo. O que é sindicalismo. São Paulo: Brasiliense, 1980. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 2. Ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 1987. COMO ERA VERDE MEU VALE. Título original: How Green was my valley. Direção de John Ford. Baseado no livro de Richard Llewellyn. EUA. 2h.2m, 1941. FORTES, A. Miríades por toda a eternidade: a atualidade de E. P. Thompson. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, v. 18, n. 1, p. 197-215, 2006. HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1994. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro 1. São Paulo: Nova Cultural, 1988. McNALLY, D. E. P. Thompson: Lucha de clases y materialismo histórico. Razón y Revolución, n. 1, 1995.

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MELO JÚNIOR, V. H.; SILVA JÚNIOR, N. Percepção e recepção da imagem no cinema clássico hollywoodiano. Em Aberto, Brasília, v. 31, n. 103, p. 161-176, set./dez. 2018 MIRANDA, Orlando. Para ler Ferdinand Tönnies. São Paulo: EDUSP, 1995. SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: o desaparecimento das virtudes com o novo capitalismo. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Edições Best Bolso, 2012. SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. VELHO, O. (org.). O fenômeno urbano. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1973. THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa: a árvore da liberdade. Tradução de Denise Bottmann. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987a. v. 1. THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa: a maldição de Adão. Tradução de Renato Busatto Neto e Cláudia Rocha de Almeida. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987b. v. 2. THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa: a força dos trabalhadores. Tradução de Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987c. v. 3.

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CAPÍTULO 6 Muitos chamados e poucos os escolhidos: exploração e rebeldia operária em “A classe operária vai ao paraíso” (1971) Jean Henrique Costa23 Francisco Wilton da Silva Júnior24 Tássio Ricelly Pinto de Farias25

Resumo: Este ensaio descreve a narrativa do filme italiano “A classe operária vai ao paraíso”, de 1971, e aponta alguns insights teóricos a partir do enredo posto pela obra audiovisual. O escrito pretendeu traçar algumas relações entre o filme, as mudanças vigentes no mundo do trabalho – sobretudo aquelas pertinentes ao contexto da película – e algumas consequências estruturais para os trabalhadores. Dentre essas consequências estruturais, o ensaio destaca a deterioração do trabalho como elemento identitário, o desemprego estrutural, a debilidade da ação sindical e a intensificação da mais-valia relativa. Palavras-chave: Trabalho; desemprego; reestruturação produtiva; precarização.

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Sociólogo e doutor em ciências sociais. Professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). E-mail: prof.jeanhenriquecosta@gmail.com 24 Graduando em Turismo (UERN). Guia de Turismo. E-mail: guiawilton.silva@gmail.com 25 Graduado em Filosofia e Mestre em Ciências Sociais e Humanas (UERN). Professor permanente na rede estadual de educação básica (RN). Professor na Faculdade Evolução Oeste Potiguar. E-mail: prof.tassiofarias@gmail.com

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“A doutrina do liberalismo lembra os Evangelhos: ‘são muitos os chamados e poucos os escolhidos’” (GEORGE, 2002, p. 69).

Dirigido pelo diretor italiano Elio Petri, que assina o roteiro do filme junto ao roteirista Ugo Pirro, o drama A classe operária vai ao paraíso (no original: La classe operaia va in paradiso) é um filme italiano de cunho político que teve sua estreia em 1971, tendo o ator Gian Maria Volonté na pele do protagonista Lulu Massa, um operário fabril que, após um acidente de trabalho (tem um dedo da mão decepado), inicia sua trajetória pessoal de indagação a respeito de sua identidade enquanto indivíduo e trabalhador. Enquanto parte do cinema político italiano, A classe operária vai ao paraíso possui “grande expressão ao tratar das transformações de identidades dos trabalhadores” (BERGAMIN, 2016, p. 8), refletindo a realidade dos operários enquanto mão de obra precarizada e, para além disso, do indivíduo que tem seus conflitos acentuados no lar e na vida cotidiana. Tal constatação se dá pelo fato de que, segundo Bergamin (2016, p. 8): [...] na década de 70 os sindicatos, a luta política clássica e o trabalho perfaziam a ligação com a vida social, o cinema podia retratar a vida familiar, a relação dos afetos, a educação dos filhos, para construir uma narrativa de como se construía naquele momento as sociabilidades dos sujeitos. Naquele momento de A classe operária vai ao paraíso, o trabalho fabril se encontrava em um lugar central para a vida social da classe trabalhadora.

Vale ressaltar que o filme foi lançado em um contexto histórico marcado por crises e lutas operárias onde, na década de 70 – crise do fordismo, reestruturação produtiva nos países de capitalismo avançado – (HARVEY, 1994), tanto nos Estados Unidos quanto na Europa ocidental (em especial na Itália), “a economia capitalista mundial apresenta[va] sinais de clara deterioração nas margens de lucro nas corporações capitalistas” (ALVES, 2009, p. 04). Esse cenário de reestruturação produtiva inspirou a confecção da obra como ponto de debate e crítica. Tal afirmativa se torna

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evidenciada quando se coloca, em paralelo, o roteiro apresentado com a realidade italiana vivenciada na década de lançamento do filme. Como afirma o autor Alves (2009, p. 04-05), a respeito do contexto histórico desse período: Nos países capitalistas de organização histórica da classe operária, como a Itália, os conflitos fabris cresceram. Os dois últimos anos da década de 1960 trouxeram à tona uma expressiva ascensão do caráter reivindicatório dos movimentos sociais existentes no território italiano. Se, em 1968, foi o movimento estudantil que deu o tom da ofensiva, alinhando-se com aquilo que vinha acontecendo em várias partes do planeta, no ano de 1969 foi a hora e a vez do movimento operário fazer avançar as manifestações contra a ordem capitalista, por meio de um conjunto de movimentações que entraram para a história da Itália como o “outono quente”.

Tais fatores são, simbolicamente, apresentados na trama por meio do background do filme que, em consonância com uma narrativa fluida, demonstra, por meio de um enfoque da visão do protagonista, a relação entre sindicalistas, operários e estudantes que aparecem no filme em meio a conturbados encontros matinais diante os portões da fábrica, que serve como cenário para o drama italiano dirigido por Elio Petri. As cenas onde os sindicalistas aparecem vociferando palavras de ordem, convocando os operários a se unirem a sua causa e enfrentarem os gestores das fábricas, busca demonstrar a efervescência da luta sindicalista desse período, como supracitado, colocando em perspectiva a visão dos operários fabris simbolizados na figura do protagonista, que muitas vezes se veem separados dos conflitos e reivindicações sindicais por meio dos portões da fábrica na qual trabalhavam. Vale ressaltar que, mesmo sendo pouco evidenciados, os portões da fábrica servem como alegoria, assim como o muro que aparece nos sonhos do protagonista ao final do filme. Os portões simbolizam a cisão entre as classes de indivíduos da trama (trabalhadores, sindicalistas e estudantes), buscando materializar o distanciamento provocado entre as classes que, conforme o desenvolvimento do filme, é utilizado para indicar a qual lado os trabalhadores pertencem, simbolizando a exclusão e

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distanciamento do operário da luta por seus direitos e, quiçá, de sua organização enquanto classe. Tal contexto pode ser melhor evidenciado na cena que anuncia a demissão de Lulu Massa. Na cena o protagonista “foi a única vítima do movimento grevista” (ALVES, 2009, p. 43), tendo em vista que, ao chegar na fábrica para trabalhar, é noticiado de seu desligamento e barrado na entrada, onde os portões se fecham a sua frente, o distanciando não só do seu local de trabalho, mas também fragilizando seus laços sociais fora do trabalho. Tal demissão o realoca para o lado da luta sindical protagonizada pelos estudantes, que tendem a apresentar uma postura mais radical, mas que o acolhem e ouvem o seu clamor. A presença dos sindicatos no portão da empresa marca a dualidade entre o mundo da fábrica (capital) e a luta sindical (força de trabalho), demonstrando-se expressiva para a construção da trama. Sob a visão do protagonista, esse desenvolvimento ganha forma conforme ele se torna um ponto central no embate entre as forças fabris e sindicalistas após o clímax da película, contribuindo para a consolidação e evolução do protagonista, enquanto sujeito e operário. Um outro ponto importante de análise é a confecção e escolha dos cenários da trama, que são utilizados não só para a ornamentação e ambientação espacial dos personagens, mas, também, como parte fundamental para o seu desenvolvimento, em especial de Lulu Massa, o protagonista, refletindo sua psique e suas vulnerabilidades. Como exemplo dessa ornamentação, temos a fábrica na qual o personagem trabalha. Com o nome de B.A.N., é uma fabricante de peças para motores, sendo o principal cenário do filme onde se desenrola a trama e o seu clímax. Apesar de ser o local motivador da opressão e da alienação do protagonista, os takes gravados no interior desse cenário apresentam uma dinâmica própria, demonstrando a rotina regrada dos operários. Essas cenas costumam apresentar uma trilha sonora que permite visualizá-la como um maquinário vivo, que possui, enquanto engrenagens, os operários. Essa é uma analogia comum na trama, visto que os trabalhadores fabris são costumeiramente comparados a máquinas conforme o filme se desenvolve (o próprio Lulu Massa se identifica como uma máquina, que funciona de modo ativo no seu período de trabalho, mas que é ineficiente fora do expediente).Em contraste, a

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residência do personagem principal serve de plano de fundo para demonstrar, efetivamente, os efeitos da rotina insalubre na fábrica simbolizadas por meio das fragilidades da psique do protagonista, assim como por suas interações sociais, problemas e anseios familiares. Seu conturbado relacionamento com sua esposa, interpretada por Mariangela Melato, sempre são apresentados em um ambiente mal iluminado, onde a única fonte de luz, em muitas cenas, é o da televisão ligada. Essa ambientação confere uma aura de fragilidade às relações ali desenvolvidas, sinalizando como o tempo livre do protagonista é ocupado com atividades meramente rotineiras e como suas vulnerabilidades emocionais e psíquicas ocorrem. Com base nesses cenários, a trama se desenrola ao redor da vida de Lulu Massa, que nada mais é que um operário focado em seu rendimento no trabalho, fato esse que o torna uma espécie de “máquina”, uma metáfora apresentada pelo próprio personagem e constantemente reforçada no filme, como supracitado, e que alude ao indivíduo enquanto ferramenta que, ao sinal de defeito, pode ser substituída. Em consonância com o clássico Tempos Modernos (1936), de Charlie Chaplin, a máquina se sobrepõe ao operário, dita o seu ritmo de trabalho, inclusive, determina as situações em que é admissível ao trabalhador descansar, ir ao banheiro, fumar, etc. O protagonista, diante dessa perspectiva, busca demonstrar sua capacidade, focado em melhorar seu desempenho, executando suas tarefas com agilidade e precisão no contexto do seu trabalho. Em contrapartida, em seu ambiente familiar, sua disposição – por ter sido minada na fábrica – é praticamente inexistente, fazendo com que Lulu não consiga se empenhar em suas relações familiares e sociais. Tamanho empenho de Lulu Massa no ambiente de trabalho gera frutos, visto que o protagonista se torna bem quisto pelos gestores da fábrica onde trabalha, todavia, gera grande descontentamento junto aos seus colegas de trabalho não só pela postura arrogante e, aparentemente, egoísta que adota, mas também, pelo acréscimo de trabalho e da pressão que seu empenho acima da média gera para os seus colegas. Os gestores e fiscais do chão de fábrica exigem que eles cumpram suas metas baseadas no padrão imposto pelo ritmo de Lulu Massa, mesmo em condições de trabalho precárias. Faz-se importante frisar ainda que, devido a

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postura focada e devotada que o protagonista apresenta no contexto da empresa, ele passa a ter um maior comprometimento: [...] com a direção da fábrica, do que com uma dimensão mais coletiva do trabalho, o que resulta em um trabalhador egoísta e que se preocupava unicamente em aumentar seus próprios rendimentos que vinham de uma produtividade maior de seu trabalho. Era chamado por seus colegas de “puxasaco”, o que lhe incomodava. Empenhado em aumentar seu salário com uma produtividade acelerada, Lulu concorda em “quebrar” os tempos estabelecidos da produção, colaborando por fazer intensificar o trabalho dos seus colegas através do aumento da produtividade das máquinas – que Lulu ajudava a implantar (BERGAMIN, 2016, p. 08-09).

Na perspectiva de Antunes e Alves (2004, p.344), “[…] o modo capitalista de produção pressupõe um envolvimento operário, ou seja, formas de captura da subjetividade operária pelo capital, ou, mais precisamente, da sua subsunção à lógica do capital”. É importante observar que na análise de Antunes e Alves (2004) o termo “subsunção” não significa meramente “submissão” ou “subordinação”, pois existe na subsunção uma espécie de afirmação. Daí resulta a efetividade da dominação capitalista. Ou seja, quanto mais silenciosa e invisível, mais sofisticada e efetiva é a dominação. Poder-se-ia supor que há na performance de Lulu, no interior da fábrica (início do filme), um certo tipo de envolvimento com o trabalho que se justifica pela própria necessidade de se afirmar como produtivo. O protagonista chega a dizer que enxerga o interior da fábrica como uma corrida em que ele deseja ser o campeão. Consta aí a subsunção enquanto afirmação da própria lógica do capital. Essa característica do personagem gera, ao se por em perspectiva sua relação com os demais operários da fábrica, um clima de tensão que se estabelece e serve como fagulha para que o clímax do filme ocorra, visto que seus colegas tentam irritá-lo enquanto operava uma máquina, resultando no acidente que o faz perder um dedo e mudar sua postura durante a trama. Essa característica “arrogante” do protagonista contribui para uma análise mais profunda do personagem, visto que, antes de

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sua “redenção”, Lulu Massa se via absorvido pelo contexto da produtividade, ao ponto de se opor aos seus colegas, considerandose “superior” a eles, dado o seu rendimento acima da média. Mas, é importante ressaltar que: [...] o aumento da produtividade do trabalho possui um significado essencial: a desvalorização da força de trabalho como mercadoria e – por conseguinte – a desefetivação humano-genérica do trabalho vivo, onde a degradação da saúde do trabalhador – no tocante a sua dimensão da subjetividade do homem que trabalha – é sua principal forma de manifestação (ALVES, 2009, p. 02).

O protagonista serve como elo que vincula o espectador a esse contexto. Se demonstrando um operário altamente produtivo na fábrica, o personagem acaba por ser cooptado pela ideia de que, devido sua agilidade que o difere de seus companheiros, ele é um ativo indispensável que gera valor econômico (o que se intitularia de Capital Humano26) para a empresa que, em sua imaginação, o prestigia devido ao seu bom trabalho em relação aos demais. Esse sentimento o coloca em conflito com seus colegas, dado o fato de que suas ações interferem no resultado do trabalho coletivo, influenciando nas metas e no aumento da carga de trabalho. Tal afirmativa pode ser observada na cena onde há o cronômetro taylorista/fordista marcando o tempo dos gestos do trabalho. Tal cena é simbólica dessa disputa. Lulu ia para cada máquina para ajudar a aumentar os ritmos do trabalho27 (BERGAMIN, 2016, p. 09).

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Ver o artigo: Jean Henrique Costa y Thadeu de Sousa Brandão (2018): “Crítica ao conceito de capital humano”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (julio 2018). En línea: https://www.eumed.net/rev/cccss/2018/07/capital-humano.html 27 Uma característica do fordismo/taylorismo expressa claramente no filme é a racionalização do tempo e dos movimentos. Inclusive, há uma cena em que os operários estão em intervalo, realizando uma refeição, e uma sirene toca noticiando a retomada da produção, no mesmo instante os homens e mulheres abandonam suas refeições inconclusas e se dirigem ao galpão das máquinas. Vale destacar uma cena em que um supervisor cronometra o tempo em que um operário recém-admito emprega para produzir uma peça. Logo em seguida é dito/exigido um aumento de produção de 115 para 300 peças por hora.

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Esse sentimento de produtividade o cega, fazendo com que ele não enxergue a exploração na qual está inserido. Não obstante a esse fato, o filme demonstra como o comprometimento extremado de Lulu ao trabalho o consome e o desgasta dentro e fora do contexto da fábrica, fazendo com que ele adoeça e tenha sua saúde mental comprometida. Para além desses fatos, o clímax da trama se desenvolve em torno de uma perda física que demonstra “elementos de degradação do trabalho vivo explicitada num fato narrativo de ampla significação: a perda do dedo do operário Lulu e o espectro da loucura que o apavora” (ALVES, 2009, p. 02). Essa perda estabelece um marco de mudança para a trama. Seu acidente o faz questionar não somente suas condições de trabalho mas, principalmente, sua própria identidade enquanto operário e indivíduo. Lulu se vê abandonado pelos gestores da fábrica e acolhido pelos colegas que ele próprio menosprezava. A partir de sua indignação, o personagem tem sua postura modificada, filiando-se aos sindicatos, onde começa a liderar, de forma quase que involuntária, os operários em busca de melhores condições de trabalho e remuneração justa. Como afirma Alves (2009, p. 37): O corte do dedo de Lulu irá deflagrar o processo de rebeldia operária. É o evento que promoverá uma inflexão na narrativa do filme, alterando tanto a atitude do coletivo fabril, quanto a de Lulu Massa. Indignados e revoltados contra a perda do dedo do companheiro de trabalho, os operários encontram o motivo para se rebelar contra as quotas [sistema de metas]. Cria-se um clima de quase quebra-quebra.

Ao perder o dedo, o protagonista inspira seus colegas de trabalho, que começam a perceber, embora parcialmente e com uma reflexividade limitada sob o véu da ideologia, parte da exploração que sofrem, assim como apreendem o posicionamento que os gestores da fábrica tem em relação a eles, enxergando-os como meras peças dispensáveis. Lulu, a partir de então, passa a ser um símbolo para seus colegas de trabalho, visto que seu acidente marca o momento em que ele passa a servir como voz para os demais, mobilizando-os, junto aos sindicatos, para uma greve mais efetiva.

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Mas, essa escolha tem um preço. Sua postura lhe custa o emprego e degrada ainda mais a sua vida familiar, fazendo com que se entregue, lentamente, à solidão que o consome, levando-o ainda a questionar seu próprio modo de vida focado no consumismo e na obtenção de mercadorias que não precisa e não vê utilidade real. Devido a esses fatores, Lulu Massa se vê abandonado e negligenciado não só pelos seus superiores, mas também por sua família. Dentro do movimento sindical, se vê, embora de forma instrumental, acolhido. Optando por aderir aos grupos estudantis e sindicatos que levantavam a bandeira dos trabalhadores fabris, Lulu e a história de seu acidente passam a ser utilizados como baluartes dialéticos para fortalecer as reivindicações. Vale ressaltar ainda que sua vida doméstica, durante a trama, é abordada de forma a humanizar o personagem, contrapondo-a a sua vida no contexto de suas relações de trabalho, que serve apenas para transformar o personagem em uma espécie de máquina e mera engrenagem fabril. Na película, a vulnerabilidade das relações de trabalho e os problemas psicológicos de Lulu Massa são abordados de forma sensível e bem articulados, possuindo na figura de sua esposa atual e de seu enteado, a representatividade da fragilidade e humanidade do protagonista, além de evidenciar seu aparente machismo e abandono parental, visto que o personagem tem um filho legítimo que negligencia. Mas, apesar da personalidade forte que o protagonista tenta, a todo momento, demonstrar e justificar, ele sofre de problemas depressivos que o deixam com dificuldades de vigor sexual e põem à prova sua sanidade. Isso se dá pelo fato de que: Na medida em que Lulu tem uma vida pessoal consumida pelo trabalho estranhado, ele tem não apenas um sono intranqüilo (sic), mas uma vida sexual conjugal insatisfatória. Nesse caso, há um nexo causal entre sexualidade travada e imersão no trabalho estranhado (ALVES, 2009, p. 09).

É importante frisar que essa problemática da impotência do protagonista é abordada em muitos momentos durante a trama, gerando uma reflexão no espectador, visto que Lulu chega a afirmar que rende bem na máquina onde trabalha por visualizar nela uma

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bunda feminina (mais especificamente as nádegas de Adalgisa, uma colega de trabalho ao qual o operário deseja). Tal metáfora tende a ser um sustentáculo de libido, fazendo-o trabalhar com empenho e tesão. Em contraponto, em relação a sua esposa, ele não consegue se relacionar sexualmente, gerando, assim, frustração e descontentamento que, aos poucos, desgasta o relacionamento de ambos. É importante frisar que, conforme aponta Alves (2009, p. 30): [...] a causalidade da falta de desejo sexual de Lulu por Lidia, sua companheira, possui uma dimensão complexa. Não podemos atribuí-la tão somente ao trabalho estranhado, mas também ao estranhamento social com o irremediável desgaste afetivo-amoroso da vida sexual em virtude da rotina (e monotonia) da vida proletária. Além disso, Lulu, em sua singularidade pessoal de macho latino, gosta de mulheres noviças (como Adalgisa, a operária).

Os problemas psicológicos de Lulu são, portanto, um ponto importante da trama, visto que são decorrentes do trabalho excessivo e insalubre na fábrica. Na figura de Militina, um ex-operário que, devido a uma contenda no trabalho, fora contido em um manicômio, o protagonista encontra aconselhamento e conforto, mesmo o personagem de Militina possuindo problemas mentais aparentes. Tal relação entre os dois é um ponto de virada para o protagonista, que ganha consciência, também, pelos conselhos do ex-operário. Mas, é importante frisar que, no contexto da obra: [...] a loucura se apresenta como um tema importante do filme, fazendo um contraponto com a alienação. Tratar da normalidade da loucura mostra um debate sobre o trabalho e o capitalismo, de como o processo de enlouquecimento está relacionado ao trabalho esvaziado de sentido. A loucura se apresenta como escape. O que não se consegue sublimar, se mostra como enlouquecimento na inserção alienada ao mundo do trabalho (BERGAMIN, 2016, p. 09).

A trama se desenrola mais ativamente até o momento em que Massa se vê abandonado e sem utilidade. A cena que antecede

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o final do filme, onde Lulu se vê só em sua casa, observando e contando suas mercadorias supérfluas – que agora percebe serem inúteis –, revela o ciclo vicioso do trabalhador sob o capitalismo: trabalhar e vender seu tempo vital em troca de objetos e bens de consumo vazios. Prontamente, ao abordar as metamorfoses do mundo do trabalho na transição do fordismo para o toyotismo, sobretudo, o aperfeiçoamento dos mecanismos de captura da subjetividade, Antunes e Alves (2004, p.349) afirmam: Dos serviços públicos cada vez mais privatizados, até o turismo, no qual o “tempo livre” é instigado a ser gasto no consumo dos shoppings, são enormes as evidências do domínio do capital na vida fora do trabalho, que colocam obstáculos ao desenvolvimento de uma subjetividade autêntica, ou seja, uma subjetividade capaz de aspirar a uma personalidade não mais particular nem meramente reduzida a sua “particularidade”. A alienação/estranhamento e os novos fetichismos que permeiam o mundo do trabalho tendem a impedir a autodeterminação da personalidade e a multiplicidade de suas qualidades e atividades.

Entrementes, a cena em que Lulu Massa – já desempregado – reflete sobre a real utilidade de determinados objetos que o cercam em sua casa, como quatro despertadores, por exemplo, é ilustrativa e exprime a maneira como a classe trabalhadora foi seduzida pelo consumo excessivo de objetos. No capitalismo flexível, os excitantes externos (objetos de consumo) cumprem, de maneira cada vez mais efetiva, a função de distanciar os trabalhadores de uma reflexão que corresponda às suas reais condições de vida e trabalho. Grosso modo, o trabalhador pensa cada vez mais como o capitalista, tendo em vista que pode fazer uso de um aparelho celular semelhante ao do patrão. Solitário e entregue ao seu vazio, Lulu Massa agora não é mais o mesmo do começo do filme. Sua visão de mundo é maior, mas, e agora? Precisava do emprego e não possuía mais nada de sólido que orquestrasse seu cotidiano enquanto centralidade sociológica. Sua subjetividade e o seu cotidiano estavam entregues aos seus demônios. A única coisa que restava a ele era o que conquistara ao perder seu dedo, isto é, “o caminho da luta [que] se

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mostra como único possível para não se sucumbir à loucura ou à futilidade do consumismo vazio” (BERGAMIN, 2016, p. 09). Na cena final do filme, sua esposa e enteado voltam para a sua residência. Lulu Massa descobre por meio de colegas operários que o visitam, que as reivindicações foram parcialmente atendidas e que ele conseguira seu emprego de volta. Ao receber a notícia, Lulu tem uma epifania e, cedido a um momento de inocência e felicidade, questiona pelo emprego de seu amigo, Militina. Todos se entreolham e o observam sem uma resposta concreta. Tal cena reflete a esperança de Massa em uma mudança do contexto ao qual estava inserido. Sua esperança na luta e nos devaneios de Militina aqueciam seus sonhos e sua luta. Ambos haviam lutado e ido contra o que consideravam a lógica dominante. Contudo, a esperança cega do retorno de Militina à fábrica não passava de um mero devaneio de Lulu. A cena corta. Lulu está de volta a fábrica, trabalhando em outro setor com seus colegas, conversando e cantando na linha de produção. O protagonista, então, começa a narrar sobre um sonho que tivera, onde via um muro imenso e, atrás desse muro se encontrava o paraíso, que era anunciado pelo falecido Militina. Um paraíso longe de máquinas, de condições de trabalho insalubres, de fiscais, de temores e da opressão que viviam. E lá, residiam todos os operários. O protagonista não conseguia enxergar atrás do muro. Não saberia descrever como seria esse suposto paraíso, mas sabia que deveria ser melhor que a linha de produção da fábrica. Não obstante, sua entrada em um paraíso sem máquinas não passava de sonho, visto que um extenso muro entre ele e sua emancipação proletária não permitiria o fim da relação estrutural entre capital e trabalho – algo Para além do Capital, que desafiasse sua ordem sociometabólica, como problematiza Mészáros (2002). Deste modo, nas palavras de Alves (2009, p. 54): O processo de derrubada do muro – ou construção do socialismo – é um processo de esforço coletivo pois Lulu viu não apenas ele, mas todos seus companheiros operários lá no paraíso. Mas o paraíso que encontram atrás do muro é cheio de neblina – talvez seja a metáfora do desconhecido que nos aguarda na construção de uma sociedade de trabalho para além do capital.

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O filme termina de forma quase compassiva, com Lulu de volta aonde tudo começou. Contudo, por mais que o protagonista volte à fábrica e às más condições de trabalho, ele não era mais o mesmo. Havia uma inquietação que o assombrava, tendo em vista ter sentido na pele as possibilidades da luta operária. Como cita o protagonista: “Eu sou uma máquina, eu sou uma roldana, eu sou uma rosca, eu sou um parafuso, eu sou uma correia de transmissão, eu sou uma bomba, aliás, a bomba está estragada, não funciona mais, e agora não pode mais ser reparada”.

Referências ALVES, Giovanni. Análise do filme “A classe operária vai ao paraíso”. Aula 3 – Curso de Extensão Universitária – A precariedade do Trabalho no Capitalismo Global. 2009 ANTUNES, Ricardo; ALVES, Giovanni. As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educ. Soc., Campinas, vol. 25, n. 87, p. 335-351, maio/ago. 2004. BERGAMIN, Marta de Aguiar. E quando o paraíso é uma névoa? A classe operária vai ao paraíso e o fetiche. Aurora: revista de arte, mídia e política. São Paulo, v. 9, n. 26, p. 7-22, jun-set. 2016. GEORGE, Susan. O Relatório Lugano: sobre a manutenção do capitalismo no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2002. HARVEY, David. Condição pós-moderna. Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola, 1994. MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. Tradução de Paulo Cezar Castanheira e Sérgio Lessa. São Paulo: Boitempo, 2002.

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CAPÍTULO 7 Fome de poder: empresas fast-food e especulação fundiária no meio urbano Bergson Henrique Nunes Bezerra28

Resumo: O longa-metragem Fome de Poder (2016) conta a história da empresa de fast-food McDonald’s, inaugurada em meados do século XX no oeste dos Estados Unidos e uma das pioneiras do ramo alimentício mundial a aplicar modelo semelhante ao fordista na feitura dos seus produtos, potencializando a rotatividade das vendas e proporcionando maior taxa de lucro. No entanto, em determinado momento da expansão da rede empresarial, seus gestores observaram que o business poderia se tornar menos alimentício do que fundiário, pois a instalação de cada nova franquia da cadeia corporativa era vinculada à supervalorização da terra urbana, denotando cenário de acentuada especulação capitalista. Buscando apreender como esses dois aspectos (ramo alimentício e especulação fundiária), à primeira vista dissociados, podem atuar de forma associativa, foram usadas as contribuições teóricas do geógrafo britânico David Harvey, sobretudo seus trabalhos que tratam do processo sociohistórico de produção do espaço urbano e do papel desigual exercido pelos diversos agentes envolvidos no uso e ocupação do solo metropolitano. Palavras-chave: Especulação fundiária. Geografia Urbana. Fome de Poder. Cinema.

Introdução Desde que o sistema econômico capitalista passou do modelo concorrencial para o monopolista, ao longo da primeira metade do século XX, houve uma inversão do quadro verificado até então, com a centralização do capital ocorrendo 28

Bacharel em Geografia pela UFC, mestre em Ciências Sociais e Humanas pela UERN. E-mail: bergsonufc@gmail.com

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concomitantemente à descentralização espacial das empresas. Na esteira desse novo contexto produtivo, a extensão da ação especulativa se intensificou, alcançando até mesmo o solo, suporte físico de nossa existência, tornado também mercadoria29. Em outro aspecto, dado o ritmo de vida acelerado inerente a esse sistema, onde cada vez a máxima “tempo é dinheiro” ganha sustentação e autoconfirmação, as atividades ordinárias, dentre elas a necessidade vital da alimentação, também se acelerou, desvelando os primórdios do padrão de “comida rápida” (fast-food), tipo específico de refeição para consumo imediato vendida em estabelecimentos especializados. Os dois corolários da modernidade elencados acima (valorização mercadológica da terra e aceleração do ritmo de vida) têm como principal cenário os meios urbanos capitalistas, pois em oposição às zonas rurais, é lá que os terrenos adquirem maior valor de mercado traduzível em pecúnia e a velocidade quotidiana subordinada ao metrônomo fabril se faz mais notável. O processo de produção do espaço urbano sob a lógica capitalista, que dá origem às grandes áreas citadinas, entendidas como resultado do conjunto de diferentes usos da terra justapostos entre si (CORREA, 1989, p. 07), se manifesta também na especulação fundiária, estratégia de acumulação dos detentores de capital caracterizada pela busca constante de novos espaços e localizações para obtenção de lucro. Dentre outros fatores, foi essa metodologia de apropriação que tornou possível a rápida expansão da rede alimentícia McDonald’s, uma das maiores do setor fastfood. Portanto, ressaltando que, de acordo com Correa (1989), é possível aos proprietários fundiários (aqueles que são donos de determinada parcela de terra) poderem acumular a função também de promotores imobiliários (os que obtêm lucros com o aluguel ou 29

Muito embora concordemos com Sposito (1989, p. 34) quando diz que “já desde o surgimento dos arrendatários capitalistas, a partir do século XIV, a terra fora investida de valor de troca, ou seja, (transformada em) mercadoria”, foi somente no século XX que esse processo se deu de forma mais acentuada e articulada pelos diversos agentes sociais que conformam a dinâmica urbana, do especulador fundiário ao aporte institucional do Estado, passando pelas populações segregadas, constituídas pelos despossuídos dos meios de produção, dentre outras privações.

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arredamento de bens imóveis), de que forma uma empresa do ramo alimentício pôde usufruir diretamente das benesses materiais oriundas da especulação fundiária, fundamental na lógica interna do capitalismo urbano? A partir da pergunta provocadora acima, o presente ensaio busca demonstrar, dentro do quadro teorético crítico proposto pelo geógrafo britânico David Harvey30, voltado à compreensão espacial das contradições do sistema socioeconômico capitalista, o papel exercido pela especulação fundiária enquanto estratégia de valorização do espaço urbano pelos detentores do capital concentrado, através da maximização da renda da terra. Diante disso, como forma de ilustrar como se dá a relação entre a dinâmica de produção do espaço urbano pelo rentismo fundiário dentro de um mercado competitivo, empreendido pelo ramo das empresas alimentícias de comida rápida, foi escolhido o longa-metragem Fome de Poder31 (2016), do diretor norteamericano John Lee Hancock, que conta a história de uma das maiores redes de fast-food do mundo, a norte-americana McDonald’s, que teve sua expansão viabilizada, em grande parte, através da especulação fundiária praticada pelos seus dirigentes superiores. Entendendo que “a construção do espaço é, na aparência, um fato técnico, mas na essência, um fato social” (BERNARDES, 2001, p. 244), ou seja, verificado na realidade objetiva, não pretende-se aqui subordinar o elemento do espaço às evoluções da estrutura econômica per si, mas sim considerá-lo como a base precedente de qualquer atividade humana que se dê sobre a superfície. (...) diferentes modos de produção geram paisagens econômicas e sociais que são grandemente diferentes. (...) Essas variações geográficas dão um forte peso espacial aos processos sociais a tal ponto que podemos falar em processos espaciais. (...) assim,

30

Segundo Richard Peet (1982, p. 244), a obra de David Harvey “salienta o tipo de contexto geográfico no qual a mais-valia pode mais eficientemente ser acumulada, e os tipos de estruturas geográficas que são, cada uma por sua vez, gerados pela centralização espacial da acumulação de capital.” 31 Título original da obra: The Founder.

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a contradição social entre capital e trabalho é implantada no espaço. (PEET, 1982, p. 243).

Portanto, as relações entre dinheiro, espaço e tempo como fontes conexas de poder social citadas por Harvey (2010), podem ser um dos vieses para o entendimento da lógica capitalista na sociedade moderna. Tendo em mente que, como aponta Santos (2012), são os fatos referentes à gênese, funcionamento e evolução do espaço social temáticas de interesse direto da ciência geográfica e inseridas dentro do escopo geral da disciplina, busca-se nesse ensaio compreender as relações conflituosas estabelecidas no processo desigual de apropriação da superfície terrestre pelos variados estratos da sociedade. Quem disse que fast-food também não nasce na/da terra? O filme analisado se passa em sua maior parte na metade dos anos 1950 e conta a história da empresa McDonald’s, inserida no contexto histórico da plena economia pujante do pós-guerra e do projeto ideológico do Plano Marshall. A narrativa é construída a partir da trajetória de vida do inventivo Ray Kroc, um vendedor ambicioso e frustrado que sacrifica até mesmo seu relacionamento matrimonial aparentemente estável em nome do tão almejado triunfo prometido pelo american dream, embebido pelos mantras da Positive Mental Attitude - PMA, conjunto de práticas e atitudes a serem aplicadas por aqueles que estivessem realmente dispostos a alcançar o sucesso profissional, através da incansável persistência e determinação (algo como o precursor dos coachs contemporâneos32). A história de Ray começa a tomar outro rumo, a despeito de seu ineficiente poder de persuasão nas vendas de tecnologias de produção alimentícia, a partir do encontro com os proprietários do McDonald’s na cidade de San Bernardino/Califórnia, os irmãos Dick 32

No entanto, como bem observado por Wagner Arienti (2017) em sinopse do filme, o empreendedor capitalista precisa de bem mais do que persistência e determinação para se sobressair no obscuro mundo dos negócios, já que o caráter e retidão de Ray Kroc no trato com seus sócios não são seus maiores atributos, elemento que fica evidente em diversas situações dentro da trama.

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McDonald - republicano convicto, conservador e feroz defensor da ética do trabalho, e Mac McDonald, esse um tipo mais bonachão e provinciano. Ao chegar à sede da lanchonete californiana, Ray Kroc se depara com a eficiência do inovador speedee system, método organizacional de inspiração fordista33 desenvolvido pelos irmãos, que fragmentava as tarefas e privilegiava a celeridade na produção dos alimentos, tudo devidamente racionalizado, cronometrado e controlado, desde os segundos de cozimento das batatas às condições físicas internas da cozinha e de temperatura dos fornos. Máquinas não podem produzir lucros por elas mesmas. Mas os capitalistas com tecnologias e formas de organização superiores ganham tipicamente uma maior taxa de lucro que seus concorrentes e, por fim, levam-nos à falência. [...] O resultado é um incentivo permanente para o dinamismo organizacional e tecnológico. (HARVEY, 2011, p. 78).

A descartabilidade das embalagens, a presteza do autoatendimento e a ligeireza na linha de montagem dos sanduíches (“da grelha ao balcão em 30 segundos!”), representavam o modelo perfeito de fabricação34. Ainda no aspecto correlato da volatilidade e efemeridade no domínio da produção das mercadorias, Harvey (2010, p. 258) destaca a “ênfase nos valores e virtudes da instantaneidade (alimentos e refeições instantâneos e rápidos e outras comodidades) e da descartabilidade (xícaras, pratos, talheres, embalagens, guardanapos, roupas, etc)”. 33

Segundo Harvey (2010, p. 242), Henry Ford, “a fim de maximizar a eficiência e minimizar a fricção do fluxo produtivo [...] usou certa forma de organização espacial para acelerar o tempo de giro do capital produtivo. Assim, o tempo podia ser acelerado em virtude do controle estabelecido por meio da organização e fragmentação da ordem espacial da produção”. 34 Semelhante ao caso abordado neste ensaio, o que destacou o modelo produtivo desenvolvido por Ford a partir dos anos 1910 foi “sua visão, seu reconhecimento explícito de que produção de massa significava consumo de massa, um novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma nova política de controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia” (HARVEY, 2010, p. 121).

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Buscando implantar um modelo mais rentável, no princípio do estabelecimento os irmãos optaram por focar a produção em apenas três itens: sanduíche, refrigerante e batata frita, que juntos representavam 87% da receita obtida nas vendas. Assim, evitando qualquer outro produto fora dessa tríade e primando pelo ambiente familiar, a lanchonete criou sua identidade exclusiva. Outra característica que chamou a atenção de Ray na lanchonete foi o caráter familiar da empresa, com os próprios donos do estabelecimento ajudando nas tarefas de zeladoria, além de centralizarem todas as decisões, condição que não demorou a se apresentar como um grande entrave para o empreendedor visionário. Ray Kroc, vislumbrando avidamente fazer parte daquele negócio revolucionário, idealiza com os irmãos a ampliação da empresa a partir do sistema de franquias, o que foi visto com suspeição pelos sócios originais, já que a ideia havia se mostrado ineficiente em experiência anterior, pois descurava-se facilmente do “controle de qualidade” tão almejado pelos irmãos. Não satisfeito, Ray apela para o sentimento patriótico para convencê-los a insistirem novamente no sistema franchising (“façam pela América!”, bradou ele), idealizando nos arcos dourados do projeto arquitetônico original do McDonald’s um novo símbolo estético-conceitual genuinamente americano, ao lado da bandeira star-and-stripes e das cruzes cristãs presentes em cada recanto do país. Como sugere Harvey (2010, p. 260), “o capitalismo agora tem preocupação predominante com a produção de signos, imagens e sistema de signos, e não com as próprias mercadorias”, ou seja, a construção da imagem corporativa adquire um peso cada vez mais significante num mercado acirradamente competitivo. Convencidos, mas ainda reticentes do êxito da empreitada, os irmãos assinam contrato que prevê controle total para eles sobre qualquer nova proposta de abertura de franquia, assim como nas possíveis concepções imaginadas por Ray em qualquer setor que envolva os interesses da empresa. Não demora muito e Ray abre sua própria franquia e negocia tantas outras, despertando a preocupação dos sócios originais de que a expansão desregulada comprometesse o padrão de qualidade da marca. No entanto, mesmo após a abertura das várias franquias a partir de sua iniciativa e empreendedorismo, Ray não obtém o

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lucro financeiro esperado, logrando margens pequenas em virtude do contrato que o deixava de “mãos atadas”, amplamente submetido ao escrutínio dos irmãos nos mínimos pormenores referentes ao desenvolvimento da corporação. “Sua empresa está no ramo errado!” A grande virada da empresa se dá a partir do conchavo estabelecido entre Ray Kroc e o empresário Harry Sonnerbon, que após consulta rápida deixa claro para Ray que, se quiser de fato “fazer dinheiro”, o ramo do McDonald’s deve migrar do alimentício para o fundiário. Em outras palavras, Ray deveria se ocupar em ser o dono do terreno onde o McDonald’s fosse construído. Esse aspecto vai ao encontro do sugerido por Correa, quando diz que: [...] os grandes capitais industrial, financeiro e imobiliário podem estar integrados indireta e diretamente, neste caso em grandes corporações que, além de outras atividades, compram, especulam, financiam, administram e produzem espaço urbano. (CORREA, 1989, p. 13).

Esclarecendo mais um pouco: no modelo de franquias original, acordado por Ray e os irmãos McDonald, o franqueado interessado localizava um terreno urbano apto à construção da lanchonete, comprava-o ou arrendava-o e erguia a lanchonete por conta própria, ficando o McDonald’s responsável por fornecer treinamento profissional aos funcionários, suporte logístico e, obviamente, a marca da empresa. Dessa forma, o lucro advinha apenas da porcentagem sobre as vendas propriamente ditas, além de exigir vigilância draconiana na condução dos franqueados, que muitas vezes não entendiam o conceito de negócio familiar originalmente pensado pela rede. A partir da nova estratégia de arrecadação, Ray Kroc, em nome da firma, comprava o terreno e o arrendava diretamente aos franqueados interessados, o que garantia uma renda mais estável e direta, proporcionando maior capital para financiar a expansão, facilitando a aquisição de mais terrenos e assim por diante, fazendo girar a roda da acumulação. Além disso, o novo modelo daria maior controle imediato sobre o desempenho do franqueado, ao passo

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que se a franquia não estivesse vendendo satisfatoriamente, o arrendamento poderia ser suspenso unilateralmente. Nesse ponto do texto, as contribuições de Harvey também se fazem pertinentes: [...] as terras especulativas e o desenvolvimento de propriedades (obter aluguel pela terra e construir com lucro, rapidamente e com baixos custos) eram forças dominantes numa indústria do desenvolvimento e da construção que era um dos principais setores de acumulação do capital. (HARVEY, 2010, p. 73).

É sobre essa conversão em domínio do capital como fruto do domínio do espaço e do tempo que Harvey trata na passagem abaixo: [...] nas economias monetárias em geral e na sociedade capitalista em particular, a intersecção do domínio sobre o dinheiro, o tempo e o espaço forma um nexo substancial de poder social que não podemos nos dar ao luxo de ignorar. [...] o domínio dos espaços e tempos é um elemento crucial na busca do lucro. (HARVEY, 2010, p. 207).

Assim, parafraseando e adaptando a fala de James Roderick, presidente da siderúrgica norteamericana US Steel nos anos 1970, citado em Harvey (2010, p. 150), a tarefa do McDonald’s não era fazer sanduíches ou batatas, e sim dinheiro35. Portanto, o papel desempenhado pela empresa passou de unicamente alimentício para de proprietário fundiário. Correa, elencando a função dos diversos agentes sociais modeladores do espaço, designa aos proprietários fundiários a seguinte prerrogativa:

35

Como apontado por Harvey (2010, p. 103), “a luta pela manutenção da lucratividade apressa os capitalistas a explorarem todo tipo de novas possibilidades”. Exemplo dessa situação é o momento retratado no filme em que Ray, visando diminuir os altos gastos com refrigeração nas franquias, sugere o uso de milk-shake em pó, ideia que, obviamente, é prontamente abominada pelos irmãos McDonald.

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Atuam no sentido de obterem a maior renda fundiária de suas propriedades, interessando-se em que estas tenham o uso que seja o mais remunerador possível, especialmente uso comercial ou residencial de status. [...] estão fundamentalmente interessados no valor de troca da terra e não no seu valor de uso. (CORREA, 1989, p. 16).

No entanto, diante de toda a narrativa socialmente louvada da ascensão empresarial que fez do McDonald’s passar de empresa local para nacional e posteriormente internacional, sendo hoje uma das maiores proprietárias fundiárias do mundo36, não menos importante é apontar que, para atingir tal condição, Ray fez uso de manobras extralegais para quebrar unilateralmente o contrato estabelecido com os irmãos, mostrando que nos negócios de grandes montas, caráter e escrúpulo são elementos facilmente prescindíveis. Considerações finais Sendo o capital um “processo de reprodução da vida social por meio da produção de mercadorias” que, dentre outras coisas, “transforma espaços e acelera o ritmo de vida” (HARVEY, 2010, p. 307), ao estabelecermos a relação que permitiu uma empresa do ramo alimentício, detentora de capital acumulado, ascender dentro do mercado competitivo estendendo sua ação especulativa ao mercado de terras, investindo em espaços aptos à construção e acumulando as funções de agente fundiário e imobiliário, nota-se quanto o sistema capitalista, baseado na necessidade de produção e circulação de riqueza em poucas mãos, favorece a afluência desse fluxo para um único sentido. Ademais, a história abordada no filme, tramada no submundo das grandes negociatas, pode ser entendida sob a mensagem de que “o crime compensa”, já que a empresa cresceu, em grande medida, alicerçada em subterfúgios extralegais. No entanto, se entendermos que a trajetória do McDonald’s se insere dentro de uma lógica dialética maior e mais perversa, que é a do 36

Fonte: https://www.infomoney.com.br/minhas-financas/entenda-o-que-fazcom-que-o-mcdonalds-nao-seja-so-uma-empresa-de-alimentos/.

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capitalismo de nível global, fica mais fácil entender que, da mesma forma como ocorre em qualquer outra transação na esfera financeira-especulativa, há quem lucre (soberbamente) com a desventura alheia. Referências ARIENTI, Wagner. Sinopse do filme Fome de Poder (The Founder). Disponível em filmesdeeconomia.ufsc.br/files/2017/12/Fome-dePoder.pdf., 2017. BERNARDES, Júlia. Mudança técnica e espaço: uma proposta de investigação. In: CASTRO, Iná; GOMES, Paulo; CORRÊA, Roberto. Geografia: conceitos e temas. 3ª ed. Rio de Janeiro; Bertrand Brasil, 2001. CORREA, Roberto. O espaço urbano. São Paulo, SP. Editora Ática, 1989. HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Tradução de Adail Sobral e Maria Gonçalves. São Paulo, SP. Edições Loyola, 2010. _______. O enigma do capital: e as crises do capitalismo. Tradução de João Alexandre Peschanski. São Paulo, SP. Boitempo, 2011. PEET. Richard. O desenvolvimento da geografia radical nos Estados Unidos. In: CHRISTOFOLETTI, Antonio. Perspectivas da Geografia. São Paulo, SP. Difel, 1982. SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova: da Crítica da Geografia a uma Geografia Crítica. 6ª ed. São Paulo: editora da Univ. de São Paulo, 2012.

SPOSITO, Maria. Capitalismo e urbanização. 2ª ed. São Paulo. Contexto, 1989.

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CAPÍTULO 8 A sociologia do improvável: possibilidades do êxito escolar de jovens estudantes em situações de adversidades socioeconômicas no filme Escritores da Liberdade Antonio Elder Nolasco37 Ana Maria Morais Costa38

Resumo: A educação sempre foi vista como um dos instrumentos mais propícios para a formação cidadã e o sucesso profissional dos indivíduos. No entanto, as condições históricas, econômicas e sociais nunca foram igualmente favoráveis a todas as pessoas, tampouco as oportunidades, incentivos e estímulos na vida escolar são iguais. Na perspectiva de elucidar questões referentes ao sucesso escolar de jovens estudantes em condições de vida desfavoráveis, este ensaio pretende fazer uma discussão acerca das possibilidades de êxito escolar e ascensão social de alunos de origem popular, que vivem em situações de adversidades e vulnerabilidade social (pobreza, desestrutura familiar, violência, racismo etc.). Para tanto, foi utilizado o filme Escritores da Liberdade (2007) como fio condutor para refletir sobre as situações exitosas de estudantes que vivem em condições socialmente adversas à mobilidade social. Visando compreender tal realidade, fez-se uma correlação da obra cinematográfica citada acima com o conceito de sociologia do improvável, com base em importantes teóricos como Bergier e Xypas (2013), Bourdieu e Passeron (2014), Morin (2001), Freire (1987), dentre outros autores, que contribuíram significativamente para a compreensão do fenômeno social analisado. Palavras-chave: Sociologia do improvável. Educação. Êxito escolar. Condições de adversidades. 37

Graduado em Ciências Sociais e Filosofia pela UERN, mestre em Ciências Sociais e Humanas pela UERN. Professor da Educação Básica no Estado do Rio Grande do Norte. E-mail: eldernolasco68@hotmail.com 38 Doutora em Ciências Sociais – UFRN/2014. Professora Permanente do PPGCISH/UERN. Professora aposentada do Departamento de Ciências Sociais/UERN. E-mail: anamorais.uern@gmail.com.

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Apresentação

A Sala de aula é “uma realidade que contém muitas realidades” (MORAIS, 1994, p.7). É um espaço de construção de saberes coletivos, que ocupa um lugar chamado escola, ambiente de experiências, vivências, conivências e diversidades de pensamentos. Na escola, debatemos, confrontamos e corroboramos ideias com professores, alunos e comunidade escolar em geral, dentro de uma atmosfera de múltiplas situações que fazem parte do processo de ensino/aprendizagem. Nesse mesmo lugar, vivemos momentos de encontros e desencontros, de afetos, conflitos e tensões. É na escola que passamos boa parte da nossa vida, ou seja, “todos nós envolvemos pedaços da vida com ela: para aprender, para ensinar (...) para saber, para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias misturamos a vida com a educação” (BRANDÃO, 2007, p. 7). Contudo, mesmo sendo a escola um lugar acessível à educação formal para todos, com base nos princípios de “igualdade de condições para o acesso e permanência (...) (LDB – Art. 3º - LEI Nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996), as condições históricas, econômicas e sociais de vida de grande parte dos alunos das escolas públicas colocam-nos em condições desiguais, injustas e, muitas vezes, de exclusão. Alunos com maiores dificuldades de aprendizagem, geralmente os repetentes, considerados indisciplinados e incapacitados, são vistos como um problema para escola, uma vez que a indisciplina e o baixo rendimento escolar comprometem o funcionamento e o desempenho dos “números” que a instituição e o sistema de ensino pretendem alcançar. Nesse sentido, a história contada no filme Escritores da Liberdade, que servirá de referência para as discussões e análises sobre o êxito escolar de alunos em situações socioeconômicas desfavoráveis, se assemelha muito à realidade vivida na maioria das escolas públicas brasileiras. Mesmo diante de alguns significativos avanços ocorridos no sistema educacional brasileiro nos últimos anos, as escolas públicas enfrentam muitos problemas estruturais como: precárias condições das estruturas físicas, falta de professores, baixos salários, baixa

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autoestima dos estudantes e um notório desestímulo que ronda a beira do abismo, do abandono, da desistência e de uma provável descontinuidade do processo regular da vida escolar. Todavia, o papel do professor, o interesse, a vontade, a participação coletiva e o empenho de todos são de fundamental importância para o processo de transformação da escola em um ambiente de profícuas e prazerosas relações afetivas e cognitivas. Logo, diante do cenário descrito, o que fazer então para que os desfavorecidos, desacreditados e “excluídos” - sobretudo, os jovens estudantes de famílias desestruturadas, moradores de bairros periféricos, estigmatizados como “aqueles que não têm jeito” -, possam ser inseridos em um processo transformador? Como despertar o interesse e a autoestima dos alunos que vivem em meio a situações de vulnerabilidade social, que moram em comunidades com altos índices de violência, criminalidade, consumo e tráfico de drogas e profunda carência de políticas públicas? Como fazê-los perceber que a educação pode transformar suas vidas? Para Freire (1987), é essencial que o jovem estudante em situação de adversidades, muitas vezes discriminado e rotulado como fracassado pelo sistema opressor, “tenha condições de, reflexivamente, descobrir-se e conquistar-se como sujeito de sua própria destinação histórica” (FREIRE, 1987, p.9).Nesse sentido, ainda de acordo com Freire (1987), os alunos precisam sair da condição de oprimidos e passarem a lutar por seus ideais, enfrentando os desafios, não mais com a violência, mas com o conhecimento. Essas questões não buscam respostas prontas e acabadas acerca do problema do êxito escolar de jovens estudantes em situações de adversidades socioeconômicas, mas se juntam às teorias de outros autores, visando possibilitar discussões e elucidações que serão fundamentadas na Sociologia do improvável (Berger e Xypas, 2003, 2017), relacionada neste ensaio com a história da professora Erin Gruwell e de seus alunos, protagonizadas no filme Escritores da Liberdade. Nessa perspectiva, o presente trabalho tem como objetivo analisar as possibilidades de êxito escolar e a ascensão social de alunos de origem popular, que vivem em situações de adversidades e vulnerabilidade social. Deste modo, utilizamos a obra cinematográfica “Escritores da Liberdade” em correlação com o

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conceito de “Sociologia do improvável”, para pensarmos sobre as situações exitosas de estudantes carentes e em condições desfavoráveis. O filme – relatos da vida real Baseado em fatos verídicos, o filme Escritores da Liberdade39 foi inspirado na obra literária best-seller The Freedom Writers Diaries (O Diário dos Escritores da Liberdade) e segue um roteiro que descreve a vida de jovens estudantes da 1ª série –turma considerada problemática –de uma escola de ensino médio da cidade de Long Beach, Costa Oeste dos Estados Unidos. A principal personagem se baseia na própria Erin Gruwell, uma professora norte-americana nascida no dia 15 de agosto do ano de 1969, na Califórnia. Lançado no ano de 2007, o longa narra, então, a trajetória de uma professora de inglês e literatura recém-formada, Erin Gruwell (Hilary Swank), que é designada para lecionar em uma turma de adolescentes oriundos de famílias desestruturadas, que vivem em um bairro suburbano tomado pela violência. Vista como problemática, a temida turma ocupa a sala 203 do colégio Woodrow Wilson, composta por adolescentes (na faixa etária entre 14 e 15 anos), envolvidos em gangues e delitos. Os estudantes são marcados pelo preconceito étnico-racial, por serem vítimas de agressões físicas e psicológicas, serem desacreditados e rejeitados pela direção e parte dos professores da escola onde estudam. Determinada a alcançar seus ideais, a professora Erin assume a desafiadora missão de ensinar em uma sala formada por adolescentes rebeldes, intolerantes, considerados violentos e indolentes, vistos pela administração escolar como um problema insolúvel. Os desafios enfrentados pela professora são de ordem estrutural e conjuntural, uma vez que, tanto a escola quanto a cidade, vivem momentos de tensão e violência urbana. A supracitada turma é conhecida pela desmotivação, indisciplina e principalmente pelos conflitos raciais, que fazem da sala de aula um espaço segregado por grupos divididos entre 39

Produzido pelo estúdio Paramount Pictures. Direção: Richard Lagravenese. EUA, 2007, 123 min.

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negros, latinos e brancos. Em seu primeiro dia de trabalho, a docente percebe de imediato os obstáculos e dificuldades que terá de enfrentar na escola. Ela fica perplexa com a indiferença, o desrespeito e a péssima postura dos alunos em sala de aula. As atitudes negativas e o mal comportamento destes, torna a classe um ambiente desarmonioso e de conflitos contínuos. Preocupada com a indisciplina e o desinteresse da turma, a professora decide mudar sua metodologia de ensino, tendo em vista atender às necessidades dos alunos, que se mostram apáticos e desestimulados, devido aos problemas e conflitos enfrentados no dia-a-dia. Sempre atenta ao comportamento dos alunos, decide investigar as causas de tantas revoltas, brigas, desencontros e insatisfações em sala de aula. Para isso, procura se aproximar dos alunos buscando conhecer a realidade de vida de cada um deles. No entanto, Erin encontra resistência por parte da turma, que chega a ignorá-la, inclusive a encará-la com desprezo e desconfiança, pois, para eles, a professora não sabe nada sobre as suas reais condições de vida. Esse sentimento é enfatizado na cena em que a aluna Eva, uma adolescente latina, de comportamento agressivo e envolvida com gangues, desabafa: Você não sabe nada, não sabe a dor que a gente sente, não sabe o que a gente tem que fazer, não tem respeito nenhum pelo modo que vivemos (...). O que você faz aqui dentro que muda alguma coisa na minha vida? (EVA, 2007, 32:27”).

Diante do questionamento desconcertante e ofensivo, a docente resolve usar novas estratégias, tendo como pretensão sensibilizar e cativar seus alunos na tentativa de conhecer melhor a turma, aproximá-los e encontrar soluções para os problemas de desintegração e desafeto no grupo. Acreditando no potencial da turma, Erin segue em direção contrária ao pensamento da gestão escolar que, de forma conservadora e autoritária, insiste em subestimar a inteligência e potencialidade dos alunos, considerando apenas a obediência e a disciplina como fatores suficientes para a manutenção da ordem no colégio. Assim, comprometida com a educação e a transformação da vida dos alunos, a professora começa a utilizar recursos didáticos

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inovadores - jogos, músicas, atividades dialógicas e leituras -, cujo propósito seria conquistar a atenção dos educandos para desenvolver a interação, promover o respeito e, sobretudo, despertar a autoestima para o aprendizado, levando em consideração os valores individuais e coletivos dentro e fora da escola. Erin Gruwel, ou a “senhora G”, como ficou sendo chamada carinhosamente pelos alunos, desejava também modificar a relação conturbada da turma com os outros colegas da escola, de modo que pudessem manter uma boa e harmoniosa convivência. Nesta tentativa de combater o fracasso escolar e melhorar as condições de vida daqueles jovens, a professora acreditava que, com estímulo, novos métodos de ensino, recursos e outros instrumentos didático-pedagógicos, os estudantes indisciplinados e de baixo rendimento poderiam tornar-se bem-sucedidos na escola. Ou seja, apesar de todas as condições de adversidades, teriam chances de conseguir êxito escolar e ascensão social, mesmo que para muitos, essa realidade fosse improvável. Desse modo, a partir dos teóricos que abordam a temática do êxito escolar e na interpretação do filme, percebe-se que as ideias e os métodos utilizados pela professora contribuem de forma esclarecedora para compreensão do conceito de sociologia do improvável. Assim, partindo da ideia de superação das condições adversas vivenciadas pelos alunos, constata-se que, quando colocados em situação de estímulo, é possível que eles tenham um bom desempenho escolar. Para Xypas (2017), uma das mais importantes vias de acesso ao êxito escolar dos alunos de camadas subalternas reside nas condições em relação aos professores, quando, por exemplo, estes reconhecem o potencial dos alunos e se mostram carinhosos, atenciosos e ao mesmo tempo exigentes quanto às atividades a serem cumpridas. Nessa perspectiva, acreditando na capacidade criadora da turma, a professora sugere que eles passem a registrar, todos os dias, em seus diários pessoais, relatos de vida, fazendo referências ao passado (momentos difíceis), destacando o presente (o que vivem hoje) e apresentando perspectivas quanto ao futuro (as expectativas de vida). Assim, a Senhora “G”, oferece aos seus alunos novas possibilidades de aprendizado, algo que na concepção freiriana pode ser entendida como prática de uma educação libertadora, através do “aprender a escrever a sua vida,

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como autor e como testemunha de sua história, isto é, biografar-se, existenciar-se e historicizar-se” (FREIRE, 1987, p. 10). A atitude da professora oportuniza aos alunos momentos de reflexão quanto a sua própria condição humana. Para isso, convida todos a escreverem as suas histórias de vida. Deste modo, a proposta da professora coaduna com o pensamento de Morin ao ressaltar que “a condição humana precisa ser restaurada e vista como o objeto essencial de todo o ensino” (MORIN, 2001, p. 15). Portanto, ao convidá-los espontaneamente para pegarem “os seus cadernos de registro diários”, a professora enfatiza que todos têm a sua própria história e é importante que estas histórias sejam registradas (ERIN GRUWEL, 1:17:19). Através do estimulante método de participação ativa nas aulas, a professora recomenda aos alunos que escrevam sobre o estilo de música que mais gostam, sobre poesias, coisas alegres e tristes vivenciadas por eles. Em seguida, desenvolve um projeto de incentivo à leitura, doando bolsas com 4 livros para cada aluno. Deste modo, a professora busca contextualizar as obras que serão lidas com a realidade de vida dos discentes. Entre os livros adotados no projeto, destaca-se o diário Anne Frank e, a partir do exemplo da jovem judia morta no Holocausto, a professora acaba por convencer os estudantes de que o preconceito é um mal que atinge as pessoas de várias formas, seja pela cor da pele, pela origem étnica, pela religião ou pela classe social. Porém, antes de entregar os livros, (em uma das cenas mais emocionantes do filme), a professora sugere que os alunos façam “um brinde às mudanças”, A partir desse momento todos as vozes que disseram: “vocês não podem”, serão silenciadas. Todos os motivos que dizem que as coisas não vão mudar desaparecerão... agora é a sua vez! (ERIN GRUWEL, 51:55).

Assim, à medida que a professora vai conquistando a confiança dos alunos, eles começam a relatar fatos das suas próprias vidas, como a violência cotidiana e conflitos de ordem interna e familiar. Empolgada com o engajamento da turma, Erin começa a trabalhar conteúdos sobre a Segunda Guerra Mundial. Na oportunidade, realiza uma aula de campo no museu do Holocausto,

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ocasião em que os alunos têm contato direto com os sobreviventes do nazismo. Essa nova experiência vivida pelos alunos, que extrapola os muros da escola, ilustra as condições extraescolares apresentadas por Xypas (2017) como mais um dos motivos para o sucesso escolar de alunos de origem popular, sem capital cultural e que se efetiva a partir da “participação ativa em um grupo de referência valorizado e valorizador que integra o jovem num meio social onde ele pode vivenciar um habitus em harmonia com a escola que falta na sua casa”. (XYPAS, 2017, p. 13). Os conhecimentos adquiridos nas aulas são correlacionados com as situações de vida dos alunos; as leituras propostas pela professora despertam um pensamento crítico, até então adormecido. Assim, os estudantes passam a refletir sobre seus ideais e a vislumbrar um futuro melhor para suas vidas. Os escritores de um futuro improvável Conforme Bourdieu e Passeron (1964; 1970), os alunos que conseguem êxito através dos estudos são aqueles que recebem da família capital cultural (saberes, experiências e conhecimentos adquiridos em casa) e linguístico (pronúncia e vocabulário, de acordo com o nível aproximado ao que é ensinado na escola), e um habitus transmitido pela educação (valores, atitudes e comportamentos prezados pela escola, como o respeito aos colegas e professores).Segundo esses autores, os alunos de classes sociais mais favorecidas herdam dos pais uma gama de conhecimentos, experiências e vivências fundamentalmente importantes para o seu sucesso escolar. Essa herança cultural, linguística e o habitus, adquiridos no convívio familiar através do apoio moral e intelectual, advindos de casa e de lugares que possibilitam aquisição de conhecimentos, norteiam e conduzem favoravelmente esses jovens de camadas sociais elevadas, para o caminho do sucesso. Para Bourdieu (1998), o discurso de igualdade de direitos, pregado pela escola, não funciona na prática, visto que o sistema escolar é injusto e trata com desigualdade as pessoas que não possuem capital cultural, protegendo e beneficiando uns e marginalizando e excluindo outros.

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Se considerarmos seriamente as desigualdades socialmente condicionadas diante da escola e da cultura, somos obrigados a concluir que a equidade formal à qual obedece ao sistema escolar é injusta de fato [...] (BOURDIEU, 1998, p.53).

Por conseguinte, em situação contrária aos que possuem capital cultural, os alunos que se encontram em condição desfavorável, certamente irão se deparar com inúmeros obstáculos e terão muitas dificuldades para continuarem na escola e concluírem seus estudos de forma exitosa. Esses jovens vivem em condições sociais extremamente adversas, tais como: moradia em zona rural ou num bairro da periferia de cidade; pobreza e analfabetismo dos pais; mães solteiras; problemas de violência e de alcoolismo (XYPAS, 2017). São carentes de informações e desprovidos de conhecimentos, pois não tiveram acesso a equipamentos e a ambientes de produção cultural e intelectual como: cinema, teatro, bibliotecas, museus, laboratórios e etc. No entanto, diante de tantas adversidades, voltamos a questionar: como explicar casos de alunos de origem popular que conseguiram êxito e ascensão social através dos estudos? Sob que condições sociológicas esses jovens conseguem “vencer na vida”? De acordo com Xypas (2017), o sucesso escolar de alunos de origem popular, ou seja, sem capital cultural familiar, “depende de ao menos quatro conjuntos de condições: da família; da ação de professores; de condições sociais extraescolares; enfim, da vontade e dos esforços do aluno” (XYPAS, 2017, p. 13). No filme, que narra situações da vida real de jovens estudantes em situação de risco social, é a ação da professora, os esforços dos alunos e condições sociais extraescolares que os conduzem para o sucesso. A professora Erin, utilizando uma metodologia diferenciada, consegue sensibilizar e estimular os alunos a refletirem sobre a sua realidade de vida, assumindo uma postura de construtores da história e condutores do próprio destino. A postura assumida pela professora, portanto, fortalece a ideia de que o educador não deve restringir-se apenas a questões teóricas do plano curricular obrigatório, mas buscar diferentes alternativas de ensino, tentando adaptá-las de acordo com a realidade e necessidade dos alunos. Nesse sentido, podemos associar a atitude da professora ao conceito de sociologia do improvável, ocasião em que a educadora

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deposita confiança no potencial dos alunos, acreditando na capacidade e no desejo de aprendizagem dos mesmos. Em suas ações, a docente propõe uma aventura por meio da leitura de obras de destaque na literatura mundial. Em seguida, utiliza-se da música, visando promover uma melhor interação em sala de aula. Em vista disso, a senhora “G” passa a ministrar os conteúdos de forma diferente dos tradicionais métodos utilizados pelos demais professores da escola, inspirada em uma concepção ativa e humanista, “centrada na iniciativa dos alunos, no diálogo (relação dialógica), na troca de conhecimentos” (SAVIANI, 1999, p. 77). Logo, os alunos incorporam a ideia e passam a escrever seus diários não pela mera obrigação e preocupação em obter uma nota, mas pelo o prazer, pela curiosidade e o desejo de adquirir conhecimento. Assim, o ato de ler e escrever passa a ter um sentido especial para o grupo, pois o seu objetivo principal “não era testar o conhecimento da mecânica da língua. Sua função principal era revelar as formas de pensamento do aluno, pois através da linguagem, os processos mentais, as várias inteligências, se revelam” (ALVES, 1995, p. 20). O estudante tem, então, a oportunidade de falar de si próprio, de seus medos, suas angústias, suas mágoas, produzindo um relato de experiências de vida que o faz “assumir gradualmente, a consciência de testemunha de uma história, de que se sabe autor” (FREIRE, 1987, p. 13), que posteriormente se tornará livro. A ação da professora, conjuntamente com os esforços dos alunos, transforma uma situação considerada improvável em oportunidades e esperança da concretização de sonhos. A professora, através do estímulo, incentivo e muita perseverança, contribui para que os alunos continuem os estudos até o ensino superior, como é mostrado no filme, em suas últimas cenas (Escritores da liberdade, 1: 56 min), quando é anunciado que muitos dos escritores da liberdade foram os primeiros de suas famílias a se formarem no ensino médio e ir para faculdade. Alguns seguem o exemplo de Erin Gruwel e se tornam professores, alcançando êxito escolar e ascensão social, mesmo desprovidos de capital cultural e imersos em uma realidade socioeconômica profundamente desfavorável. Por fim, registra-se que o livro “O diário dos escritores da liberdade”, foi publicado com

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sucesso no ano de 1999, contando a emocionante e exitosa história dos alunos da sala 203 do colégio Woodrow Wilson (Califórnia – EUA). Considerações finais Quando escutamos falar das possibilidades de êxitos e fracassos dos jovens estudantes na vida escolar, a priori, já sabemos quem se encontra em determinadas condições de vantagens (conquistas e sucessos) e em desvantagens (fracassos e insucessos). Relembrando o que nos dizem Bourdieu e Passeron (1970/2008), na competição escolar os alunos vencedores são aqueles que receberam de suas famílias capital – cultural e linguístico – e um habitus, transmitidos pela educação. Destarte, o estudante oriundo da camada inferior da pirâmide social passa a fazer parte de uma estatística negativa de fracassos e insucessos escolares, justamente devido à ausência de mecanismos que o conduzam ao sucesso escolar e a ascensão social. No entanto, como foi mencionado na apresentação deste trabalho, o nosso objetivo é justamente compreender sob que condições sociológicas estes estudantes de classes socialmente desfavorecidas conseguem alcançar o êxito escolar. Com base na história de vida da professora Erin Gruwel e seus alunos da turma 203 do colégio Woodrow Wilson, narrada no filme “Escritores da Liberdade” (2007) e fundamentado em teóricos como Bergier e Xypas, (2013/2017), Freire (1987), Morin (2001), Saviani (1999), dentre outros, podemos perceber a possibilidade de viabilidade do êxito escolar e ascensão social de alunos em condições desfavoráveis. À vista disso, assentados nas leituras e apreciação do filme, podemos constatar que, por meio de metodologias inovadoras, incentivo, atribuição de tarefas, utilização de recursos e outros instrumentos didáticos pedagógicos, é possível despertar nos alunos de camadas populares, com baixo rendimento de aprendizagem, o interesse pelo conhecimento, que possa conduzilos ao êxito escolar e ascensão social. Necessário se faz compreender – a partir da abordagem da sociologia do improvável proposta por Xypas (2017) e das experiências vividas pela professora Erin Gruwell –, que o papel do professor, seu empenho, sua

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vontade, a participação dos alunos e a valorização dos sujeitos que compõem a comunidade escolar, podem transformar situações consideradas improváveis, em realidades de êxito e sucesso. Todavia, para além do improvável, temos hegemonicamente a sociologia do provável, isto é, da reprodução social e da lógica dominante do fracasso escolar que impera na realidade estrutural dos mais pobres. Destacamos que a ação da protagonista Erin Gruwell se torna louvável perante todos os condicionantes que fragilizam e precarizam o trabalho docente. Não obstante, não podemos cair no risco não-intencional de culpabilizar – sob possibilidade de ataques – aqueles docentes que não efetivam tamanho empreendimento emocional no exercício de seu cotidiano profissional. Em muitas escolas públicas de países como o Brasil, por exemplo, entrar diariamente em uma sala de aula já conota certo heroísmo vocacional diante de tantas variáveis que impossibilitam o trabalho professoral. Portanto, que se faça do improvável algo provável, mas que não esqueçamos de todos os condicionantes que limitam a práxis docente já tão desvalorizada e desprovida de reconhecimento. Referências ALVES, Rubem. História para quem gosta de ensinar. São Paulo: Ars poética, 1995. BERGIER, Bertrand; XYPAS Constantin. Por uma sociologia do improvável: percursos atípicos e sucessos inesperados de jovens na escola francesa. Revista Educação em Questão, Natal, v. 46, n. 32, p. 36-58, maio/ago. 2013 BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. Petrópolis, Vozes, 1998. BOURDIEU, P.; PASSERON, J-P. A reprodução. Petrópolis (Rio de Janeiro): Vozes, 2014. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 1989.

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FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1987. MORAIS, Regis de. (Org.) Sala de Aula: Que espaço é esse? Campinas: Papirus,1994. MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2001. SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia (Coleção Polêmicas do nosso tempo). Campinas-SP: Autores Associados, 1999. XYPAS, Constantin. Condições sociológicas do êxito escolar de alunos de origem popular. Crítica Educativa (Sorocaba/SP), v. 3, n. 1, p. 5-18, jan./jun. 2017. Filme: Escritores da liberdade (Freedom Writers, 2007). Direção e Roteiro de Richard LaGravenese, baseado no livro de Erin Gruwell. Distribuidora Paramount Pictures. Alemanha/Estados Unidos: 2007. Colorido. Dublado. 123 min.

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CAPÍTULO 9 Da perda à ressignificação: um olhar sobre Elena Gessica Raquel Clemente Rodrigues40 Resumo: Elena (2013) é um longa metragem dirigido por Petra Costa, que busca narrar a história de uma jovem cujo sonho era ser atriz de cinema, mas que morre precocemente por suicídio. À medida que o drama avança, Petra se mistura com Elena, sua irmã, e nos faz um convite a diversos questionamentos. Dentre eles, a reflexão acerca da autoflagelação e suas repercussões na vida daqueles que sobreviveram - em especial, dos familiares e pessoas próximas. Trata-se de um momento de crise, em que se vivencia um desequilíbrio entre os ajustamentos que são necessários pra continuar a vida e os recursos que muitas vezes se têm disponível para isso. Nesse contexto, a diretora explicita o longo caminho que precisou percorrer para passar pela transição e pela dor de ter tido um vínculo físico e emocional rompido precocemente. O objetivo desse artigo é apresentar como Petra Costa conseguiu comunicar, de forma vívida e poética, a profundidade de sua experiência de perda e reencontro. Palavras-chave: Luto, Suicídio, Posvenção, Elena.

Introdução Elena é um filme dirigido por Petra Costa, que traz a história de sua irmã, de nome homônimo ao do longa, que assim como a mãe delas, Li An, e, posteriormente, a própria Petra, sonhou e buscou se realizar profissionalmente como atriz de cinema. O documentário, lançado em 2013, narra a trajetória de Elena no contexto em que esta nasceu, da ditadura militar. O nascimento da 40

Psicóloga formada pela UFRN. Possui residência em Atenção Básica, Saúde da Família/Comunidade pela UERN. Especialista em Psicologia Clínica Fenomenológico-Existencial pela UFRN. Especialista em Neuropsicologia Clínica também pela UFRN. Mestre em ciências Sociais e Humanas pelo PPGCISH (UERN). E-mail: gessicarcr@gmail.com.

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criança salva os pais de vivenciarem uma ida para um combate, pois a mãe encontrava-se grávida de Elena, que segundo a mãe, sonhava ser atriz desde criança, pois atuava e dançava em casa. Quando Petra nasceu, o Brasil estava em um momento de reabertura política. Elena, à época com 13 anos de idade, ganhou uma câmera e passou a fazer vídeos caseiros, nos quais atuava e dançava, sendo Petra sua parceira inseparável nas cenas. Quando Petra faz 7 anos, Elena decide ir morar em Nova York em busca do seu sonho de ser atriz de cinema, deixando para trás sua família no Brasil. Com o passar dos dias, a falta de respostas e/ou as negativas mediante os testes, o ideal passa a se tornar pesado para ela. A jovem retorna ao Brasil, mas é convocada para uma universidade de teatro nos Estados Unidos. Quando volta ao país norte-americano, a mãe e irmã lhe acompanham. Esse passa a ser um período desafiador para elas: um recomeço e uma readaptação. Na busca incessante pela realização de seus objetivos, Elena vai adoecendo internamente com as frustrações do caminho e aos poucos vai esmaecendo e se cansando, até o momento insuportável em que decide deixar essa vida, sua família e amigos. Duas décadas mais tarde Petra também se torna atriz e embarca para Nova York em busca da história e das memórias de Elena, levando consigo filmes caseiros, recortes de jornal, diários e cartas em videocassete relacionados à irmã. A diretora refaz o caminho da parente, redescobrindo Elena nas histórias, mas sobretudo nela mesma. Aos poucos Petra se mistura com a irmã: com seus sonhos, alegrias, tristezas e angústias. A mãe é companheira de Petra nessa jornada e deixa vir à tona o quanto as filhas são semelhantes a ela. A história da família parecia se repetir, com algumas mudanças, com novas roupagens e atores. Petra, então, após mergulhar, misturar-se e perder-se na vida da irmã, precisou se reencontrar, se presentificar e mais uma vez se despedir de Elena. Mas, dessa vez, como a própria Petra coloca, era uma despedida com mais consciência. A diretora se permite encenar a partida da irmã, fechando um ciclo de descobertas, de dor, de perda, mas de muito afeto e ressignificação. Elena nos convida à elaboração e reflexão de temas diversos, desde o sofrimento psíquico, o sentido da vida e dos sonhos, as perdas, a morte, o suicídio, a dor e o processo de resiliência dos que ficam. Nesse artigo, o foco será, especificamente, nos temas do

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suicídio e no processo de posvenção após a perda de um familiar por suicídio. O objetivo do presente estudo é compreender, a partir do documentário “Elena”, tais temáticas. Entendemos por posvenção os atos e ações apropriadas de ajuda que aconteçam após o suicídio de alguém, e que tem como meta auxiliar os sobreviventes familiares a viver com mais produtividade e menos estresse que viveriam se não houvesse esse auxílio (SHNEIDMAN,1973). No que se refere à questão do suicídio, pode-se afirmar que se trata de um fenômeno marcado pela complexidade, e que, com o resgatar da história, o mesmo tem se configurado como processo humano e universal. De forma específica, o suicídio é considerado como o ato humano de infligir a si próprio o fim da vida, sendo central nessa concepção a noção de intencionalidade de morte do indivíduo que o realiza (FIGUEIREDO, 2016). Além do suicídio, há os comportamentos suicidas não-fatais que se classificam desde a ideação suicida – os diferentes níveis de pensamento que fomentam o suicídio, acompanhados de planejamento ou não – até a tentativa propriamente dita, configurada como comportamento autolesivo em que há a intenção de pôr fim à vida (BERTOLOTE, MELLOSANTOS & BOTEGA, 2010). Ressalta-se que o suicídio é um processo em que a causa não pode e não deve ser reduzida a um acontecimento específico, pois é multifatorial. Assim, para compreendê-lo, é primordial que sejam consideradas, além da trajetória de vida e subjetividade da pessoa, as questões ligadas ao contexto histórico, econômico e cultural em que ela está inserida. Nesse sentido, o fenômeno do suicídio exige uma análise da culminação dos fatores psicossociais e das experiências singulares da pessoa envolvida (TEIXEIRA, SOUZA & VIANA, 2018). A complexidade do suicídio está então no modo como todos esses fatores se entrelaçam e, sobretudo, se potencializam (FIGUEIREDO et al., 2015). O suicídio, hoje, já se tornou uma questão de saúde pública. Segundo a Organização Mundial da Saúde, ele dizima cerca de 800 mil pessoas por ano - o que significa uma morte a cada 35 segundos no mundo -, dados alarmantes, visto que são vidas e histórias que se vão (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2014). O Brasil, por sua vez, é o oitavo país em número de suicídios: em média, 11 mil casos por ano, isto é, 31 mortes por dia. O número de homens emerge

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quase quatro vezes mais que o de mulheres (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2017). Conforme Teixeira, Souza e Viana (2018), esses dados podem se tornar ainda mais preocupantes caso se leve em conta as subnotificações de óbitos por suicídio, camuflados entre registros de homicídios, acidentes e outras causas de morte. Os registros disponibilizados, no entanto, já apontam a gravidade desse fenômeno, que para além de uma tragédia pessoal, social e familiar, tornou-se um sério problema de saúde pública, especialmente em função da intensidade da dor, dos anos potenciais de vida perdidos e do seu caráter epidêmico (D’OLIVEIRA & BOTEGA, 2006; BERTOLOTE, MELLO-SANTOS & BOTEGA, 2010). Mas, ressalta-se que mesmo diante de dados tão altos e da compreensão da amplitude e complexidade do fenômeno, o tema do suicídio ainda é tratado como um tabu, a respeito do qual pouco se fala, sendo um ato de força e coragem para muitos falarem a respeito, assim como foi para Petra Costa, diretora do documentário em análise. O aumento dos índices de suicídio é proporcional ao aumento da quantidade de enlutados que necessitam de cuidado, pois a morte auto-infligida gera sofrimento nas pessoas que ficaram, vivenciaram as repercussões e podem conviver com o luto por muito tempo (FUKUMITSU & KOVÁCS, 2016). Nesse sentido, torna-se importante compreender como o suicídio afeta o grupo familiar, a intensidade e a amplitude desse ato na vida dessas pessoas, pois estas são as que mais sofrem os efeitos de diversas naturezas, que podem se prolongar por uma vida toda (PAMPANELLI & TENG, 2015). Além disso, o suicídio também gera, muitas vezes, a desestruturação no contexto familiar (BUUS et al., 2014). Assim, o presente estudo busca discutir algumas questões teóricas que possam influenciar nos processos reflexivos e nas práticas profissionais no tocante à questão do suicídio e da sua posvenção. Para tanto, serão usados estudos que abordam a temática do suicídio e sua posvenção, que engendrarão uma discussão com o roteiro desse filme. Os desdobramentos da história de Elena No decorrer da narrativa fílmica, Petra faz questão de trazer o nome de Elena como parte do elenco do documentário -

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honrando, assim, o sonho dela de ser atriz de cinema. O documentário não demonstra ter a intenção de buscar ou apontar culpados para o ocorrido, mas conhecer e apresentar as várias faces de Elena e sua “memória inconsolável”, como aponta a diretora\produtora, de forma corajosa e sensível, em cartas, vídeos e memórias de Elena, refazendo seus passos, revivendo suas histórias, lembranças e até mesmo seus sonhos. Durante o filme, fica nítido o quanto Petra vai estabelecendo um profundo sentimento de identificação com a irmã, de modo que ela mistura registros de memórias próprias, de familiares e amigos de Elena, assim como de fitas cassetes e cartas escritas. Isso ocorre de maneira que, em diversos momentos, confunde-se o que é dela e o que é de Elena, ou ainda, quem é cada uma delas. O relato de Petra durante o filme traz uma mãe que parece melancólica na adolescência, que procurava sentido para vida, e que deixa a escola de freira para acompanhar o pai delas no enfrentamento da ditadura militar na década de 60. O casal iria ser enviado para a guerrilha do Araguaia, mas como na época a mãe estava grávida de seis meses de Elena, eles não foram enviados. Segundo Petra, a maioria das pessoas que foram para a guerrilha, morreram. Elena, portanto, havia salvado os pais. A menina nasce, assim, no meio desse redemoinho e cresce clandestina, conforme Petra, pois não podia contar para pessoas onde morava. Ela se questiona: como esse tempo ficou na memória e no corpo de Elena? Sabe-se que durante o regime militar, a política repressiva do Estado dirigiu-se não apenas ao opositor político, mas atingiu todo o campo social, de modo que as violências atravessaram as instituições e instauraram a vigilância e o medo no cotidiano do brasileiro (JARDIM, 2016). Conforme a experiência de Kolker e Mourão (2002, p. 241) em atender clinicamente às vítimas da ditadura, “os métodos utilizados tanto podiam ser físicos como psicológicos. Os últimos tinham a vantagem de não deixar marcas visíveis e seus efeitos serem mais duradouros”, ficando nítido que o efeito de uma tortura necessariamente resulta em marcas físicas e psicológicas (JARDIM, 2017). A violência da ditadura não atingiu apenas aqueles que foram presos e torturados, mas seu alcance e amplitude atingiu todas as pessoas que vivenciaram aquela época (JARDIM, 2017). Nesse sentido, mesmo não tendo sido enviados para a guerra, os

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pais de Elena e posteriormente ela própria e Petra vivenciaram o clima, o medo, a pressão e as privações que uma ditadura pode proporcionar, ficando isso registrado e atravessado na sua história de vida. Ainda segundo Jardim (2016), muitas das pessoas que sobreviveram à repressão tiveram suas vidas alteradas: desde perseguições, carreiras interrompidas, vocações abandonadas, exílios, dentre muitas outras questões. Quando Elena faz 15 anos, os pais se separam, e, segundo Petra, a irmã para de fazer filmagens por um tempo, e sente que aos poucos começa a ficar mais distante. Mais adiante, Elena consegue entrar para um grupo de teatro: “Você para de brincar de teatro comigo para virar atriz de verdade... E com 17 anos você entra no grupo de teatro Boi Voador, em SP” (fala de Petra). Pelos relatos de Petra, vai ficando subentendido que Elena, com alguns acontecimentos como o da separação, vai se entristecendo e se fechando. Em relação à separação dos pais, conforme Papalia, Olds e Feldman (2006), a criança e o adolescente podem ser capazes de conviver com este processo, sendo que cada um entende o divórcio de forma diferente, o que será bastante influenciado pela forma que os adultos passam e vivenciam. Para Barreto (2013), o divórcio dos pais é um fato crucial no desenvolvimento da criança e do adolescente. Mesmo aqueles que mais tarde conseguirão reconhecer que a separação teve resultados construtivos, é comum que no início vivenciem um sofrimento com o rompimento da família. As primeiras respostas mais comuns das crianças/adolescentes ao divórcio são raiva, medo, depressão e culpa persistente - em geral, até por volta de um ano após a separação, quando começa a aparecer a redução da tensão e uma reorganização familiar (BARRETO, 2013). Nos relatos colhidos por Petra, os amigos e outros atores contam que na carreira artística que iniciou, Elena ensaiava de forma obsessiva. Mesmo quando parecia perfeito, para ela nunca era suficiente, sempre faltava alguma coisa. Elena não estava satisfeita, ela queria mais: não queria ficar só no teatro, queria atuar no cinema. Nesse período, Petra faz 7 anos de idade. No aniversário da garota, Elena então com 20 anos, lhe diz:

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... você vai fazer 7 anos, essa é a pior idade que tem. Eu estou indo morar longe e a gente vai ficar um tempo sem se ver, mas eu vou te dar essa concha para toda vez que você sentir saudade você colocar ela assim no seu ouvido. Eu também vou ter uma, assim, a gente pode se falar.

Elena muda-se sozinha para Nova York e a partir de 4 de março de 1990 grava vários vídeos relatando suas vivências na nova cidade. Pelo relato inicial parece eufórica com a capital, dizendo que ali a pessoa tem que querer ser pequeno, se não a cidade lhe engole. Em 20 de março, grava outro vídeo dizendo que começou a fazer aulas de canto e dança, que iria cantar ópera - o que lhe encantava - e estava aprendendo outros idiomas. Na ocasião, passa um vídeo sendo entrevistada: ela diz que foi para Nova York porque queria ser atriz de cinema, fazer filmes, e no Brasil as possibilidades para isso na época eram poucas. Um mês depois, Elena diz que enquanto não entrava na universidade, estava fazendo cursos livres, aparentando estar animada. Em 8 de maio, Elena diz que conheceu o produtor de um filme e parece feliz com as possibilidades que podem se abrir. Nesse período, Elena vai fazendo alguns testes e entrevistas, mas os dias vão se passando e ninguém dá notícia; lhe mandam esperar, e ela não suporta essa espera, como aponta Petra. Já em 3 de junho, Elena faz mais uma gravação para a família. Nessa, já aparenta, pelas palavras e tom de voz, não estar bem; diz estar comendo compulsivamente; que tem ficado triste - mas que depois conseguirá emagrecer para tirar fotos de modelo e atriz. Diz, ainda que queria ter “pai, mãe e irmã, em casa agora”. Elena se sentia só e temia não conseguir alcançar seu sonho: “Será que minha raiz vai conseguir arrebentar asfaltos, canos e prédios, para sobreviver e gerar frutos? Sim, se minha raiz fosse forte, grande, mas sinto que minha semente nem chegou a brotar direito ainda...” (fala de Elena). No que diz respeito aos aspectos que permeiam esse trabalho de artista, há muitas vezes uma representação social romantizada e utópica do mesmo, que acabam por mascarar a existência de aspectos reais dessa carreira. Alguns autores, como Menger (2005), Bendassolli (2009), Banks, Gill e Taylor (2013) e Loacker (2013), apontam que, de modo geral, o meio artístico possui

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formas de emprego precarizados, temporários, com poucos benefícios trabalhistas, em que não há uma divisão definida de tempo de trabalho e de tempo livre. Frente a tais condições de trabalho, segundo Dejours (2012), sabe-se que a subjetividade do sujeito será atingida, pois o labor pode tanto promover o que há de melhor no sujeito, o levando à autorrealização e à construção da sua identidade, mas também causar a desestabilização psíquica. Assim, o trabalho pode ser tanto fonte de prazer quanto de sofrimento. Em meio a essa crise, Elena decide retornar para o Brasil. Ela acreditava que estando em seu país de origem, sua raiz iria achar mais espaço para crescer. Pouco tempo depois, chegou uma carta dizendo que ela tinha sido aceita numa faculdade em Nova York, provocando a mudança de Elena, Petra e a mãe para lá. Já em Nova York, Petra apresentou dificuldade de se adaptar à nova cidade; corta os pulsos e põe band-aid na testa, apontando que as coisas não estavam bem para ela. Mas, aos poucos, as coisas pareciam ir se ajustando, e Elena volta a ter mais vida e a dançar com a irmã. Elena não consegue o reconhecimento que gostaria e vai desanimando com o seu sofrimento. Em 10 de setembro, ela aponta que sua garganta está machucada não só pelo frio da cidade, mas pelo medo e pela falta de amor por ela mesma. Reconhece que talvez precise de uma terapia especial, segundo ela, para retirar o rolo de fios do peito e da garganta, que a impedem de respirar, cantar e falar. Diz que seu eu está doente. Petra relata que, após meses em nova York, faz uma amiga e a leva em casa, e quando entra no quarto Elena está toda coberta, com o olho vermelho, a sua amiga pergunta o que ela tinha, e Petra disse, “ela é assim”. A mãe, diante disso, pede para Elena fazer um esforço, porque está fazendo mal para Petra. Elena fica brava com as pressões para melhorar e diz que vai se matar, sai de casa e a mãe se desespera. A família procura ajuda para Elena, que começa a se tratar. Segundo Jardim (2011), o trabalho possui uma centralidade na vida dos sujeitos, tanto em relação à subsistência, quanto à inserção social e à constituição subjetiva. Para Elena, não era diferente, ser atriz fazia parte do que ela era, e não poder ser isso, ou não poder ser como ela sonhava, gerava sofrimento. Ela parecia estar depressiva, que, segundo Jardim (2011), era o que Freud chamava de melancolia, e atualmente chama-se de depressão

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grave. A melancolia e o luto se assemelham: ambos dizem respeito a um estado de ânimo profundamente doloroso; uma suspensão do interesse pelo mundo externo; a perda da capacidade de amar e a inibição geral da capacidade de realizar tarefas. Esse processo pode culminar em ideias autolesivas e ao suicídio efetivamente pensamentos que já perpassavam a vida de Elena. Tanto a melancolia como o luto são reações à perdas, que podem ser de ordem concreta ou subjetiva: Elena estava sentindo a perda ali concreta e idealmente da realização do seu sonho como pessoa e profissional (JARDIM, 2011). A mãe diz que Elena chega a falar para ela que: “a arte para mim é tudo, sem arte prefiro morrer, se não consigo fazer arte, melhor morrer”. Segundo a mãe, nesse dia ainda a ouviu chorando. No final dele, um amigo de Elena liga para ela, eles tinham marcado um encontro. Mas ela não aceita sair, não atende a campainha e nem as ligações do amigo. Elena toma medicações e bebida, e escreve uma carta que dizia: “Eu quero morrer. Razão? Tantas que seria ridículo mencioná-las... Eu desisto, desisto porque no meu coração eu me sinto achar no direito de não perambular por aí, com esse corpo que ocupa espaço, e ocupa o que eu tenho de tão frágil...”. Em primeiro de dezembro de 1990, Elena é então levada ao hospital, mas não resiste. O laudo emitido aponta todas as características físicas do corpo de Elena, mas e a causa? Intoxicação. O modo? Suicídio. Alma? Bom, esse o laudo não foi capaz de descrever. No fim, Elena estava certa: 7 anos foi a pior idade para Petra, que a perdeu. O choque, a dor e as repercussões da perda de Elena No dia da morte de Elena, Petra estava na escola e, quando voltou, encontrou a mãe com uma expressão triste e desesperada. Quando a mãe lhe contou sobre o ocorrido, Petra chorou e pediu o elefantinho de pelúcia que a irmã lhe tinha dado, prometendo-lhe que ele podia realizar qualquer desejo. Petra queria a irmã de volta! Falar sobre a morte é uma tarefa difícil na nossa cultura, ainda mais quando se trata de dialogar com uma criança. O termo causa inquietações, medos e ansiedades em todos, embora a finitude faça parte do ciclo da vida. No que se refere aos sentidos da

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morte para a criança, segundo Bromberg (1998), eles sofrerão modificações de acordo com a idade da criança; o vínculo estabelecido com a pessoa falecida; o momento de seu desenvolvimento psicológico; além de como os adultos lhe passam o ocorrido e como eles lidam com a perda. Bromberg (1996, p.111) aponta, ainda, que “assim que a criança tiver idade suficiente para se vincular, pode ter consciência da possibilidade de perder a pessoa amada, de ter os vínculos rompidos”. Nesse sentido, fica nítido que a criança é capaz de sentir e de ter consciência da perda de uma pessoa significativa, sendo importante que se possibilite um espaço para que sua dor possa existir. “A criança não conhece muito bem como é o processo da morte, mas experimenta a ausência que ela vive como abandono” (ABERASTURY, 1984, p.135) e por isso se torna a falar a respeito, para que possa ser acolhido e esclarecido e ela possa compreender melhor sobre sua perda e, consequentemente, os sentimentos que envolvem o luto (SENGIK & RAMOS, 2013). Durante sua vivência, Petra sentiu que Elena havia lhe abandonado, chegando a questionar se ela não voltaria mais, sendo possível compreender o não retorno da irmã apenas anos depois. É necessário ressaltar que a criança não compreende a perda como os adultos e tendem a pensar que a pessoa que morreu poderá voltar a viver a qualquer momento, ou ainda, poderá fantasiar sobre a morte e criar um entendimento irreal acerca disso, sendo fundamental a palavra do adulto para auxiliá-la no entendimento do vivido (SENGIK & RAMOS, 2013). Conforme Kovács (2002), o luto é finalizado quando a criança consegue guardar, dentro de si, a presença da pessoa perdida mesmo na sua ausência, sendo esse o processo que permite o estabelecimento de outras relações. No tocante à mãe de Elena, ela diz ter sentido culpa e angústia com a sua morte, e que a dor era tão insuportável que a única saída para ela parecia ser também a morte. Relata que pensou em morrer, se jogar no carro com todos, mas sabia que não podia fazer isso com Petra: aquilo não era uma saída, segundo ela, era o desespero. O desejo de morrer não era novo para a mãe, que relata que começou a pensar em suicídio aos 13 anos e isso durou até os 16. Diz lembrar ter se desenhado com um rosto velho e triste. Na véspera de Elena morrer, a filha achou um pôster de uma

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apresentação que havia feito no teatro, sob a encenação da morte, o qual a imagem parecia com a que a mãe havia feito anos antes, e que a filha o havia pregado na parede. Segundo Petra, após a morte da irmã, a sua mãe virou saudade, ficando sempre com o olhar distante, triste. O pai se tornou silêncio. Ainda nesse período, Petra foi levada à avaliação psicológica, pois passou a ter pesadelos e dizer que queria morrer, mostrando sintomas de depressão e sentimento de culpa. O laudo médico dizia que ela estava usando defesas para lidar com a situação. Tanto o recebimento da notícia quanto o lidar com o óbito de um familiar é um processo difícil e doloroso, e quando este é ocasionado por um ato suicida, torna-se ainda mais impactante. Os familiares inicialmente tendem a entrar em “estado de choque”, desesperando-se com a notícia, mesmo que houvesse indícios que isso pudesse ocorrer (DUTRA et al., 2018). É comum que os familiares se desesperem, busquem respostas para o ocorrido e apresentem dificuldade em lidar com esse tipo de morte, chegando a se questionarem sobre a veracidade da lesão autoprovocada (DUTRA et al., 2018). Nesse sentido, a perda de uma pessoa amada é psicologicamente traumática, e pode ocasionar um desequilíbrio entre corpo e mente da pessoa que vivencia essa situação. O luto representa uma saída do estado de saúde e bem-estar, levando a uma significativa transição psicossocial, que impacta em todas as áreas humanas, como: cognitiva, emocional, física, religiosa, familiar e cultural, sendo fruto de uma dolorosa experiência manifestada pelo rompimento de um vínculo sentimental (IMAZ, 2013). A literatura aponta, ainda, que a morte auto-infligida gera sofrimento nas pessoas que ficam e vivenciam suas repercussões (FUKUMITSU & KOVACS, 2016). A família, assim, tende a ser o grupo que mais sofre os efeitos de diversas naturezas, os quais podem se prolongar por uma vida toda (PAMPANELLI & TENG, 2015). Além disso, o suicídio tende a desencadear uma desestruturação no contexto familiar (BUSS et al., 2014). O luto é um processo que não é simples e tende a ser permeado por diversos fatores: ele abarca várias dimensões e o modo de lidar com ele dependerá especialmente das inter-relações do enlutado (DUTRA et al., 2018). Entre os aspectos que influenciam o processo de luto, destaca-se a

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forma da morte, se foi repentina ou violenta, a proximidade da relação que o ente tem com a pessoa perdida, os antecedentes históricos e características de personalidade e sociais do familiar sobrevivente (FUKUMITSU & KOVACS, 2016). Foi nesse contexto de perda de familiares por suicídio que emergiu o termo “posvenção”, que se refere à prevenção, ao luto e às atividades após a perda por suicídio daquelas pessoas que ficaram. Esse movimento visa o cuidado e envolve o desenvolvimento de ações que amenizem o sofrimento e o abalo da perda por suicídio e a prevenção do sofrimento das próximas gerações (FUKUMITSU & KOVACS, 2016). A forma como os familiares sobreviventes irão responder às mudanças advindas com o suicídio em seu meio familiar será essencial para uma adaptação e recuperação sadia (DUTRA et al., 2018). As pesquisas apontam que o familiar que sofre com a perda de um ente querido por suicídio, possui grandes chances de desenvolver transtornos como sofrimento geral, depressão, ansiedade e hostilidade, levando-os a também desenvolverem a ideação e o risco para cometerem suicídio (FIGUEIREDO et al., 2012). Isso deixa nítido que a família, após a morte auto-infligida de um de seus membros, fica fragilizada e debilitada e pode, ainda, desenvolver um sentimento de culpa por não ter conseguido evitar o ocorrido, o que é comum especialmente nos pais enlutados (DUTRA et al., 2018). Na família de Elena, isso não foi diferente, conforme o relato de sua mãe: sentiu-se culpada e sofreu intensamente junto com os demais familiares - a ponto de ter pensado em também fazer o mesmo. Desde que perdeu a irmã, Petra tem sonhos e rememorações com ela, que se misturam com sua própria imagem - como essa com o qual ela inicia o filme: “Elena, sonhei com você essa noite, você era suave, andava pelas ruas de nova York com uma blusa de seda. Procuro chegar perto, encostar, sentir seu cheiro... Mas quando vejo, você está em cima de um muro enroscada num emaranhado de fios elétricos. Olho de novo e vejo que sou eu que estou em cima do muro, eu mexo nos fios buscando tomar um choque, e caio do muro bem alto e morro”. A mãe, por sua vez, passou a temer que Petra quisesse seguir o caminho da irmã e se perdesse nele, pois segundo Petra: “Nossa mãe me disse que eu podia morar em qualquer lugar do mundo,

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menos em Nova York, que eu podia escolher qualquer profissão, menos ser atriz... No dia 4 de setembro de 2003, eu me matriculei no curso de teatro”. A sensação que Petra tem é que as pessoas gostariam que ela esquecesse a irmã, que não mexesse nessa história, talvez por receio que houvesse uma repetição. Queriam que eu te esquecesse Elena, mas eu volto pra Nova York na esperança de encontrar nas ruas, trago comigo tudo que você deixou no Brasil, seus vídeos, fotos, diários e as cartas em vídeo cassete, porque você sempre teve vergonha da sua letra, e preferia gravar seus dias e impressões daqui para mandar pra gente... Hoje eu ando pela cidade ouvindo sua voz, e me vejo tanto nas suas palavras, que começo a me perder em você.

Aos poucos as famílias vão encontrando modos de conviver com o sofrimento da perda e suas repercussões. Segundo Dutra et al. (2018), além de enfrentar a dor pela morte de um ente querido, os familiares precisam lidar com as cobranças e julgamentos da sociedade, pois da mesma maneira como os familiares procuram respostas para o suicídio, a sociedade de alguma maneira necessita de explicações e faz julgamentos precipitados. Se reconstruindo e refazendo a vida Aos poucos, Petra e a mãe vão levando os dias e refazendo suas vidas. “Depois, como tudo, o medo desapareceu e você foi desaparecendo com ele, até que chega o momento do vestibular...”. Nesse momento crucial, Petra se sente perdida e, de última hora, escolhe teatro, mas fica perturbada com a sua decisão. Os anos vão se passando e Petra se vê mais próxima e parecida com a irmã Elena. No seu aniversário de 21 anos a mãe pontua que ela está mais velha que a irmã, realçando seu medo e alívio ao mesmo tempo, dela não ter seguido o seu trágico fim. Para Petra, Elena estava nela, dentro dela, e ao buscar sua história, a irmã foi tomando forma e renascendo, contudo, segundo Petra, para morrer de novo, com muito mais consciência para viver a dor da perda da irmã. “Para encontrar ar, para poder viver... e pouco a pouco as dores viram água, viram memória. As memórias voam com o tempo, se desfazem, mas algumas não encontram

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consolo, só algum alívio nas pequenas brechas da poesia, você é minha memória inconsolável feita de pedra e de sombra. E dela que tudo nasce e dança”. Em meio ao processo de luto por suicídio, os familiares comumente buscam ajuda para amenizar o sofrimento e reconstruir a vida. Uma das principais estratégias usadas é apegar-se à fé, que emerge como uma forte aliada no processo de recuperação. Os familiares também buscam o auxílio da rede de apoio, como vizinhos e amigos, sendo primordial também o apoio dos profissionais de saúde, principalmente do psicólogo, conforme aponta Dutra et al. (2018). Esse é um momento de fragilidades em que todos precisam se apoiar mutuamente para refazer a estrutura familiar e continuar a vida. Assim, as vidas dos familiares continuaram e Elena permanece viva nas suas memórias e histórias - o que é ressaltado ao fim, quando Elena sai como atriz na ficha técnica do elenco, pois continua viva para os que a amam, na memória e reflexão de todos os que assistem ao documentário; e como um compromisso para olharmos ainda com mais cuidado para o outro, para si e para aqueles que cuidamos. Considerações finais Elena é um documentário de caráter autobiográfico, mas que transcende a sua função de referenciar apenas uma história, lançando um olhar para além do evento singular e pessoal vivenciado por Elena e sua família, pois toca em questões reais, atuais e compartilhadas por tantas outras famílias, como perdas, dor, suicídio, medos, sonhos e posvenção. O longa também mostra como a arte pode permear a vivência de toda essa trajetória e, quiçá, ajudar na elaboração e no alívio do sofrimento vivido. Elena ainda nos alerta sobre a necessidade de um espaço de acolhimento ao sofrimento dos familiares que vivenciam esse tipo de perda. Nesse sentido, Fukumitsu (2019) alerta sobre a carência de espaços destinados a esse acolhimento no Brasil, assim como de políticas públicas. Segundo ela, é necessário que a posvenção seja tratada com mais atenção no país, sendo importante para que “sobreviventes tenham direito a um lugar onde sejam acolhidos, ouvidos, respeitados em sua dor e forma de enfrentamento singular” (FUKUMITSU, 2013, p. 223). Botega (2015) aponta que

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programas de posvenção são raros, e que dos 52 países-membros da Associação Internacional de Prevenção do Suicídio, apenas 14 têm serviços designados a pessoas enlutadas pelo suicídio, sendo que esses encontram-se disponíveis principalmente nos Estados Unidos, no Canadá e em alguns países da Europa. Nesse sentido, Fukumitsu (2019) ressalta que em comparação ao número de enlutados por suicídio e ao número de pessoas tentantes desse ato, os serviços de cuidado são poucos, e reitera que o zelo e respeito ao sofrimento do enlutado devem ser preocupações primordiais, que devem ser estendidas às pessoas que tentam suicídio para que possam ser acolhidas por profissionais preparados, com respeito, cuidado e empatia. Como o documentário Elena deixa claro, todos sofrem com essa vivência e, nesse processo, os familiares se veem diante da mesma angústia e possibilidade de risco de suicídio que seu ente perdido.

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CAPÍTULO 10 Aspectos de liderança no reinado de Henrique V Rosa Adeyse Silva41 Arrilton Carlos de Brito Filho42 Elisabete Stradiotto Siqueira43 Resumo: O estudo proposto tem como objetivo identificar as relações de liderança presentes no filme Henrique V (1989), bem como busca descrever como o protagonista fílmico exerce o papel de líder em meio aos conflitos internos decorrentes da Batalha de Agincourt (1415). Ademais, o trabalho busca responder à seguinte problemática: como fatores vinculados a interesses de grupos, na disputa de poder, podem influenciar na autonomia de um líder? Em seus aspectos metodológicos, a pesquisa assume um caráter qualitativo, apresentando uma revisão bibliográfica sobre a liderança e apoiando-se na literatura basilar weberiana que define o conceito de liderança, sendo assim compatível com um ensaio teórico. Desse modo, entende-se que o reinado de Henrique V pode ser lido desde os pressupostos da teoria weberiana, pautada na tríade da liderança autocrata, liberal e democrática, como também nos traços pessoais, comportamentais e situacionais de liderança. Palavras-chave: Batalha de Agincourt; Cinema; Max Weber.

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Bacharel em Administração pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido UFERSA. Mestre em Ciências Sociais e Humanas pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - PPGCISH/UERN. Professora da Faculdade do Complexo Educacional Santo André - FACESA. E-mail: rosaadeyse@gmail.com 42 Bacharel em Administração e Mestre em Ambiente, Tecnologia e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido - UFERSA. Professor da Faculdade do Complexo Educacional Santo André FACESA. E-mail: arrilton.carlos@hotmail.com 43 Bacharel em Administração pela Universidade Metodista de Piracicaba UNIMEP. Mestre em Administração e Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Professora adjunto da Universidade Federal Rural do Semi-Árido - UFERSA. E-mail: betebop@ufersa.edu.br

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Introdução No panorama histórico mundial, as grandes batalhas medievais trazem consigo uma combinação de caos, oriundo dos confrontos iminentes e, ao mesmo tempo, esboçam as táticas e estratégias complexas que permeiam o ambiente de guerra. A exemplo disso, o filme Henrique V retrata a batalha de Agincourt (1415), que fez parte da Guerra dos Cem Anos (1337-1453), e que tinha seu exército liderado pelo rei inglês Henrique V. O longa épico foi produzido e protagonizado por Kenneth Branagha em 1989, e apresenta detalhes peculiares da noite em que antecedeu a batalha entre franceses e ingleses, e destaca os aspectos de liderança do rei. No filme, são identificadas características de liderança que podem ser visualizadas através dos seguintes pontos retratados: (i) rigor, regras e conflitos internos – os soldados ingleses se portavam na batalha como um grupo e não como um simples agrupamento de sujeitos, se policiavam, se autocobravam e se autopuniam; (ii) dicotomia de interesses entre líder e os liderados – o exército francês era bem maior, entre 20 e 30 mil soldados; o medo travava os soldados ingleses, que passaram a desacreditar e questionar as ações do rei; e (iii) liderança vista como responsável pela batalha final – a equipe enxergava o líder como um “irmão”, se sentia motivada e foi capaz de vencer o medo e aproveitar suas potencialidades, sendo posteriormente vitoriosos na batalha. Desse modo, o presente ensaio teórico faz a análise do filme proposto buscando responder o seguinte questionamento: como fatores vinculados a interesses de grupos podem influenciar na autonomia de um líder? Para tanto, o objetivo aqui é identificar as relações de liderança presentes no filme Henrique V (1989), bem como descrever como o protagonista fílmico exerce o papel de líder em meio aos conflitos internos decorrentes da Batalha de Agincourt (1415). Discussão cinematográfica Após a morte do rei Henrique IV, seu filho, Henrique V, assume o trono da Inglaterra. Com a missão de pacificar os conflitos internos da monarquia inglesa, o novo rei decide engajar esforços na política externa, enfatizando a sua pretensão de conquistar a

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coroa da França. No entanto, o exército inglês, comandado pelo próprio Henrique V, contava com um contingente muito inferior ao exército francês, algo em torno de cinco soldados franceses para cada soldado inglês. Ao ver seus soldados desolados e prevendo o pior, Henrique V percebeu que não dispunha de muitas ferramentas que pudessem motivar seus homens a batalhar contra o exército francês, então, começou a proferir um discurso fervoroso e convincente que dizia: “Aquele que sobrevier a esse dia e chegar à velhice, a cada ano, na véspera desta festa, convidará os amigos e lhes dirá: amanhã é São Crispim. E então, arregaçando as mangas, ao mostrar-lhes as cicatrizes, dirá: recebi estas feridas no dia de São Crispim”. O discurso do rei trouxe uma técnica de linguagem tão convicta e coesa que os soldados vislumbravam chances concretas de vencer a batalha que se aproximava. O diálogo posto os convencia de que eles já eram vitoriosos, como se a vitória que seria obtida no futuro já estivesse acontecido no presente. Assim, os soldados foram induzidos a projetar um cenário real do futuro onde se sagram campeões. No filme, Henrique V procurou encorajar os seus soldados com palavras esperançosas e com discursos utópicos, que ele acreditava ser fonte impulsionadora para que os soldados abraçassem aquela batalha, na certeza de que seriam vencedores. Todavia, dada a situação em que se encontrava o seu exército, em total desvantagem, o medo e a incerteza tornaram cada vez mais distintos os objetivos entre o líder e seu exército. Nesse ínterim, Henrique V ainda foi surpreendido com a traição de três de seus homens (Ricardo, Conde de Cambridge; Sir Thomas Grey, Cavaleiro de Northumberland; e Henrique, Lorde Scroop de Masham), que passaram a oferecer informações privilegiadas dos passos seguintes do rei. O acordo firmado entre os traidores e os franceses tramava a morte de Henrique V antes que ele pudesse embarcar para a França, mas ainda às vésperas de sua partida o rei descobre os três traidores e os condena à morte. Mesmo estando os saldados franceses em quantidade muito superior, em 25 de outubro de 1415 chovia torrencialmente na região francesa de Pais-de-Calais, o campo de batalha tornou-se um grande lamaçal e boa parte dos soldados franceses ficaram submersos pela lama. Ademais, a destreza de Henrique V como líder

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e a experiência das tropas, que eram compostas por arqueiros que conseguiam efetuar sucessivos disparos com centenas de flechas, consolidou a vitória inglesa. Ao término da batalha, contabilizou-se a morte de milhares de franceses e, dentre eles, príncipes da coroa francesa. A liderança weberiana e Henrique V Na ambiência que concerne à sociologia organizacional, Max Weber é considerado pioneiro na definição de liderança a partir do estabelecimento de três tipologias diferenciadas de comportamento para o líder: a liderança autoritária, em que o líder possui o foco central, sendo ele quem determina todas as diretrizes; a liberal, quando o foco deixa de ser o líder e passa a ser os subordinados; e a democrática, que seria um “meio-termo” entre as duas anteriores, pois a ênfase passa a estar presente tanto nos líderes como nos seguidores (WEBER, 2004). Partindo da liderança autoritária, se compreende que, na relação circunstancial em que se encontrava o exército do rei Henrique V, a hierarquia e o comando eram providenciais, os soldados precisavam de uma voz que os conduzisse rumo à batalha. O seu líder pôde ser essa voz tanto no momento de motivá-los quanto nos instantes de exortação, haja vista o momento em que Henrique se deu conta que estava sendo traído por três de seus homens e, prontamente, decidiu que eles seriam condenados à morte. Ou mesmo, quando durante a batalha, já em território francês, enquanto atravessava o rio Somme, descobriu que um de seus homens havia roubado uma igreja francesa e ordenou que o soldado fosse morto por enforcamento. Dado esse episódio, o rei se pronunciou ao exército e determinou que, durante sua marcha pela França, nada poderia ser extorquido dos povoados e que nenhum francês seria menosprezado ou injuriado, pois o seu intuito era somente conquistar a coroa. E nessa junção de rigidez e justiça, Henrique vai se aproximando da teoria weberiana que define o líder autoritário ou autocrata, e centraliza suas decisões demonstrando quase sempre um teor de severidade em suas ações, exercendo seu poder e dominação sobre os liderados sem quaisquer interferências. No entanto, o próprio Weber (1999, p. 187) ressalta que “nem toda

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ação social apresenta uma estrutura que implica dominação”, mas que, em geral, a maioria das formas, sobretudo na relação entre líderes autocratas e liderados, a dominação predomina. Contudo, ainda que Henrique fosse um genuíno líder autoritário, ante às suas decisões, tudo aparentava ser muito bem calculado e justo, uma vez que ele, o próprio líder, também se submetia às suas próprias regras, afim de ser exemplo para os seguidores. Por esse motivo, não chegou a ser um líder totalmente liberal, mas comungava de um formato distinto no tratamento com os subordinados, tal como nas cenas em que lhes sinalizava o caminho para construir a sua identidade como grupo, e aproximouse muito de tratá-los de igual para igual quando os chamou de “irmãos”, incluindo-se entre eles e lhes dizendo: “Nosso exército, nosso feliz pequeno exército, nosso bando de irmãos, aquele que hoje verter o seu sangue comigo será meu irmão, por mais vil que seja…”. De certo que a liderança liberal descrita por Weber (2004) não era assim tão utópica, chamá-los de “irmãos” pode ter chegado a soar como puro interesse, pois Henrique era incondicionalmente o rei daquela monarquia, não tinha parentesco algum com aqueles homens e jamais conferiu poder a eles, mas ele necessitava de uma convivência amigável e coesa entre os seus, e, nesse sentido, exercia muito a sua capacidade de escuta e, por isso, buscava sempre estar inserido no meio de seus homens, ainda que disfarçado, no desígnio de ouvir a opinião de cada um deles a seu respeito, e verificar o quão temido e respeitado ele era. Outrossim, Henrique não foi um líder muito democrático a ponto de compartilhar o seu poderio e liderança com os seus servos, isto é, não era somente uma questão de ser o temido líder autocrata, mas as questões hierárquicas eram predominantes na monarquia. Entende-se, pois, que a questão do poder hierárquico também é comum à liderança, considerando que o líder tem, além das habilidades, o poder de coação sobre seus liderados. Siqueira et al. (2004, p. 03) relatam que “esta visão traz para o ser líder uma dimensão mística e cria um atrativo com relação à ideia de liderar”. Ou seja, a relação hierárquica projeta no liderado uma visão de um líder inato, predestinado a exercer o papel de líder. Para Weber (2004), o construto do regime democrático se relaciona com a hierarquia e com o exercício de poder. Dessa forma,

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o líder democrático continua sendo o sujeito que determina as ordens. No entanto, esse poder é exercido de forma mais branda, cercado de uma legitimidade carismática, mas não se exime dos conflitos que circundam a formação hierárquica. E no reinado de Henrique V a arte imitou a teoria, pois sua liderança estabeleceu vínculos com os liderados na intenção de garantir que aqueles homens estivessem predispostos a serem vencedores da Batalha de Agincourt. Para tanto, as palavras de incentivo eram sempre fundamentais, sendo, na verdade, a maior arma de combate aos franceses, pois foram aqueles argumentos utilizados pelo rei que conduziram os soldados à batalha, ainda que em desvantagem no quantitativo de homens, e alicerçados por um líder que em um determinado momento era o “irmão” e em outro era o carrasco. Ainda assim, o exército francês usou todo o seu potencial e encontrou sua identidade em meio à guerra. Abordagens teóricas de liderança e Henrique V Em seu estudo sobre liderança, Bergamini (1994, p. 103) destaca que a liderança possui variadas interpretações e uma multiplicidade de aspectos que podem definir um líder: “alguns teóricos preocuparam-se em especial com aquilo que o líder é, procurando retratar traços ou características de personalidade que sejam os responsáveis por sua eficácia”. Nesse sentindo, a autora define que a “teoria dos traços” enfatiza as características pessoais do líder, sendo evidenciadas no exercício da liderança. A abordagem do traço pessoal estabelece que a liderança é desenvolvida por meio de características congênitas, isto é, a liderança não poderia ser aprendida, o indivíduo já deve nascer com traços de líder. Com isso, traços pessoais dicotômicos foram sendo estudados, e a partir dos estudos surgiram três grupos principais: os traços físicos, como altura, peso, idade, aparência; habilidades características, como inteligência, influência verbal e conhecimento; e por último, autoconfiança, que inclui aspectos como introversão, extroversão, sensibilidade interpessoal e controle emocional (BRYMAN, 2004). Ainda, conforme afirma Vergara (2000, p. 76), “quem nasce com esses traços seria líder. Sempre. Quem não nascesse,

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certamente, seria liderado. Infere-se, dessa teoria, que líder nasce feito, ou seja, liderança é nata”. Posto isso, se a teoria dos traços é de fato parâmetro de veracidade para o ato de liderar, pode-se dizer que Henrique V tinha todos os pré-requisitos para liderar o exercício inglês. O sucessor de Henrique IV certamente teria nascido líder, seria como se estivesse em seu DNA a missão de conquistar a coroa francesa, haja vista o seu tipo físico, suas habilidades de comando, bem como a influência verbal. Outra abordagem seria a comportamental, que parte da ideia de que a liderança é algo cognitivo, e que pode ser executada mediante aprendizagem e aprimoramento de técnicas pessoais (STEFANO E GOMES FILHO, 2004). Essa abordagem se opõe por completo à teoria anterior, que é baseada em uma liderança herdada e não desenvolvida ao longo do tempo. De fato, Henrique não tivera muito esforço para assumir a posição de líder, pois ao herdar a coroa de seu pai já se consagrou como tal, mas talvez a estratégia de se infiltrar entre seus homens para avaliar o seu prestígio como líder fosse um processo de aprendizagem, uma forma de se inteirar das expectativas de seus liderados, e estudar a melhor forma de agradá-los. Montana e Charnov (1998) ressaltam que mesmo a abordagem comportamental apresentando uma percepção concisa sobre as origens e a eficácia da liderança, ela expõe um ponto fraco, que seria o fato de buscar pelo melhor estilo de liderança, uma espécie de modelo ideal para o desempenho da função do líder. Nesse contexto, entende-se que não há um modelo ideal que sirva de exemplo para a liderança, pois ela é também contingencial, podendo tomar outros rumos de acordo com a situação a ser enfrentada. Dessa forma, apresenta-se, por fim, a abordagem situacional, descrita como uma das mais complexas teorias que visam definir a liderança, isso porque ela leva em consideração a situação em si, e se orienta na necessidade, habilidades e nos estilos de liderança presentes. Segundo Montana e Charnov (1998) um líder só é capaz de agir de forma eficaz a partir do momento que ele entende a dinâmica da conjuntura situacional e consegue adaptarse a ela. Bowditch e Buono (2002) afirmam que não existe um estilo ideal de liderança, mas que o modelo situacional se mostra mais

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coerente, já que ele prevê que o líder deve tentar se adaptar a todas as situações. De fato, pode parecer uma abordagem difícil de ser colocada em prática, mas em concordância com os dois autores citados acima, se afigura óbvia a ideia de que o líder deve saber lidar com todas as situações recorrentes à liderança, ainda que para isso ele precise ser um pouco mais liberal ou democrático, a fim de entender melhor os anseios de seus seguidores. Em um dos momentos mais marcantes da produção de Kenneth Branagha, quando Henrique discursa para seus soldados na intenção de motivá-los, ele admite que poderia morrer junto a eles, isto é, em momento algum promete que o exército inglês sairá vitorioso, porém, garante que cada um daqueles homens será honrado pelo heroísmo histórico. Henrique estava ciente de toda a situação de desvantagem de seu exército, mas também sabia das potencialidades de cada um, por isso, mesmo frente ao medo, à traição e toda a incerteza do ambiente de guerra, ele buscou focar no psicológico de seus soldados, assegurando-lhes que a vitória não era impossível, mas que dependia de fatores externos à batalha, de situações incontroláveis, e que os soldados deveriam estar prontos para tais situações. E por fim, disse-lhes: “Tudo está pronto, se assim estiverem nossas cabeças”. Para Stefano e Gomes Filho (2004) a liderança deve sim ser exercida conforme a situação, mas os requisitos para entender a situação seriam as expectativas, interesses e anseios dos liderados. Assim, posta a contingencialidade da abordagem situacional, compreende-se que a figura do líder e seus estilos de liderança são importantes, mas que o liderado também deve ganhar ênfase nesse processo, mesmo que obedecendo à estrutura hierárquica e à condição de poder do líder. A figura do liderado independe do estilo de liderança e deve ser evidenciada nos contextos decisórios, uma vez que não existe líder sem seguidores. Considerações finais O ensaio teórico proposto teve como objetivo identificar as relações de liderança presentes no filme Henrique V. À vista disso, entende-se que o reinado de Henrique pode ser interpretado com base na teoria weberiana, na tríade da liderança autocrata, liberal e

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democrática, como também na análise dos traços pessoais, comportamentais e situacionais de liderança. Ademais, considerouse que o protagonista fílmico exerceu o papel de líder de uma forma justa, foi um líder severo em momentos críticos inerentes aos conflitos internos, e ao mesmo tempo se colocou ao lado de seus liderados como um amigo, que iria até o fim da batalha para morrer ou para vencer. Este trabalho respondeu ainda à problemática de pesquisa estabelecida ao entender que a autonomia do líder era muito consolidada entre seus liderados, e que mesmo frente às incertezas da Batalha de Agincourt, Henrique foi sempre muito convincente. De fato, não conseguiu agradar a todos, pois houve aqueles que o traíram, mas a grande maioria de seus seguidores foi conquistada e influenciada pela ‘verdade’ transmitida em seus discursos. E, talvez, se existisse um tipo ideal de liderança, se porventura Henrique fosse um influenciador nato, o ‘gene’ da liderança já corresse em suas veias, seus antepassados o inspirassem, a teoria dos traços pessoais se encaixaria perfeitamente no modelo de liderança do Rei. Contudo, talvez Henrique só quisesse mesmo ganhar a coroa francesa e usou de seu poder de líder para tal. Referências BERGAMINI, C. W. Liderança: a administração do sentido. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 34, n. 3, p. 102-114, 1994. BOWDITCH, J. L.; BUONO, A. F. Elementos do comportamento organizacional. São Paulo: Pioneira Thomson, 2002. BRYMAN, A. Liderança nas Organizações. In: CLEGG, S. HARD, C. NORD, W. Handbook de Estudos Organizacionais. São Paulo: Atlas, 2004. HENRIQUE V. Direção de Kenneth Branagh. Reino Unido: Bruce Sharman, David Parfitt, 1989 (137min.). MONTANA, J. P.; CHARNOV, H. B. Administração. São Paulo: Saraiva, 1998.

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SIQUEIRA, E. S.; SPERS, V. R. E.; SPERS, E. E.; MACHADO, C. A. P. Liderança e gestão com pessoas: desafios do contexto contemporâneo. XXIV ENEGEP, Florianópolis/SC, 2004. STEFANO, S. R.; GOMES F.; A. C.; Estilos de Liderança: um estudo comparativo entre empresas de transportes. Revista Capital Científico, Guarapuava/PR, v. 2, n. 1, p. 127-145, 2004. VERGARA, S. C. Gestão de Pessoas. São Paulo: Atlas, 2000. WEBER, M. Metodologia das ciências sociais. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1999. WEBER, M. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Volumes 1 e 2. DF: Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial, 2004.

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CAPÍTULO 11 O paraíso de Nosso Lar: uma representação espírita na obra cinematográfica de Wagner de Assis Fernanda Grasiane Bezerra Costa44

Resumo: “Nosso Lar” é uma obra cinematográfica adaptada do romance psicografado por Chico Xavier em 1944, transformada em filme no ano de 2010, sob a direção de Walter Assis. Na adaptação, acompanhamos a jornada do médico André Luiz, que, ao morrer, tem seu espírito direcionado à cidade espiritual de Nosso Lar. Neste artigo, abordaremos as representações espíritas dentro da cidade espiritual. Aspectos sobre materialismo, espiritualismo, reencarnações e conceitos bases da religião espírita permeiam nossas discussões. A elevação espiritual rodeia esses conceitos, pois é pré-requisito para entendê-los, segundo a Doutrina Espírita. Além disso, observaremos como Nosso Lar foi projetada para ser uma cidade ideal à luz dessa perspectiva. Palavras-Chave: Representação; Espiritismo; cidade ideal.

Introdução Nosso Lar (2010) é uma obra cinematográfica adaptada do romance psicografado por Chico Xavier, em 1944. Para Sandra Jaqueline Stoll (2003), a obra de Chico Xavier e seu guia, André Luiz, é considerada a mais vendida entre as psicografias do médium, perfazendo um fenômeno editorial raro e de envergadura no mercado. Até o ano de 1992, o livro já possuía 40 edições. Além disso, outros livros da mesma coleção também receberam

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Formada em História pela Uern, mestre em Ciências Sociais e Humanas. Professora da rede pública e privada. E-mail: fernandagrasib@gmail.com

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adaptações cinematográficas45, evidenciando o quanto a literatura espírita pôde influenciar na produção de filmes espíritas nacionais, apresentando, de forma didática, a doutrina espírita para o amplo público leigo nacional consumidor de narrativas fílmicas cinematográficas e televisivas. A história de Nosso Lar baseia-se nas concepções de alémtúmulo, ou seja, na vida após a morte terrena. André Luiz, personagem principal, tem sua história narrada a partir de sua morte corpórea, o que não implica na extinção da sua vida individual. Em um minuto ele estava numa sala de cirurgia devido a complicações intestinais; no momento seguinte, porém, encontrava-se no umbral46, lugar de sofrimento no plano espiritual. No umbral, com efeito, André Luiz foi acusado de ser um “suicida” por sua condição de vida carnal que em nada alimentava a sua elevação espiritual. Neste lugar, ele permanece por oito anos. Entretanto, o desespero e falta de forças levou o médico André Luiz a fazer a única coisa que lhe restava sob aquela condição: suplicar por ajuda. Assim, ele finalmente é resgatado por Clarêncio, um espírito de luz, e levado para a Cidade de Nosso Lar. O filme retrata, portanto, a “representação do drama de consciência” (COSTA, 2014), quando André Luiz se depara com toda uma sistemática simbólica após a morte que o provoca a se repensar diante do que fez durante a sua vida terrena. Ele se encontra em uma cidade até então desconhecida, com novas filosofias de vida, diferentes de sua religião professada – o catolicismo –, o que transforma Nosso Lar em um mundo novo a ser explorado pela sua curiosidade e também pela sua necessidade de superação de posturas morais e emocionais que o fizeram, ante de chegar à cidade Nosso Lar, purgar durante oito longos e solitários anos no Umbral. Para Artur Felício Costa (2014, p. 80), a narrativa do filme utiliza “procedimentos melodramáticos para operacionalizar, por meio deste drama, uma oposição valorativa fundamental ao espiritismo: a tensão cultural entre o materialismo e o espiritismo”.

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São eles: E a vida continua... (1968), com o filme lançado em 2012; Joelma 23° andar (1979), adaptação considerada o primeiro filme espírita brasileiro derivado de uma obra de Chico Xavier; Somos seis (1976). (STOLL, 2003, p. 89). 46 Os habitantes do umbral se encontram em um plano espiritual inferior, um local de sofrimento, de onde só podem sair após redenção espiritual.

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Esta tensão fundamental entre materialismo e espiritismo é fortemente declinada na narrativa fílmica porque, durante a sua jornada de evolução espiritual individual, André Luiz traz consigo uma supervalorização do espiritual em detrimento do material. Isto pode ser observado nos processos de conversão e de arrependimento do personagem, quando o mesmo apela por ajuda no Umbral, adquirindo, assim, valores espirituais, por um lado, e, por outro lado, negando os valores materiais. Além disso, esta representação cinematográfica tem suas bases em um imaginário espírita, uma vez que deriva de uma obra assumidamente espírita, num contexto de vida após a morte terrena e que aponta para a evolução espiritual. Assim, neste embate entre materialismo e espiritualidade, podemos associar o Espiritismo como sinônimo do termo espiritualidade, isto é, associado às práticas e representações de evolução espiritual individual, de desligamento da vida material como finalidade de uma existência que, nas definições doutrinárias, compreende situações terrenas, de Umbral e de experiências em cidades espirituais, como, por exemplo, a cidade Nosso Lar. Este artigo, por sua vez, pretende analisar as representações espíritas contidas no filme de Wagner de Assis, homônimo da obra do maior médium do Brasil (CUNHA, 2010). A noção de representação, aqui trabalhada, compreende tanto a comunicação das simbolizações da doutrina espírita pelos que a exercitam, como também o imaginário daqueles que a desconhecem sobre como esta mesma doutrina se expressaria social e culturalmente. Dessa forma, analisaremos como as principais questões da doutrina espírita são abordadas durante o filme, através dos diálogos, dos personagens e do desenrolar da trama. A queda moral e ascensão espiritual: os males do materialismo O início do filme Nosso Lar mostra como se deu a morte de André Luiz. Ele era médico e, durante um jantar, complicações intestinais o levam a um colapso. Ele morre na mesa de cirurgia e seu espírito vê seu corpo sem vida, ainda sem entender o que acaba de acontecer. Como católico, ele nutre a esperança de ser levado ao Céu, por sua vida casta e exemplar, porém se depara com um lugar muito diferente disso. O Umbral consiste em uma atmosfera poluída, escura e fétida, habitada por seres das trevas que

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perturbam as almas que ali se encontram. Uma dessas almas era a de André Luiz. Na narrativa que se segue, o personagem é comumente acusado de suicida. Numa tentativa desesperada de sair daquele lugar, André Luiz apela por ajuda. A súplica que veio “do fundo da alma”47 foi ouvida. Clarêncio, Lísias e Tobias chegam ao Umbral e o resgatam, levando-o para a colônia de Nosso Lar, onde é tratado numa espécie de hospital espiritual. A jornada de André Luiz desde o Umbral até Nosso Lar representa o embate entre materialismo versus espiritualismo. Para o materialismo tudo é considerado matéria, até mesmo o pensamento (CHAGAS, 2004). Desta forma, o lado espiritual do ser humano não existiria, segundo esta teoria. As correntes de pensamento, emoções e tudo ligado à “alma” seriam secreções do cérebro. Desta ótica, questões espirituais são descartadas, pois são inexistentes. As acusações de suicídio direcionadas a André Luiz no Umbral são por conta de uma vida não regrada, com práticas prejudiciais ao seu próprio corpo, como bebidas alcóolicas, excessos alimentares, descontrole emocional, além de fatores sociais, como negar auxílio aos necessitados. É o conhecido suicídio inconsciente: práticas prejudiciais ao seu próprio corpo. Deste ponto de vista, diferentemente do que prega o materialismo, o plano espiritual de cada pessoa estaria diretamente ligado ao material, já que o corpo definha à medida em que não se cuida dele. No plano espiritual, o suicídio inconsciente caracteriza um espírito fraco, sem nenhuma condição de ascensão para sair do Umbral e habitar em Nosso Lar. Porém, o arrependimento é o passo número um para uma elevação e, a partir daí, o aprimoramento do espírito. Assim, o fato de André Luiz ter clamado por ajuda foi seu primeiro degrau no processo de ascensão espiritual. Para Costa (2014, p. 81): Nosso Lar representa uma estória exemplar de superação da “queda moral”, agenciada por uma conduta de vida associada ao materialismo, revertida a partir do contato com os valores espirituais. Este percurso de superação, portanto, pode ser 47

Fala de André Luiz no filme.

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considerado como a passagem de um polo valorativo ao outro (materialismo – espiritualidade).

Dessa forma, entendemos que a permanência no Umbral é condicionada a valores materiais adquiridos durante a vida do ser humano. A passagem para Nosso Lar, por sua vez, caracteriza o abandono dessa vida material para uma espiritual. Nisto, a obra cinematográfica é didática. Os diálogos e as cenas são formados a apresentar os pilares do Espiritismo. Uma frase dita por Lísias exemplifica categoricamente esta questão: “o ceticismo termina quando se acorda no mundo espiritual!”. Observamos nesta frase o abismo existente entre o crer e o não crer. O materialismo é caracterizado pelo ceticismo e o Espiritismo pela espiritualidade. A frase foi dita em um contexto de autoanálise, quando um personagem recém-chegado do Umbral relata suas experiências de sofrimento. Na sua vida na Terra era cético e questionava a existência de Deus. A intensidade de seu discurso apenas reitera a ideia de o ceticismo ser a causa de seu sofrimento. O próprio Allan Kardec (2011, p. 584) afirma que “o Espiritismo é o mais terrível antagonista do materialismo. Não é, pois, de admirar que tenha por adversários os materialistas”, ou seja, a crença nos espíritos depende da superação das concepções materialistas, um não podendo coexistir com o outro. Eles são mutuamente excludentes. O paraíso de Nosso Lar: uma cidade ideal A estrutura arquitetônica de Nosso Lar é construída como um modelo de cidade ideal. As grandes cidades contemporâneas e seus grandes condomínios fechados, transparecendo maior nível de segurança. Seu interior é um verdadeiro paraíso, e para fora de seus grandes e imponentes muros temos uma realidade de violência e degradação da vida urbana. Um claro contraste de seu mundo real. Segundo Fábio Luiz da Silva (2007, p. 145), A cidade representa o arte-fato (feito com arte), que se opõe ao mundo natural, perigoso, incontrolado. Isto porque o seu interior é fruto da técnica que imprime no espaço natural as marcas dos seres humanos.

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A cidade espiritual de Nosso Lar possui características e funções de uma verdadeira cidade. Lewis Munford (1998), buscando as origens das cidades, descobriu que estas são oriundas de pequenas aldeias, santuários ou povoações. Trazendo o significado do sagrado para Nosso Lar, entendemos que elas – as cidades – têm plena conotação religiosa. É comum, neste caso, associarmos as cidades espirituais ao perfil de paraíso. Observemos uma vista de Nosso Lar, demonstrada no filme:

Imagem1: Cidade Nosso Lar. Imagem retirada do www.youtube.com.

Nosso Lar é representada, portanto, como uma espécie de Éden e é tão caracterizada como tal que, quando o filme apresenta uma vista panorâmica da cidade, como a da figura acima, além de uma imagem clara, com reflexos de luz, sons de pássaros cantando ecoam aos ouvidos. Todas as atividades praticadas em Nosso Lar são voltadas para a relação com Deus: preces diárias, resgate daqueles que estão presos no Umbral e a existência de um Ministério da União Divina (SILVA, 2007, 146). A muralha que protege Nosso Lar de espíritos inferiores, a sociedade dividida e hierarquizada, a mão forte do governador em administrar a cidade, a torna um modelo ideal de planejamento urbano.

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Tudo é ordem, previdência, limpeza e sossego. Transporte coletivo eficiente e mesmo o tráfego de pessoas é tranquilo. Não há sujeira, nem epidemias, e não há miséria. Os hospitais recebem os recémchegados da terra ou do umbral e somente depois são alocados em algum lugar na cidade. É o sonho da higienização urbana, modernista, do século passado. (SILVA, 2007, p. 146).

Assim, a cidade espiritual de Nosso Lar é uma utopia, lugar ideal para se viver na Terra e, para além disso, um objetivo almejado pelo ser humano após sua morte. A jornada de aperfeiçoamento: a reencarnação como elevação espiritual A reencarnação é uma das bases da doutrina espírita, que define que após a morte o espírito retornaria em um corpo diferente à vida terrena. Este novo corpo poderia ter um sexo distinto daquele do corpo presenta na vida anterior, não havendo distinção estre masculino ou feminino. Neste caso, o espírito de um homem pode reencarnar no corpo de uma mulher, e vice-versa. É um processo cíclico, responsável por outro ponto chave da doutrina espírita: a “evolução dos espíritos”. Maria Laura Viveiros de Castro (2008) apresenta em Mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa no Espiritismo, uma análise da religião espírita como um sistema religioso que, como tal, abarca um repertório de símbolos, crenças e práticas específicas. A vida é entendida por Viveiros de Castro, desde sua leitura da doutrina espírita, como “um encadeamento de passagens entre os dois mundos, de encarnações, desencarnações e reencarnações” (CASTRO, 2008, p. 28). O processo cíclico que o espírito realiza entre o mundo invisível e o visível é resultado, portanto, de um “aperfeiçoamento” gradual. Dessa forma, o mesmo espírito pode encarnar por diversas vezes, até atingir o ponto de “Espírito Superior”. Ao encarnarem, estão se revestindo de um corpo para a vida terrena, de modo meramente temporário. Os espíritos, então, de acordo com a doutrina espírita, teriam uma natureza dupla, ou seja, corpo e alma. O corpo (matéria) seria o instrumento de vida, um “hospedeiro” para a alma. Assim, todo o ser humano pode comunicar-se com

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outros espíritos, pois seu corpo está diretamente em relação com espíritos desencarnados (CASTRO, 2008, p. 28). A jornada de André Luiz em Nosso Lar faz parte desse “aperfeiçoamento”. Ele não apenas conhece as dependências da cidade, mas passa por experiências que o fazem evoluir. Isto acontece por meio de atitudes que ajudam a formular seu caráter. Como, por exemplo, sua experiência com Genésio, ministro do Auxílio. Na ocasião, ele entra no Ministério numa tentativa de rever sua família. Porém, não respeita a ordem e acaba interrompendo a conversa de outras pessoas. Genésio, por sua vez, comunica-o que só irá atendê-lo após todos os outros que já o esperavam. Nesta cena, entra em questão a paciência e a empatia. André Luiz aprende a esperar a hora certa e a respeitar seus “irmãos”. A reencarnação está, portanto, ligada à evolução do espírito, já que o objetivo final é alcançar o status de “Espirito Superior”. André Luiz era visto como paciente a todo momento. Por ser médico na Terra, queria ajudar a todas as pessoas que chegavam do Umbral, porém era impedido de exercer essa função elevada devido ao seu estado espiritual ainda fragilizado. Quando uma grande quantidade de pessoas chega a Nosso Lar do Umbral, ele se mostra prestativo e conhecedor da filosofia espírita, evoluindo como membro das Câmaras de Retificação, um bônus gerado por seu bom trabalho. Quando finalmente lhe é concedida a oportunidade de rever sua família, André Luiz depara-se com uma cena que lhe põe de encontro aos seus novos ideais. Sua esposa havia se casado novamente e estava apaixonada por outro homem. Isto deixa o personagem em fúria, levando-o a, por um momento, retornar ao caos do Umbral. Mas, ele retorna à “luz”, entendendo que sua família seguiu seu caminho após sua morte. Na sua reflexão, ele afirma que a morte é um “sopro renovador”, enquanto Emmanuel, um dos maiores ministros, se admira com a intensidade do “despertar” de André Luiz. Ele é elevado ao grupo dos Samaritanos, outra ordem de superioridade espiritual. As considerações de Viveiros de Castro sobre o condicionamento das reencarnações são baseadas no arrependimento e na livre escolha, já que estas contribuem para uma espécie de “correção” das vidas passadas. Por mais que André Luiz não chegue a reencarnar, o filme mostra almas de elevado nível espiritual que alcançaram o patamar da reencarnação.

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Conclusão Este artigo pretendeu analisar as representações espíritas contidas na adaptação cinematográfica “Nosso Lar” (2010). Para tal, se fez necessário entender alguns conceitos bases da Doutrina Espírita, tais como os conceitos de materialismo, de espiritualismo e de reencarnação. Analisamos, assim, não somente as cenas do filme, mas também os diálogos do personagem central, tentando, nesse sentido, compreender quando os aspectos conceituais abordados se faziam presentes em suas falas. Além disso, procuramos mostrar como a cidade espiritual é uma representação de cidade ideal, não apenas após a morte, mas também como vem a expressar a aspiração do homem na vida terrena. Entendemos, deste modo, que o filme tem um roteiro didático, com o propósito de difundir os ideais espíritas e como a indústria cinematográfica expõe a Doutrina Espírita. A jornada de André Luiz mostra ao espectador em formato de narrativa fílmica o princípio de elevação espiritual, tão pregado pelo Espiritismo como única forma de viver plenamente no paraíso. Referências CASTRO, Maria Laura Viveiros de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa no espiritismo. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisa Social, 2008. 133 p. CHAGAS, Aécio Pereira. Introdução à ciência espírita. Bragança Paulista: Lachâtre, 2004. COSTA, Artur Felício. A representação do espiritismo nos filmes nosso lar e Chico Xavier 2014. 118 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO, 2014. CUNHA, André Victor Cavalcanti Seal da. A invenção da imagem autoral de Chico Xavier: uma análise histórica sobre como o jovem desconhecido de minas gerais se transformou no médium espírita mais famoso do brasil (1931-1938).2015. 301 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE, 2015.

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KARDEC, A (1857). O livro dos espíritos: princípios da Doutrina Espírita. Trad. Guillon Ribeiro. 92. ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2011. NOSSO Lar. Direção: Wagner de Assis. Produção: Iafa Britz. Roteiro: Wagner de Assis. (2010). 1 DVD (105 min), son., color. MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 11. SILVA, Fabio Luiz da. Céu, inferno e purgatório: representações espíritas do Além. 2007. 172 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual Paulista, Assis, SP, 2007. STOLL, Sandra Jacqueline. Espiritismo à Brasileira. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Curitiba: Editora Orion, 2003.

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SOBRE OS AUTORES Raoni Borges Barbosa Professor Visitante da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN, lotado no Departamento de Ciências Sociais e Políticas – DCSP; Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas PPGCISH UERN. Pesquisador Associado do Grupo de Pesquisa em Informação, Sociedade e Cultura – BITS, da UERN. Pesquisador Associado do Grupo de Estudos Culturais– GRUESC, da UERN. Vice-coordenador do Grupo de Pesquisa em Lazer, Turismo e Trabalho–GEPLAT, da UERN. Editor da Revista Turismo: Estudos e Práticas – RTEP, do Grupo de Pesquisas em Lazer, Turismo e Trabalho–GEPLAT. E-Mail: raoniborgesb@gmail.com

Monijany Lins de Góis Mestre em Engenharia das Energias Renováveis pelo PPGER, na UFPB. Graduada em Economia pela UFCG. Tem interesse em estudos econométricos em pequenas cidades. EMail:monijani.lins@cear.ufpb.br

Stamberg José da Silva Júnior Mestrando do Programa Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanas da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Email: stambergjunior@gmail.com.

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Débora Monique D’Angelo Lopes Bacharela em Direito pela Unifip; Advogada; Especialista em Direito Administrativo e Gestão Pública pela Unifip; Mestranda em Ciências Sociais e Humanas pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte-UERN. E-mail: monique_dangelo@hotmail.com

Luciana Lobão Campos Possui graduação em História (2007) e Direito (2011), pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Especialização em Segurança Pública e Cidadania pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e é mestre pelo Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Possui pesquisa na área de socióloga das emoções, conflitos sociais e violência. E-mail: lulobaoicapui@yahoo.com.br

Maria Cristina Rocha Barreto Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela UFPB (1985), mestre em Ciências Sociais (1996) e doutora (2005) em Sociologia pela Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Sociologia, respectivamente, na Universidade Federal da Paraíba. Atualmente é Professora Adjunto IV na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas da UERN. E-mail: cristinabarreto@uern.br

Jean Henrique Costa Sociólogo e doutor em ciências sociais. Professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). E-mail: prof.jeanhenriquecosta@gmail.com

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Hellen Damália de Sousa Andrade Lima Advogada e professora universitária. Graduada em Direito. Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho e em Direito Previdenciário. Mestranda em Ciências Sociais e Humanas (UERN). E-mail: hellen_sjp@hotmail.com

Francisco Wilton da Silva Júnior Graduado em Turismo (UERN). Guia de Turismo. E-mail: guiawilton.silva@gmail.com

Tássio Ricelly Pinto de Farias Graduado em Filosofia e Mestre em Ciências Sociais e Humanas (UERN). Professor permanente na rede estadual de educação básica (RN). Professor na Faculdade Evolução Oeste Potiguar. E-mail: prof.tassiofarias@gmail.com

Bergson Henrique Nunes Bezerra Bacharel em Geografia pela UFC, mestre em Ciências Sociais e Humanas pela UERN. E-mail: bergsonufc@gmail.com

Antonio Elder Nolasco Graduado em Ciências Sociais e Filosofia pela UERN, mestre em Ciências Sociais e Humanas pela UERN. Professor da Educação Básica no Estado do Rio Grande do Norte. E-mail: eldernolasco68@hotmail.com

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Ana Maria Morais Costa Doutora em Ciências Sociais – UFRN/2014. Professora Permanente do PPGCISH/UERN. Professora aposentada do Departamento de Ciências Sociais/UERN. E-mail: anamorais.uern@gmail.com.

Gessica Raquel Clemente Rodrigues Psicóloga formada pela UFRN. Possui residência em Atenção Básica, Saúde da Família/Comunidade pela UERN. Especialista em Psicologia Clínica Fenomenológico-Existencial pela UFRN. Especialista em Neuropsicologia Clínica também pela UFRN. Mestre em ciências Sociais e Humanas pelo PPGCISH (UERN). E-mail: gessicarcr@gmail.com.

Rosa Adeyse Silva Bacharel em Administração pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido - UFERSA. Mestre em Ciências Sociais e Humanas pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - PPGCISH/UERN. Professora da Faculdade do Complexo Educacional Santo André FACESA. E-mail: rosaadeyse@gmail.com

Arrilton Carlos de Brito Filho Bacharel em Administração e Mestre em Ambiente, Tecnologia e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido - UFERSA. Professor da Faculdade do Complexo Educacional Santo André FACESA. E-mail: arrilton.carlos@hotmail.com

Elisabete Stradiotto Siqueira Bacharel em Administração pela Universidade Metodista de Piracicaba - UNIMEP. Mestre em Administração e Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo -

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PUC/SP. Professora adjunto da Universidade Federal Rural do SemiÁrido - UFERSA. E-mail: betebop@ufersa.edu.br

Fernanda Grasiane Bezerra Costa Formada em História pela UERN, mestre em Ciências Sociais e Humanas. Professora da rede pública e privada. E-mail: fernandagrasib@gmail.com

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ISBN: 978-65-88660-09-6 Arte Gráfica: Francisco Wilton da Silva Júnior

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