Formação Humana no Ciberespaço_Preview

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Formação humana no ciberespaço


Universidade Federal Fluminense REITOR Sidney Luiz de Matos Mello VICE-REITOR Antonio Claudio Lucas da Nóbrega

Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense CONSELHO EDITORIAL Aníbal Francisco Alves Bragança (presidente) Antônio Amaral Serra Carlos Walter Porto-Gonçalves Charles Freitas Pessanha Guilherme Pereira das Neves João Luiz Vieira Laura Cavalcante Padilha Luiz de Gonzaga Gawryszewski Marlice Nazareth Soares de Azevedo Nanci Gonçalves da Nóbrega Roberto Kant de Lima Túlio Batista Franco DIRETOR Aníbal Francisco Alves Bragança


Karla Estelita Godoy

Formação humana no ciberespaço Os sentidos da presença na educação a distância


Copyright © 2016 Karla Estelita Godoy Copyright © 2016 Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense

Série Nova Biblioteca, 24

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da editora. Direitos desta edição cedidos à Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense Rua Miguel de Frias, 9, anexo/sobreloja - Icaraí - Niterói/RJ CEP 24220-008, Brasil Tel.: +55 21 2629-5287 - Fax.: +55 21 2629-5288 www.eduff.uff.br - faleconosco@eduff.uff.br

Impresso no Brasil, 2017 Foi feito o depósito legal.


Espero poder contribuir para não dar um errôneo e frequente entendimento de que a discussão sobre EAD tem vida própria. Nelson Pretto



Agradecimentos Não são poucas as pessoas a quem devo agradecer pela realização deste livro. Ao longo da jornada que resultou nesta produção, houve as que se fizeram mais presentes, colaborando de forma objetiva ou me acolhendo emocionalmente. Mas também existiram aquelas que eu fazia questão de tornar presentes em minhas lembranças, por serem representantes de valores nos quais baseio minha vida pessoal e profissional. Tantos foram, ainda, os que tiveram uma presença pontual, episódica, mas de relevância inconteste. Pude contar com os que tiveram uma presença-amiga, com os que demonstraram uma presença-tolerância e com os que propunham uma presença-força. Mas todos esses, em algum sentido, me permitiram a liberdade da troca de ideias, fizeram-me notar o quanto desejavam pertencer (e o quanto eu almejava que pertencessem), ainda que só por um instante ou por muito tempo, ao meu espaço-mundo, e demonstraram-me a generosidade e o sentimento produtivo do que realmente representa agir em conjunto. Lamento pela distância de alguns, bem como até agradeço pela de outros. Mas, por tudo, aos que aqui menciono, sou especialmente grata. Começo pela orientadora da minha tese de doutorado, a Profª Drª Lílian do Valle, que me acolheu no meio do percurso acadêmico e comigo caminhou na direção que eu almejava. Agradeço à então coordenadora do PPFH (Programa de PósGraduação em Políticas Públicas e Formação Humana – Uerj), professora Deise Mancebo, e ao corpo docente do Programa, especialmente na pessoa do professor Gaudêncio Frigotto, referência para a área da Educação e da Formação Humana. Um agradecimento especialíssimo à professora Icléia Thiesen, membro externo da banca de doutorado, mas antes minha coorientadora de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Memória Social, da Unirio. Aos meus colegas de doutorado, com os quais compartilhei momentos ímpares de estudo, mas também de muita descontração. Obrigada aos meus colegas da Universidade Federal Fluminense, em particular aos do Departamento de Turismo. Aos amigos que integram o Grupo de Pesquisa Turismo, Cultura


e Sociedade (T-Cult/UFF), nas pessoas dos professores Helena Catão, Valéria Guimarães, Ari Fonseca Filho, Reginaldo Lima, Manoela Valduga, Teresa Catramby (UFRRJ), Marcelo Vilela (USP) e tantos outros pesquisadores e colaboradores, pela convivência e pelas trocas de saberes sempre bem-vindas nos diversos campos do conhecimento. Agradeço, igualmente, ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA/UFF), ao qual vinculei meu estágio de pós-doutoramento, a fim de prosseguir com os estudos relacionados com a temática da tese e iniciar a pesquisa etnográfica, sendo supervisionada pela querida Profª Drª Laura Graziela Gomes e acolhida pela professora Ana Paula Miranda, vice-coordenadora do Programa na época, por quem tenho profunda admiração e respeito, e por ter tido a oportunidade de fazer novos colegas por lá, entre eles os queridos Edilson Márcio Almeida da Silva e Lenin Pires. Agradeço a todos os meus amigos, com quem posso contar e me divertir, mas indubitavelmente às queridas Maria Clara Wasserman, Ana Barcellos e Daniela Matera. Um agradecimento mais que especial aos amigos inseparáveis Sarah Luna e Reginaldo Lima, pelo amor que nos envolve e pelo que considero ser um dos mais nobres valores humanos: a lealdade. Obrigada aos alunos que confirmam a cada dia minha escolha em ser professora, em particular aos meus orientandos dos diversos segmentos acadêmicos. À minha família e ao meu “irmão de coração”, Gláucio Gonzaga. À minha mãe, Elízia Apolinário, por me dar seu colo tão aconchegante, à minha irmã, Bárbara Estelita, com quem compartilho gargalhadas incontroláveis, à minha sobrinha, afilhada e para sempre pequenina Helena Estelita. E ao meu amado e amigo pai, Valter Estelita, por sua presença marcante em todas as horas da minha vida, ele será sempre minha inspiração e referência para tudo o que faço. Por fim, meu muito obrigada ao amigo e revisor deste trabalho, o jornalista Itamar Rigueira Jr., e ao meu ex-orientando de Iniciação Científica e assistente em pesquisa, Higor Carvalho. Agradeço à Faperj pela bolsa de doutorado, no período de janeiro de 2006 a outubro de 2007 – data de cancelamento solicitado pela bolsista, em virtude de convite para assumir cargo comissionado em instituição pública. E à Eduff, por tornar possível esta publicação.


Sumário Prefácio | 11 Introdução | 15 1 Problematização | 21 2 Modos de presença | 25

2.1 O conceito empírico de presença | 26

2.2 Ciberespaço e presença virtual | 28

2.3 Tecnologias da presença | 37

3 Presença, ação e espaço público | 51 4 Liberdade, agir em conjunto e pertencimento: elementos da presençaação de um sujeito em rede ou de um sujeito isolado? | 67

4.1 Redes e sujeitos | 68

4.2 O sujeito isolado da Modernidade | 78

5 Como se apresenta a EAD | 89

5.1 Primeiras experiências sistematizadas de educação a distância | 89

5.2 Encurtando ou alargando distâncias: a EAD no Brasil | 101

5.3 Para além da trajetória da EAD no país | 104

5.4 As políticas públicas de EAD | 109

5.5 A universidade na rede | 116

6 Os sentidos da presença na educação a distância | 139 Referências | 149



Prefácio Um discurso teórico extraordinariamente otimista acompanhou a rápida evolução da educação a distância no país, anunciando, sobretudo no que respeita ao ensino superior, a proximidade deste futuro radioso que as promessas iluministas tanto haviam anunciado, mas se mostraram incapazes de realizar. Talvez o maior mérito destas formulações – que, em sua ampla maioria, eram direta ou indiretamente inspiradas nas convicções de Pierre Lévy – tenha sido o de fornecer atualidade a alguns antigos ideais da Modernidade, dos quais, decerto, não queremos jamais nos separar e que comprometem a prática de formação humana com a permanente criação de condições de autonomia, de participação, de vida colaborativa. Contudo, entendida como drástica ruptura com o passado conservador e individualista, esta nova bandeira pedagógica parece ter esquecido muito rapidamente algumas das lições que a mesma Modernidade nos havia legado. E a primeira delas, sem dúvida, a de que o “homem novo” da revolução deveria, ainda, ser pacientemente engendrado, não resultando de um milagre – ­ ali, realizado em solo político e, aqui, viabilizado pela via do desenvolvimento tecnológico. Em outras palavras, a nova humanidade não seria o resultado de uma ação voluntarista, de uma ruptura exemplar, mas de um esforço continuado e muito exigente de autocrítica e de autoalteração. Entrar no tempo humano sempre foi uma exigência muito difícil para as revoluções, que tiram sua energia do sonho da imediatez, do “milagre” tornado possível, da superação das determinações que tempo e espaço, estas duas implacáveis balizas da existência humana, insistem em fazer pesar sobre nós. Mas há pelo menos uma segunda lição a ser tirada de nossas próprias experiências históricas. Mais sutil, ela encontra ainda mais dificuldades para se impor, em que pesem os inegáveis testemunhos de uma atualidade fraturada, particularmente evidente na violência de nosso cotidiano. Nomeei aqui a necessidade de 11


superação da dualidade corpo/alma que dominou os esquemas mentais da cultura ocidental, tornando possível a ilusão desencarnada do “milagre iluminista”. Retomemos, pois: como seriam possíveis a autonomia, a participação, a vida colaborativa sem, justamente, aquilo que nos ancora no aqui-e-agora – sem o limite da corporeidade que define a possibilidade de que haja autonomia e não isolamento completo, participação e não dissolução da parte no todo, vida colaborativa e não pura repetição do mesmo? De modo que a crítica da dualidade corpo/alma realiza, a uma só vez, as duas lições mais importantes da Modernidade, obrigando o discurso triunfalista da EAD a enfim confrontar-se a seus limites e às exigências que são as suas. É neste contexto que a iniciativa de Catherine Darbo se fez para nós, já há alguns anos, especialmente inspiradora: antes de se pronunciar como modos de “presença e ação” e, como tal, inspirar nossas reflexões sobre o humano e sobre a EAD, tratou-se de examinar “modos de ação e de presença”, expressões que buscavam “… contornar e evitar noções excessivamente etnocêntricas de indivíduo, de pessoa, de sujeito, de interioridade versus exterioridade, de eu versus outro”. Estabelecendo a necessidade de toda uma reconsideração destas categorias estabelecidas, a proposta da autora pretendia lançar mão de “análises antropológicas da distância, de amplitude, de interação e de relação” para entender os modos pelos quais as diferentes culturas “forjam suas formas de humanidade… por meio de seus modos de ação e presença”.1 Desde o início, pois, “presença e ação” se deram como termos destinados a questionar uma antropologia inspiradora, mas evidentemente limitada. Eis como, ali onde a presença era definida como permanência e imobilidade, ela pôde ser pensada como movimento, como possibilidade de iniciar algo novo2, como fazer emergir a diferença, ao invés da simples conservação.

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Darbo, Catherine. Poser une question: analyses comparées d’un mode d’action et de présence. Colloque en deçà du sujet. Analyses comparées des modes d’action et de présence. Paris: Centre Louis Gernet/CNRS, 2008. Cf. Arendt, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.

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A conservação é natural artifício do vivente em geral, mas o que dizer da alteridade, só ela própria do humano? Entendida como diferença, a presença passa a se dizer, não sob o modo de um estado, mas como uma atividade – a atividade, justamente, de convocação daquilo que faz ser a presença, ou de presentificação.3 Como é, pois, possível identificar a formação humana com a produção da presença, ou qual o sentido de identificar a educação à construção da presença, à produção de modos de presença? A resposta, é claro, depende do significado mais profundo que fornecemos ao existir. Se, como queriam os antigos, ser é afetar e se deixar afetar, nada se faz sem o corpo, lugar por excelência em que se realizam as afecções. Mas, como afetar e se deixar afetar a distância – isto é, sem a mediação do que o corpo humano se habitou a comunicar: a experiência encarnada dos sentidos, do aqui-e-agora, da dor e do alívio, do carinho e da aspereza, do ruído e do conforto, do sabor amargo ou doce? Diferentemente das máquinas, que só conhecem os modos do on e do off, o humano tem diversas formas e modalidades de estar presente; mas, em nenhuma hipótese, podem elas justificar uma separação radical entre corpo e alma, entre espírito e materialidade, entre sujeito transcendental e imanência dos sentidos. Nós somos um, unidade hilemórfica, sentido que tem necessariamente como apoio, a um só tempo, soma e psique, corpo e alma, sensibilidade e intelecção. Ao contrário do que a antiga tradição pregava, é a ausência desta união que realiza, no humano, o “menos-ser”, e não o contrário. De forma que se interrogar sobre os modos de presença e de ação é, mais uma vez, retomar a questão sobre o humano, ali mesmo onde sua existência se encarna. E, na educação a distância, sob o modo, predominante, do desafio de presentificação. É esta a temática que Karla Estelita Godoy decidiu enfrentar. Tratar a presença como ação – eis aí um desafio não apenas para as nossas formas instituídas de considerar o humano, mas para o trabalho acadêmico que visa fornecer as bases para uma 3

Gumbrecht, Hans Ulrich. A produção da presença. O que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. PUC-Rio, 2010.

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atividade de interrogação permanente. Existir, dir-se-ia, então, é produzir-se ininterruptamente como presença. É convocar modos de ser a cada vez específicos, é fazer-se modalidades diferentes de práxis, da práxis humana. É, pois, em face deste desafio que a presente obra deve ser julgada, e sua contribuição, na continuidade de tantas pistas reveladoras, apreciada. Rompendo com o discurso idealizado da EAD, tem-se aqui, finalmente, a possibilidade de aceitar enfrentar os desafios que a nova modalidade impõe, para estabelecer-se não como mágica e ilusória ruptura, mas, talvez, finalmente, como consciência de que o que há de novo é a possibilidade fornecida de vencer os antigos obstáculos e de desmascarar as velhas mistificações. Como a que se realiza, para começar, como certeza de que o homem novo não é decorrência automática dos desenvolvimentos da técnica, ou implicação direta e necessária de novas possibilidades comunicativas, mas uma árdua e necessária conquista de formas de significar estes avanços como oportunidades alvissareiras para a formação humana. Inventadas as novas modalidades, cabe-nos, hoje, apropriá-las, fornecendo-lhes o destino que só a nós, humanos, com nosso poder de criação, é dado construir livremente. Lílian do Valle4

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Lílian do Valle é professora titular de Filosofia da Educação da Uerj e autora, entre outros, de Enigmas da educação (Belo Horizonte: Autêntica, 2001) e, com Estrella Bohadana, Sobre presença e distância. Reflexões filosóficas sobre a educação a distância. In: Mill, Daniel; Maciel, Cristiano. Educação a distância: elementos para pensar o ensino-aprendizagem contemporâneo. Cuiabá: EdUfmt, 2013. p. 37-58.

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Introdução Ao tratar dos sentidos da presença na educação a distância (EAD5), este trabalho suscitou-me a reflexão sobre as diversas formas de se “estar presente” no mundo. A própria elaboração deste estudo provocou alterações no que eu considerava ser presença, influenciando não só a construção das ideias sobre o que se pretende aqui discutir, mas também os significados que emergiram do ponto de vista pessoal. Precisei lidar com concepções e juízos a respeito do meu próprio modo de “me fazer presente” e também compreender o porquê de algumas ausências. Acabei por refletir sobre a liberdade para deliberar sobre meu desejo de estar presente ou não, sobre a vontade ou a insatisfação de pertencer a determinados grupos – tantos perto e outros tão distantes de meus anseios – e sobre a presença do outro na nossa vida. Foi fundamental pensar sobre o quanto presença e distância têm múltiplos significados e se alternam com frequência, seja física ou virtualmente, e sobre como se pode adotar a palavra presença com semânticas distintas, dependendo dos valores que atribuímos a cada situação que experimentamos. Assim, numa primeira tentativa de se enunciar um tipo de presença que permita ao leitor adentrar posteriormente essa teia de sentidos, decidimos por elaborar essa introdução esclarecendo, antes de tudo, as razões pelas quais se optou pelo desenvolvimento do tema, ressaltando sua pertinência, e por relatar, ainda que de forma breve, o percurso da pesquisa – a partir do ingresso no curso de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Uerj –, como se deu a escolha do assunto, bem como alguns dos obstáculos enfrentados ao longo da realização deste trabalho. Também a título de introdução, será descrita a estrutura do texto e explicitada sob que abordagem teórica a pesquisa se orientou. Optou-se, assim, por apresentar a problematização do estudo em capítulo à parte.

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Referimo-nos à EAD on-line, que necessita do computador e da internet como meios de comunicação entre sujeitos.

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Durante o Mestrado em Memória Social, na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), desenvolvi dissertação que consistiu em examinar quais os prováveis efeitos do virtual sobre o fazer museológico e sobre a reflexão teórica da área, analisando elementos conceituais e abordando questões relativas à memória, com base em funções específicas próprias da área de museus. Desde então, venho estudando assuntos relacionados com o ciberespaço6 e atuando na área de museus e novas tecnologias. Como professora universitária, acompanhei a repercussão, no cenário brasileiro, do projeto de introdução da educação a distância no ensino superior sem, inicialmente, dele participar de forma direta. Porém, tanto o tema das tecnologias quanto o da educação me suscitavam grande interesse, e passei a realizar diversas leituras sobre tais assuntos. Como não desenvolvia nenhum tipo de resistência ao uso da tecnologia na educação – e, ao contrário, enxergava nela sua inexorabilidade –, realizei, por conta própria, uma série de experimentos não sistematizados em sala de aula com os alunos das diversas disciplinas por mim ministradas. Meu intuito inicial era verificar se o uso das novas tecnologias provocava transformações consideráveis na vivência cultural e no processo de aprendizagem dos estudantes. Informalmente, verifiquei que as possibilidades de acesso às informações via internet, aliadas à construção de conhecimento na sala de aula e à pesquisa orientada, favoreciam o aprendizado, proporcionando certa autonomia de estudo. Mas, apesar de o ciberespaço não se limitar a ser um recurso didático como tantos outros, minhas experimentações só me levavam a entender que, com base na interação e na presença do estudante em sala de aula, era possível ressignificar e trabalhar com as informações disponíveis na internet, como estímulo complementar à formação do aluno. Resolvi, então, comparar o potencial das tecnologias educacionais e da educação a distância, já que a última se apresentava como alternativa bastante cogitada por estudantes e educadores. 6

O termo ciberespaço foi cunhado por William Gibson – escritor do romance de ficção científica Neuromancer –, em 1984, como sinônimo de realidade virtual. Atualmente, ciberespaço se configura como novo meio comunicacional oriundo da interconexão mundial dos computadores.

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Algumas leituras sobre o assunto me permitiram perceber de imediato a diferença entre uma ação e outra. A EAD começava a se configurar como a esperança de um “novo paradigma educacional”, o que me levou a investigá-la com bastante cuidado. Contudo, os textos (a maioria deles bastante entusiasta) apenas não eram suficientes para esclarecer alguns aspectos que me inquietavam, como o da interação do aluno no ambiente virtual, além de uma série de outros procedimentos pedagógicos e técnicos relativos ao cotidiano da EAD. Nesse momento, ingressei no Programa de Políticas Públicas e Formação Humana e, envolvida com um grupo de pesquisa sobre o assunto, comecei a perceber enorme distância entre a maioria dos discursos que os educadores entusiasmados com a EAD propunham e aquilo que, de fato, a educação a distância era capaz de realizar. Problemas de diferentes ordens deveriam ser levados em consideração antes de se proclamar a EAD como um modelo tão promissor: desde os tecnológicos (ambientes virtuais deficientes, dificuldades de acesso e navegação na internet, especialmente no Brasil) até os mais corriqueiros e velhos conhecidos na educação, como a relação professor-aluno (que agora se faria a distância), a escolha de métodos de ensino (que a própria especificidade do modelo exigiria), entre outros. Comecei, então, a conversar, ainda que, mais uma vez, de modo assistemático, com várias pessoas que atuavam diretamente com educação a distância, a visitar polos7 (denominados “ambientes presenciais”) e a frequentar, como usuária improvisada, alguns ambientes virtuais (as chamadas “plataformas”). Percebi, então, que a “interação” de que tanto se falava como prerrogativa da EAD não era uma característica corrente: ao contrário, se revelava tão excepcional que permitia mesmo que se colocasse em dúvida a realidade prática desse “novo paradigma”. Notei também que, apesar da euforia pedagógica inicial, a EAD se enraizava muito mais pelos benefícios que uma política pública poderia gerar em relação a novas possibilidades de acesso aos meios formais de educação – o que tem seu inegável valor – e pelas vantagens mercadológicas que essa “modalidade de ensino” teria ao ser oferecida por diversas instituições 7

A descrição sobre polos será apresentada no subcapítulo 5.5, “A universidade na rede”, no tópico “O modelo semipresencial”.

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de ensino superior como bem de consumo, do que propriamente por permitir (e se desejar) consistentes e revolucionárias transformações no modo de se fazer educação de qualidade no país. De fato, a qualidade na educação não pode estar atrelada a uma “tecnologia missionária”, mas sim a um conjunto complexo de ações políticas e pedagógicas, que fariam parte de um projeto de nação. Portanto, a hipótese que começava a se delinear era a de que a EAD, tal como se implantava na conhecida realidade brasileira, talvez testemunhasse não uma espécie de insurreição contra os modelos tradicionais de educação, como se poderia supor, mas a mera introdução de um meio ideal de prolongar uma educação de superfície, tecnicista e cognitivista. Alertei-me quanto aos objetivos econômicos e políticos que, incontestavelmente, se punham em jogo, quando o assunto era a “difusão e o acesso” à educação, pública ou privada. Mas não optei por tomar esse caminho para a investigação, por considerar que esse seria um tópico insolúvel em face das minhas inquietações como educadora. Foi nesse momento, então, que decidi alterar o eixo investigativo de minha pesquisa, adotando uma perspectiva mais crítica diante do problema. A reelaboração do projeto tornou-o muito mais próximo do que eu pretendia desenvolver, embora não mais houvesse tempo para se realizar intensa pesquisa empírica – que fazia parte da proposta inicial. Percebi que a problemática a ser investigada deveria ser anterior ao discurso ou à prática que já se desempenham na EAD. Era preciso interrogar sobre os próprios fundamentos que servem de base para a construção dos sentidos da educação a distância. Como professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), tive a oportunidade de fazer parte, de agosto de 2009 a julho de 2016, do grupo de professores do curso superior na modalidade semipresencial (EAD) de Licenciatura em Turismo. Oferecido pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), e posteriormente pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), o curso conta também com a parceria de outras universidades, como UFF e Uerj, e com o Consórcio Cederj – Centro de Educação Superior a Distância do Estado 18


do Rio de Janeiro, órgão vinculado à Secretaria de Ciência e Tecnologia do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Portanto, espera-se que o conhecimento produzido para este livro, adaptado de tese de doutoramento, sirva igualmente de base para a reflexão e de referência para a construção desse e de outros cursos que se utilizam da EAD. O livro se estrutura em seis capítulos. O primeiro destaca a “Problematização” suscitada pelo tema, de acordo com o novo direcionamento que a pesquisa tomou. O segundo capítulo, intitulado “Modos de presença”, pretende desdobrar várias abordagens sobre a ideia de presença, como suas concepções empíricas, a questão da presença virtual e os suportes tecnológicos que propiciam sua emergência. “Presença, ação e espaço público” é o terceiro capítulo, que trata teoricamente desses conceitos, com base no referencial teórico que se apoia em Hannah Arendt. Serão trabalhados aspectos da presença ligados ao conceito de ação. O capítulo 4, “Liberdade, agir em conjunto e pertencimento: elementos da presença-ação de um sujeito em rede ou de um sujeito isolado?”, vai tratar de delicado questionamento em educação a distância: até que ponto há interação ou isolamento no ciberespaço? Considerado uma das causas de evasão dos cursos a distância, o isolamento põe muitas vezes em xeque a questão da construção coletiva do conhecimento, tal como preconizada, por exemplo, por Pierre Lévy. Aborda, ainda, sob os referenciais teóricos em Manuel Castells, o conceito de rede e relativiza as possibilidades de o sujeito moderno ter liberdade de ação, participar tão efetivamente e estabelecer relações de pertença com a chamada “sociedade em rede”. “Como se apresenta a EAD” é o quinto capítulo, que aborda os aspectos relacionados com a contextualização da educação a distância no mundo e no Brasil, tratados de modo transversal e dirigidos ao propósito deste estudo. Cabe ressaltar que não se optou por fazer um histórico minucioso do surgimento da EAD no país, primeiramente, por não ser o objetivo da pesquisa e disso não depender a compreensão do tema aqui proposto; depois, por se reconhecer que há inúmeras fontes reproduzindo maciçamente 19


dados cronológicos e descrições pormenorizadas sobre a EAD e os diversos tipos de empreendimentos considerados, hoje, como os de “primeira e segunda geração”8 de educação a distância no país, antes da emergência das novas tecnologias. Apesar disso, o capítulo é iniciado por uma breve contextualização sobre os modos de educação a distância, desde o século XIX, e oferece um apanhado das políticas públicas implementadas para a EAD. O sexto e último capítulo é “Os sentidos da presença na educação a distância”. Nele serão apresentados e discutidos alguns dos vários sentidos da presença na EAD e a relação do sujeito em ambientes educacionais do ciberespaço. Finaliza-se com uma análise sobre quando a presença equivaleria à ação – o que se constitui como o foco do estudo. Ressalte-se que a fundamentação teórica da pesquisa está ancorada em dois conceitos principais: o de presença e o de ação. Esses conceitos – ou, mais particularmente, os conceitos de “modos de presença” e “modos de ação” – foram desenvolvidos pela professora Catherine Darbo-Peschanski, da Universidade de Lille, e são centrais nas investigações da rede internacional ACMAP (Analyse Comparée des Modes d’Action et de Présence), do CNRS/França, ao qual está associado o grupo de pesquisa da orientadora da tese, Profª. Drª. Lílian do Valle, professora titular de Filosofia da Educação da Uerj. Outros conceitos e definições são usados para a construção do pensamento, como os de educação a distância, ciberespaço, formação humana, rede, sujeito e Modernidade. Além de Hannah Arendt, autores como Pierre Lévy, Manuel Castells, Maria Rita Kehl, Nelson Pretto, entre outros, compõem teoricamente as reflexões e argumentações existentes na tese.

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As novas tecnologias e o uso da internet definem o que se pode considerar a terceira geração da EAD, sendo a primeira e a segunda, respectivamente, a correspondência e o rádio e a televisão.

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