Direito do Consumidor

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Direito do consumidor


Universidade Federal Fluminense Reitor Sidney Luiz de Matos Mello Vice-reitor Antonio Claudio Lucas da Nóbrega

Eduff – Editora da Universidade Federal Fluminense Conselho editorial Aníbal Francisco Alves Bragança (presidente) Antônio Amaral Serra Carlos Walter Porto-Gonçalves Charles Freitas Pessanha Guilherme Pereira das Neves João Luiz Vieira Laura Cavalcante Padilha Luiz de Gonzaga Gawryszewski Marlice Nazareth Soares de Azevedo Nanci Gonçalves da Nóbrega Roberto Kant de Lima Túlio Batista Franco Diretor Aníbal Francisco Alves Bragança


Patricia Galindo da Fonseca (Universidade Federal Fluminense)

Direito do consumidor Estudo comparado Brasil-Quebec

Apresentação

Claudia Lima Marques

(Universidade Federal do Rio Grande do Sul)

Prefácio

Thierry Bourgoignie

(Université du Québec à Montréal)


Copyright © 2016 Patricia Galindo da Fonseca Copyright © 2017 Eduff – Editora da Universidade Federal Fluminense Série Universidade, 5

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da editora. Direitos desta edição cedidos à Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense Rua Miguel de Frias, 9, anexo/sobreloja - Icaraí - Niterói - RJ CEP 24220-008 - Brasil Tel.: +55 21 2629-5287 www.eduff.uff.br - faleconosco@eduff.uff.br Impresso no Brasil, 2017 Foi feito o depósito legal.


A Geraldo, JoĂŁo Alfredo, Cleo, Ivan.



Agradecimentos A elaboração deste estudo somente foi possível graças ao apoio de diversas pessoas, todas brilhantes e apaixonadas, a quem eu gostaria de dirigir os meus mais sinceros agradecimentos. De formas diversas, participaram todas na realização do presente trabalho. Os meus agradecimentos são endereçados a Amanda da Fonseca de Oliveira, Angela e João José G ­ alindo, Cleo Galindo da Fonseca, Claudia Lima Marques, David ­Cameron, Fabiana D'Andréa Ramos, George Lebel, Geneviève Saumier, Geraldo da Fonseca Júnior, Lívia Lima, Lucie Rebelo, Malca Dvoira Beider (in memoriam), Marc Lacoursière, Márcio Brandão (in memoriam), Nathalie Didier, Pierre Bosset e ­Stéphanie Berstein. Minha gratidão dirige-se, particularmente, a Thierry Bourgoignie, meu orientador de tese, cuja extraordinária expertise me foi extremamente valiosa durante todo o doutorado. Seu constante incentivo, seu comprometimento pessoal com o tema e sua genuína amabilidade me inspiraram e motivaram enormemente ao longo de todo o percurso. Uma outra pessoa merece também um agradecimento especial: Hughes Brisson, meu revisor, que deu prova de paciência, oferecendo seu apoio em momentos de extrema fadiga intelectual.



Lista de siglas e abreviações ACEF

Associations des coopératives d’économie familiale ADCT Ato das Disposições Constitucionais Transitórias AGB Gesetz Gesetz zur Regelung des Rechts der Allgemeinem Geschaftsbedingungen ALÉNA Accord de libre-échange nord-américain ANATEL Agência Nacional de Telecomunicações B2B Business-to-Business B2C Business-to-Consumer BGB Bürgerliches Gesetzbuch BRASILCON Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor Ccb Código Civil brasileiro CcBC Code civil du Bas Canada CCQ Code civil du Québec CDC Código de Defesa do Consumidor CJCE Cour de justice des communautés européennes CpcQ Código de Processo Civil do Brasil CpcQ Code de procédure civile du Québec CPI Comissão Parlamentar de Inquérito CRTC Conseil de la radiodiffusion et des télécommunications CSC Cour suprême du Canada CSN Confédération des syndicats nationaux


DPDC

Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor FACEF Fédération des Associations coopératives en économie familiale GREDICC Groupe de recherche en droit international et comparé de la consommation IDEC Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor IPIC Institut de promotion des intérêts des consommateurs JEC Juizado Especial Cível LCSPC Loi canadienne sur la sécurité des produits de consommation LPC Loi sur la protection du consommateur MERCOSUR Mercado Comum do Cone Sul OCDE Organisation de coopération et de développement économique OMC Organisation mondiale du commerce OPC Office de la protection du consommateur SENACON Secretaria Nacional do Consumidor SINDEC Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor SNDC Sistema Nacional de Defesa do Consumidor STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justiça TAC Termo de ajustamento de conduta TJ Tribunal de Justiça UQAM Université du Québec à Montréal


Índice Apresentação 17 Prefácio 23 Introdução 27 Primeira parte – Surgimento e consolidação do direito do consumidor no Brasil e no Quebec 37 Capítulo 1 – Formação de um panorama normativo visando à proteção do consumidor brasileiro 39 1. Contexto jurídico favorável à adoção de uma dimensão ampla, coletiva e fundamental dos interesses dos consumidores 39 1.1. Dimensão ampla e coletiva 40 A. Alguns crimes e delitos contra os consumidores 40 B. Necessidade de proteger, representar e organizar os consumidores 41 C. Ação civil pública e representação jurisdicional dos direitos coletivos dos consumidores 44 1.2. Dimensão de direito fundamental: constitucionalização dos direitos dos consumidores 46

2. Código de Proteção e Defesa do Consumidor (CDC) 52 2.1. Influência de legislações e doutrina estrangeiras 52 2.2. Adoção e conteúdo do CDC 53 A. Consumidor 57 A (a). Definição de base 57 A (b). Consumidor coletivo 58 A (c). Consumidor vítima de evento 59 A (d). Consumidor exposto 60 A (e). Consumidor hipervulnerável 61


B. Fornecedor 62 C. Serviços públicos 63 2. 3. Instrumentos de proteção contratual 64 A. Direito de arrependimento 65 B. Informação pré-contratual 66 B (a). Oferta contratual, informação e publicidade 67 B (b). Oferta não publicitária 68 B (c). Publicidade 70 C. Cláusulas abusivas 72 C (a). Parâmetro previsto no artigo 51 IV 72 C (b). Perspectiva objetiva 74 C (c). Posição minoritária 79 C (d). Revisão da cláusula abusiva 80 D. Práticas abusivas 83 2.4. Preeminência dos direitos coletivos dos consumidores 87 A. Concepção de direito coletivo dos consumidores como conjunto de direitos individuais 88 B. Concepção de direito coletivo em sentido estrito 89 C. Direito difuso 89 D. Pluralidade de conceitos de direito coletivo 91

3. Posição ocupada pelo Código de Proteção e Defesa do Consumidor no sistema jurídico brasileiro 92 3.1. Princípios basilares do CDC 92 A. Vulnerabilidade do consumidor 94 B. Ordem pública 97 C. Boa-fé objetiva 98 D. Equilíbrio contratual 99 E. Função social do contrato 100 F. Transparência 101 G. Informação 101 3.2. Relação entre o Código Civil e o Código de Proteção e Defesa do Consumidor: independência e complementaridade 101 A. CDC versus Código Civil 102 A (a). Microssistema jurídico 102 A (b). Diálogo de fontes 103 B. Superioridade das normas do CDC 105 C. Influência do CDC sobre o Código Civil 106

Capítulo 2 – Formação de um quadro normativo visando à proteção do consumidor 109 1. Surgimento e desenvolvimento do direito do consumidor no Quebec 109 1.1. Contexto histórico 110 1.2. Primeiras intervenções legislativas em favor dos consumidores 113


A. Código Civil do Baixo Canadá 113 B. Intervenções legislativas na seara contratual 115 B (a). Reconhecimento da lesão entre maiores 116 B (b). À busca de um melhor equilíbrio entre credores e devedores 118 B (c). Regulamentação do contrato de venda a prazo 119 1.3. Sociedade de consumo e explosão legislativa em favor dos consumidores 120 1.4. Década de 1970: um contexto sociopolítico propício à promoção dos interesses dos consumidores 121 A. Era da modernidade e da soberania 123 B. Surgimento de um movimento associativo em favor dos consumidores 127 1.5. Declínio do papel do Estado 128

2. Legislação em vigor 131 2.1. Dispersão das normas do direito do consumidor 131 A. Competência legislativa federal 133 B. Competência legislativa provincial 145 2.2. Proteção ao consumidor segundo a Lei sobre Proteção do Consumidor e o Código Civil do Quebec 149 A. Lei sobre Proteção do Consumidor (1978) 149 A (a). Campo de aplicação 150 A.(b). A adoção da noção de consumidor “médio” 158 A.(c). Predominância de regras específicas 163 B. Código Civil de 1994 173 B (a). Contrato de consumo 174 B (b). Interpretação favorável ao consumidor 175 B (c). Cláusula externa 175 B (d). Cláusula ilegível ou incompreensível 176 B (e). Cláusula abusiva 178 2.3. Relação entre o Código Civil e a Lei sobre Proteção do Consumidor 180 A. Dependência do Código Civil 180 A (a). Integração parcial 181 A (b). Reconhecimento de uma categoria particular de contratos 183 A (c). Contribuições do Código Civil para a noção de “consumidor” 185 B. Contrato como fio condutor 187 B (a). Abordagem contratualista 187 B (b). Lei específica, mais do que geral 188

Capítulo 3 – Ruptura de confiança e iniciativas adotadas 191 1. Ruptura de confiança 191

1.1. Individualizaçao da sociedade e crise da pós-modernidade 192 1.2. Globalização dos mercados de consumo 195


1.3. Desenvolvimento das tecnologias de informação 197 1.4. Crise financeira e crise da zona do euro 201 1.5. Embaraços provocados pelo desenvolvimento sustentável 207

2. Movimento plural de reforma em curso 208 2.1. Revisão da Lei sobre a Proteção do Consumidor (LPC) do Quebec 209 A. Primeira etapa da reforma 210 B. Segunda etapa da reforma 211 C. Projeto de reforma em curso: a luta contra o superendividamento 214 2.2. Reforma institucional e revisão do CDC 219 A. Projeto de Lei 3.514 de 2015 (PL 3.514 de 2015) 221 B. Projeto de Lei do Senado n. 282 de 2012 (PL 282 de 2012) 225 C. Projeto de Lei 3.515 de 2015 (PL 3.515 de 2015) 225

Segunda parte – Medidas visando garantir eficácia ao Código de Defesa do Consumidor (CDC) e à Lei sobre Proteção do Consumidor (LPC) 233 Capítulo 1 – Suporte de um quadro institucional específico 235 1. Instituições administrativas encarregadas da proteção do consumidor 235 1.1. No Quebec 235 1.2. No Brasil 242 A. Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC) 243 B. Procons 246

2. Instituições judiciárias especializadas 252 2.1. Sistemas jurídicos e papel do juiz 252 2.2. Papel do juiz na aplicação do direito do consumidor no Brasil e no Quebec 255 A. No Brasil 257 A (a). Interpretação judicial 257 A (b). Varas especializadas em direito do consumidor 258 A (c). Juizado Especial Cível (JEC) 259 A (d). Ministério Público (MP) 261 B. No Quebec 264 B (a). Interpretação de certas disposições de direito material pelo juiz 266 B (b). Direito processual e o papel do juiz 268

3. Organização dos interesses dos consumidores e sociedade civil 271 3.1. No Brasil 271 A. Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON) 272 B. Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) 273


3.2. No Quebec 274 A. Organizações civis de proteção do consumidor 274 A (a). União dos Consumidores (tradução nossa) 276 A (b). Opção Consumidores (tradução nossa) 278 B. Poderes das organizações de proteção do consumidor 280

Capítulo 2 – Representação jurisdicional dos interesses coletivos dos consumidores 283 1. Vantagens de representação legal dos interesses coletivos dos consumidores 285 1.1. Vantagens de natureza econômica 285 A. Para os consumidores 286 B. Para o Poder Judiciário 287 C. Para os réus 288 1.2. Considerações de justiça social 288

2. Modos de representação legal dos interesses coletivos dos consumidores 289 2.1. Objeto da ação de representação coletiva 290 A. Ação preventiva 290 B. Ação de reparação 293 2.2. Qualificação da pessoa autorizada a agir em representação do interesse coletivo 294 2.3. Sistema aberto ou misto 294 A. Um ou mais indivíduos, agindo com ou sem mandato 301 B. Um grupo privado, tal como uma organização de consumidores 302 C. Um órgão público, como o Ministério Público 303

3. Representação legal dos direitos coletivos dos consumidores no Brasil 304 3.1. Proteção de direitos difusos 308 3.2. Proteção dos direitos coletivos 309 3.3. Proteção dos direitos individuais homogêneos 310 3.4. Proteção dos diferentes tipos de direitos coletivos em uma única ação 311

4. Representação jurídica dos direitos coletivos dos consumidores no Quebec 314

Capítulo 3 – Outras medidas visando facilitar o acesso à Justiça 329 1. Assistência jurídica ao consumidor 329 1.1. Assistência jurídica no Brasil 329 1.2. Assistência jurídica no Quebec 331

2. Inversão do ônus da prova 335


2.1. Inversão do ônus da prova segundo o CDC 337 A. Inversão facultativa do ônus da prova 337 B. Inversão obrigatória do ônus da prova 340 2.2. Inversão do ônus da prova segundo a LPC 341

Conclusão 345 Referências 357


Apresentação É com grande prazer que apresento este livro da professora dra. Patricia Galindo da Fonseca, da UFF, oriundo da tese defendida com muito êxito e nota máxima na Universidade do Quebec em Montreal (UQAM), Canadá, sob a brilhante orientação do professor dr. Thierry Bourgoignie. Trata-se de uma verdadeira tese de doutorado, trazendo real contribuição à ciência do direito do consumidor. A seriedade da pesquisa de direito comparado desenvolvida confirma uma tese sólida e de qualidade, convincente e bem documentada, original tanto no tema escolhido, quanto nas suas conclusões. Repita-se que o tema selecionado foi muito bem escolhido e, igualmente, muito bem trabalhado, abordando não somente as origens e o desenvolvimento do direito do consumidor no Brasil e no Quebec, mas, também, o momento atual de consolidação desse direito, analisando os projetos legislativos em curso nas duas juridições.1 Patricia Galindo da Fonseca é detentora de qualidades acadêmicas – professora na Universidade Federal Fluminense (UFF), coordenadora científica do Groupe de recherche en droit international et comparé de la consommation (Gredicc), vice-coordenadora do Núcleo do Consumidor da Faculdade de Direito da UFF, pesquisadora-membro do Centre d’études et de recherches sur le Brésil (Cerb), membro do Conselho Científi-

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FONSECA, Patricia Galindo da; RAMOS, Fabiana D’Andréa; BOURGOIGNIE, Thierry. Direito do consumidor no Brasil e no Quebec: diálogos de direito comparado. Niterói: Eduff, 2013. 17


co da página eletrônica Cisg-Brésil2 e da Société Québécoise de Droit International – e muitas qualidades pessoais. Nesta obra, reúne sua experiência no Brasil e no Quebec com maestria, assim como apresenta uma visão dos problemas materiais e de processo de consumo, que há muito nos encantam.3 O rigor da análise e dos argumentos utilizados, aliado à utilização precisa da metodologia da comparação funcional deve ser mencionado como uma grande qualidade do trabalho.4 O livro é muito bem escrito, de leitura agradável, tendo sido dedicada especial atenção à forma, dispondo ainda de farta jurisprudência, o que merece uma referência especial. A bibliografia é bastante rica e bem utilizada. As notas de rodapé são particularmente interessantes, sendo os leading cases bem citados e oportunamente referidos no corpo do texto, demonstrando um absoluto controle da matéria examinada. A análise referente ao direito brasileiro é impecável e profunda, não necessitando de correção alguma: trata-se de uma grande contribuição à disciplina no Brasil. O interesse da obra resulta também da muito boa análise feita acerca do direito quebequense. Brasil e Canadá são países dotados de grande superfície,5 são multiculturais6 e contam, ambos, com uma sociedade de consumo em expansão.7 O Brasil e o Quebec, em particular, Sobre a Convenção de Viena de 1980, conferir FONSECA, Patricia Galindo da. Brazil’s Accession to the CISG and Transmission of Risk: Some Considerations. In: SCHWENZER, Ingeborg; PEREIRA, Cesar; TRIPODI, Leandro (Ed.). CISG and Latin America: Regional and Global Perspectives. [S.l.]: Eleven International Publishing, 2016. p. 135-148. 3 Da autora, Le dynamisme du droit brésilien de la consommation. Revue québécoise de droit international, v. 23.1, p. 115-155 2011; A ação coletiva no Quebec: reflexões sobre o recours collectif. Revista de Direito do Consumidor, v. 75, p. 259-297, jul./set. 2010 e Assistência jurídica no Canadá. O modelo quebequense. Revista Forense, v. 408, p. 283-298, 2010. 4 Em Direito Comparado da autora: FONSECA, Patricia Galindo da. Ruptura de confiança e novas iniciativas: estudo de direito comparado. Revista de Direito do Consumidor, v. 94, p. 113 – 154, jul./ago. 2014. 5 LINTEAU, Paul-Andre. Histoire du Canada. Paris: PUF, p. 3. 6 MOORE, Benoit. Enfoques sobre el derecho quebequense de família. In: ROJO, Raúl Enrique (Org.). Sociedade e direito no Quebec e no Brasil. Porto Alegre: PPGDir/UFRGS, 2003. p. 165 et seq. 7 Conferir os dados geográficos e históricos, assim como a evolução legislativa no Brasil: DAVID, René. Le Droit brésilien jusqu’au 1950. In: WALD, Arnoldo; JAUFFRET-SPINOSI, Camille. Le droit brésilien – Hier, Aujourd’hui et Demain. Paris: Societé de Législation Comparé, 2005. p. 11-13. Para o Quebec: POPOVIC, Adrian. El Quebec: una introducción. In: ROJO, Raúl Enrique (Org.). Sociedade e direito no Quebec e no Brasil. Porto Alegre: PPGDir/UFRGS, 2003. p. 13-19. 2

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são ligados por admiração recíproca e por incessante luta pela igualdade e pelo acesso à Justiça,8 tendo a história legislativa da proteção do consumidor – tão bem analisada no presente trabalho – unido tais lutas. Com efeito, as normas e a doutrina de proteção do consumidor do Quebec exerceram influência muito positiva no direito brasileiro do consumidor, desde a elaboração do Código Brasileiro de Proteção e Defesa do Consumidor, em 1989-1990, até os dias atuais. Comparar o direito do consumidor no Brasil e no Quebec é, porém, tarefa delicada, tendo sido muito bem executada por Patricia Galindo da Fonseca. O texto também detém metodologia apropriada e rigorosa. Em resumo, o trabalho elogia a sistematização, a instrumentação pragmática e a visão “coletiva” da proteção do consumidor no Brasil, tese que compartilho, fazendo, por outro lado, observações críticas à legislação atual e à prática do direito quebequense, de forma documentada e bem elaborada. A argumentação utilizada é bem conduzida, os resultados obtidos a partir da sólida e coerente interpretação são claros e precisos, demonstrando excelente conhecimento da jurisprudência e do direito do consumidor no Brasil e no Quebec, assim como dos seus desafios sociais, econômicos e jurídicos.9 René David havia já assinalado a originalidade do direito brasileiro, passível de despertar grande interesse no estudioso do direito comparado.10 Sendo o argumento da tese bem elaborado e documentado, demonstrando com sólida construção metodológica de direito comparado o “contexto jurídico favorável à adoção de uma dimensão ampla, coletiva e fundamental dos interesses dos consumidores” (título de uma excelente seção) na ordem jurídica brasileira, o livro conclui com a “preeminência dos direitos coletivos dos consumidores” (título de outra excelente passagem). ROJO, Raúl Enrique. Jurisdição e civismo: a criação de instâncias para dirimir conflitos sociais no Brasil e no Québec. In: ROJO, Raúl Enrique (Org.). Sociedade e direito no Quebec e no Brasil. Porto Alegre: PPGDir/UFRGS, 2003. p. 21-42. 9 FONSECA, Patricia Galindo da. Nota sobre jurisprudência canadense histórica em defesa do consumidor sobre matéria bancária. Revista de Direito do Consumidor, v. 97, p. 461 – 474, jan./fev. 2015. 10 CANIVET, Guy. Préface: Tirer profit du droit brésilien. In: WALD, Arnoldo; JAUFFRET-SPINOSI, Camile. Le droit brésilien – hier, aujourd’hui et demain. Paris: Société de Législation Comparé, 2005. p. 11-13. 8

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A seção 3 da primeira parte (intitulada Posição ocupada pelo Código de Proteção e Defesa do Consumidor no sistema jurídico brasileiro), ao analisar as diretrizes da codificação (micro-sistematização) brasileira e a relação entre o Código Civil e o CDC, constitui-se no coração da tese: a sistematização brasileira assegura maior eficácia, autonomia e uma dimensão coletiva à proteção do consumidor. A autora conclui que este “notável desempenho do direito do consumidor no Brasil” (na Introdução) vem da “unidade do direito brasileiro do consumidor, a clareza dos seus objetivos e a enunciação dos seus princípios orientadores que permitem que ele seja menos suscetível a alterações” (na Conclusão). A autora considera que “Novas espécies de relações de consumo são criadas dia após dia. A única maneira viável de se dar conta da sua complexidade e da sua contínua e crescente transformação pressupõe uma declaração de princípios gerais, sendo inviável a regulamentação das novas e inevitáveis relações de consumo através de regras específicas”. O trabalho faz um elogio à codificação do direito do consumidor, considerando a lei do Quebec “uma lei específica e não geral”.11 Segundo a autora, essa opção quebequense limita e prejudica a eficácia do edifício legislativo construído em torno da proteção do consumidor: “A falta de um código unificado e a dispersão da legislação relativa à proteção dos consumidores no Quebec levam à sobreposição e à combinação de diferentes espaços jurídicos, tornando o Estado incapaz de dominar a regulamentação social” (na Conclusão). No Quebec, “onde as diretrizes são menos claras, devido a fragmentação das normas e a preeminência atribuída ao contrato, a reforma legislativa revela-se complexa e hesitante”.12 É preciso assinalar que nenhum livro, no Brasil, se dedicou a esse tema, o estudo comparado geralmente tendo como objeto o direito europeu ou o direito francês em particular, de Da autora “Fascicule 1: Principes directeurs du droit de la consommation”. In: LexisNexis, Encyclopédie JurisClasseur Québec, 2014 (6025) 1/1 – (6025) 1/27 e “Fascicule 22: Exigence de permis, de compte en fidéicomiss et de cautionnement”. In: LexisNexis, Encyclopédie JurisClasseur Québec, 2015 (6025) 22/1 – (6025) 22/34. 12 A propósito do direito canadense, consultar FONSECA, Patricia Galindo da. Canadian Consumer Law. In: URBINA Jorge Luis Tomillo (Dir.). La protección jurídica de los consumidores en el espacio euroamericano. Granada (Espanha): Comares, 2014. p. 197-211. 11

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vido à influência exercida pelo Projeto Jean Calais-Auloy sobre o direito brasileiro, quando da elaboração do Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Evidenciadas, portanto, a singularidade e originalidade do presente trabalho e, pela sua qualidade, a contribuição que representa para a disciplina do direito do consumidor. Os principais aspectos positivos deste excelente trabalho de pesquisa de direito comparado são a sua atualização, visto que analisa em detalhes os movimentos de reforma no Brasil e no Quebec, as mudanças sociais que levaram à necessidade de atualização (excelentes passagens sobre a crise da pós-modernidade e hipermodernidade) e a opção por uma sistematização flexível e mais eficiente adotada pelo direito do consumidor no Brasil. Excelente e profundo resultado de pesquisa, a tese apresentada é convincente, bem construída e documentada, com interessantes notas de rodapé, com sólida construção metodólogica de direito comparado, devendo ser sublinhado o rigor da análise feita acerca do direito brasileiro do consumidor. Não é necessário dizer mais: obra de leitura imprescindível e útil a todos. Fiquem aqui registrados meus parabéns à autora, ao seu orientador e ao editor, que dão uma grande contribuição ao desenvolvimento do direito brasileiro de proteção dos consumidores. Boa leitura a todos! Claudia Lima Marques Professora titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRGS, doutora pela Universidade de Heidelberg, com bolsa do DAAD, mestre em direito pela Universidade de Tübingen, pós-doutorada pela Universidade de Heidelberg, Diretora da Associação Luso-Alemã de Juristas, DLJV (Berlim), líder do Grupo de Pesquisa CNPq “Mercosul e Direito do consumidor”, pesquisadora 1 A do CNPq e diretora do Brasilcon.

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Prefácio Desde o fim dos anos 1980, tive o imenso privilégio de acompanhar de perto a evolução do direito do consumidor no Brasil. Como contribuí modestamente para o conteúdo do Código de Proteção e Defesa do Consumidor adotado em 1990, pude assisitir às suas sucessivas revisões e à sua efetiva aplicação, através dos frequentes intercâmbios celebrados com os meus estimados colegas brasileiros. Forçoso é constatar que o Brasil se destaca, no cenário internacional, pela extensão das reformas legislativas e institucionais que empreendeu, a fim de promover os direitos dos consumidores. A proteção do consumidor é, no país, alçada à prioridade política, sendo os direitos do consumidor enunciados no seio da própria Constituição brasileira. O quadro legislativo de referência se apresenta sob a forma de um código ambicioso e progressista, que reúne a maioria dos temas relevantes para a proteção do consumidor em um corpo único de disposições, assegurando, assim, a sua coesão. Fundamentalmente, o direito do consumidor se consolida como uma disciplina que desfruta de plena autonomia em relação às categorias jurídicas tradicionais, principalmente no que se refere ao direito contratual e ao direito das obrigações. Sabe-se que nada pode ser mais ilusório do que uma legislação rica e completa, cuja aplicação não seja observada. Igualmente quanto a esse aspecto, o Brasil surpreende pela vastidão dos meios e dos recursos destinados a uma efetiva implementação dos dispositivos do Código. Os órgãos públicos federais e estaduais responsáveis pela proteção dos consumidores, 23


o Poder Judiciário, as organizações de consumidores, professores e pesquisadores, todos contribuem, em estreita e frequente cooperação, para fazer do direito do consumidor um direito em constante movimento. Especialmente no plano processual, instrumentos novos e específicos são disponibilizados, visando a assegurar a defesa dos direitos individuais e coletivos dos consumidores, entre esses últimos o direito difuso, reconhecido como um direito distinto. Portanto, é natural que eu tenha ficado particularmente feliz em acompanhar a colega Patricia Galindo da Fonseca na elaboração do presente livro. Essa participação permitiu que eu mantivesse meu nível de conhecimento sobre o direito brasileiro do consumidor e também que eu melhor compreendesse as suas conquistas. Sob a perspectiva do direito comparado, a abordagem adotada é muito enriquecedora. Seja no Quebec, onde leciono, seja nos países da União Europeia, onde estão minhas raízes, ou ainda em outros países e regiões que frequento por conta das minhas atividades profissionais, todos têm interesse em recorrer à experiência brasileira quando se trata de esclarecer, lembrar ou assentar os fundamentos, os objetivos e os instrumentos jurídicos de uma política ativa de proteção do consumidor. Agradeço a Patricia Galindo da Fonseca por ter desejado que eu a orientasse no seu trabalho de reflexão e de redação. Eu a parabenizo calorosamente pela obra realizada. Tendo sido apresentada, em março de 2014, como tese de doutorado na Université du Québec de Montréal (UQAM), o estudo obteve o prêmio de excelência, por unanimidade do júri. Regozijo-me com o fato de que um trabalho de tal qualidade não fique, pois, à sombra da doutrina, recebendo, através da sua publicação, a divulgação que merece. Por trás da beleza do livro, esconde-se intenso trabalho, composto de grandes momentos de estímulo intelectual, mas também de períodos de dúvida e de hesitação. Entretanto, Patricia Galindo da Fonseca nunca fraquejou diante da dúvida. Ela nos oferece uma obra imponente, claramente estruturada e rica em relevantes referências. Superando a comparação do desenvolvimento e das conquistas do direito do consumidor nas duas ordens jurídicas selecionadas, a obra nos convida a uma reflexão sobre a capacida24


de de o direito oferecer um elevado grau de proteção na nossa sociedade de hiperconsumo, bem como sobre as condições e instrumentos legais para tanto. Pela qualidade da análise que nos é disponibilizada e pela inevitável reflexão provocada pela leitura, a autora merece nossas mais sinceras e calorosas felicitações. Thierry Bourgoignie Professeur titulaire Département des sciences juridiques Université du Québec à Montréal (UQAM) Montréal, Québec, Canada.

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Introdução Já há algumas décadas, a proteção do consumidor é alvo de preocupação da sociedade,1 da mídia,2 do meio universitário3 e dos poderes públicos.4 Em 2015, a necessidade de proteger o consumidor manteve-se intacta.5 A rigor, cada vez mais, a globalização Por exemplo, em maio de 2012, o maior sindicato canadense das telecomunicações apresentou um extenso relatório ao Conselho Nacional de Radiodifusão e de Telecomunicações (Conseil de la radiodiffusion et des télécommunications, CRTC) em favor da criação de um Código Nacional de serviços sem fio, buscando garantir a proteção dos interesses dos consumidores. (Sindicato canadense de comunicações, de energia e de papel, Instance pour déterminer si les conditions dans le marché canadien du sans-fil ont suffisamment changé pour justifier l’intervention du Conseil à l’égard des services sans fil de détail, Avis de consultation de télécom CRTC 2012-206 (Ottawa, le 4 avril 2012) – Appel aux observations. Disponível em: <http://www.cep.ca/sites/cep.ca/files/docs/fr/120515_memoire_au_CRTC_fr.pdf>. Acesso em: 29 out. 2012). Sobre o aumento do número de associações francesas de defesa dos consumidores e sobre as suas recentes transformações ocorridas em função da crise de 2009 (Tchernonog, 2007). 2 A título de ilustração, mencionamos o programa semanal de televisão, veiculado pela Radio Canada, intitulado La facture. 3 A título de exemplo, um workshop sobre a proteção dos consumidores foi organizado pela Universidade de Waterloo e pelo Groupe de recherche en droit international et comparé de la consommation (GREDICC) da Université du Québec à Montréal (UQAM) e ocorreu em 30 de outubro de 2012. O encontro reuniu mais de 30 universidades canadenses, originárias das diversas províncias, assim como especialistas do mundo empresarial, representantes das instituições públicas e dos consumidores. O objetivo do workshop foi discutir a criação de uma rede comum de pesquisa, estabelecendo estreita colaboração entre os participantes. A conferência contou com o apoio financeiro do Conselho de Pesquisa de Ciências Sociais e Humanas do Canadá (nossa tradução de Conseil de recherches en sciences humaines). 4 Industry Canada, importante instituição pública federal canadense que reúne 11 ministérios, também participou no workshop mencionado acima, patrocinando-o. Esteve presente no encontro, como representante da Industry Canada, o sr. diretor geral do Office of Consumer Affairs, sr. Michael Jerkin. 5 Bourgoignie, 2006. 1

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que caracteriza os mercados contemporâneos de consumo reforça a importância de identificar, no seio dos mercados sem fronteiras atualmente em construção, modos mais eficazes de proteger os interesses dos consumidores. A extensa relação de estudos publicados sobre a questão confirma a relevância e a atualidade do tema. Segue, anexo, um rol selecionado de obras sobre o assunto. Este livro tem como objetivo apresentar e avaliar o estado do direito do consumidor em duas jurisdições consideradas na vanguarda do movimento para proteger os consumidores: o Brasil e o Canadá, mais especificamente, a província do Quebec. As políticas públicas instauradas, os organismos e as instituições criadas, assim como as leis adotadas por esses dois Estados são descritos e comparados. Para além da simples comparação dos sistemas normativos e institucionais em vigor, o estudo investiga o contexto político, socioeconômico e jurídico em que o respectivo direito do consumidor surgiu e desenvolveu-se. O status adquirido pela disciplina dentro de cada sistema jurídico estudado é examinado, sendo sugeridas algumas alterações para o seu desenvolvimento futuro. O debate continua aberto, incitando a uma reflexão profunda sobre os valores, objetivos e instrumentos utilizados pelo direito do consumidor. A discussão ultrapassa as fronteiras do Brasil e do Canadá. Na verdade, devido ao caráter mais avançado do direito brasileiro e quebequense do consumidor no continente americano, o desenvolvimento da proteção assegurada ao consumidor nessas duas jurisdições repercute nos trabalhos desenvolvidos pela Organização dos Estados Americanos que visam aproximar os sistemas de proteção do consumidor na esfera panamericana. Uma lei quebequense de 1971 foi uma das primeiras do mundo a ter como objetivo exclusivo a proteção do consumidor. As suas normas mais importantes dispunham sobre a criação de um organismo público de proteção ao consumidor, o Office de la protection du consommateur, sobre os contratos de crédito, assim como sobre os contratos com vendedores ambulantes. A lei de 1971 foi substituída, em 1978, por uma nova Lei sobre Proteção do Consumidor (Loi sur la protection du consommateur), de maior abrangência. Desde então, o direito do consumidor estabeleceu-se na província canadense do Quebec como uma disciplina jurídica única e diferenciada. 28


Claude Masse e Pauline Roy (apud Bureau; Mackay, 1987, p. 338) afirmaram, em 1987, que o Quebec estaria “na linha de frente dos países ocidentais no que diz respeito à defesa do consumidor” (tradução nossa). Será que ainda é assim em 2017? O estudo comparativo com o sistema brasileiro de defesa do consumidor, considerado um dos mais dinâmicos do mundo, auxilia na resposta a tal indagação. A investigação desenvolvida neste estudo conclui, efetivamente, por uma maior solidez no edifício legislativo e institucional em defesa do consumidor construído no Brasil, em comparação com aquele vigente no Quebec. Torna-se, portanto, útil identificar os elementos justificadores do notável desempenho do direito brasileiro do consumidor, a fim de suscitar o debate acerca de uma possível reforma, normativa ou institucional, capaz de fortalecer a posição ocupada pelo direito do consumidor no Quebec. Através de um olhar exterior e livre de qualquer ideia preconcebida ou estereótipo eventualmente veiculado por ordenamentos jurídicos nacionais, o direito comparado permite identificar pontos fortes e fracos do direito do consumidor de cada um dos sistemas estudados, avaliando e comparando suas conquistas e suas limitações. Ainda que em uma das jurisdições o estado do direito do consumidor pareça mais precário do que no outro, a análise sob a ótica do direito comparado oferece algumas pistas de reflexão aptas à proposição de mudanças necessárias com vistas a fortalecer a disciplina e torná-la mais capaz de cumprir a função que lhe é destinada. Conforme nos ensina Pierre-Claude Lafond (2008, p. 157), a proteção do consumidor enfrenta desafios universais, que somente serão superados através das soluções inspiradas nas experiências estrangeiras. Assim sendo, o autor afirma que as iniciativas adotadas pelo direito comparado devem ser aproveitadas e adaptadas. Para efeito da análise, foram utilizados três grandes parâmetros de comparação: (a) a coerência do ordenamento positivo implementado, visando garantir a proteção dos consumidores; (b) a natureza dos princípios e dos valores de referência, que se encontram na base do direito do consumidor; (c) a posição do direito do consumidor no sistema jurídico tradicional, mais particularmente, em relação ao Código Civil e ao direito dos contratos. 29


A primeira parte do estudo estrutura-se em torno desses três elementos de comparação. O livro analisa as condições que provocaram o surgimento do direito do consumidor no Brasil e na província canadense do Quebec. Sem refazer toda a história do direito brasileiro e quebequense do consumidor, os fundamentos básicos mais relevantes da disciplina são identificados. O primeiro capítulo discute o desenvolvimento do direito do consumidor no Brasil. O segundo investiga o estabelecimento do ordenamento jurídico de proteção dos consumidores no Quebec. O terceiro desenha um retrato do estado atual do direito do consumidor em ambas as jurisdições, apresentando as propostas atualmente em discussão para a reforma da matéria. O estudo revela que os poderes públicos do Brasil e do Quebec adotaram abordagens distintas, no que diz respeito ao consumidor. O Estado brasileiro assumiu uma postura intervencionista, enquanto o governo canadense do Quebec optou por um modelo liberal. Sendo o objetivo principal do modelo intervencionista o incremento do mercado econômico, visa-se em primeiro lugar à garantia da estrutura concorrencial. Em segundo lugar, o foco é capacitar os consumidores para o exercício da sua livre escolha, oferecendo-se condições necessárias para tal. Essa divergência de abordagens tem um impacto imediato sobre a natureza e a eficácia das medidas adotadas para proteger os direitos dos consumidores. O impacto é particularmente maior no que diz respeito à autonomia reconhecida ao direito do consumidor no seio do sistema jurídico nacional. Através da identificação de vários fatores presentes no direito brasileiro do consumidor do Brasil e ausentes no direito quebequense, destaca-se o quanto eles foram determinantes para o fortalecimento da disciplina. Menciona-se, por exemplo, o reagrupamento de regras de direito do consumidor, regras materiais, processuais e de outras naturezas, em um conjunto único e coerente de normas. A composição de tal conjunto coordenado e sistemático permitiu que fosse alcançada uma distância dogmática e jurisprudencial deveras incomum em relação aos princípios do direito civil dos contratos e das obrigações. O direito do consumidor em vigor no Quebec, por outro lado, evolui em um contexto em que é reconhecida uma posição privilegiada à relação contratual estabelecida entre um consumidor individual e uma empresa. Devido à relação estreita da 30


disciplina com o contrato, e consequentemente com o princípio da igualdade das partes, o direito do consumidor encontra-se naturalmente inserido no direito privado. No Brasil, a situação é distinta. O contexto ideológico é proeminentemente voltado para a proteção do direito coletivo do consumidor. Antes mesmo do início da vigência do Código de Proteção e Defesa do Consumidor em 1990, a Lei n. 7.347 de 24 de julho de 1985 (Lei de Ação Civil Pública) dispunha sobre uma ação coletiva de proteção dos consumidores. Desde a sua criação, o direito do consumidor foi, portanto, concebido a partir da sua dimensão coletiva. O legislador considerou o direito coletivo ou difuso dos consumidores tanto quanto, ou até mais, do que os seus direitos individuais. A constitucionalização dos direitos do consumidor pela Carta de 1988 confirma a sua vocação social e coletiva. Os direitos dos consumidores tornaram-se direitos fundamentais, sendo a sua defesa compreendida como parte essencial dos direitos fundamentais do cidadão. A Constituição impôs ao legislador a redação de um novo e específico conjunto normativo, destinado a consagrar os direitos dos consumidores, assegurando-lhes a sua eficácia. O Código de Proteção e Defesa do Consumidor (CDC) foi, assim, gerado como um conjunto de princípios e valores próprios, sem necessariamente ter de se recorrer às regras do direito privado. No Brasil, a relação de consumo é compreendida sob uma perspectiva maior, não se restringindo ao âmbito contratual. O elemento determinante do alcance do CDC é a concepção subjetiva do consumidor, superando o elemento material do contrato. A eventual posição de vulnerabilidade em que se encontra determinado sujeito vai caracterizá-lo como sendo um consumidor. A noção de vulnerabilidade integra o próprio conceito de consumidor, sendo “consumidor vulnerável” uma expressão pleonástica, segundo a concepção reinante no Brasil. Uma tal concepção pressupõe necessariamente a existência de um sujeito em relação de superioridade. A relação jurídica caracterizada pela desigualdade das partes é, fundamentalmente, o que vai determinar a aplicação do CDC. A consciência da desigualdade que caracteriza a relação entre o consumidor e o fornecedor ultrapassa a esfera contratual. A vulnerabilidade do consumidor manifesta-se na posição que ele ocupa no mercado, antes mesmo da celebração de qual31


quer contrato. Por exemplo, no que concerne à limitação das informações de que dispõe sobre produtos e serviços ofertados, assim como à pressão exercida sobre o seu livre consentimento por práticas de publicidade e marketing. A vulnerabilidade do consumidor é, igualmente, aferida após a celebração do contrato. A dificuldade encontrada em fazer valer a garantia do produto ou em obter um acordo diante de eventual conflito com o fornecedor ou, ainda, em aplicar as sanções legais previstas são exemplos eloquentes. O direito brasileiro do consumidor mantém-se, assim, apartado do direito comum. As normas do Código Civil distanciam-se, sendo eventualmente aplicadas a título residual. As regras especiais e específicas de direito do consumidor têm precedência. Uma análise comparativa, tal como aquela realizada na primeira parte do livro avaliando o status do direito do consumidor, com base na relevância, na coerência, na originalidade e na especificidade das normas de direito material elaboradas em favor do consumidor, permaneceria, no entanto, incompleta. Fez-se igualmente necessária a avaliação minuciosa acerca da implementação das medidas visando à proteção do consumidor, objetivo proclamado no Brasil e no Quebec através das suas respectivas legislações. Trata-se do tema da segunda parte deste estudo. Conforme salientado pelo mestre Thierry Bourgoignie (1988, p. 90), o desequilíbrio que caracteriza a posição do consumidor é ainda mais real, seja no plano da efetiva aplicação das regras, seja no plano do acesso ao direito e à Justiça. O modelo tradicional, individualista e procedimental de acesso ao direito oferece ao consumidor uma proteção meramente fictícia. Para o autor, sendo o direito do consumidor um instrumento de mudança social, a questão da sua eficácia é essencial (Bourgoignie, 2008, p. 41). Devido à característica da funcionalidade com que se reveste a legislação de direito do consumidor, Nathalie Sauphanor (2000, p. 10) refere-se à necessidade de uma análise que incida sobre os seus efeitos. Três elementos principais são usados para a investigação comparativa referente à eficácia do direito do consumidor no Brasil e no Quebec: (a) o sistema institucional estabelecido pelo poder público, visando tanto à definição de uma política ativa 32


de defesa do consumidor como à garantia da sua aplicação efetiva, compreendendo inclusive o exame do comportamento dos seus atores sociais principais, isto é, o Poder Judiciário e a sociedade civil; (b) as medidas adotadas para facilitar a expressão, por parte dos consumidores, das suas reclamações pessoais ou coletivas; e (c) a admissibilidade dos modos de representação jurisdicional do direito coletivo dos consumidores. A análise comparativa de tais questões constitui o objeto dos capítulos componentes da segunda parte do livro. O estudo desenvolvido identifica diferenças significativas entre a abordagem brasileira e a quebequense. Destacam-se, particularmente, as seguintes matérias no sistema brasileiro de proteção ao consumidor: a existência de uma política nacional de proteção do consumidor baseada em uma recíproca colaboração entre os atores envolvidos e assentada em princípios claramente enunciados; o dinamismo do Poder Judiciário e seu engajamento com a causa consumerista; o ativismo e os recursos de que dispõe a sociedade civil envolvida com o tema; o grande número de legitimados para a defesa dos direitos coletivos dos consumidores, destacando-se a atuação do Ministério Público; e a multiplicidade dos modos jurisdicionais de representação dos direitos coletivos dos consumidores. Uma especial atenção é dedicada a esta última característica, tendo em vista a importância da ação coletiva na implementação do direito do consumidor. Reflexo das respectivas ideologias dominantes nos dois sistemas comparados, as ações coletivas manifestam-se de forma distinta: no Quebec, priorizase a representação coletiva dos direitos dos consumidores individuais, enquanto no Brasil, a primazia é a proteção do direito coletivo dos consumidores, compreendido como tal. Ao fim do exame comparativo dos elementos selecionados nas duas partes do livro, o estudo conclui pela existência de um edifício normativo-institucional de proteção ao consumidor com bases mais sólidas no Brasil do que aquele instalado no Quebec. O direito brasileiro do consumidor é constituído por um microssistema jurídico não somente específico, mas distinto e autônomo. Por outro lado, o legislador quebequense parece reticente em considerar um tal distanciamento em relação ao direito civil e ao direito comum dos contratos. A natureza autônoma do direito do consumidor no Brasil o capacita, melhor do 33


que qualquer outro direito nacional do consumidor, a apresentar soluções originais de direito material e a justificar a criação de um quadro institucional específico e integrado, no qual o Poder Judiciário e a sociedade civil desempenham papéis cruciais. O objetivo traçado no início do estudo é assim alcançado. As lições apreendidas, a partir da análise comparativa dos sistemas de defesa do consumidor instaurados no Brasil e no Quebec, nos pemitem sugerir alterações suscetíveis de contribuir para uma necessária revitalização do direito do consumidor neste último.


You can’t always get what you want but if you try sometimes, you just might find you get what you need. Mick Jagger e Keith Richards


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