A transmissão do HIV/Aids no humanismo jurídico

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Universidade Federal Fluminense REITOR Sidney Luiz de Matos Mello VICE-REITOR Antonio Claudio Lucas da Nóbrega

Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense Gestão 2016-2017

Gestão 2018-2020

CONSELHO EDITORIAL Aníbal Bragança [Diretor] Antônio Amaral Serra Carlos Walter Porto-Gonçalves Charles Freitas Pessanha Guilherme Pereira das Neves João Luiz Vieira Laura Cavalcante Padilha Luiz de Gonzaga Gawryszewski Marlice Nazareth Soares de Azevedo Nanci Gonçalves da Nóbrega Roberto Kant de Lima Túlio Batista Franco

CONSELHO EDITORIAL Renato Franco [Diretor] Ana Paula Mendes de Miranda Celso José da Costa Gladys Viviana Gelado Johannes Kretschmer Leonardo Marques Luciano Dias Losekann Luiz Mors Cabral Marco Antônio Roxo da Silva Marco Moriconi Marco Otávio Bezerra Ronaldo Gismondi Silvia Patuzzi Vágner Camilo Alves

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A transmissão do HIV/Aids no humanismo jurídico Monica Paraguassu Correia da Silva

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Copyright © 2018 Monica Paraguassu Correia da Silva Copyright © 2018 Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da editora.

Título: A transmissão do HIV/Aids no humanismo jurídico Autora: Monica Paraguassu Correia da Silva Série: Coleção Biblioteca, 73 Equipe de realização Editor responsável: Aníbal Bragança Coordenadora de produção: Mariana Simões Supervisão gráfica: Marcio Oliveira Normalização: Fátima Corrêa e Márcia Santos Capa, diagramação e projeto gráfico: Thomás Cavalcanti Imagem de capa: “As mãos”, Lourdes Paraguassu, 1969.

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação - CIP P221 Paraguassu, Monica. Transmissão do HIV/Aids no humanismo jurídico, A / Monica Paraguassu Correia da Silva. – Niterói : Eduff, 2018. - 160 p. ; 23 cm. – (Coleção Biblioteca, 73). Inclui bibliografia. ISBN 978-85-228-1206-6 BISAC LAW046000 LAW / Health 1. Aids (Doença) – Direitos Humanos. 2. Aids (Política Criminal) – Transmissão. 3. Aids (Direito) - Brasil. I. Título. II. Série. CDD 346.8102 Ficha catalográfica elaborada por Fátima Carvalho Corrêa (CRB 3.961)

Direitos desta edição cedidos à Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense Rua Miguel de Frias, 9, anexo/sobreloja - Icaraí - Niterói - RJ CEP 24220-008 - Brasil Tel.: +55 21 2629-5287 www.eduff.uff.br - faleconosco@eduff.uff.br Impresso no Brasil, 2018. Foi feito o depósito legal.

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Dedico a todos os meus ancestrais, ao meu pai Geraldo e à minha mãe Lurdinha (in memoriam de amor e saudade), aos meus filhos Júlio César e José Matheus e aos meus irmãos.

“Ne vous inquietez pas, je serai là pour vous.” Mireille Delmas-Marty

“Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, serei como o bronze que soa, ou como o címbalo que retine. Ainda que eu tenha o dom de profetizar e conheça todos os mistérios e toda a ciência; ainda que eu tenha tamanha fé ao ponto de transportar montes, se não tiver amor, nada serei. [...] O amor é paciente, é benigno, o amor não arde em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, não se conduz inconvenientemente, não procura os seus interesses, não se exaspera, não se ressente do mal; não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade; [...] O amor jamais acaba; mas, havendo profecias, desaparecerão; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, passará [...]” Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios, 13

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Sumário Prefácio  9 1. Primeiras considerações  11

1.1. Motivos de escolha do tema para o estudo dos direitos humanos  11 1.2. O contexto do tema: a sociedade do risco  14 1.3. A resposta do direito sistêmico da constelação familiar contra a perspectiva punitiva   14 PA R T E I – H U M A N I S M O J U R Í D I C O , D I R E I T O S C O N S T I T U C I O N A I S E T R A N S M I S S ÃO D O H I V/A I D S

1. Criminalização, materialidade do social e direitos constitucionais  21

1.1. Infração, marginalidade e materialidade do social  21 1.2. Impulsão-recepção repressivas e educação-informação  38 1.3. Direito constitucional à não discriminação e o medo  46

2. Humanismo jurídico, saúde e HIV  63

2.1. A administração do direito à saúde e o caso da transmissão do HIV  63 2.2. Humanismo jurídico, HIV e meio ambiente sadio  81 PA R T E I I – E S T R AT É G I A S D E P R E V E N Ç ÃO : O D I R E I TO À E D U C AÇ ÃO - I N F O R M AÇ ÃO

1. Respostas dispostas na legislação penal relativas ao problema da transmissão do HIV/Aids  91 1.1. Perigo de contágio de moléstia grave  91 1.2. O casal penal: relação entre autor-vítima  107

2. Outras respostas ao problema da transmissão do HIV/Aids  133 2.1. Respostas dispostas na jurisprudência relativas ao problema da transmissão do HIV/Aids  133 2.2. Para ir mais além: a prevenção pela educação-informação  148

Referências  151

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Prefácio Jean-Claude Kaufmann, sociólogo francês, definiu, de forma lapidar, o relacionamento dos indivíduos na realidade pós-moderna: “vivemos numa sociedade de sedução generalizada”. As variadas formas de seduzir, desde os cuidados estéticos travestidos de tratamento à saúde à transformação da fisionomia pela intervenção cirúrgica, justificam-se pela facilidade do frequente e desinibido cultivo da sexualidade, crucial para a ruptura dos paradigmas vigentes até meados do século XX, quando se transpôs a intimidade desses enlaces para o espaço público. Assim, se a sexualidade era, até o século passado, sinônimo de segredo, na pós-modernidade, passou a ser matéria de publicidade, num amplo e irreversível movimento discursivo e deliberativo. Paradoxalmente, todos esses cuidados corporais imprescindíveis para o êxito na sedução, coroado pelo ato sexual aventureiro, passageiro e episódico, desaparecem da ordem do dia quando o que está em pauta são as doenças sexualmente transmissíveis. Nesse cenário, surge oportunamente a pesquisa da professora doutora Monica Paraguassu. Claramente preocupada com as diversas formas de contágio de doenças venéreas, com o silêncio eloquente no espaço público de debate sobre os métodos de prevenção, com as consequências drásticas dessas patologias e com a necessária promoção de políticas públicas eficientes para educação sexual, a autora reacende esse debate, suscitando, democraticamente, a reflexão da intervenção do Direito Penal quanto à criminalização dessas condutas e à responsabilização penal dos agentes transmissores, trazendo novos coloridos, matizados pela rica pesquisa no Direito Internacional, sobre o disciplinamento dos crimes de periclitação da vida e da saúde. Além da notória preocupação com o mister de o Estado ocupar-se efetivamente da educação social dos indivíduos, os estudos da professora doutora Monica Paraguassu apresentam, como sutil apanágio da densa malha textual, a eticidade da filosofia da alteridade, veiculada pela verdadeira e inequívoca preo-

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cupação da investigadora com o humanismo jurídico, evidenciado pela advertência ao leitor para os perigos que a omissão e o desprezo pelo tema acarretam às vidas das pessoas infectadas, cujo sofrimento exaspera tanto na dificuldade de tratamento crônico quanto na estigmatização e marginalização social. Para tanto, a pesquisadora tece a estrutura de suas conclusões com o fio condutor da denominada “Filosofia da Constelação Familiar”, elaborada pelo psicoterapeuta alemão Bert Hellinger. Por isso, o texto da professora doutora Monica Paraguassu não se dirige apenas a juristas e estudiosos do Direito Penal, por ser também francamente recomendado a eruditos em geral e acadêmicos dos demais campos da ciência social, notadamente da Psicologia, que poderia se interessar pelo exame psicológico dos envolvidos nesse delicado assunto; e da Sociologia, que se debruçaria sobre o intrincado exame que a marginalização das pessoas infectadas poderia causar, especialmente se contrastada essa pesquisa com o brilhante estudo de Richard Sennett, disponível em “Carne e Pedra”. Rio de Janeiro, inverno de 2018. Guilherme Peña de Moraes Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Professor Adjunto da Faculdade de Direito e Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/ RJ). Doutor em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Pós-Doutor em Direito Constitucional pela Fordham School of Law Jesuit University of New York (FU/NY).

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Primeiras considerações 1. 1. Motivos de escolha do tema para o estudo dos direitos humanos Recentemente, num seminário sobre a transmissão do HIV/Aids, uma travesti soropositiva (identificação feminina conforme ela mesma reivindicou) disse algo bastante razoável, preciso e pragmático, nos seguintes termos: “ninguém tem que me aceitar, mas tem que me respeitar”. O direito prega o respeito aos direitos humanos, mas, a aceitação do outro é que são elas... De há muito os direitos humanos são fundamentados, resta a dificuldade de enfrentá-los, fazê-los efetivos, realizados, e aceitar o outro é o maior dos desafios. O objetivo deste livro é fazer uma análise crítica em relação à forma como a sociedade enfrenta a questão da transmissão do HIV/Aids no caso de relações sexuais consensuais, tendo como base teórica o direito sistêmico fundado na filosofia-psicologia da constelação familiar de Bert Hellinger e o humanismo jurídico, que coloca como premissa a proteção de bens jurídicos e a paz social, tendo como modelo de política criminal o do Estado-Sociedade Liberal, de garantias de direitos e liberdades individuais pelo Estado Democrático e de Direito, estabelecido pela Constituição Federal. Considerando o contexto de polêmicas, crenças e preconceitos, é aqui tomado o caso da transmissão do vírus HIV/Aids – human immunodeficiency vírus (vírus da imunodeficiência humana)/acquired immunodeficiency syndrome (síndrome da imunodeficiência adquirida) –, de forma a refletir sobre quais bens jurídicos são protegidos, como é feita tal proteção e como o discurso de universalização dos direitos humanos, em que tais objetivos são pautados, leva em conta os particularismos e as diferenças. A Organização Mundial de Saúde (WHO) explica: O vírus da imunodeficiência humana (VIH/HIV) é um retro-vírus que ataca as células do sistema imunológico e as destrói ou as torna ineficazes. Nos primeiros estágios de infecção, o sujeito não apresenta os sintomas. Entretanto, a evolução da infecção leva a um enfraquecimento

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do sistema imunológico e a uma vulnerabilidade aumentando as infecções oportunistas. A síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA) é o último estágio da infecção do VIH. Pode ser manifestada depois de 10 a 15 anos. Os antirretrovirais permitem tornar sua evolução mais lenta. O vírus se transmite por ocasião de relações sexuais (anais ou vaginais) não protegidas, de uma transfusão de sangue contaminado ou pela troca de seringas contaminadas. Se transmite também da mãe ao filho durante a gravidez, no parto e pelo aleitamento materno.

A universalização dos direitos humanos é hoje uma temática bastante explorada pelos discursos jurídicos, mas pairam dúvidas quanto a sua efetivação para além da teoria. Os direitos humanos têm sido objeto de tratamento em instrumentos jurídicos internacionais, que não podem evitar que no campo jurídico nacional essa temática tenha uma série de dificuldades em razão dos descompassos por conta das realidades históricas, culturais e econômicas. Isso porque, se de um lado existe um discurso de universalidade dos direitos humanos, de outro, é preciso que tal universalização não se torne uma realidade que discrimine os particularismos e as diferenças. É preciso que o discurso universalista não se torne um discurso fascista por estabelecer a ditadura de direitos humanos, mas que, ao contrário, seja capaz de entender-se como necessário e, essencialmente, um discurso que engloba as diferenças inerentes ao próprio ser humano. Nesse sentido, importa testar a perspectiva dos direitos humanos a partir do caso da problemática do HIV/Aids, posto que são direitos normatizados como universais, mas, na prática das relações interpessoais é preciso verificar como tal universalização ocorre. É, então, considerável verificar se e como a sociedade encara os comportamentos que fogem a seus padrões. A problemática da transmissão do HIV/Aids aporta uma série de subsídios para tal reflexão, considerando o vasto campo de repercussões sobre a dimensão humana, bem como, em razão do fato de a evolução científica médica na compreensão da doença orientar e definir os parâmetros sobre os quais deve o direito se debruçar para melhor compreender, e, consequentemente, garantir direitos e liberdades. Disso se infere que, se o direito precisa da ciência médica, que está em constante progressão para novos conhecimentos sobre a doença, então as posições e decisões não podem ser inflexíveis. Não se pode deixar de considerar que as respostas jurídicas, em face de tal dificuldade, são débeis, frágeis, momentâneas, cujo rumo é determinado pela medicina e, portanto, por causa dessa complexidade do tema, não se pode prescindir dos 12

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princípios de direito, principalmente o da razoabilidade, dentro do quadro da contemporaneidade da sociedade. A doença da Aids ainda não é suficientemente objeto de publicidade, pois muito embora haja um certo medo, não há suficiente precaução, tanto em termos estatais como da sociedade civil, e, consequentemente, dos indivíduos em suas relações interpessoais. Esse tema é rico em complexidade, principalmente se considerarmos a abordagem do campo jurídico em face da realidade social sobre a qual ele deve contribuir para a efetivação das políticas públicas. A sociedade hoje não impõe os mesmos estereótipos dos anos de 1980, mas isso não significa que ela seja mais tolerante com os particularismos e diferenças, talvez seja dissimulada. No início dessa década, lá para 1982, chamou-me a atenção o tema da Aids, no presídio da Ilha Grande, local em que estive por diversas vezes por conta do meu trabalho na Assessoria Jurídica da Pastoral Penal da Arquidiocese do Rio de Janeiro, cujo coordenador era o padre Bruno Trombetta. O preso José (nome fictício), já falecido, me contou seu destino trágico: pais mortos num acidente de carro, o irmão e ele colocados num orfanato, depois ele preso por uma vasta ficha de crimes de tráfico e homicídios e seu irmão (que, segundo o narrador, era homossexual), que fora residir em Paris, estava morto pela Aids. Ele sabia tudo sobre a doença, me mostrava umas revistas com o assunto, que para mim era algo absolutamente desconhecido, até que me contou sua história de vida. Exponho aqui a minha própria ignorância, pois a sociedade tem cara, não é um ente abstrato. Esse era bem o quadro da época, as coisas estavam acontecendo, mas a doença era compreendida como relegada aos grupos socialmente excluídos, o que o direito sistêmico reconhece como emaranhamento, e em consequência, as pessoas estavam sendo contaminadas, mas, nem por isso, havia um conhecimento geral, comum, corriqueiro, uma preocupação que mostrasse que todos estavam e estão vulneráveis à doença. Em termos acadêmicos, em 2001, voltei meu interesse sobre o tema a partir das aulas que tive com Paul Farmer, médico e professor americano da Harvard University, em seu seminário no Collège de France, intitulado “Violência estrutural e materialidade do social”, em que apresentou uma reflexão do campo teórico da articulação entre medicina e antropologia social e de sua metodologia de trabalho como médico no Haiti. De lá para cá, venho tentando refletir sobre a transmissão do HIV/Aids dentro do enquadramento jurídico, principalmente o do humanismo jurídico e sua relação com o direito sistêmico construído a partir da filosofia-psicologia da constelação familiar.

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A partir de leituras e das entrevistas com indivíduos portadores e agentes de saúde é possível estimar que o nível de desinformação se mantenha, ainda que com alguma alteração, pois a abordagem sobre o tema, inclusive pela mídia, por ter a preocupação de evitar a discriminação, não informa o número de pessoas contaminadas, inclusive jovens, e que o coquetel antirretroviral, embora melhore a qualidade de vida do doente, não o cura.

1. 2. O contexto do tema: a sociedade do risco O contexto de compreensão do nosso tema é o da sociedade do risco, que tem vertentes diversas, mas consideramos a de Ulrich Beck bastante pertinente. A sociedade do risco não pode imputar seus males, suas ameaças às causas externas, mas sim a ela mesma, uma sociedade pós-industrial, cujos problemas não se limitam ao conflito entre penúrias e riquezas, mas ao medo em razão de riscos que se diferenciam dos riscos históricos, porque os de hoje são globais, transfronteiriços, tais como, a radioatividade, os agentes poluidores, os efeitos de pesquisas como os dos transgênicos etc. A sociedade produz desemprego, desigualdades sociais, individualismo, mas também riscos, que são, inclusive, muitos deles, invisíveis. Os males, riscos e prejuízos não são externos à sociedade, mas criados por ela, e o contraponto, segundo a perspectiva do autor citado, a forma de enfrentar tais problemas, deve-se dar através de outra noção de contrato social, de modernização, de vida política, de Estado, cidade, família. Em meio a esses aspectos está o de doenças contra as quais a ciência e a tecnologia devem fazer face. E entre elas estão as ISTs, infecções sexualmente transmissíveis, dentre as quais HIV/Aids.

1. 3. A resposta do direito sistêmico da constelação familiar contra a perspectiva punitiva É possível controlar a transmissão do HIV/Aids pela punição dos indivíduos transmissores, os visíveis? Podem eles realmente ser identificados? A lógica punitiva tem sido utilizada como resposta de política criminal preferida pelo corpo social contra o homicídio, o furto, ou o roubo, por exemplo. O direito penal vem passando por lentas transformações e à lógica punitiva outras foram associadas, tais como a reinserção e a ressocialização. Fato é que nem uma lógica nem outra se realizam na prática e não têm resultados positivos, proativos ou protetivos da sociedade. Não obs14

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tante, pouco importa, pois isso não se discute, conforme pode ser observado, nas contradições da sociedade, mas sim o que importa é fazer a mise-en-scène, fazer parecer que todas as instituições funcionam. E a questão da transmissão do HIV/Aids entra nesse dilema, considerando que a resposta punitiva, para além dos casos raros de uma intenção deliberada de lesar alguém, não pode surtir efeito, no sentido liberal do termo, isto é, não é nem necessária nem útil, conforme a análise do sentido da pena já considerado por Beccaria, no século XVIII. Então, não vai proteger a sociedade. O tempo que a sociedade usa para buscar respostas punitivas deveria estar sendo usado para informar, combater a ignorância, educar a população sobre os meios de se evitar a transmissão da doença, porque qualquer pessoa pode ser a transmissora, pois tal vírus atinge qualquer membro de qualquer grupo social, tendo em vista o principal vetor, o caminho de contaminação, o sexo (além do aleitamento). Todos os tipos humanos são passíveis de serem portadores do vírus, portanto. E aí se verifica a realidade trágica da universalização e da socialização dos direitos humanos, a única que a humanidade conseguiu, efetivamente, isto é, a exposição em potencial dos males, prejuízos e riscos. Reconhecer, contudo, que existe uma epidemia talvez equivalha a reconhecer que não se tem como evitá-la, exatamente por conta do aspecto mencionado, o sexo, e aí bodes expiatórios são visados pelo direito penal, que é por natureza um instrumento fracassado de contenção e controle de crimes. Imaginar que a sociedade está protegida porque um “zé mané qualquer” foi preso por não usar um preservativo, por pura ignorância-displicência, é surrealismo. É o sentimento de impunidade que provoca o crime, ou é a confiança nas instituições que faz com que a criminalidade seja contida em limites básicos, sim, básicos, pois o crime é da própria natureza da sociedade. É preciso a assunção das próprias escolhas por parte de cada indivíduo, responsabilizando-se por adquirir informação-educação, ao invés de se colocar como vítima de situações de risco que, naturalmente, representam as situações que envolvem sexo. A questão aqui tratada neste livro se limita às relações sexuais consentidas ou consensuais e, nesse contexto, é necessário que o discurso da vitimização seja superado, para que o problema de combate à epidemia possa ter algum resultado satisfatório. A terapia da constelação familiar, um campo fenomenológico de construção de uma filosofia-psicologia, dá as bases para a construção do direito sistêmico que compreende que aquilo que não é visto, que é excluído, está relegado ao campo dos comportamentos das práticas “mal-ditas”, “mal-faladas”, colocadas 15

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em segredo, que vão enveredar em emaranhamentos. As fidelidades sistêmicas estabelecidas com o registro do sistema de valores que são passados e reproduzidos por gerações como herança de um sistema familiar ou do sistema de um povo, expõem a “boa consciência”, no sentido de que expõem o que está dentro desses sistemas. Essa boa consciência representa uma forma de compensação para que o indivíduo não faça contato com a culpa. No caso do indivíduo não assumir responsabilidades ao entrar em uma relação sexual consensual sem o uso do preservativo, colocando-se como vítima numa situação de risco que ele mesmo buscou, é forma de estar de acordo com o vitimismo que lhe é condescendente, e nesse caso, a boa consciência do sistema de um povo. Isso está evidenciado no contexto atual, que joga as responsabilidades do indivíduo para a família, para o Estado, para a escola, para a mídia, dentre outros, fazendo o indivíduo escapulir da assunção das suas próprias responsabilidades. O vitimismo mantém o indivíduo no estado criança, e é somente no estado adulto que os problemas podem ser enfrentados de forma equilibrada. O jeitinho brasileiro, por exemplo, representa a tal boa consciência, servindo de justificativa para tudo. A epidemia tem um véu que a esconde, por um período, das práticas humanas, e depois refaz tal processo pela maquiagem proporcionada pelo coquetel do tratamento antirretroviral. O indivíduo se percebe com uma saúde equilibrada, ou razoável, e se mantém em suas práticas, e os demais membros da sociedade não o percebem, mesmo porque a ordem jurídica proíbe discriminação. Nesse contexto, a mídia, para não criar discriminação, também não expõe a realidade, os fatos e números. Não se fala a respeito do vírus com a veemência necessária, não por tolerância, mas por ignorância, não por aceitação ou compreensão, mas por medo. Medos que se repetem à semelhança da Idade Média, o medo da violência, da epidemia, da morte, do além, do desconhecido, do outro. O reconhecimento pela sociedade de que existe contaminação implica aceitar que não há saída, pois é impossível o controle, considerando o vetor sexo. Basta enfrentar o problema. A ciência e a tecnologia podem exercer interferência sobre os resultados dos comportamentos, como no tratamento de doenças, mas não têm como intervir nos comportamentos. Negar, enfim, é uma forma de pacificar e encobrir o medo, e, assim, cresce e se universaliza a exposição ao risco. E para fazer de conta que as coisas funcionam, elege-se um bode expiatório para ser punido e a violência pacificada, conforme as análises feitas por René Girard sobre a crise sacrificial das sociedades primitivas.

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A sociedade pós-industrializada, com tantos avanços tecnológicos e científicos, se vê submissa à natureza: ao vírus do HIV/Aids e às mutações dos vírus cada vez mais potentes e a outros micro-organismos. Ironicamente, para os que defendem a natureza, dentro de uma perspectiva do ecocentrismo, esta é uma referência de sua prevalência sobre o homem. Na exaltação da natureza sobre o ser humano está em relevo a potência do vírus sobre ele. Os tratamentos são eficazes até certo ponto, porque os doentes têm qualidade de vida melhorada, mas continuam doentes, sob a ameaça da morte que está à sua espreita. A eficácia do tratamento depende do estágio da doença, da resposta ao tratamento, entre outros fatores. A todo momento surgem respostas de pesquisas científicas que mostram o quanto o tema é polêmico, ambíguo e complexo. Atualmente, há a notícia, vinda de pesquisas científicas, de que, sob determinadas condições, portadores de HIV podem fazer sexo sem preservativo, sem risco de contágio. De outro lado, o HIV leva à morte, mesmo com os remédios. Sem resposta, deve-se considerar que a solução deve ser a da educação, por meio de informações precisas, com fatos, dados científicos e números. Todos precisamos ser alertados sobre os problemas diversos do HIV/Aids, mesmo que haja qualquer possibilidade de discriminação sobre certos grupos sociais, a qual, por sua vez, deve ser combatida. Portanto, é fácil constatar certa contradição diante do que tem sido feito, ou seja, na tentativa de evitar a discriminação, as informações chegam de uma forma muito difusa, muito frágil. No fim das contas, o resultado é que uns poucos infelizes desinformados, e, como sempre, pobres, sofrem o peso do direito penal.

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PARTE I – HUMANISMO JURÍDICO, DIREITOS CONSTITUCIONAIS E TRANSMISSÃO DO HIV/AIDS Frequentemente é espiritualizada (consciência pessoal), como se fosse a voz de Deus em nossa alma. Mas é somente um instinto com cuja ajuda percebemos instintivamente se pertencemos ou não. O pertencer depende de que entendamos o que é considerado importante no grupo e ao que devemos corresponder para que possamos pertencer. Por exemplo, temos para isso que adotar a crença desse grupo. Essa pode ser uma crença religiosa ou política ou, de qualquer modo, uma crença. Quem se dedica a essa crença e corresponde às suas exigências sente-se pertencente. E se sente inocente, independentemente do fato dessas exigências serem aceitáveis e sensatas, se olhadas objetivamente ou em um contexto amplo. (Bert Hellinger, 2012, p. 221)

Nesta Parte I do livro é feita uma abordagem sobre as referências da política criminal aplicada à questão da transmissão do HIV/Aids, num contexto do humanismo jurídico, salientando o modelo liberal de política criminal do Estado Democrático e de Direito como capaz de enfrentar as necessidades da relação entre infração e respostas do Estado e da sociedade civil. Nesse sentido, se procura fazer uma reflexão crítica sobre a criação de infrações e por conseguinte, a da marginalidade por meio de política criminal, principalmente no que se refere à questão da transmissão do HIV/Aids. A política criminal é uma escolha da sociedade, que pode ser mais voltada à repressão, à punição, como também pode diminuir a tensão do Estado sobre o indivíduo por meio de respostas preventivas, restauradoras e conciliadoras, que permitam conceder à vítima um papel ativo no processo, bem como dar à sociedade civil organizada um papel de apoio na tarefa pedagógica de informação-educação. A transmissão do HIV/Aids é uma questão complexa que demanda o envolvimento de vários campos do saber, e correntes da medicina salientam que as causas da doença estão ligadas ao vírus e ao estado de falência total das defesas do organismo, 19

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propiciando doenças, infecções e tumores. Além disso, existem outros fatores como o comportamento social em diversas dimensões, tais como, drogas, remédios, irradiações, poluição, estresse e fome. Não obstante, no início da década de 1980, a mídia vinculou o contágio da doença a grupos como os de homossexuais, prostitutas, hemofílicos e negros, definindo-os como grupos de risco, o que foi depois superado por uma abordagem que aponta comportamentos de riscos, em face da expansão do vírus de forma ironicamente “democrática”. A estigmatização de comportamento, por sua vez, implica na exclusão, reforçando uma mentalidade de vítima que impede o crescimento pessoal. A falta da mentalidade de crescimento afasta a tomada de consciência sobre as responsabilidades pelos próprios atos, elegendo em seu lugar indivíduo, setores sociais, sociedade ou Estado sobre o qual o ônus da responsabilidade possa ser depositado. Eticamente, é um problema social o escamotear responsabilidade própria. E o silêncio vai ser um espaço fértil para perpetuar tal situação, impedindo o direito à informação-educação, que nessa questão da transmissão do HIV/Aids, se desdobra em problemas ligados à saúde e à qualidade de vida. E a culpa é a assunção da não responsabilidade, na medida em a responsabilidade é condição para o crescimento pessoal. A culpa negada ou infantilizada, leva à estigmatização do indivíduo num sentimento de indignidade, de raiva, que vai contribuir para a exclusão. Para ser superada, essa exclusão precisará de uma reconversão do olhar sobre as relações humanas, como em relação à compreensão da necessidade de a culpa ser assumida no estado adulto do indivíduo, reconversão esta, que, aqui, neste livro, aparece com a proposta do direito sistêmico extraído da filosofia terapêutica da Constelação Familiar de Bert Hellinger, com suas ordens do amor, dimensionadas nos direitos à hierarquia, ao pertencimento e ao equilíbrio entre o dar e receber nas relações que compõem os diversos sistemas interpessoais. Nessa fórmula, talvez esteja a possibilidade de criação de um modelo de solução dos conflitos em que o sentimentalismo desenvolvido no mundo contemporâneo, pós-Revolução Francesa, que enfatizou o humanismo jurídico, mas que vem sendo explorado de forma ambígua colocando em relevo os direitos, possa se restabelecer como referência das relações interpessoais por meio de equilíbrio também com os deveres, retirando estes de uma situação de exclusão.

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1. Criminalização, materialidade do social e direitos constitucionais 1. 1. Infração, marginalidade e materialidade do social O que acontece com os agressores? De onde vem essa necessidade humana de vingança? Essa indignação simplesmente brota no peito? Eu notei que, normalmente, a indignação não vem das vítimas, mas daqueles que se acham no direito de representar as vítimas. Eles reclamam ilicitamente para si o direito de ficar zangados com os agressores, sem ter passado pelo sofrimento. Como recebem o apoio da maioria, nem mesmo correm o risco de serem responsabilizados pelo desejo de vingança contra os agressores. Aqui existe uma curiosa semelhança entre os indignados e os agressores, exatamente aqueles que são criticados. Os primeiros consideravam-se superiores e por isso se sentiram no direito de atacar e aniquilar os outros. (Bert Hellinger, 2007a, p. 129).

1. 1. 1. Infração e marginalidade no modelo de política criminal Estado-Sociedade Liberal Na perspectiva liberal, em que está a origem do humanismo jurídico, a sociedade define as invariantes infrações, desvios e sanções por meio da lei, estabelecendo distinção entre as duas primeiras pela escolha de maior ou menor pressão sobre o indivíduo, o que implica na limitação do campo intervencionista estatal. O direito penal é uma política pública do campo da disciplina da política criminal, que considera não só a dimensão penal assim como outras formas de comportamentos e respostas a estes advindas das instâncias societais e estatais. As escolhas feitas pela sociedade no sentido de definir os comportamentos a serem elencados como infração e desvio e as respostas a estas vão depender da organização social-política, do desenvolvimento moral e ético, assim como do intelectual, educacional, cultural, tecnológico, científico, histórico e econômico.

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Por transposição ideológica, entretanto, são importados normas, valores e ideias de direitos, inclusive, sobre pressão de organizações não governamentais internacionais, de outros Estados, de instituições internacionais políticas e econômicas. Sem que tais elementos tenham sido fruto de escolhas próprias, construídas historicamente, logo, pela lógica, certamente o ritmo, as possibilidades e o enquadramento com a realidade nacional não são verificados. A construção de normas jurídicas tem ficado muito a mercê do termômetro ideológico, que funciona em nível mundial, como um processo de internacionalização-internalização de interesses de grupos sob o manto da sacralização dos direitos humanos, reverberando nos países periféricos de maneira complexa, problemática e assimétrica. Já explicado por Bobbio, os direitos humanos foram fundamentados, restando serem efetivados. Maior ou menor pressão sobre o indivíduo por parte do Estado, no elenco de infrações, vai depender da capacidade da sociedade civil de se organizar e de se desenvolver. De tal forma, para que os indivíduos sofram menos limitações em seus direitos-deveres, e aqui também as definidas como crimes, é preciso que a própria sociedade crie condições do exercício democrático formal e material, restando ao poder punitivo do Estado atuar contra condutas efetivamente lesivas do meio social. Todas as sociedades definem valores e normas que vão lhes servir de suporte para um estado de coesão, enquanto que infração e marginalidade são comportamentos com sentido inverso a essa lógica. Infração e marginalidade são fenômenos identificados em política criminal como invariantes, (Delmas-Marty, 1992a, 1992b, p. 6) posto que em todas as sociedades há a identificação de condutas como sendo uma ou outra, seja pelo Estado, seja pela Sociedade Civil (Delmas-Marty, 1992a, pp. 44-45): [...] Na infração – infração em vez de crime, pois esta palavra, mais neutra, não impõe o sistema penal como única resposta –, a rejeição das normas se analisa num ato (ou omissão) preciso [...]. Enquanto que a palavra marginalidade pode ser reservada a uma espécie de estado – não necessariamente “perigoso”, daí a escolha da palavra marginalidade, mais neutra também –, e um estado mais difuso e que implica uma certa duração ou mesmo uma verdadeira permanência [...]

Infração e marginalidade são, portanto, condutas de não conformidade, de oposição ou de resistência à normatização e à normalização portadoras dos valores do corpo social. Nessas condutas, há a previsão de um nível ou de uma dimensão do injusto segundo a cultura de cada sociedade, configurando o sig-

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nificado de infração e o de marginalidade ou desvio (Delmas-Marty, 1986, p. 123-132). As sociedades totalitárias confundem as duas condutas (Delmas-Marty, 1992a, p. 115-144). Já as sociedades democráticas distinguem uma da outra, determinando o Modelo de Política Criminal Estado-Sociedade Liberal (Delmas-Marty, 1992a, p. 45): Enfim, é verdade que determinadas sociedades não fazem a diferença: sociedades totalitárias onde, através do funcionamento do “raciocínio por analogia”, qualquer forma de marginalidade se torna infração à lei penal, ou sociedades sem Estado, onde qualquer comportamento de rejeição das normas é submetido ao olhar permanente do grupo e é objeto de processos de regulação idênticos.

É dada a atenção aqui, nessa abordagem, ao Modelo de Política Criminal Estado-Sociedade Liberal, de Mireille Delmas-Marty. Nesse modelo, o Estado define a infração, deixando à sociedade civil a definição da marginalidade. Cabe ressaltar que a análise, feita neste livro, está limitada ao mundo ocidental, por falta de conhecimento sobre o que está fora desse contexto. A rejeição à norma não só pode representar o crime, como também pode ter outras razões, tais como por implicar a perda de sua legitimidade, como uma consequência do fato de não ser explícita, por causa de inflação legislativa, por ter uma oposição entre a norma e seu conteúdo valorativo, ou pela inadequação às identidades do grupo social que tenham se modificado. A infração e a marginalidade são comportamentos antissociais, indesejáveis, ou incompatíveis com as normas do grupo, que podem ser ações e omissões, e as respostas a tais comportamentos podem ser estatais e societais. As relações entre os comportamentos indesejáveis e as repostas são definidas pela política criminal como sendo relações fundamentais. No Modelo de Política Criminal Estado-Sociedade Liberal, que é aqui tratado, respaldado no humanismo jurídico, há reforço da relação entre infração e resposta estatal e da relação marginalidade e resposta societal. Tratando-se a infração do campo da definição estatal, resta uma resposta reforçada no campo estatal, enquanto a societal é fraca. A criminologia contribui no estudo desses elementos, tendo a função de instrumento de controle social, “suporte de aparência científica”, debruçando-se sobre a relação entre a norma penal, o crime ou o desvio e a reação social, portanto, através de “processos de criação das normas penais e das normas sociais que estão relacionadas com o comportamento desviante: os processos de infração e de desvio destas normas; e a reação social, formalizada ou não, que aquelas infrações ou des-

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vios tenham provocado: o seu processo de criação, a sua forma e conteúdo e os seus fins” (Castro, 1983, p. 53). A decomposição das relações fundamentais, segundo as variantes estatais e societais, resulta em respostas, que, no primeiro caso, o das variantes estatais para a infração podem ser penal, administrativa, civil e mediação. Já no segundo caso, o das variantes societais para a marginalidade, as respostas estão na relação do transgressor com a vítima e com o grupo social, seja família, escola ou os demais meios sociais. Tais respostas expressam a solidariedade social, que se volta contra os comportamentos nocivos ao meio, por força da falta de identidade entre o agente e a consciência comum, ou que são entendidos como ameaça ao sentimento de equilíbrio mínimo. Não obstante, no caso da marginalidade, a rejeição tem um caráter mais difuso no corpo social que a identifica, de acordo com o momento e a oportunidade, tais como: comportamento alienado, deselegante, improdutivo ou outros qualificativos opostos ou como criativo, artístico; conforme os diversos níveis da estratificação social, das classes sociais, bairros residenciais, ou espaços ocupados das cidades; atividades produtivas ou profissionais; representações sexuais como orientações, identidades ou opções (conforme o livre entendimento de cada um); e posturas filosóficas, religiosas e políticas. A marginalidade rejeitada de forma absoluta é aquela expressa com violência ou exposição a perigo a terceiro. Há certos comportamentos e profissões que são identificadas pelo corpo social como naturalmente marginais, sem, no entanto, sofrerem a pecha da exclusão, como no caso dos artistas, pintores, poetas e escritores. Além de tal identificação, o corpo social pode voltar-se para a integração do que está à margem, como no caso dos processos de educação e de tratamento, tal como o estímulo à criatividade, que foge aos padrões do “mind fixo”, conforme o estudo de Carol Dweck, intitulado Mindset – a nova psicologia do sucesso (Dweck, 2017). Há, entretanto, comportamentos que são colocados socialmente à margem e lá cristalizados, e a reflexão sobre a transmissão do HIV/Aids precisa considerar esse aspecto, porque mantém um quadro de questão vinculado ao silêncio do não dito da prática sexual, que precisa ser enfrentado pedagogicamente, informando e educando em nome da saúde e da qualidade de vida. Assumir responsabilidades pelos próprios atos representaria o modo do “mindset de crescimento” pessoal que precisa da assunção da culpa que edifica, do indivíduo no estado adulto, em oposição à culpa do “mindset fixo” que paralisa, que não aceita rejeição e fracasso recolocando-os no exterior, “não é fácil

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substituir isso por um mindset (de crescimento) que nos diz que devemos enfrentar todas as coisas que nos pareciam ameaçadoras: desafios, lutas, críticas, percalços” (Dweck, 2017, p. 246). Na segunda parte deste livro, isso é retomado, ao se falar da culpa da raiva contida, do sentimento de se sentir indigno, segundo David Viscott (1982). Entretanto, conforme explica Dweck (2017, p. 261) sobre a raiva ligada ao mindset fixo: Controlar a raiva também é algo que, para muitas pessoas, constitui um problema. Alguma coisa inflama seu temperamento e elas explodem, perdendo o controle do que dizem ou coisa pior. Também nesse caso as pessoas podem prometer que da próxima vez será diferente. O controle da raiva é muito importante entre parceiros no casamento e entre pais e filhos, não somente porque os parceiros e as crianças fazem coisas que nos dão raiva, mas também porque podemos pensar que temos mais direito de explodir do que eles.

Essa culpa que paralisa remete o indivíduo a uma situação de exclusão, de questões que vão ficando emaranhadas no passado mas com desdobramentos no presente, descumprindo as ordens do amor, preconizadas por Bert Hellinger em sua filosofia terapêutica da Constelação Familiar que forja o direito sistêmico, isto é, o direito ao pertencimento nos sistemas familiar, da sociedade, da nação e do mundo, o direito ao respeito à hierarquia presente na posição de pertencimento e o direito ao equilíbrio entre o dar e o receber nas relações desses sistemas. Nas situações de exclusão, todas essas três leis estão rompidas. O silêncio sobre a transmissão do HIV/Aids precisa ser rompido de maneira a fazer o mesmo em relação às formas de exclusão decorrentes. O reconhecimento da existência da exclusão é apontado pelo mencionado filósofo e psicólogo como algo que deve ser feito sem indignação, de forma a impedir que haja a inversão de posições entre os excluídos e os algozes. As ideias embebidas pela indignação, via de regra, aparecem como luta por direitos, e, segundo Hellinger vem, conforme dito, com a inversão de papéis, mas por aqueles que se autoproclamam representantes das vítimas, o que traz à baila a ideia de vingança e não uma postura de edificação restaurativa e conciliadora. O que nos explica Hellinger: O que acontece com os agressores? De onde vem essa necessidade humana de vingança? Essa indignação simplesmente brota no peito? Eu notei que, normalmente, a indignação não vem das vítimas, mas daqueles que se acham no direito de representar as vítimas. Eles reclamam ilicitamente para si o direito de ficar zangados com os agressores, sem ter passado pelo sofrimento. Como re-

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cebem o apoio da maioria, nem mesmo correm o risco de serem responsabilizados pelo desejo de vingança contra os agressores. Aqui existe uma curiosa semelhança entre os indignados e os agressores, exatamente aqueles que são criticados. Os primeiros consideravam-se superiores e por isso se sentiram no direito de atacar e aniquilar os outros. (Bert Hellinger, 2007a, p. 129).

A definição de infração pelo Estado é papel e instrumento de salvaguarda ou garantia da liberdade, inegavelmente, embora não seja só esta a sua repercussão ou o seu objetivo. De todo modo, no caso do modelo de política criminal que estamos estudando, há uma oposição à certa dimensão do regime de polícia que, de forma desequilibrada, pode levar à confusão entre infração e marginalidade, própria das tutelas autoritárias ou de momentos de esgarçamento do tecido social. A resposta à infração pelo corpo social é ativa, agressiva, repressiva e preventiva, dentro de referências de um sistema simétrico, no qual a vítima é vingada pelo Estado. Tal perspectiva da substituição à vítima decorre das referências, que remontam ao século XIII, aportadas pelo processo inquisitorial humanista da Igreja católica, que assumiu a titularidade de procedimentos penais que eram até então conduzidos pelos julgamentos de grupos sociais na forma de ordálias (Carbasse, 2000). Entretanto, evidentemente, só pela arqueologia do saber se aferem os termos epistemológicos de tal substituição, pois a vingança é encoberta pela justaposição do Estado ao lugar da vítima a partir da formação do Estado-nação. Por seu turno, o agente meliante passa por um processo em que direitos e garantias são tutelados, já que a troca entre infração e resposta estatal é feita pela sanção, mesmo no caso da mediação que impõe uma contrapartida pelo acordo e outras medidas, como a da indenização pelo dano (Ost, 2005, pp. 120-130). O Modelo Estado-Sociedade Liberal é um modelo de solução de conflitos construído segundo a ideologia liberal e, portanto, tem como valor jurídico central a liberdade do indivíduo. A proteção da liberdade individual justifica a intervenção estatal como meio de coexistência pacífica entre os membros, partes do corpo social, contra infração e marginalidade. O contexto da proteção da liberdade envolve a perspectiva do Estado Democrático e de Direito, em que o Estado é delimitado pela Lei/Direito, construído pela democracia, que deve caminhar para além das fronteiras formais de participação do indivíduo e atingir o âmbito material, isto é, o Estado deve ser limitado para assegurar um espaço de liberdade para a participação do cidadão pelo exercí-

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cio dos direitos e deveres individuais e coletivos, definidos como direitos humanos. Para o exercício e proteção da liberdade, o modelo Estado-Sociedade Liberal distingue infração de marginalidade. Isso implica limitação da intervenção do Estado, pela descontinuidade da pressão do corpo social sobre o indivíduo, para o campo da infração, relegando à sociedade civil a intervenção no campo da marginalidade. O Estado, possuindo a estrutura com o monopólio da força ou coação física legítima, tem seus poderes racionalizados pelo direito e pela política. Pelo direito, a racionalização do papel do Estado se dá por meio da especialização de suas ações, no âmbito dos poderes Legislativo, o Executivo e Judiciário. A racionalização política está na intervenção da administração pública por meio da execução de políticas públicas nas áreas de justiça, seguranças internacional e pública, em âmbito federal e de educação e saúde, em âmbito municipal. Tais intervenções devem ser mínimas para deixar o espaço maior à liberdade dos indivíduos e suas capacidades associativas. O Estado controla os grupos sociais também através de uma aprendizagem de técnicas de sociabilidade. A pressão do corpo social sobre as classes sociais mais favorecidas é maior, considerando que as técnicas de sociabilidade fazem parte de um processo de aprendizagem progressiva, um ciclo mais englobante com técnicas de regulação. Nesse sentido, há coerência da resposta societal, pois há relação do meio familiar-social e resultados favoráveis entre o meio escolar e o profissional. Já sobre as classes sociais populares, a pressão do corpo social é descontínua, considerando as relações supracitadas (Delmas-Marty, 1992a, pp. 62-63). A repercussão se dá em outra dimensão, ficando os seus membros mais disponíveis aos seus próprios medos, prazeres, desejos, instintos e fantasias, como também à vulnerabilidade do meio social em que se inserem, dentro de uma perspectiva de maior sujeição às influências locais, midiáticas, consumistas, religiosas ou ideológicas. No que concerne à questão da transmissão do HIV/Aids, são analisados os parâmetros para as escolhas de política criminal, que enquadra tal conduta da transmissão como infração, sem contextualizá-las dentro dos perigos da sociedade em que se forjam. Sendo assim, o que se verifica, na legislação e na jurisprudência, é o entendimento do comportamento individual como contrário à ordem jurídica, porém sem haver o aprofundamento do estudo sobre a correlação deste com os ditames da sociedade contemporânea pós-moderna, que se caracteriza pela eficiência, pelo desempenho, pela imagem, pelo simulacro, por

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um campo de escolhas extenso, e por isso, complexo. Destarte, reflexão possível (Seffner e Parker, 2016, p. 25): Percebida como realidade político-cultural altamente complexa, a AIDS funciona como marcador social a indicar grupos, conjunturas, contextos e situações que falam da desigualdade histórica da vida em sociedade, da vulnerabilidade que produz algumas poucas vidas como viáveis e muitas outras como não viáveis, vidas baratas que não valem a pena cuidar e tratar, pois não tem futuro. Falar da situação da AIDS em um país é necessariamente falar de sua estrutura social, suas hierarquias de desigualdade, o modo como este país lida com a construção do espaço público democrático e com os programas de inclusão social, de como se constrói a vida política e a repartição de poder entre indivíduos e grupo (por exemplo, a repartição de poder entre homens e mulheres, entre brancos e negros, entre populações com maior ou menor escolaridade, entre pessoas de um ou outro pertencimento religioso, entre aquelas que moram em tal ou qual região do país, entre pobres e ricas, entre jovens, adultos e velhos).

1. 1. 2. O sistema atual da sociedade como causa da transmissão do HIV/Aids Em 1986, no seu livro Aids toda a verdade, o professor de Imunopatologia, Ulisses Mota de Aquino,1 propõe fazer “uma abordagem sem mentiras e sem mistificações da doença mais assustadora de nossos dias”, apontando o comportamento social como o único responsável pela explosão da Aids na humanidade e considerando a sociedade como violentamente agredida em seu bem-estar físico, mental e social. Em seu livro, Aquino aponta como causas da doença o vírus (HTLV) e o estado de falência total das defesas do organismo, dando lugar a doenças, infecções e tumores, mas reputa como origem da doença o comportamento social, definindo-o em diversas dimensões: drogas, remédios, irradiações, poluição, estresse e fome. Ele chama a atenção para o fato de que a mídia fez uma “campanha de terror”, no início dos anos de 1980, por vincular o contágio da doença a grupos como os dos homossexuais, prostitutas, hemofílicos e negros, sem a devida precaução de deixar claro que todas as pessoas estavam e estão expostas à doença. A campanha de terror a que se refere tinha o seguinte objetivo, segundo Aquino (1986):

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Foi professor da UFRJ, da PUC-RJ e da Faculdade de Medicina Salpêtrière da Universidade de Paris. (N. do A.)

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O sensacionalismo que se empresta aos resultados das pesquisas dirigidas sobre HTLV – considerando esse vírus como o único causador da Aids – visa atingir dois alvos: desviar a atenção do público sobre a verdadeira significação da Aids; vender medicamentos ineficazes contra o HTLV e reagentes de especificidade duvidosa para o seu diagnóstico. (p. 102)

A partir daí faz uma longa abordagem sobre o tema, ressaltando em sua análise os aspectos médico, social e filosófico, no seguinte sentido: Não há interesse em se desmistificar a Aids, fazendo-se apenas uma enorme caçada aos indivíduos com anticorpos formados contra o HTLV. Este procedimento só vem em benefício das multinacionais que fabricam e vendem reagentes, aparelhagens e remédios para a Aids. (p. 106)

Essa crítica tornou-se corriqueira constatando a falta de mudança no quadro, pois é possível verificar, em trabalho acadêmico de 30 anos depois do livro do médico Aquino, os mesmos problemas, porque embora seja necessário alertar os grupos e comportamentos que são vulneráveis, a estigmatização só reforça o silêncio, a desinformação e, portanto, nada contribuindo para ações de prevenção. Um desses grupos é o de mulheres no cárcere, conforme nos explica o trabalho citado da área de enfermagem assinado por Trigueiro, Almeida, Monroe, Costa, Bezerra, Nogueira, de 2016: A despeito da infecção pelo HIV, o aspecto histórico, social e características da epidemia exerceram forte influência no comportamento e no dos grupos. No início da aids, a ausência de informação médico-científica e o modo como a mídia se apoderou deste mal “desconhecido” deu vida própria no imaginário da população. Circulavam nos meios de comunicação domínios de fortes investimentos afetivos, configurados por morte, contágio, e sexo, favorecendo a eclosão de concepções de cunho moral, social e biológico. Mesmo havendo o conjunto de procedimentos terapêuticos e consequente mudança no significado da convivência com a infecção, as Representações Sociais (RS) da aids ainda permanecem intimamente associadas à exclusão e à falta de moral. Em sociedades nas quais a infecção afetou as mulheres, tal fato passou a ser tipicamente associado a um comportamento sexual inadequado às normas de gênero locais.

A dita desmistificação deveria ser feita a fim de se constatar “a presença de anticorpos no sangue, que significa que o indivíduo já teve contato com esse ou aquele micróbio, inclusive o HTLV” (p. 106). A investigação do sistema imunológico deve-

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ria ser, segundo o autor, no sentido de encontrar o déficit imunitário e outros, tais como de tratamento médico, desnutrição e infecção, de indivíduos expostos como politransfusionados, homossexuais sãos e doentes com múltiplas doenças sexualmente transmissíveis, como a sífilis, a gonorreia, a hepatite B, a infecção por citomegalovírus, hemofílicos que já receberam infecções plasmáticas, tratamentos com depressores imunitários e recém-nascidos atingidos no útero. E, talvez, o que é mais preocupante é o alerta que faz sobre a segurança pessoal. Diz o médico que a tal segurança não depende da medicina preventiva, isto é, da descoberta de remédios contra o vírus da Aids: Isso na verdade não faz diferença alguma, porque a simples eliminação do HTLV por uma droga qualquer não transforma os organismos imunodeficientes em organismos imunoeficientes. E sem a presença do HTLV, os pacientes continuarão de portas abertas para os tumores e as infecções. (p. 101)

O que está no cerne da segurança pessoal são, de acordo com o autor, as ameaças ao humanismo jurídico, que tornam os organismos imunodeficientes, retratadas nas condições que destroem a família e a sociedade, isto é, desemprego, miséria, fome, doença em contraposição à riqueza, conforto, desperdício e a saúde de outros, a competição para a sobrevivência, o estresse, o sentimento de incapacidade e a baixa de autoestima: Estão destruindo a unidade da família no mundo e em conseqüência, a sociedade. Elas são geradas na íntima convivência do desemprego, da miséria, da fome e da doença, de um lado, com a riqueza, o conforto, o desperdício e a saúde do outro. Nas sociedades industrializadas, o conflito alimenta a feroz competição para sobreviver. Nessa luta, todos ficam estressados, e os “incapazes” são levados ao consumo de heroína e cocaína, na esperança de escaparem às decepções, aos fracassos... (p. 103)

E o caminho que aponta para a medicina proteger os sadios é a extinção das fontes contagiantes, considerando que sem vírus circulando na população, não há risco de contágio e, para tanto, afirma que deve ser adotado o que chama de profilaxia da disposição através da montagem, no organismo do indivíduo sadio, de sólida defesa para bloquear qualquer invasão de vírus, principalmente, por meio de campanhas de vacinação. Não é, contudo, uma solução apontada que tenha chances de resultados efetivos, pois dependem de recursos que possam contemplar toda a população, o que confronta com a realidade, esta que termina por limitar todas as vacinações a apenas certos grupos.

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Isso, entretanto, pode ser ainda objeto de insatisfação dos grupos que são beneficiados por vacinações, por considerarem serem, na verdade, alvo de discriminação negativa. No mês de maio de 2018, a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo lançou uma campanha de vacinação contra a hepatite tipo A para gays e homens que fazem sexo com outros homens (HSH), travestis e pessoas trans, mas gerou controvérsias, conforme reportagem no site G1 da Globo, de 6 de junho de 2018, assinada por Tatiana Regadas. A reportagem, citada acima, aponta que Secretaria do Município de São Paulo explicou que toda campanha de vacinação em saúde pública ocorre sempre visando atingir um público alvo com base nos dados epidemiológicos que demonstram que tais grupos são mais vulneráveis que o restante da população. Em se tratando de saúde pública, isso não tem nada a ver com preconceito, mas com prevenção e saúde.

Complementa, a dita reportagem, com a explicação do médico infectologista do Hospital das Clínicas da FMUSP, Rico Vasconcelos, ao dizer que a importância (desta campanha) é enorme. É a primeira vez no Brasil que a gente tem uma campanha de vacinação que tem como critério de indicação da vacina a orientação sexual-identidade de gênero da pessoa. Coisa que nos EUA, na Austrália, no Reino Unido já acontece há muito tempo. Estamos tendo um surto de hepatite A que está acontecendo desde 2016 no mundo e que está acometendo de maneira completamente desproporcional estas categorias que são as indicadas a tomar a vacina.

O veiculado na notícia trouxe, ainda, os seguintes dados: Só nos quatro primeiros meses de 2018 já são 301 notificações e 80 hospitalizações de hepatite A, sem registros de mortes. Entre janeiro de 2016 e abril de 2017, a capital paulista registrava uma média de cinco novos casos de hepatite A por mês. Em maio do ano passado, o número triplicou e atingiu o pico de 156 notificações me julho de 2017. A capital paulista fechou o ano passado com 786 casos confirmados da infecção, 176 hospitalizações e dois óbitos. Os dados são do último boletim Epidemiológico da Coordenação de Vigilância em Saúde (Convisa), órgão da SMS, com dados de até 7 de maio de 2018. Desde 2014 a vacina de hepatite A está disponível pelo SUS e a recomendação de aplicação é para crianças de um a quatro anos de idade, além de pessoas vivendo com hepatites B,C ou HIV. A novidade foi a inclusão de gays, trans, travestis e homens que fazem sexo com outros homens.

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Ainda a mesma reportagem apontou a controvérsia gerada pela campanha, haja vista a crítica feita por Iran Giusti, fundador da Casa 1, república de acolhida e centro cultural LGBT + em São Paulo, para quem “as campanhas de saúde pública para a população LGBT são importantes, mas no Brasil costumam ser ligadas sempre a questões sexuais, como o HIV/Aids e ISTs (infecções sexualmente transmissíveis), reforçando uma visão estigmatizada de um grupo heterogêneo”. O Ministério da Saúde esclarece: “a terminologia Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) passa a ser adotada em substituição à expressão Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST), porque destaca a possibilidade de uma pessoa ter e transmitir uma infecção, mesmo sem sinais e sintomas”.2 De fato, de um lado pode ser considerada uma discriminação, pela prioridade dada ao grupo da campanha, porém, por outro lado, a campanha estendeu o universo da população que já estava sendo contemplada. Cabe ressaltar que a campanha, não só tenta reproduzir os dados da realidade, e o poder público pode ser exatamente cobrado se não os observar, bem como a campanha trouxe um elemento interessante de não se fixar propriamente no grupo de gays, mas sim a um critério mais geral que é o de homens que fazem sexo com homens, sem, portanto, rótulos, mas sim atentando para a questão de práticas sexuais e afetividades. A reportagem traz a indicação de que o público alvo será alargado e, evidentemente, isso é necessário, pois, se o vírus da hepatite A é transmitido pelo contato com fezes, a contaminação pode ser feita por via oral de água e alimentos contaminados ou por meio de contato íntimo oral ou anal. E, nesse sentido, tanto num caso como noutro, o contágio não se limite a práticas sexuais entre homens. Aqui são trazidas perspectivas médicas, não a fim de apresentar uma abordagem exaustiva nesse campo do saber, mas para refletir sobre o fato de que já lá no início dos anos 1980, quando o mundo se deu conta da doença, o autor indicado, no início do subtítulo, já se debruçava sobre o tema, e, principalmente, com uma análise que extrapola o campo teórico da medicina, contextualizando-a na sociedade em que se insere. Por um lado, a medicina é levada a entender que, para o enfrentamento da doença, a compreensão de tudo o que aflige o homem deve ser considerado, pois atinge seu sistema imunológico transformando-o em imunodeficiente. Portanto, o homem deve ser compreendido como ele e suas circunstâncias, ou seja, sua situação de desemprego, miséria, estresse, desestrutura fa2

http://www.aids.gov.br/pt-br/publico-geral/o-que-sao-ist

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miliar, fome e todas as contradições que o cercam como riqueza e pobreza em desequilíbrio no sistema social. De outro lado, está o direito penal, que criminaliza os indivíduos. Este se limita a verificar fatores simplórios em face da complexidade do ser humano e da sua sobrevivência na realidade pós-moderna. Todo o resto da vida do indivíduo contaminado pelo HIV/Aids passa ao largo da lei e da jurisprudência penais, dando a sensação de alienação do campo jurídico em relação a sua própria sociedade. Buscando criminalizar a conduta da transmissão do HIV/Aids em situações de relações consensuais se tem como resultado a negligência ao conhecimento da questão de fundo, que é a de ser o resultado do “mal de viver” pós-moderno. Conforme expõe em seu artigo, Soares (1996) escreve que, na década de 1980, a Aids teria vindo ameaçar a sociedade científica e tecnológica, e se utiliza das palavras de Betinho (Souza, 1994 apud Soares, 1996) proferidas em palestra, em 1987, na Universidade de São Paulo: Meu tema é direitos humanos e doenças epidêmicas, e eu vou tratar da questão da Aids. Estou convencido de que a Aids é uma doença revolucionária. Ela recoloca de forma radical para a nossa sociedade, tanto brasileira quanto internacional, uma série de problemas vitais que durante muito tempo tentamos ignorar. Nossa cultura foi se afastando do real e tenta ignorá-lo, ao invés de desafiá-lo. A medicina moderna foi criando uma ideia de onipotência e nos dizia, de forma indireta, que todas as doenças eram curáveis e que finalmente a morte não podia existir. Estávamos já tratando o câncer como a última doença mortal [...] E eis que surge um vírus, o HIV, que se esconde no sistema imunitário e está produzido o pânico do século XX.

1. 1. 3. Tuberculose, HIV/Aids e o caso do Haiti Tentando fazer uma abordagem sobre doenças e qualidade de vida, são aqui trazidas as reflexões do médico e antropólogo Paul Farmer, da Harvard Medical School e Brigham and Women’s Hospital, fundador da organização não governamental Partners In Health3 e meu professor no seminário “Violência estrutural e materialidade do social” no Collège de France. Naquela ocasião, além das aulas nos ofereceu uma vasta bibliografia sobre Aids no Haiti e na África. Há vários anos Farmer era médico no Haiti e estudava a relação entre pobreza e a Aids, saúde e 3

No site da Partners In Health há uma série de artigos e indicações de publicações da WHO, World Health Organization – OMS da ONU, bem como na internet há uma série de reportagens recentes em diversas mídias com o autor que, entre outros países, está com projetos em Ruanda, levando sua experiência no Haiti.

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justiça social. A pobreza é uma questão mundial, inclusive em países que estão estabelecidos nos melhores parâmetros de qualidade de vida (ainda que não seja expressa da mesma forma nos Estados), como os Estados Unidos, conforme mostram os estudos de Loïc Wacquant (2003, 1999, p. 189), que termina por fragilizar o humanismo jurídico. Farmer, em seus estudos sobre a materialidade do social, verificava que há relação entre a pobreza, a desigualdade e as doenças infecciosas, em especial a partir da sua experiência como médico no Haiti, país que considerava um tipo de laboratório natural para a reflexão sobre a relação entre a pobreza e a opressão sobre a saúde de uma população: “Ce pays-là est malheureusement une sorte de laboratoire naturel pour les chercheurs voulant explorer les effets de la pauvreté et de l’oppression sur la santé d’une population” (Farmer, 1996, p. 91; 1995, p. 3-28). Aliás, ele fazia uma importante crítica à incorreta denúncia que foi veiculada nos Estados Unidos, no início de 1980, de que a Aids teria surgido no Haiti. A notícia não citava que a distribuição da doença não seguia as fronteiras nacionais, mas os contornos da ordem socioeconômica transnacional. E disse o seguinte: In December 1982, for example, a physician affiliated with the National Center Institute was widely quoted in the popular press stating that “we suspect that this may be an epidemic Haitian virus that was brought back to the homosexual population in the United States”. This proved incorrect, but not before damage to Haitian tourism had been done. Result: more poverty, a yet steeper slope of inequality and vulnerability to disease, including Aids. The label “Aids vector” was also damaging to the million or so Haitians living elsewhere in the Americans and certainly hampered public health efforts among them. (Farmer, 1996a, 1996b, p. 263)

Por sua vez, o Haiti culpava os Estados Unidos por lhes ter trazido a doença. Segundo Farmer, isto foi dito por Dieudonné, uma das primeiras vítimas da Aids naquele país, segundo o médico: à cette époque, il se demandait ‘si le sida n’aurait pas pu être envoyé à Haiti par les États-Unis. C’est pour ça qu’ils ont tout de suite dit que les Haitiens avaient passé le sida (au reste du monde). Interrogé sur les motifs qui auraient poussé les Américains, il répondit aussitôt: ils disent que maintenant, il y a trop de Haitiens là-bas. Ils ont eu besoin de nous pour travailler mais maintenant on est trop nombreux. (Farmer, 1996b, p. 148)

Farmer destinou um capítulo do livro para falar sobre Dieudonné, uma das três primeiras vítimas da doença no Haiti, 34

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como Anita e Manno, de modo a mostrar os problemas no enfrentamento da doença. A população daquele país insistia em vinculá-la a crenças ligadas à bruxaria, le vaudou (Farmer, 1996b, p. 145).4 Segundo Farmer, Dieudonné parecia convencido de que era vítima de um malefício “enviado” por terceiros, pois considerava que a doença era dirigida a alguém, através do vaudou: “pour Dieudonné, le sida avait um sens: celui d’une maladie de la jalousie, emblématique d’une nation de gens pauvres distraits de la vraie lutte par les maux qu’ils s’infligent les uns aux autres.” (Farmer, 1996b, p. 159). A questão da tuberculose, TB, é bastante analisada por Farmer a título de equiparação com a Aids. Ele disse que é uma doença completamente curável, mas era a líder das causas de morte em jovens no mundo (Farmer, 2000, p. 184). Há estudos relatando que a tuberculose era tratada como punishment, punição, castigo e morte, nas prisões da Europa do Leste e na Ásia Central, situação que se via nas prisões dos Estados Unidos do século XIX (Farmer, 1999). Não é o propósito aqui apresentar perspectivas aprofundadas do estudo sobre a tuberculose, porém, é condição para o entendimento deparar com sua situação preocupante, considerando que um terço das mortes consequentes da Aids é devido à tuberculose, e que embora seja curável, é uma doença mortal, contagiosa, epidêmica, disseminada para além de fronteiras. Conforme nos informa a OMS, Organização Mundial de Saúde, através do Relatório sobre as Doenças Infecciosas, a tuberculose era considerada definitivamente vencida, mas permanece como uma importante causa de morte no mundo, como também disse Farmer, pois mata mais adolescentes e adultos que qualquer outra doença. É a principal causa de mortalidade entre as mulheres e um terço da população mundial é portador de uma infecção assintomática, pois as pessoas são um imenso reservatório de bacilos da doença. Dentre os medos do homem nos séculos, está o da doença, e para atormentá-lo parece que há sempre a ameaça insuperável de um tipo: As fantasias inspiradas pela tuberculose no século passado, e pelo câncer agora, constituem reflexos de uma con4

“La plupart des Haitiens des régions rurales partagent son point de vue. Notant les pouvoirs mortels de la magie offensive comme de la magie defensive, Hurbon ajoute:’ l’une est interdite, l’autre permise […] Dans le vaudou, on découvre une magie destructrice (comme la sorcellerie) mais dite légitime. Le oungan, devin et exorciste, est censé rétablir la justice en travaillant à détecter et à punir l’ensorceleur, et en tout cas, à lui ‘ré-expédier le mal’. A propósito das questões das diversas construções da alteridade e sobre o culturalismo como violência simbólica na África do Sul consultar Donzon (2001, cap. 7 e 8). (N. do A.)

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cepção segundo a qual a doença é intratável e caprichosa — ou seja, um mal não compreendido —, numa era em que a premissa básica da medicina é a de que todas as doenças podem ser curadas. Tal tipo de enfermidade é misterioso por definição. Pois enquanto não se compreendeu a sua causa, e as prescrições dos médicos mostraram-se ineficazes, a tuberculose foi considerada uma insidiosa e implacável ladra de vidas. Agora é a vez do câncer [...] (Sontag, 1984 apud Soares, 1996).

No Brasil, recente Boletim Epidemiológico da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, no volume 48, n. 40, de 2017, intitulado Coinfecção TB-HIV no Brasil: panorama epidemiológico e atividade colaborativas, as informações são as seguintes: O ano de 2015 foi marcado pelo fim dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) e sua substituição pelos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), além de ser o último ano da Estratégia Stop TB e sua substituição pela Estratégia pelo Fim da Tuberculose. A Organização Mundial de Saúde (OMS) considerou esse momento como ideal para reavaliar a sua lista de países prioritários no enfrentamento da tuberculose (TB). Para o período de 2016 a 2020, adotaram-se três listas de países de alta carga de TB, sendo elas referentes a 1) tuberculose, 2) tuberculose multidrogarresistente e 3) coinfecção TB-HIV. Cada lista é composta por 30 países, sendo 20 com o maior número absoluto de casos e dez com o maior coeficiente de incidência. O Brasil figura em duas delas, a de alta carga de TB e a de coinfecção TB-HIV. Nos países endêmicos para TB, o advento da epidemia de HIV/aids tem acarretado aumento significativo da doença. No mundo, quando comparadas à população geral, as pessoas vivendo com HIV/aids (PVHA) apresentam risco 26 vezes maior de desenvolver TB ativa, e no Brasil, esse risco é 28 vezes maior.

Sendo assim, voltando ao foco desse estudo sobre a criminalização da transmissão de doença grave, é interessante refletir sobre o fato de que mesmo sendo a tuberculose uma doença contagiosa e mortal, não existe uma política penal internacional de colocar alguém no banco dos réus por ter apertado a mão de outrem ou lhe beijado a face, posto que o bacilo esteja disseminado nos transportes coletivos está nos apetrechos do dia a dia da vida em sociedade. Dito isto, infere-se que não se justifica que haja impulsão de política criminal para processar o portador do HIV/Aids, unicamente porque sabe de sua condição, pois que o portador da tuberculose não tem sobre si o mesmo tipo de ameaça, ou, ainda, porque não se teria condições de colocar o mencionado um terço da população na cadeia, aliás, um ambiente propício à propaga-

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ção do dito bacilo. Logo, a política criminal adotada é uma questão de escolha da sociedade sobre o que define como infração ou como marginalidade, e, portanto, precisa de um maior aprofundamento de modo a se compreender o problema em toda a sua complexidade, em vez de se punir as já vítimas da doença. É preciso fortalecer os organismos para que eles sejam imunoeficientes, pois só contraem doenças os imunodeficientes, conforme as análises anteriores do médico Ulisses Aquino, portanto, os que têm baixa qualidade de vida, num meio ambiente não saudável. Farmer listou uma série de fatores nocivos, em todo o mundo, que facilitam a emergência do HIV, entre outros: urbanização, mudanças nos estilos de vida e aumento do uso de drogas intravenosas. Entretanto, enfatizou a pobreza como o principal entre esses fatores, mormente quando relacionada aos jovens e às mulheres: “throughout the world, most women with HIV infection, married or not, are living in poverty” (Farmer, 1996b, p. 264). O autor criticou artigos médicos americanos da década de 1990, que não analisavam a relação da doença com outros fatores, como a pobreza, a cor, certos grupos sociais, a desesperança e a exclusão política: dans un contexte comme New York city, où le taux de séropositivité est encore plus élevé, ce ne sont pas toutes les femmes en âge d’enfanter que risquent de devenir séropositives, mais bien les femmes pauvres, dont la majorité sont des femmes de couleur. [...] en Floride comme à New York c’est sur les communautés noire et hispanique que l’épidémie a porté ses coups les plus durs. On note aussi l’absence des termes “sexisme”, désespoir’ et exclusion politique. […] Nous disons que c’est le fait d’être femme, pauvre, de couleur et au chômage que prédispose à l’infection par le VIH. (Farmer, 1996a, p. 90 et seq.)

A questão da vinculação entre a pobreza e HIV/Aids é algo que não se pode desconsiderar. São apresentados aqui uma série de estudos de autores que há muito se interessam por tal correlação, que evidentemente não se esgotam neles, mas apenas nos ajudam a compreender o problema. Entre os autores, está também Didier Fassin (2001), antropólogo da École des Hautes Études en Sciences Sociales, que criticava as desigualdades sociais como principais obstáculos à eficácia dos remédios: “chacun pourrait alors convenir que si le vírus est bien la véritable cause de l’épidémie de sida, les inégalités sociales constituent pourtant le principal obstacle à l’efficacité des remèdes qu’on peut lui opposer.” Os argumentos da medicina, reforçados pela antropologia, mostram, se tomados em comparação com os do humanismo

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jurídico, que serão apresentados no decorrer deste livro, principalmente em sua Parte II, que o direito está muito aquém da medicina, embora devesse se respaldar nela.

1. 2. Impulsão-recepção repressivas e educação-informação O ódio nos prende ao agressor. A vítima está livre do agressor quando se retira. Assim, deixa o agressor com a sua própria alma e seu próprio destino. Isso é uma forma de respeito. Dessa forma, a vítima fica livre. Este afastamento do agressor e daquilo que fez para o centro vazio – assim denomino isso – dá força e, de vítima, nos transformamos em protagonistas. Mas, aqueles que perseguem e ficam indignados, os moralistas e os inocentes são, na alma, criminosos, as suas fantasias violentas são frequentemente piores do que os atos dos agressores. (Bert Hellinger, 2012, p. 42).

O jogo de política criminal é cultural, de lutas entre desejos, escolhas, direitos e obrigações, de conflito e aceitação; um jogo que, segundo Delmas-Marty (1992a, p. 173, 1992b, 1986) é “excessivamente cego, jogo de luta e de aliança que se situa, ao mesmo tempo, dentro e fora do sistema”, que pode ser surpreendido em suas fases principais, isto é, impulsão e recepção. Buscaremos compreender isso nas páginas que se seguem, inclusive em referências da ordem jurídica brasileira.

1. 2. 1. Da impulsão: repressão e humanismo jurídico voltado à educação-informação As escolhas de política criminal são determinadas, principalmente, pelos órgãos políticos e estabelecidas como normas de impulsão pelos órgãos político-científicos, que se compõem de realidade e de influência do corpo social e que se relacionam direta ou indiretamente com o fenômeno criminal. No que tange à impulsão, esta será considerada pela definição, ou não, por uma política criminal específica interna. Pode, ainda, ocorrer a partir de uma dinâmica externa, de incitação de um movimento de política criminal. Os órgãos de política criminal, órgãos político-científicos que são responsáveis pelas escolhas de impulsão, fazem essas escolhas em função de duas dinâmicas internas ao sistema de política criminal, uma de ordem conjuntural e outra, de conjunto, segundo ensina Delmas-Marty (1992a, p. 166-206).

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