Flora Fluminensis

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Flora Fluminensis de frei José Mariano da Conceição Vellozo

d o c u m e n to s


República Federativa do Brasil presidente da república Michel Temer ministro da justiça Torquato Jardim

Arquivo Nacional

Universidade Federal Fluminense

diretora-geral Carolina Chaves de Azevedo

reitor Sidney Luiz de Matos Mello

coordenadora-geral de processamento e preservação do acervo Adriana Hollós

vice-reitor Antonio Claudio Lucas da Nóbrega

coordenadora de preservação do acervo Lucia Peralta

Eduff – Editora da Universidade Federal Fluminense

coordenador-geral de acesso e difusão documental Marcos André Rodrigues coordenador de pesquisa, educação e difusão do acervo Leonardo Augusto Silva Fontes

conselho editorial Aníbal Bragança (presidente) Antônio Amaral Serra Carlos Walter Porto-Gonçalves Charles Freitas Pessanha Guilherme Pereira das Neves João Luiz Vieira Laura Cavalcante Padilha Luiz de Gonzaga Gawryszewski Marlice Nazareth Soares de Azevedo Nanci Gonçalves da Nóbrega Roberto Kant de Lima Túlio Batista Franco diretor Aníbal Bragança


Flora Fluminensis de frei José Mariano da Conceição Vellozo

d o c u m e n to s

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA

ARQUIVO NACIONAL


Copyright© 1961, Arquivo Nacional Copyright© 2018, Arquivo Nacional e Eduff – Editora da Universidade Federal Fluminense É permitida a reprodução fiel e parcial desta obra para fins acadêmicos e culturais, sem interesses comerciais, desde que seja citada a fonte. Direitos desta coedição reservados. Arquivo Nacional Coordenação de Pesquisa, Educação e Difusão do Acervo Editoração e Programação Visual Praça da República, 173, Centro Rio de Janeiro – RJ | 20211-350 difusaoacervo@an.gov.br | www.an.gov.br Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense Rua Miguel de Frias, 9, anexo/sobreloja, Icaraí Niterói – RJ | 24220-008 faleconosco@eduff.uff.br | www.eduff.uff.br Impresso no Brasil, 2018 Foi feito o depósito legal.

V441 Vellozo, José Mariano da Conceição, 1742-1811. Flora fluminensis de frei José Mariano da Conceição Vellozo : documentos / José Mariano da Conceição Vellozo. – Reedição ampliada. Rio de Janeiro : Arquivo Nacional ; Niterói : Eduff, 2018. – 480 p. : il. ; 23 cm. – (Publicações históricas; 115) (Universidade; 9) Inclui bibliografia. Pesquisa, seleção dos documentos e revisão dos textos por Thomaz Borgmeier Reedição fac-similar da edição publicada em 1961 pelo Arquivo Nacional no volume 48 da série Publicações Históricas ISBN 978-85-60207-98-5 ISBN 978-85-228-1320-9 BISAC SCI011000 SCIENCE / Life Sciences / Botany 1.Botânica. 2. Plantas fluminenses - Brasil. 3. Ciência - História. I. Título. II. Série. CDD 581.098153 Ficha catalográfica elaborada por Márcia Cristina dos Santos (CRB7-4700)


Sumário

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Flora Fluminensis: pesquisa e difusão em arquivos Maria Elizabeth Brêa Monteiro

IX Entre texto e prática científica Aníbal Bragança XIII

Flora Fluminensis: o arquivo e o livro Claudia B. Heynemann

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Reflexões sobre a Flora Fluminensis e a importância dos documentos do acervo do Arquivo Nacional Begonha Bediaga, Marcos Gonzalez e Haroldo C. de Lima

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Reedição fac-similar

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XLV

CDXLVII

CDXLIX

Nota liminar Índice geral Nota técnica sobre o caderno de imagens Caderno de imagens



Flora Fluminensis: pesquisa e difusão em arquivos Maria Elizabeth Brêa Monteiro1

Publicações editadas por arquivos públicos devem não apenas reproduzir fontes, visando à preservação de textos originais, mas voltar-se para a divulgação de pesquisas realizadas e para a disseminação de informações. Em suas linhas editoriais os arquivos públicos devem editar manuais técnicos, instrumentos de pesquisa, monografias, fazer a reedição de obras raras, como forma de “oxigenar” o uso de seus acervos ou, nas palavras de Machado Portela, diretor do Arquivo Nacional entre 1873 e 1889, “dá-los à estampa”, facilitando o acesso e a utilização das informações que essas instituições encerram. Para as historiadoras Haike Roselane K. da Silva e Andresa C. Oliver Barbosa, não se pode, contudo, perder de vista que a publicação de obras impressas acompanha a história e as diferentes fases pelas quais os arquivos passaram e, ao mesmo tempo, a evolução e as revoluções historiográficas, dando o tom da trajetória editorial dessas instituições. (Acervo, v. 25/1, 2012, p. 55) Hoje, publicar constitui uma das faces de uma política de difusão e enseja ações de preservação, organização, vulgarização e produção de conhecimento com base nos acervos, dando visibilidade às fontes e revelando a riqueza documental dos arquivos. Publicar deve ser visto como “atividade fim” dos arquivos públicos. A reedição fac-similar de Flora Fluminensis de frei José Mariano da Conceição Vellozo – Documentos, em parceria com a Editora da Universidade Federal Fluminense, se pauta por essa compreensão do importante papel que os arquivos detêm em difundir fontes. Publicada primeiramente em 1961, pelo Arquivo Nacional, no volume 48 da série Publicações do Arquivo Nacional,

1  Pesquisadora no Arquivo Nacional.

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a Flora Fluminensis seguiu uma linha de publicação que se caracterizava pela transcrição como elemento principal, destinada a um público erudito, coligindo na forma de uma “coleção histórica” documentos de proveniência diversa, reunidos e arrumados de acordo com o tema proposto. Esta reedição procura dar mais um passo ao integrar novos textos de análise elaborados por Claudia B. Heynemann e por Begonha Bediaga, Marcos Gonzalez e Haroldo C. de Lima, que contribuem para a ampliação do conhecimento sobre o naturalista frei Vellozo no contexto da história das ciências e do uso das fontes arquivísticas. Paralelamente, a opção por uma reedição fac-similar apresentou desafios e oportunidades. A impossibilidade da reprodução de todas as imagens que constituíam o caderno de estampas original deu chance à inserção de outros documentos do acervo do Arquivo Nacional acrescidos da respectiva transcrição paleográfica. Com esta nova publicação de Flora Fluminensis, resultado de um trabalho conjunto com a Eduff, o Arquivo Nacional ratifica a importância da produção editorial, iniciada em 1886, como forma de difundir seu acervo.

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Entre texto e prática científica Aníbal Bragança1

Foi com imensa satisfação que a Editora da Universidade Federal Fluminense (Eduff) se associou ao Arquivo Nacional (AN) para promover esta reedição, semifac-similar, de Flora Fluminensis de frei José Mariano da Conceição Vellozo – Documentos, lançada originalmente em 1961, como volume 48 das Publicações do Arquivo Nacional, há tantos anos esgotada e muito escassa nos alfarrabistas. O Acordo de Cooperação Técnica entre a Eduff e o Arquivo Nacional foi estabelecido e assinado quando seu diretor-geral era o professor Jaime Antunes, sendo Maria Elizabeth Brêa Monteiro responsável pela Coordenação de Pesquisa e Difusão do Acervo (Coped), tendo seus substitutos mantido o compromisso e o interesse que possibilitaram o oferecimento deste volume aos leitores de língua portuguesa, tanto no Brasil quanto em Portugal, onde desperta também muito interesse nas áreas da História Natural e da História Editorial. O que nos moveu na iniciativa desta reedição foi a qualidade dos trabalhos contidos no volume, que o historiador José Honório Rodrigues, então diretor do AN, credita ao frei Thomaz Borgmeier, O.F.M., incluindo a “exata e acurada história da ‘Flora Fluminensis’”. Esta história, sem dúvida, merece ser mais conhecida das novas gerações de pesquisadores. Ela havia sido publicada, já em 1937, na revista Rodriguésia, do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (ano III, n. 9, jun.-set., p. 77-96), detalhando o que o autor chamou de “circunstâncias trágicas” que retardaram por quase um século a publicação da obra monumental de frei Vellozo, concluída em 1790. Segundo indicam Begonha Bediaga, Marcos Gonzalez e Haroldo C. de Lima, autores do estudo “Reflexões sobre a Flora Fluminensis”, sua publicação integral só ocorreu em 1881. Este texto, juntamente com “Flora Fluminensis: o arquivo e o livro”, de

1  Diretor da Eduff.

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Claudia B. Heynemann, enriquecem esta nova edição, em grande parte, facsimilar (leia-se a nota técnica, p. 448). Frei Vellozo, além de botânico, foi notável editor, a serviço da política de fomento imperial de dom Rodrigo de Sousa Coutinho, futuro conde de Linhares, quando ministro do então príncipe regente dom João, com um projeto editorial voltado, especialmente, para a difusão de conhecimentos práticos para o desenvolvimento do Brasil, guiado pelas ideias do chamado Reformismo Ilustrado luso-brasileiro. Neste âmbito, sua obra mais notável foi a criação e orientação da Casa Literária do Arco do Cego, em Lisboa, de curta mas marcante existência, a que, também, neste volume se fazem breves referências. Entretanto, seu papel como editor, em fins do século XVIII e início do XIX, acabou ganhando um relevo que, se não ofuscou sua obra de botânico, talvez tenha merecido mais estudos e discussões, especialmente depois das comemorações do bicentenário do Arco do Cego levadas a efeito em Portugal pela Universidade Autónoma de Lisboa, Biblioteca Nacional e Imprensa Nacional-Casa da Moeda, de que resultaram os Anais com as “Actas do Colóquio ‘A Casa Literária do Arco do Cego’”, publicadas pela Universidade Autónoma Editora, e o magnífico catálogo da exposição realizada na Biblioteca Nacional, A Casa Literária do Arco do Cego (1899-1801), Bicentenário, ‘Sem livros não há instrução’”, com estudos admiráveis, que certamente estimularam novas pesquisas. Em 2011, de setembro a novembro, foi apresentada, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, a exposição “Frei Veloso e a Tipografia do Arco do Cego”, celebrando a obra do editor, no ano do bicentenário de sua morte, ocorrida no Rio de Janeiro, em 14 de julho de 1811. Paralelamente à exposição foi realizado, nos dias 21, 22 e 23 de setembro, o Seminário Mindlin 2011 com o tema “Frei Mariano Veloso e a Tipografia do Arco do Cego”, promovido pela Universidade de São Paulo (USP), reunindo vários pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Esta exposição contou com mais de sessenta obras pertencentes ao acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin da USP, a maioria originária da biblioteca de Rubens Borba de Moraes, certamente o mais notável bibliógrafo brasileiro, autor de Livros e bibliotecas no Brasil colonial, onde conclui o capítulo que dedica à Tipografia do Arco do Cego com a seguinte afirmação: “Os livros editados por frei Veloso não deram os resultados imediatos esperados, como, aliás, não deram na França as publicações feitas pelos fisiocratas. Mas a iniciativa dos brasileiros ilustrados, apoiada e incentivada pelo governo

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português, é prova de que ambos não pouparam nem esforços nem despesas para espalhar livros úteis e baratos pelo Brasil.” Para Lorelai B. Kury, autora do artigo “O naturalista Veloso” (Revista de História, n. 172, p. 243-277, jan.-jun. 2015), a “confecção da Florae Fluminensis e a atividade editorial [de frei Veloso] em Lisboa se conjugavam, desse modo, no campo da história natural, [assim como] outra característica [...] une as duas fases da vida de Veloso: a cultura impressa do Iluminismo e a crença na estreita relação entre texto e prática científica. Nas publicações do Arco do Cego esta ligação é clara: a palavra impressa teria o poder de induzir às práticas e de ensiná-las”. Esta crença no poder do impresso, entre texto e prática científica, continua hoje a justificar os esforços da Eduff nesta honrosa parceria com o Arquivo Nacional.

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Flora Fluminensis: o arquivo e o livro Claudia B. Heynemann1

No início da década de 1960, veio à luz, afinal, a edição de Flora Fluminensis de frei José Mariano da Conceição Vellozo – Documentos, publicada pelo Arquivo Nacional. A nota preliminar do historiador José Honório Rodrigues, diretor da instituição, já mostrava as dificuldades para a empreitada iniciada ainda nos anos 1940, levando-nos, inevitavelmente, ao paralelo com os obstáculos encontrados no século anterior para que a Flora, de Vellozo, fosse impressa. A elaboração e, sobretudo, a trajetória editorial da obra, é o objeto dessa coletânea de manuscritos, a maioria do Arquivo Nacional, e que abrange outras floras, além de vários escritos sobre história natural e mineralogia, escolhas devedoras da leitura de história e história natural do religioso Thomaz Borgmeier, entomologista alemão de destacada atuação no Museu Nacional ou à frente da Editora Vozes, envolvida na primeira fase desse projeto. Vellozo e Borgmeier, ambos residentes no Convento de Santo Antônio, editores, naturalistas, franciscanos, encontram-se nesse trabalho de arquivo, pesquisa e produção memorialística, constituindo um corpus documental próprio, nascido, ele mesmo, de uma organização arquivística que privilegiava critérios temáticos responsáveis por coleções como as abrigadas na Seção de Documentação Histórica (SDH). Tal é o exemplo da Flora Fluminensis e de temas correlatos, como descrito no fundo “Diversos – SDH – Caixas”, composto, por sua vez, dos fundos – “Ministério do Reino” e “Ministério do Império” –, e ofícios sobre a Flora Brasiliensis, do naturalista Dr. Martius, e sobre o Jardim Botânico, Museu Imperial e outros a respeito de botânica e zoologia brasileira.2 1  Doutora em História, pesquisadora no Arquivo Nacional. 2  Cf. SIAN – Sistema de Informações do Arquivo Nacional. Código de referência: BR RJANRIO 2H.0.0.77.

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O título Flora Fluminensis, que tem por subtítulo “Documentos”, omite seu conteúdo dilatado referente não apenas aos sempre lamentados descaminhos sofridos pelos originais, incluídos os célebres incidentes infligidos pelas invasões francesas e os esforços empreendidos pelo nascente Império para sua publicação. Compreende papéis relacionados à publicação de outras floras: a brasiliensis, iniciada pelo naturalista bávaro Martius, e ainda a flora paraense. Seguem-se capítulos dedicados ao que se pode considerar uma classificação pautada pelos chamados três reinos da natureza, artifício setecentista duradouro: mineralogia, botânica, zoologia. Documentos acerca das atividades de viajantes e um segmento dedicado especialmente aos frades cientistas, genealogia em que se incluiriam Vellozo e Borgmeier, contribuem para complementar a coletânea que se encerra com uma seleção de estampas de manuscritos, livros raros, autógrafos e retratos, além de algumas poucas pranchas botânicas e folhas de rosto da Flora de Vellozo, do Dicionário brasiliano e dos Anais, do Museu Nacional. Esses exemplares encontram-se na biblioteca da instituição, em uma coleção iniciada ainda no século XIX e que reúne cerca de seis mil livros raros, dentre os quais identificamos núcleos formados pelo gênero das viagens de artistas ou naturalistas, descobertas e explorações, títulos característicos da ciência das Luzes, como a Encyclopédie, títulos na área de botânica, compêndios ainda do século XVII, como a Historia naturalis, de Piso e Marcgrave. Outros ainda, direta ou indiretamente, dialogam com os fundos conservados pelo Arquivo Nacional, citados na correspondência, nas memórias científicas, com referências a autores, sistemas de pensamento e textos fundamentais. Nesse sentido, as edições da Flora Fluminensis e também da Flora Brasiliensis têm parte de sua trajetória e destino não somente registrados, mas estabelecidos em manuscritos que tratam dos volumes editados. Além da transcrição de manuscritos, iniciativa até hoje de relevância para a pesquisa em história da ciência nos séculos XVIII e XIX, a obra proporciona algumas importantes leituras historiográficas, a partir do acervo do Arquivo Nacional, e é reveladora do lugar que livros como as floras, as memórias gestadas nas academias e os relatos de experiências no campo da então denominada “história natural” ocupariam na tradição ilustrada setecentista e no Império brasileiro. Ou seja, que a própria correspondência reafirma esse viés comum ao projeto luso-brasileiro conduzido por homens como dom Rodrigo de Souza Coutinho e pelos fundadores do Estado imperial brasileiro, que encontravam na Ilustração o traço de continuidade com seu passado

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europeu e na paisagem americana, a sua singularidade. Deste modo e como um extracampo da preparação da Flora e dos ulteriores caminhos de sua publicação, trata-se de estabelecer os nexos com a trajetória do frei, por meio da correspondência entre a Corte e as autoridades coloniais, em meio a uma consistente e sensível série de dossiês sobre o conhecimento da natureza no reino e seus domínios, com inegável destaque para a América. Um inventário extensivo e progressivo, característico desse campo, da sua apreensão em sistemas, não negligenciaria o registro e controle sobre os povos indígenas, a vida econômica e a demarcação de fronteiras com a América Hispânica. Em que momento ou lugar se encontram as balizas do que seria uma história da ciência, especialmente da ciência da natureza no acervo do Arquivo Nacional, é uma pergunta que podemos nos fazer, para além da publicação histórica que analisamos. Trata-se de pensar, no plano do discurso, em uma escrita compreendida como científica, na qual, mais que tudo, incluindo a própria exploração econômica de recursos naturais, importam o enunciado, os marcos instituídos, as evidentes omissões e a narrativa forjada a partir do programa reformista pombalino que instaura um “novo tempo” e silencia, evidentemente, os séculos da Companhia de Jesus e as tradições filosóficas proscritas. A chamada “redescoberta” do Brasil no século XIX, na clássica expressão de Sérgio Buarque de Holanda,3 por viajantes artistas, naturalistas, comerciantes e outros, desatada com a instalação da Corte no Brasil e continuada por todo o Oitocentos no “paraíso dos naturalistas”, convive com iniciativas de preservação como o reflorestamento da Tijuca, valorização de jardins públicos, desenvolvimento de instituições como o Jardim Botânico do Rio de Janeiro e discursos críticos sobre o desmatamento e a prática das queimadas na agricultura. Mesmo que excepcionais e contrastadas com a devastação da lavoura de café, da demanda por madeira de construção e outros fatores, essas medidas descrevem a valorização da natureza na perspectiva de construção do Império. Em termos cronológicos, o acervo do Arquivo Nacional inicia-se propriamente no século XVII em que se alinham tribunais, ofícios de notas, provedorias da Fazenda, a Secretaria de Estado do Brasil com toda uma sucessão de cartas régias, provisões, alvarás, a correspondência dos governadores da capitania

3  HOLANDA, S. B. A herança colonial: sua desagregação. In: ______ (Dir.). História geral da civilização brasileira. 4. ed. São Paulo: Difel, 1976. t. 2, v. 1, cap. 1, p. 13.

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do Rio de Janeiro, a Tesouraria da capitania da Bahia, a coleção vice-reinado. Nesse período encontram-se poucas ocorrências especificamente voltadas para a investigação científica da natureza.4 No século XVIII, dada a maior importância da América Portuguesa no império luso no Setecentos, da reforma do ensino e do fomento à ciência, sobretudo à história natural, é vultosa a correspondência entre as autoridades coloniais e da metrópole, as memórias, os registros das viagens filosóficas, descrições e outros gêneros, dentre os quais destacam-se as instruções para formação e remessa de coleções de espécimes para a metrópole. A organização de jardins botânicos na colônia, os diferentes usos das plantas, a proibição de corte de árvores de madeira de lei às margens dos rios e o ensino da história natural são outros temas que se afirmam nas últimas décadas do Setecentos. Na virada do século e, principalmente, no período joanino, somam-se os dispositivos para regulamentação das práticas médicas, com a atuação do físico-mor, os exames de parteiras, os cirurgiões e boticários. No século XIX, aprofunda-se a institucionalização da ciência, sendo esse um dos traços marcantes explorados pela historiografia, que partiria da estruturação do Estado imperial para analisar conteúdos de ensino, trajetórias intelectuais, iniciativas científicas. As transformações assistidas no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, as expedições patrocinadas pelo governo, a administração da Floresta da Tijuca, o Imperial Instituto Fluminense de Agricultura, de caráter privado, mas encarregado de administrar o Jardim Botânico, a Escola Politécnica do Rio de Janeiro foram polos de desenvolvimento de programas, herbários, jardins, estudos. Tais diretrizes eram alinhavadas ou iniciadas nas secretarias de Estado do Império, e de seus arquivos resultaria esse universo de documentos textuais pertinentes a uma história da ciência nessa também repartição do Império. Frei Vellozo no acervo do Arquivo Nacional O período mariano iria se caracterizar pela continuidade e diversificação da política de fomento à ciência, na esteira da administração pombalina durante a qual se assiste à reforma da Universidade de Coimbra, em 1772, quando ocorre também a nomeação de Domenico Vandelli, químico e naturalista da Universidade de Pádua, como lente das cátedras de Química e História Natural.

4  Conforme pesquisa na base de dados Roteiro de Fontes do Arquivo Nacional para a História LusoBrasileira. Disponível em: <http://www.an.gov.br/anac/index.asp>. Acesso em: 10 jul. 2013.

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Alexandre Rodrigues Ferreira, Manuel Arruda da Câmara, dentre outros, seriam alguns dos “alunos brasileiros de Vandelli”. No reinado de dona Maria I, encerrando a década, deu-se a criação da Academia Real de Ciências de Lisboa, em 1779, com repercussões na América Portuguesa, tornando cada vez mais rotineiro o cumprimento de determinadas etapas inerentes à história natural, que seguia um método estabelecido e registrado, incluindo a parte especialmente voltada aos “empregados nas colônias”.5 A década de 1780 encontra frei José Mariano da Conceição Vellozo envolvido no preparo de coleções enviadas ao Gabinete da Ajuda, enquanto reúne seu herbário na capitania do Rio de Janeiro, que ensejaria a produção das estampas. Mas parte da constituição da obra de Vellozo subsiste na correspondência, nas instruções dirigidas ao frei, nas especificações para o envio por mar das “curiosidades” da história natural. Esse cotidiano ditado pela administração, sequenciado em códices e avulsos de diversos fundos, menos consolidado por fugir ao projeto editorial da Flora e sendo de perfil arquivístico, voltado, portanto, ao mundo político, dá a ver o domínio da linguagem científica, com o predomínio manifesto da classificação de Lineu nos países ibéricos. Reproduzido na publicação do Arquivo Nacional, o manuscrito “descrição da Quina Quina (Chincona das Officinas)” foi introduzido entre as estampas por interesse no “autógrafo de Frei Veloso”, mesmo sem a assinatura. Trata-se de um exercício taxionômico realizado por Vellozo e Gregório José de Seixas e apresentado a dom Rodrigo de Souza Coutinho: Dão-se duas sortes de sinais característicos para o conhecimento das plantas, dos quais os primeiros, que formam a aparência do gênero, se fazem de algumas partes da flor; que nunca devem faltar, os segundos de toda descrição da flor; que podem variar e nem por isso deixa a planta de pertencer ao gênero em que a põem os signos essenciais. Tais gerando na quina os seguintes sinais essenciais [...].6

5  Instruções para os viajantes e empregados nas colônias sobre a maneira de colher, conservar e remeter os objetos de história natural. Arranjados pela administração do Real Museu de História Natural de Paris. Traduzida por ordem de Sua Majestade Fidelíssima, expedida pelo excelentíssimo ministro e Secretário dos Negócios do Reino, do Original francês impresso em 1818. Aumentada em notas, de muitas das instruções aos Correspondentes da Academia Real de Ciências de Lisboa, impressas em 1781; e precedida de algumas reflexões sobre a história do Brasil e estabelecimento do Museu e Jardim Botânico em a corte do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imp. Régia, 1819. 6  ARQUIVO NACIONAL (Brasil). Negócios de Portugal. Caixa 715, pacote 1, 1802. Reproduzida no “Caderno de imagens” desta edição, figura 5.

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Os sinais “essenciais”, responsáveis pela aparência do gênero, nas palavras dos dois naturalistas, distinguiam-se, efetivamente, da parte variável, onde se detiveram na floração e nas cores que cambiavam também com a passagem das estações. O roteiro da descrição era fiel às exigências de Lineu, partindo da corola, em seguida, descrevendo o cálix, seguindo, portanto, a primeira cobertura dos órgãos sexuais das plantas – estames e pistilos.7 A recorrência a Lineu na correspondência evidencia o lugar central que a história natural ocupará no programa ilustrado ibérico, de modo geral, e luso-brasileiro.8 Editor, professor de Retórica, de Geometria, de História Natural, frei Mariano da Conceição foi reconhecido pela habilidade em recolher e confeccionar espécimes acondicionados e preparados para os naturalistas lusos. Acompanhado de riscadores, cumpria as orientações dos naturalistas da Ajuda que chegavam pela correspondência, contrastando o interesse das autoridades e o lugar que o estudo das ciências da natureza ocupava mais e mais, com a aridez e as dificuldades de desempenhar aquelas funções na América Portuguesa. Tratava-se do “adiantamento de uma ciência tão importante principalmente em um país em que a natureza é tão rica e abundante nas suas produções como desconhecida dos seus habitantes”.9 Esse desconhecimento era alimentado pela escassez de naturalistas na colônia, que iam sendo ‘improvisados’ entre aqueles que demonstravam algum interesse e aptidão. Além de estimular o trabalho de naturalistas e herboristas, procurava-se dotar as capitanias de uma estrutura que permitisse essa atividade, valendo-se do serviço de militares e, igualmente, instando a população a colaborar, permitindo aos naturalistas a entrada “nas suas fazendas e todo o exame nos seus matos e nos seus terrenos”, como se recomendou a propósito de frei Mariano.10 Também contavam com o fornecimento de material para as “diligências pertencentes à História Natural”, patente no atendimento a Vellozo que, nesse período, encontrava-se trabalhando na Fazenda Santa Cruz.11 O material solici-

7  LARSON, J. L. Reason and experience: the representation of natural order in the works of Carl von Linné. Berkeley: University of California Press, 1971. p. 78. 8  HEYNEMANN, C. B. As culturas do Brasil. São Paulo: Hucitec, 2010. 9  ARQUIVO NACIONAL (Brasil). Secretaria de Estado do Brasil. Vice-reinado, portarias. Códice 73, vol. 15, fl. 83, 1783. 10  Idem. 11  A Fazenda Santa Cruz estava entre os bens que passaram à Coroa com a expulsão dos jesuítas em 1759. O fundo tem o intervalo de 1815-1962 como datas-limite no acervo do Arquivo Nacional.

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tado era, dentre outros, “um alambique de folha de Flandres”, “um alicate, um cano de latão fundido”, “pano de linho e Bretanha”.12 Um ano depois solicitava candeeiros, garfos de fenos “com suas facas”, tachos de cobre, tigelas de Macau “com seus pratos”, um vidro de “água-forte” etc.13 Esses eram os instrumentos da história natural, com seus conservantes, como o álcool de vinho ou “espírito de vinho” – possivelmente, destilado no alambique que o frei solicita – em que se preservariam as plantas, sementes e animais encontrados. As coleções e as remessas que frei Mariano organizou para o Gabinete de História Natural da Ajuda receberam o elogio dos naturalistas lusos: as sementes que vinham do Rio de Janeiro em caixinhas com areia ou em papéis envernizados com aguarrás haviam brotado em sua maioria e “com igual prevenção vieram os pássaros, insetos, peixes e animais, de forma que de nenhuma outra parte tem vindos tão perfeitos”.14 Mas era necessário que o “diligente professor que remete tantas belas e bonitas produções” se lembrasse que tudo interessava para um gabinete de história natural, “ainda os mesmos produtos ordinários do país, de que menos caso se faz como são cebolas, sementes e plantas ainda, que sejam ordinárias (também se desejam as plantas raras), mas estimando sempre as ordinárias porque estas para a Europa vêm a ser particulares”. A lista incluía minerais, cristais, terras, areias, pedras de todas as qualidades, sem esquecer as cobras, com instruções para o seu transporte: “Será melhor introduzir pela abertura da parte inferior um fio de arame com um ganchinho na ponta, para pegar nas tripas e extraí-las todas depois meter as ditas cobras em barris [...] porém sempre com água ardente como também lagartos, peixes grandes e pequenos, caranguejos, estrelas e ouriços do mar [...].” Essas instruções, ao mesmo tempo, se faziam desnecessárias, admitiam os naturalistas da Ajuda, uma vez que o “professor que os recolhe não precisa tal instrução, pois é o mais exato, ou para melhor dizer o único que remeteu para este Real Gabinete produtos tão bem acondicionados”.15

12  Ibidem, fl. 48, 1782. 13  Ibidem, fl. 86, 1783. 14  ARQUIVO NACIONAL (Brasil). Correspondência da corte com o vice-reinado. Códice 67, v. 12, fl. 48, 1784. 15  Idem.

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Nas últimas décadas do Setecentos é cada vez mais pronunciada a atuação de dom Rodrigo de Souza Coutinho, uma personagem-chave, ocupante, dentre outros cargos, da pasta da Marinha e Domínios Ultramarinos entre 1796 e 1801. Fundamental para a compreensão desse processo, o futuro conde de Linhares (1808) é o representante por excelência da chamada geração de 1790, do projeto luso-brasileiro, e foi um dos mais importantes idealizadores do “espaço pluricontinental”, um sistema no qual estavam envolvidos Portugal, Brasil e Inglaterra, não sendo a metrópole “a melhor e mais essencial parte”, ficando aos soberanos, na eventualidade dos conflitos europeus, “o irem criar um poderoso Império no Brasil, donde se volte a reconquistar o que se possa ter perdido na Europa”.16 Dom Rodrigo é o interlocutor necessário em muitos registros nos quais transparece ainda a política de incentivo à aclimatação de plantas, introdução de novas espécies, melhorias nas técnicas agrícolas, o ensino e a prática científica em jardins botânicos e museus de história natural. A estreita relação de Souza Coutinho com Vellozo está presente em cartas como aquela que ele dirige, em 1799, ao conde de Resende, José de Castro,17 relatando que continua instruindo os habitantes do Brasil sobre os artigos de agricultura e indicando que o Fazendeiro do Brasil deveria ser vendido a dois mil réis cada.18 Voltar a esses documentos permite que se reflita sobre o significado assumido pela Flora, a importância que lhe foi atribuída no âmbito de um projeto de domínio

16  MONTEIRO, N. As reformas na monarquia pluricontinental portuguesa: de Pombal a dom Rodrigo de Souza Coutinho. In: FRAGOSO, J.; GOUVÊA, M. F. O Brasil colonial: 1720-1821. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. Vol. 3, p. 142. 17  ARQUIVO NACIONAL (Brasil). Secretaria do Estado do Brasil. Correspondência da corte com o vice-reinado. Códice 67, v. 24, fl. 18. Lisboa, 8 de fevereiro de 1799. 18  Conforme Fernando Reis, a obra, editada por frei José Mariano da Conceição Vellozo, é uma enciclopédia de “11 volumes de textos monográficos que tratavam desde o fabrico do açúcar até ao cultivo de especiarias, a preparação de leite e derivados, ou as novas bebidas alimentares, café e cacau. Destinava-se a instruir os agricultores brasileiros e nos seus prefácios é possível identificar as concepções econômicas de José Mariano da Conceição Veloso”. INSTITUTO CAMÕES. José Mariano da Conceição Veloso (1792-1811). Disponível em: <http://cvc. instituto-camoes.pt/ciencia/p16.html>. Acesso em: 21 dez. 2016. VELLOZO, J. M. C. O fazendeiro do Brasil: cultivador melhorado na economia rural dos generos já cultivados, e de outros, que se podem introduzir; e nas fábricas, que lhe são proprias, segundo o melhor, que se tem escrito a este assumpto: debaixo dos auspicios, e de ordem de sua Alteza Real o Principe Regente, Nosso Senhor colligido de memorias estrangeiras. Lisboa: Na Officina de Simao Thaddeo Ferreira, 1798-1806.

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do mundo natural das colônias, indissociável da idealização de uma totalidade luso-brasileira. Uma “flora geral e completa do Brasil e de todos os vastos domínios de Sua Alteza Real”19 foi encomendada em 1801 por dom Rodrigo a diversos governadores das capitanias visando ao aumento do Real Jardim Botânico e ao adiantamento da botânica, devendo-se apresentar os catálogos e as sementes coletadas ao presidente do Real Erário, cargo então ocupado por Souza Coutinho. Especial atenção já merecia a Flora do Rio de Janeiro, a que se referiu dom Rodrigo em 1797, e que estaria em vias de ser publicada, fazendo “a maior honra a toda a Nação Portuguesa”.20 Também recorreu a Domenico Vandelli para que fosse fornecendo ao franciscano os volumes da Flora que se encontravam no depósito do Real Jardim Botânico, “e que ajude com os seus estimáveis conselhos ao mesmo sábio religioso no trabalho, que vai empreender para a edição de sua obra, e que sua majestade deseja auxiliar, preparando assim para o futuro o publicarem-se todas as plantas, que se vão recebendo dos seus vastos Domínios”.21 Registros sobre a publicação da Flora foram aglutinados principalmente em algumas caixas do fundo “Diversos – SDH”, referência à “Seção de Documentação Histórica”, organização que vigorou preteritamente e cuja lógica explica a reunião em caixas de “documentos relativos à impressão da obra Flora Fluminense, de frei José Mariano da Conceição Veloso, contendo diversos manuscritos sobre a remessa das obras”. Na correspondência travada entre Camilo de Montserrat, da Biblioteca Nacional, e o marquês de Olinda, ministro do Império, a localização de originais, conservação dos impressos e a relevância da publicação são temas recorrentes, envolvendo ainda especialistas como o médico e naturalista Francisco Freire Alemão. Este último, em duas ocasiões, 1848 e muito depois, em 1863, avaliou em correspondência com o Ministério do Império a possibilidade de se reeditar todos os volumes ou apenas a parte ainda inédita, que se encontrava na Biblioteca Nacional ou “Livraria Pública”. Discutiase então a publicação da parte textual da Flora sem as estampas, o que para Freire Alemão resultaria imperfeita. Seu parecer sobre o trabalho de Vellozo admite as 19  ARQUIVO NACIONAL (Brasil). Junta da Fazenda da Província de São Paulo. Códice 446, v. 5, fl. 169, 1801. 20  ______. Ministério do Reino e Ministério do Império. Diversos – Caixas. BR RJANRIO 2H. 0.0.74. 002, p. 2. Palácio de Queluz, 27 de abril de 1797. 21  ______. Ministério do Reino e Ministério do Império. Diversos – Caixas. BR RJANRIO 2H. 0.0.74. 002, p. 5. Palácio de Queluz, 27 de abril de 1797.

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falhas e lacunas bem como sua superação, transcorridos aqueles anos, tendo-a de qualquer forma como um monumento da ciência e da arte que honrava “o gênio brasileiro”. Embora afirmasse que a Flora era prezada e consultada por muitos, o naturalista opinava que os espaços em branco não fossem preenchidos, pois tal resultaria em anacronismo, além de uma escrita “por mão estranha”. Mais ainda, essa avaliação devia-se a que “a obra de Veloso nem na parte descritiva nem nas figuras satisfaz hoje as exigências da ciência...”.22 Tais considerações não impediram a homenagem ao frei com a criação da Sociedade Velosiana de Ciências Naturais, que se reúne pela primeira vez em 1850, fundada e presidida por Freire Alemão, diante da necessidade de uma associação de naturalistas, cujos sócios efetivos só poderiam ser “pessoas que se ocupam da História Natural e que já tenham publicado ou feito trabalhos originais ou importantes em qualquer de seus ramos a saber zoologia, botânica ou mineralogia”.23 Em adendo ao parecer de Freire Alemão em 1863, Montserrat iria observar que: Seja defeituosa como for, em relação ao estado atual da ciência, a Flora Fluminensis de Veloso, continua a ser obra capital, por ser especial a uma província botânica, por serem suas descrições não somente exatas, minuciosas e elegantes, como ainda de idônea aplicação hoje as plantas que se referem: constando talvez seu atraso sobretudo na sinonímia, e na classificação. Apesar deste atraso, os botânicos mais eminentes dos nossos tempos, entre os quais o Sr. Dr. Martius, nunca deixam ainda hoje de citar a Flora de Veloso, quando tratam de alguma planta descrita por este...24

As avaliações da Flora, de Vellozo, oscilavam entre a validade encontrada nas descrições efetuadas ou, por outro lado, a confissão de que não atendia mais às exigências da ciência. De todo modo, ao longo do século XIX, o lugar de frei Mariano seria garantido entre os cientistas brasileiros do Império, afirmando a tradição ilustrada não somente no campo da história natural, mas como paradigma, modelo firmado a partir da crença no pragmatismo utilitarista

22  ARQUIVO NACIONAL (Brasil). Ministério do Reino e Ministério do Império. Diversos – Caixas. BR RJANRIO 2H. 0.0.75. 115, p. 5. Rio de Janeiro, 20 de julho de 1863. 23  LOPES, M. M. O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Hucitec, 1997. p. 129. 24  ARQUIVO NACIONAL (Brasil). Ministério do Reino e Ministério do Império. Diversos – Caixas. BR RJANRIO 2H. 0.0.75. 115, p. 2. Rio de Janeiro, 6 de outubro de 1863.

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que norteou a geração da Independência. Um caminho firmado no período joanino, no processo caracterizado por Maria Odila da Silva Dias como o da interiorização da metrópole, em texto clássico. Iludidos pelo recurso às novas terras, diz a autora, déspotas esclarecidos e fisiocratas investiram na administração colonial, associando-se ao projeto de homens, como dom Rodrigo, de criar um império na América. A dedicação dos ilustrados brasileiros ao projeto da Corte portuguesa não teria poucas consequências: Marca profundamente a elite política do primeiro reinado e teve influência decisiva sobre todo o processo de consolidação do Império, principalmente no sentido de arregimentação de forças políticas, pois proviria em grande parte daquela experiência a imagem do Estado nacional que viria a se sobrepor aos interesses localistas. Algumas décadas após a Independência (1838-1870) chegariam os ilustrados brasileiros a definir seu nacionalismo didático, integrador e progressista, e uma consciência nacional eminentemente elitista e utilitária.25

Um romance de geração A viagem empreendida há dois séculos pelo botânico bávaro Karl von Martius e seu companheiro de viagem ao Brasil, Johann Baptist von Spix, seguindo a Missão Austríaca ao Brasil, inaugura um denso processo que inclui o percurso seguido por cerca de três anos, as coleções formadas por esses cientistas e, como resultado seminal, a influente presença de Martius no Império brasileiro, a começar pelo ensaio Como se deve escrever a história do Brasil, vencedor de concurso promovido pelo recém-fundado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, culminando na obra monumental dirigida até 1868 por Martius, a Flora Brasiliensis. A epopeia desta edição está registrada na correspondência por ter contado com apoio do governo imperial, além do imperador Ferdinando I da Áustria e do rei Ludovico I da Baviera. Estimulado pelo príncipe Metternich, Martius começou, em 1839, com dois outros coeditores, a preparar o material que, no fim, resultou em 15 volumes subdivididos em quarenta partes, lançados na forma de 140 fascículos individuais, a partir de 1840. Descreve um total de 22.767 espécies, das quais 19.629 são nativas e 5.689 foram descritas como novas.26

25  DIAS, M. O. S. A interiorização da metrópole e outros estudos. 2. ed. São Paulo: Alameda, 2005. p. 37. 26  SHEPHERD, G. J. Uma breve história da obra. In: FLORA Brasiliensis: a obra. Disponível em: <http://florabrasiliensis.cria.org.br/info?history>. Acesso em: 10 nov. 2016.

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Camilo de Montserrat se vale de Martius e sua deferência a Vellozo para valorizar a Flora do Rio de Janeiro, o projeto rodriguiano, luso-brasileiro. Aqui se tem um interessante encontro das floras, imbricadas em projetos políticos, ambições nacionais, subsidiárias de discursos sobre a natureza americana. Nessa odisseia das ideias científicas, comportam filiações à classificação lineana, à construção de sistemas na vertente da ciência das Luzes e outras que, sem negar Lineu, naturalista paradigmático para pensadores como Goethe e Rousseau, enxergaram uma totalidade e propuseram a apreensão fisionômica do mundo natural, considerando a perspectiva de Alexander Von Humboldt. O influente naturalista logrou percorrer livremente o interior das colônias americanas com a autorização da Coroa espanhola, entre 1799 e 1804, pela América do Sul (mas não o Brasil, onde teria sido impedido de entrar pela Coroa portuguesa), México, Estados Unidos e Cuba. Preocupado com o “grande problema da descrição física do globo”,27 privilegiou os deslocamentos por terra que proporcionam uma apreensão detalhada, seguindo o critério da fisionomia das plantas, consideradas e registradas em grupos para uma posterior inserção na paisagem. O imperativo de uma descrição extensiva corresponde, como assinala Pratt, à expansão comercial e política europeia, não por refletir esse movimento, mas por instaurar uma consciência planetária, totalizante, algo inerente à taxionomia e às coleções e museus de história natural. É assim que devemos entender as Tabelas Fisionômicas, Tabulae Phisiognomicae Brasiliae, que integram a Flora Brasiliensis, reproduzidas de imagens originalmente criadas por nomes como o diplomata e artista Benjamim Mary, os pintores Thomas Ender e Moritz Rugendas, o litógrafo Johan Jacob Steinmann e o fotógrafo George Leuzinger. Embora não componham a edição dos documentos sobre a Flora Fluminensis, do Arquivo Nacional, a leitura visual das Tabulae Phisiognomicae Brasiliae permite interpretá-las em sua dimensão historicizante, uma busca de elementos notadamente “nacionais”, constitutivos de um padrão de identidade, como Martius enunciaria em textos nos “quais ele enfatiza a pluralidade natural do território lusoamericano como um traço específico dessa jovem nação”, sendo evidente, para Pablo Diener, “que essas obras essencialmente botânicas estão impregnadas de uma intenção historicista”.28

27  PRATT, M. L. Humboldt e a reinvenção da América. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, p. 151-165, dez. 1991. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/ article/view/2321/1460>. Acesso em: 28 mar. 2017. 28  DIENER, P. Reflexões sobre a pintura de paisagem no Brasil no século XIX. Perspective, Paris, n. 2, set. 2014. Disponível em: <http://perspective.revues.org/5542>. Acesso em: 23 mar. 2017.

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Aqui se descortina o viés romântico que marca indelevelmente o Oitocentos e que no Brasil conhece uma expressão mais voltada ao Estado, a uma literatura e arte compromissadas com a fundação do Império em detrimento de uma introspecção contemplativa. A tradição das Luzes e o ideário romântico lidos na clave dos projetos que marcaram o período das Floras deram um perfil e significado à paisagem natural brasileira em muitas escalas, podendo-se chamálas de “romance de formação” da botânica no Brasil, tomando de empréstimo o gênero celebrizado por Goethe e com quem Martius guardaria o convívio e o diálogo filosófico.29 A retomada dos manuscritos que acompanharam a publicação da Flora Fluminensis e de outros papéis, vistos como correlatos, nos anos 1940, constitui um capítulo da historiografia da ciência, da trajetória do Arquivo Nacional e dos arquivos no período, e faz pensar ainda nas cores que tingiriam o sentimento da natureza no Brasil do Estado Novo.

29  MAZZARI, M. V. Natureza ou Deus: afinidades panteístas entre Goethe e o “brasileiro” Martius. Estudos Avançados, São Paulo, v. 24, n. 69, p. 183-202, jan. 2010. Disponível em: <http://www.revistas. usp.br/eav/article/view/10520>. Acesso em: 24 mar. 2017.

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