O Rio de Janeiro dos fados, minhotos e alfacinhas: O antilusitanismo na Primeira República_Preview

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O Rio de Janeiro dos fados, minhotos e alfacinhas


Universidade Federal Fluminense REITOR Sidney Luiz de Matos Mello VICE-REITOR Antonio Claudio Lucas da Nóbrega

Eduff – Editora da Universidade Federal Fluminense CONSELHO EDITORIAL Aníbal Francisco Alves Bragança (presidente) Antônio Amaral Serra Carlos Walter Porto-Gonçalves Charles Freitas Pessanha Guilherme Pereira das Neves João Luiz Vieira Laura Cavalcante Padilha Luiz de Gonzaga Gawryszewski Marlice Nazareth Soares de Azevedo Nanci Gonçalves da Nóbrega Roberto Kant de Lima Túlio Batista Franco DIRETOR Aníbal Francisco Alves Bragança


Gladys Sabina Ribeiro

O Rio de Janeiro dos fados, minhotos e alfacinhas O antilusitanismo na Primeira RepĂşblica


Copyright © 2016 Gladys Sabina Ribeiro Copyright © 2016 Eduff – Editora da Universidade Federal Fluminense

Universidade, 6

1. A belle époque italiana no Rio de Janeiro: aspectos e histórias da emigração meridional na modernidade carioca / Vittorio Cappelli 2. Patrimônios de influência portuguesa: modos de olhar / Walter Rossa e Margarida Calafate Ribeiro (org.) 3. Quando a rua vira casa: a apropriação de espaços de uso coletivo em um centro de bairro, 4a. ed., rev. e ampliada / Arno Vogel, Marco Antonio da Silva Mello e Orlando Mollica 4. Gente das areias: história, meio ambiente e sociedade no litoral brasileiro – Maricá, RJ (1975 a 1995), 2a. ed., rev. e ampliada / Marco Antonio da Silva Mello e Arno Vogel 5. Direito do consumidor: estudo comparado Brasil-Quebec / Patricia Galindo da Fonseca

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Impresso no Brasil, 2017 Foi feito o depósito legal.


Aos meus avós Antônio, Arminda e Albertino



Sumário Prefácio | 9 Introdução | 21 Parte I – Explorar Capítulo 1 Duas faces da mesma moeda: a recriação do preconceito racial e do preconceito nacional na Primeira República | 33 Capítulo 2 O pandulho cheio: os portugueses e a exploração econômica | 59 2.1. A guerra aos portugueses no Rio de Janeiro dos anos de 1890 | 102 2.2. Havemos de correr à faca os portugueses: a problemática antilusitana no limiar dos anos 1920 | 125 Caderno de imagens: O Jacobino | 139 Capítulo 3 De quem é a “Terra da Promissão”? Velhas e novas inimizades no espaço político | 149 3.1. “Cabras” e “pés de chumbo”: a volta dos rolos do tempo nos anos de 1890 | 170 3.2. Antes sem pão do que sem pátria: o antiportuguesismo nos anos da década de 1920 | 185 Parte II – Trabalhar Capítulo 1 Ideologia do trabalho e experiências compartilhadas | 205 1.1 Algumas imagens do imigrante português e a ideologia do trabalho | 206 1.2. Vivências dos portugueses no mercado de trabalho | 217 Capítulo 2 O antilusitanismo no cotidiano dos trabalhadores cariocas | 228 Conclusão | 243 Fontes e bibliografia | 247



Prefácio Era uma vez uma história que virou um tema: os portugueses e o antilusitanismo como objetos de pesquisa Até mudar para Copacabana, com 12 anos, em 1970, vivi em um dos Pequeno Portugal,1 no bairro de Marechal Hermes, cidade do Rio de Janeiro. Embora criada no seio de uma família portuguesa, nunca havia me dado conta de que essa origem me conferia uma certa identidade familiar, de costumes, e marcaria a forma pela qual me situaria na vida. Desconfiança e preconceito pousavam apenas sobre os ombros de Paulo, filho do Sr. Eduardo, um português dono de uma mercearia que vendia grãos e legumes a quilo, pesados em balança da qual se dizia que os pratos não eram jamais aferidos e os pesos tinham a ajuda de um dedinho que resvalava junto com a mercadoria a ser pesada.2 Paulo foi meu colega de turma no primário, na mesma escola onde minha mãe era professora. Como ajudava o pai no mercadinho, acordava muito cedo: era caixeiro de balcão. Não tinha tempo para ser criança. A discriminação que vivia em sala de aula só foi superada, aos olhos da criançada, quando foi o único que acertou pesar um quilo de ferro o mesmo que um de algodão. A paixão pela História veio das aulas de Paulo Marquês Barbosa, professor da disciplina nos primeiro e segundo anos ginasiais no Colégio Metropolitano, mas a opção pela carreira só foi feita quando cursava o segundo ano do segundo grau no Colégio Teresiano. A graduação (bacharelado e licenciatura), cursada no IFCS da UFRJ entre 1976 e 1979, trouxe novos horizontes políticos. Foram anos de medo e de muita emoção para quem chegava à vida adulta cursando História. Depois de formada, com nenhuma experiência de pesquisa sistemática ou de problematização de assuntos novos no campo historiográfico, recorri a Maria Yedda Leite Linhares, que havia sido patrona da minha turma. Queria aprender a pesquisar e via essa possibilidade em um projeto 1

Pequeno Portugal era a denominação dada a bairros que tinham grande contingente de população portuguesa na Primeira República, período de forte imigração lusitana para a cidade.

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Paulo e Eduardo são nomes fictícios para pessoas que existiram de fato. Não usei os nomes reais por não ter permissão para tal.

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de História da Agricultura, que ela coordenava e era financiado pelo Ministério da Agricultura, com sede que ficava no Horto (Jardim Botânico). Essa experiência durou poucos meses. Maria Yedda, que havia recentemente ingressado na pós-graduação em História da UFF, sugeriu que fizesse a seleção para o mestrado do departamento de História da UFF. Assim, esse contato com Maria Yedda foi prolongado no curso “História da Agricultura” e foi fundamental para que eu escolhesse definitivamente o tema da minha dissertação. Ela era uma verdadeira mestre-escola. As suas aulas eram um delírio. Em um diálogo travado em sala de aula, desafiou-me ao dizer ser um bom “ponto de partida para uma pesquisa uma questão inventada por si mesmo e colocada pelo presente”, tal qual um trecho de Ariés que fazia muito sucesso entre os postulantes ao mestrado. A sociedade da metade do século XX, com os problemas que se colocam diante de nós, como a atitude diante da vida, a atitude diante da morte, os contraconceptivos etc., é para mim fonte histórica. Não posso fazer abstrações das observações que faço quando saio na rua. A vida de todos os dias é apaixonante e, quanto mais ela for cotidiana, mais ela é apaixonante. Talvez seja essa, para mim, a maneira de entrar na História. Não digo que seja o fundamental. O fundamental é mais, como já disse, o desejo de encontrar um mistério central, mas nunca estamos diante do mistério central, estamos no meio da rua. Então eu caminho por um mundo que é um mundo de curiosidade, excitando constantemente minha curiosidade, algumas vezes maravilhando-me: por que tal coisa? E é isso que me faz pular para o passado: eu penso que nunca segui um comportamento histórico que não tivesse como ponto de partida uma questão colocada pelo presente.3

Então, estar diante de um mistério central, no meio da rua, cercada de curiosidades em um mundo que maravilha e surpreende, foram janelas e portas para pensar algo diferente e estimulante, para refletir sobre uma questão histórica que tivesse relação com a minha vida, que transformasse em definitivo o ofício eleito em paixão e a pesquisa em prazer. Devo, então, a Maria Yedda a sugestão de estudar os portugueses na cidade do Rio de Janeiro. Afinal, eu era descendente desses imigrantes! 3

Philippe Ariés. Trecho de uma entrevista concedida ao Nouvel Observateur, publicada no Brasil em Ensaios de Opinião n. 2, citada na contracapa de Ariés, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1981.

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Contudo, como fazer da ascendência um problema histórico? Passei a observar como os outros autores se referiam à gente lusitana, o que pesquisaram e a que conclusões chegaram. Maria Yedda também batia na mesma tecla: a História era de homens e mulheres em contextos reais. Encorajava-me a não ter medo de estudar o que a nossa própria vida apontava, o presente que nos afligia etc. Aprendi que neutralidade e objetividade são atitudes bem distintas. A partir dessas premissas, as minhas fontes de inspiração foram Sheldon Maram e Boris Fausto, leituras feitas nas aulas de Eulália Lobo. Sheldon Maram4 listava entre as suas fontes os processos de expulsão de estrangeiros existentes no Arquivo Nacional. Boris Fausto5 comentava que os portugueses, em Santos, eram a vanguarda do movimento operário, enquanto no Rio de Janeiro eram pacatos trabalhadores. O antilusitanismo foi se desenhando como tema no diálogo com a bibliografia e com as suas lacunas: por que os portugueses eram operários ativistas no porto de Santos e “fura-greves” no Rio de Janeiro? O que era uma pergunta simples tornou-se uma hipótese de pesquisa complexa. Comecei lendo os processos de expulsão de estrangeiros existentes no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro. Eles abriram-me os olhos para o duro cotidiano da imigração. Entretanto, achei-os muito sumários e pensei ser difícil tirar dali informações que sustentassem uma dissertação, do jeito que se nos exigia no mestrado da UFF. A essa altura, havia cursado uma cadeira com Robert Wayne Slenes (“Bob”) e frequentava outra, voltada para história regional. A sua influência e as leituras de E. P. Thompson6 deram um norte importante à minha forma de ver a história, tanto naquele momento como nos anos seguintes. Creio que até 4

Maram, Sheldon Leslie. Anarquistas, imigrantes e o movimento operário brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

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Fausto, Boris. Trabalho urbano e conflito social. Rio de Janeiro/São Paulo: Difel, 1977.

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Thompson, E. P. A formação da classe operária inglesa (1. ed. 1963), 3 v.; Thompson, E. P. A formação da classe operária inglesa (10. ed. 1963), 3 v.; Idem. “The moral economy of the English crowd in the eighteenth century”. In: Past and Present, n. 50, fevereiro de 1971; Idem, “Patrician society, plebeian culture”. In: Journal of Social History, v. 7, n. 4, 1974; Thompson, E. P. et al. Albion’s Fatal Tree. Crime and Society in Eighteenth-century England. London: Allen Lane, 1975; Thompson, E. P. Whigs and Hunters. The Origin of the Black Act. London: Allen Lane, 1975; Idem. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1981; Idem. Tradición, revuelta y consciencia de clase. Estudios sobre la crisis de la sociedad pre-industrial. Barcelona: Crítica, 1984.

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hoje tenho o meu olhar de historiadora treinado naquelas aulas, que davam ênfase aos de baixo como perspectiva histórica. Sob orientação do “Bob”, procurei os processos dos 2º e 4º Cartórios do Tribunal do Júri, existentes no Arquivo Nacional, em uma Relação de Recolhimento. Porém, procurar as aventuras e desventuras dos lusitanos nos processos criminais não se mostrou tarefa trivial. Além disso, essa Relação apresentava os réus por índice onomástico, tal como as fichas de identificação de outros processos existentes em arquivos de metal e que guardavam as cotas dos processos do Judiciário, sem qualquer identificação prévia ou muito menos instrumento de consulta. Afinal, quem era português em um oceano de Marias, Manoéis e Antônios? Quase desisti. As conversas com Maria Yedda foram inspiradoras para que eu procurasse processos em outros lugares. Devo a ela ter achado o Arquivo do 1º Cartório do Primeiro Tribunal do Júri, na rua D. Manoel nº 29, Centro do Rio de Janeiro. Ela me encorajava e dizia que não devia pensar que todas as fontes de pesquisa de História do Brasil estavam disponíveis e no Arquivo Nacional. Falava-me da sua própria experiência em buscar novos acervos por este Brasil afora.7 Perguntava-me onde estariam os documentos do 1º e do 3º Cartórios do Tribunal do Júri? Lembrava sua experiência no Norte Fluminense, ao visitar cartórios nunca explorados por historiadores e ao encontrar ali documentos preciosos. Além disso, especulava que, se existissem esses cartórios, essa documentação podia ter outra arrumação que não fosse por nomes: arquivos inéditos não eram arrumados da mesma forma. Na ocasião, achava os seus conselhos pretensiosos para mim. Acreditava que seria pouco provável que uma iniciante descobrisse novos documentos e um acervo nunca antes explorado por outro historiador. Todavia, não dava para não ficar entusiasmada com as conversas com Maria Yedda, e resolvi tentar. Foi assim que encontrei o arquivo do Primeiro Tribunal do Júri, por ajuda da mãe de uma amiga, promotora de Justiça. Por seu intermédio obtive a permissão de ali pesquisar. Entretanto, um novo problema apareceu: se por um lado os autos estavam classificados por data e por nome, o material do cartório era muito volumoso. Como fazer uma amostragem? 7

Parte desse relato sobre o mestrado e suas conclusões pode ser encontrada no artigo publicado no livro que homenageou os 80 anos de Maria Yedda Leite Linhares. Ver: Ribeiro, Gladys Sabina. “Galegos e cabras, um dos rolos do tempo na República Velha”. In: Mattos, Hebe; Fragoso, João Luís Ribeiro; Teixeira, Francisco Carlos (Org.). Escritos sobre história e educação: homenagem a Maria Yedda Leite Linhares. Rio de Janeiro: Mauad/Faperj, 2001.

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O que para mim era uma dificuldade quase intransponível, para Maria Yedda era uma questão de trabalho. A sua certeza me tranquilizava e me ajudava a superar o medo de tudo dar errado e de que as fontes não servissem para o que pretendia estudar. Recomendou-me fazer um corte temporal circunscrito, para procurar os portugueses nos maços, e fazer breves resumos dos conteúdos dos processos em fichas. A ideia era, depois de feita uma listagem, selecionar uma amostragem, por meio da escolha de artigos dos Códigos Penal e de Processo Penal, com a finalidade de estudar determinados tipos de crimes que envolvessem portugueses como réus ou vítimas. Mas o curso de História da Agricultura que Maria Yedda ministrara havia terminado. Passei quatro meses inventariando o material e fiz uma amostragem com as peças penais classificadas no Código Penal de 1890 sob os artigos 294 e 295 – capítulo sobre homicídio – e sob o artigo 304 – das lesões corporais. A essa altura, Robert Slenes (Bob) já havia se tornado meu orientador e sugerido que escolhesse esses artigos por serem crimes que iam a júri e geravam processos densos. Além disso, recomendou que selecionasse os provenientes de brigas, rixas e conflitos que houvessem ocorrido nos espaços destinados ao trabalho ou que implicassem essa problemática; crimes atinentes à nacionalidade ou posse da terra; crimes causados por preconceito (antilusitanismo expresso ou preconceito racial contra o negro); crimes por meio dos quais pudéssemos perceber a manifestação da solidariedade existente na comunidade lusitana; crimes relacionados às dívidas de dinheiro ou a empréstimos; e, por último, aqueles ocorridos em bares, botequins, casas de pasto e restaurantes, bem como nos espaços destinados à moradia. Dentro desses mesmos critérios, discutidos com Robert Slenes, e a partir de mais de mil casos selecionados, li circunstancialmente alguns processos do Arquivo Nacional. Desejava fazer uma comparação entre os autos do 1º Cartório, encontrados no Primeiro Tribunal do Júri, e os do 2º e do 4º Cartórios, que existem no Arquivo Nacional e cujo acesso era por meio da Relação de Recolhimento. Foram 161 processos criminais pesquisados. Somente alguns desses crimes iam a julgamento no Tribunal do Júri. Nessa leitura e na anotação dos processos, os debates ao redor da obra Albion’s Fatal Tree: Crime and Society in Eighteenth-century England foram fundamentais.8 8

Thompson, E. P. et al., op. cit.

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Os autos eram de fato volumosos. Em geral, a sua folha de rosto narrava o acontecido pelas palavras do promotor, que enquadrava o réu nos artigos do código. A primeira parte do processo era formada na delegacia, onde eram ouvidos os depoimentos das testemunhas, do(s) réu(s) e do(s) ofendido(s), quando isso era possível. Às vezes, essa parte era seguida pelo relatório do delegado de polícia, assim como dos exames de corpo de delito e/ou de necropsia. Os segundos depoimentos eram tomados na pretoria. Com o juiz presente, muitas declarações eram modificadas com relação ao que já se havia anteriormente falado na delegacia. Por esse motivo, os depoimentos das testemunhas, em geral, são bastante contraditórios. Alguns processos continham também uma justificação a favor do réu. Nessa parte, os depoimentos das testemunhas procuravam relativizar a culpa dos acusados. Logo após vinham a pronúncia, feita pelo juiz, e os discursos do promotor e do advogado de defesa. Há casos em que eram anexados documentos, tais como atestados de bons antecedentes ou cartas acusatórias, notas, fotografias, instrumentos presentes na cena do crime etc. Vez por outra os autos continham uma ficha do Gabinete de Identificação e Estatística. O julgamento se dava de acordo com a resposta aos quesitos propostos pelo juiz e a sentença era pronunciada a seguir. Quando havia recurso, a apelação era feita à chamada Corte de Apelação. Nesse órgão se decidia, ou não, por novo julgamento. Aprendi, então, a usar os processos criminais sob a inspiração de E. P. Thompson, para recuperar um universo social mais extenso. Ao analisar os atores, não os entendia como reflexo da fala pura dos depoentes. Considerava sempre a mediação dos delegados, juízes e escrivães, que não raro modificavam a linguagem ou criavam versões. E foram vários os processos anotados nos quais os advogados denunciaram essa prática. Essa perspectiva esteve presente na análise dos processos discursos, compreendidos como filtrados e não como o que de positivo acontecera, ou como a verdade. O verossímil, naquela sociedade, era o que interessava. O crime nos deu acesso a uma determinada construção do real, às suas representações pelos diferentes indivíduos, que fizeram suas leituras marcados pelas suas experiências. Usamos um método mais antropológico, dentro do que habitualmente hoje denominamos história cultural.9 Interpretava 9

Esse tipo de abordagem encontra-se nos já citados livros de E. P. Thompson. Cf., também, Geertz, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1978; Chartier, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Ber-

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e desvendava os conteúdos simbólicos. A criminalidade ou o crime em si não foram nossos objetos de estudo. Consideramos o episódio criminoso como uma mediação legítima para estudar os mecanismos de resistência e como muitas vezes os populares expressaram o que achavam injusto ou o que entendiam ser um limite a um determinado tipo de dominação.10 As concepções esboçadas acima levaram-me a considerar a dinâmica social e a percepção da cultura como uma realidade construída. Dessa maneira, com perspectiva semelhante, usei jornais que permeavam toda a Primeira República ou dois momentos específicos de xenofobia na cidade: para a década de 1890 coligi O Jacobino, O Nacional, A Bomba e O Estrangeiro; para o período que se avizinhava da década de 1920, consultei O Dia, O Jornal Português, as revistas Braziléa e Gil Blás. Os jornais O Paiz, Correio da Manhã e Jornal do Commercio foram lidos para contrabalançarmos as visões dos periódicos partidários de uma visão contra ou pró-lusitanos. Os impressos escolhidos tinham diferentes posicionamentos sobre o imigrante português. Tidos como de boa circulação e grande tiragem, os impressos igualmente muito nos auxiliaram na compreensão de questões mais candentes no período. A grande imprensa pouco mencionava o antilusitanismo; veicular esse tipo de notícia seria reconhecer a existência de lutas e tensões sociais e comprometer o eterno discurso pacificador e homogeneizador de consciências de um Estado autoritário.11 Seria também reconhecer que o discurso da irmandade, do qual muitas vezes se lançava mão, era retórico e vazio de sentido. Alguns jornais e revistas típicos da colônia portuguesa foram encontrados no Real Gabinete Português de Leitura; foram lidos com atenção e sobre eles fiz anotações. Serviram para confirmar a minha ideia inicial de trand, 1990; Darnton, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal,1996; Hobsbawn, E. J. “A outra história. Algumas reflexões”. In: Krantz, F. A outra história. Ideologia e protesto popular nos séculos XVII e XIX. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1990. 10 Reportamo-nos a Thompson, E. P., op. cit., 1975, e Senhores e caçadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 11

Usei essa expressão que naquela época, de acordo com Bolivar Lamounier, tinha a noção de Estado autoritário aplicado à chamada República Velha, com sua visão paternalista e autoritária do conflito social. Ver: Lamounier, Bolivar. “Formação de um pensamento político autoritário na Primeira República. Uma interpretação”. In: Fausto, Boris. O Brasil republicano. Sociedade e instituições (1889-1930). Rio de Janeiro/São Paulo: Difel, 1978. História da Civilização Brasileira.

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que a comunidade, organizada em associações ou em clubes, era constituída de patrícios mais abastados, que, mais do que publicar notícias de Portugal, divulgavam feitos e comemorações diversas dos ilustres da nação portuguesa, quer esses residissem aqui ou em terras transatlânticas. No fim de quatro anos de pesquisa, em época em que dedicávamos muitos anos ao mestrado, estava finalmente em condições de escrever uma dissertação. “Cabras e pés de chumbo: os rolos do tempo. O antilusitanismo na cidade do Rio de Janeiro (1890-1930)” foi defendida em novembro de 1987, na Pós-Graduação em História da UFF, sob orientação de Robert Wayne Slenes. Esse trabalho foi continuado depois no livro Mata Galegos: os portugueses e os conflitos de trabalho na República velha. Neles reconstruí o antilusitanismo, ao tomar por arena privilegiada as ruas da cidade do Rio de Janeiro. As brigas encontradas constituíam-se em batalhas de uma guerra muito maior, a guerra contra os portugueses, a guerra das ruas.12 A mesma abordagem adotada na análise dos processos foi usada para a leitura e a anotação de jornais. Procurei impressos com diferentes posicionamentos sobre o imigrante português. Para a década de 1890 coligi O Jacobino, O Nacional, A Bomba e O Estrangeiro; para o período que se avizinhava da década de 1920, consultei O Dia, O Jornal Português, as revistas Braziléa e Gil Blás. Os jornais O Paiz, Correio da Manhã e Jornal do Commercio foram lidos para contrabalançarmos as visões dos periódicos partidários de uma visão contra ou pró-lusitanos. Tidos como de boa circulação e grande tiragem, os impressos igualmente muito nos auxiliaram na compreensão de questões mais candentes no período. A grande imprensa pouco mencionava o antilusitanismo; veicular esse tipo de notícia seria reconhecer a existência de lutas e tensões sociais e comprometer o eterno discurso pacificador e homogeneizador de consciências de um Estado autoritário. Seria também reconhecer que o discurso da irmandade, do qual muitas vezes se lançava mão, era retórico e vazio de sentido. Alguns jornais e revistas típicos da colônia portuguesa foram encontrados no Real Gabinete Português de Leitura; foram lidos com atenção e sobre eles fiz anotações. Serviram para confirmar a minha ideia inicial de que a comunidade, organizada em associações ou em clubes, era constituída de patrícios mais abastados, que, mais do que publicar notícias de 12

Esse termo era muito usado nos jornais da época pesquisada.

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Portugal, divulgavam feitos e comemorações diversas dos ilustres da nação portuguesa, quer esses residissem aqui ou em terras transatlânticas. Assim, mais do que resolver as perguntas iniciais, o mestrado foi o responsável por abrir um tema de pesquisa muito pouco frequentado na historiografia brasileira e ao qual até hoje me dedico: o estudo da imigração portuguesa, do imigrante português e das relações entre Brasil e Portugal. Fora o artigo de June Hahner, “Jacobinos versus galegos: urban radicals versus portuguese immigrants in Rio de Janeiro in the 1890’s”,13 e a tese de doutorado de Anna Maria Pescatello, Both Ends of the Journey: an Historical Study of Migration and Change in Brazil and Portugal, 18891914,14 sobre imigração portuguesa havia apenas a dissertação de mestrado de Maria Helena Beozzo, A missão herdada,15 defendida no Museu Nacional, em 1973. A partir de entrevistas feitas com portugueses, Maria Helena abordou a vida dos minhotos de forma muito delimitada, para sublinhar a sua origem camponesa e os aspectos de solidariedade associativa na sua inserção na cidade, que passava por casas regionais, tal como a do Minho. Pesquisando a bibliografia existente, vi que havia poucos livros, ou obras, sobre a e/imigração portuguesa para o Brasil, alguns bem antigos, como os de Malheiro Dias,16 Nuno Simões17 e José de Souza Bettencourt,18 ou os que ressaltavam o movimento migratório da ex-metrópole para a colônia, tais como os de Fernando Emydio,19 Carlos Sampaio Garrido,20 Eduar-

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Hanner, June. “Jacobinos versus galegos: urban radicals versus portuguese immigrants in Rio de Janeiro in the 1890’s”. Journal of Interamerican Studies and World Affairs, 18 (2), May 1976.

14

Pescatello, Ann Marie. Both Ends of the Journey: an Historical Study of Migration and Change in Brazil and Portugal, 1889-1914. Tese de doutorado, Universidade da Califórnia, 1970.

15

Lima, M. Helena Beozzo. A missão herdada. Um estudo sobre a inserção de imigrantes. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 1973 (datilografada)

16

Dias, Carlos Malheiro (Ed.) História da colonização portuguesa para o Brasil. Porto: Litografia Nacional, 1921-1924.

17

Simões, Nuno. O Brasil e a emigração portuguesa. Notas para um estudo. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1934.

18

Bettencourt, José de Souza. O fenômeno da emigração portuguesa. Luanda: Instituto de Investigações Científicas de Angola, Departamento de Ciências Humanas, Divisão de Sociologia, 1961.

19

Emydio, Fernando. Emigração portuguesa. Lisboa: Typographia Universal, 1917.

20 Garrido, Carlos Sampaio. Emigração portuguesa. São Paulo: Júlio Costa e Co., 1920.

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do de Souza Ferreira,21 Joel Serrão22 e Miriam Halpern Pereira,23 ou livros laudatórios sobre os portugueses e sua obra dita civilizadora na ex-colônia, como os de Simão Laboreiro.24 Além desses, existiam aqueles que abordavam a imigração de uma forma geral, tais como Fernando Carneiro25 ou Diegues Júnior,26 ou sobre os imigrantes no movimento operário,27 ou sobre imigração italiana, como o de Zuleika Alvim,28 e até japonesa, tal como o de Francisca Isabel Schuring Vieira,29 ambas para São Paulo. Dessa forma, a minha dissertação, que apresento na Parte I deste livro, Explorar, foi pioneira nos estudos históricos sobre imigração portuguesa no Brasil. O tema era muito pouco frequentado porque naturalizava a presença dos portugueses, como se eles não fossem imigrantes. A barreira para se estudar o assunto estava em um argumento central, que depois constatei existir desde o século XIX: a fraternidade entre colonizado e colonizador como um dado; a irmandade que se baseava na língua única, nos costumes, enfim, na origem comum. Não se problema21

Ferreira, Eduardo de. Origens e formas da imigração. Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1976.

22 Serrão, Joel. A emigração portuguesa. 4. ed. (1. ed. 1972). Lisboa: Livros Horizonte, 1982. Ou os verbetes sobre emigração em Idem. Dicionário de História de Portugal. Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1965; Idem. Pequeno Dicionário da História de Portugal. Porto: Figueirinhas, 1987. 23 Pereira, Minam Halpern. A política portuguesa de imigração (1850-1930). Lisboa: A Regra do Jogo, 1981. 24

Laboreiro, Simão de. A obra associativa dos portugueses do Brasil; subsídios para a representação da colônia portuguesa do Brasil no duplo centenário de Portugal. Rio de Janeiro: [s.e.], 1939; Idem. Os portugueses no Brasil de 1500 a 1945. Rio de Janeiro: [s.e.], 1943.

25

Carneiro, T. Fernando. Imigração e colonização no Brasil. Rio de Janeiro: Faculdade Nacional de Filosofia, 1950.

26 Diegues Junior, Manuel. Imigração, urbanização e industrialização: estudo sobre alguns aspectos da contribuição cultural do imigrante no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, 1964. Faculdade Nacional de Filosofia. 27 Além dos livros já citados de Boris Fausto e de Sheldom Maram, na época a perspectiva adotada por Michael Hall era também bastante inovadora. Ver: Hall, Michael M. Immigration and the Early São Paulo Working Class. [s.l.], [s.e.], 1975; Idem. “Approaches to immigration history”. In: Smith, Peter H.; Graham, Richard (Org.). New Approaches to Latin American History. Austin: University of Texas Press, 1974. p. 175-193; Hall, Michael M.; Pinheiro, P. S. “Immigrazione e movimento operario in Brasile”. In: Rolo, José Luiz del (Org.) Lavoratori in Brazile: immigrazione e industrializzione nello stato di San Paolo. Milão: Franco Angeli, 1981. p. 35-48. 28 Alvim, Zuleika M. F. Brava gente! Os italianos em São Paulo. São Paulo: Brasiliense, 1986. 29 Vieira, Francisca Isabel Schuring. O japonês na frente de expansão paulista. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1973.

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tizavam as relações sociais e étnicas, muito menos se contextualizavam e se estudavam as relações com os outros homens livres pobres no contexto do pós-abolição. Originalmente, a dissertação foi dividida em duas partes: explorar e trabalhar. A primeira abordou as vivências do antilusitanismo na cidade do Rio de Janeiro, sobretudo nos espaços de moradia, lazer e alimentação. Dividi ainda essa primeira parte em dois momentos de antilusitanismo: o dos anos 1890 e o dos anos 1920, ao redor do governo de Epitácio Pessoa. A segunda parte, trabalhar, não foi escrita para a defesa porque a dissertação ficou longa demais. Contudo, trabalhar, que apresento na Parte II deste livro, foi o tema que abordei na Coleção Tudo é História, a convite de Maria Clementina Pereira Cunha (Unicamp). Essa coleção, publicada pela Editora Brasiliense, teve 10 números comemorativos dos 100 anos de República. Foi assim que, em 1990, saiu o livro nº 129, Mata galegos. Os portugueses e os conflitos de trabalho na República Velha.30 Tanto a dissertação de mestrado quanto o livro Mata galegos foram escritos em momento em que a então chamada República Velha era período muito estudado e conhecido como o momento da passagem do trabalho escravo para o trabalho livre e a nova ordem burguesa.31 Foram as marcas de uma trajetória pessoal que me levaram à construção da 30 Ribeiro, Gladys Sabina. Mata galegos. Os portugueses e os conflitos de trabalho na República Velha. São Paulo: Brasiliense, 1973. 31

Na década de 1980, muitas foram as análises sobre as transformações ocorridas na cidade do Rio de Janeiro. Tal foi a monta desses trabalhos que, em conjunto, as universidades UFF, UFRJ, PUC e Uerj e as fundações Casa de Rui Barbosa e Getúlio Vargas criaram a Revista do Rio de Janeiro, que circulou entre 1985 e 1986. Posso citar, além dos artigos dessa revista, algumas outras obras que circulavam entre os cursos de pós-graduação no Rio de Janeiro e em particular na UFF: Carvalho, José Murilo de. Os bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997; Carvalho, Lia Aquino. Contribuição ao estudo das habitações populares: Rio de Janeiro: 1886-1906. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1996; Carvalho, Maria Alice de Rezende. Cidade e fábrica: a construção do mundo do trabalho na sociedade brasileira. Dissertação de mestrado. Campinas: Unicamp, 1993; Costa, Nílson do Rosário. “A questão sanitária e a cidade”. Mimeo. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1984. Seminário Rio Republicano; Sevcenko, Nicolau. Literatura como missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983; Sussekind, Flora. As revistas do ano e a invenção do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986; Neves, Margarida de Souza. “As vitrines do progresso. O conceito de trabalho na sociedade brasileira na passagem do século XIX: formação do mercado de trabalho na cidade do Rio de Janeiro (Relatório de pesquisa datilografado). Rio de Janeiro, 1986. Quando escrevi o Mata galegos, durante 1988, já faziam sucesso os livros: Chalhoub, Sidney. op. cit. 1986; Esteves, Martha Abreu, op. cit.; Rocha, Oswaldo Porto. A era das demolições. Cidade do Rio de Janeiro, 1879-1920. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1986.

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minha identidade como historiadora e ao estudo do Rio de Janeiro dos fados, dos minhotos e dos alfacinhas. O que foi concebido como um trabalho único de mestrado, explorar e trabalhar, mas escrito em momentos diferentes, é aqui recomposto em um único livro que trata dos rolos de cabras e pés de chumbo.

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Introdução Para escrever sobre a imigração portuguesa, tomei como ponto de referência os trabalhos publicados sobre a Primeira República. Salientei que o antilusitanismo tivera como um dos seus componentes as acirradas disputas no mercado de trabalho, completamente livre e assalariado, e que tinha como marca importante a forte influência da ideologia do trabalho e das teorias raciais, que julgavam ser o imigrante branco a mão de obra ideal para o país. Para além da temática nova, a minha contribuição vinha de uma hipótese central: naquele período houve a recriação do antilusitanismo, paralelamente à recriação do preconceito racial contra os negros e os pardos. Sob essa ótica, o sentimento xenófobo constituiu-se muitas vezes em uma forma de protesto e de resistência ao assalariamento, ao controle sobre os trabalhadores e ao que era percebido por esses como excessos, formas de exploração porque separavam o viver do trabalhar.32 Analisar os dados do censo do Distrito Federal foi importante para iluminar melhor as questões levantadas e para aprofundar os estudos sobre a Primeira República, sob a perspectiva do imigrante e da imigração portuguesa, viés específico ao qual espero ter dado a minha contribuição. Apesar de a proporcionalidade de homens e mulheres e de brasileiros e estrangeiros permanecer relativamente constante nos censos, a população da cidade cresceu em ritmo acelerado no período do estudo feito. A causa desse crescimento se deu não somente pelo fluxo migratório interno, mas igualmente pelo aumento do número de imigrantes que entraram no país a partir de 1866. Desse ano até 1890, o censo apresenta uma tabela de entrada de estrangeiros e os anos de sua permanência. De 1890 em diante, o número cresceu: de 1889 para 1890, o aumento foi de dobro (9.216 e 18.655, respectivamente).33

32 Em 1986, depois de extensa pesquisa, um novo livro de Suely Robles, publicado em 1986, trouxe algumas informações sobre o jacobinismo nos anos 1890, porém tinha uma abordagem distinta da minha e era centrado no Marechal Floriano. Queiroz, Suely Robles Reis. Os radicais da República. São Paulo: Brasiliense, 1986. 33 Dados retirados do Recenseamento Geral da República dos Estados Unidos do Brasil 1890, apud Hasenbalg, Carlos A. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1979. p. 159.

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Os dados mostram uma presença significativa de estrangeiros na cidade. Dentre esses, os portugueses eram bastante numerosos. Em 1890 havia 106.461 lusitanos, 77.954 homens e 28.507 mulheres. Os homens correspondiam a 50% da população estrangeira, e as mulheres, a 18%. Homens e mulheres somavam 68% dos estrangeiros. Esse censo ainda nos revela a percentagem de portugueses que adotaram a nacionalidade brasileira, 18% (14% homens; 4% mulheres), e os brasileiros de origem lusa: 120.983 habitantes filhos de pai e mãe portugueses, 2.895 habitantes filhos de pai brasileiro e mãe portuguesa e 37.325 habitantes filhos de mãe brasileira e pai luso. Assim, se considerarmos o número bruto de habitantes lusitanos na capital, em 1890 esses eram 1/5 da população. Se a esses números acrescentarmos os filhos de portugueses, a população de origem lusitana mais direta cresce para 267.664 pessoas, o que em si já justificou um estudo sobre o imigrante português e o antilusitanismo. Porém, mais do que um percentual elevado, eles eram igualmente uma presença no mercado de trabalho e no número de proprietários de imóveis na cidade. Em geral, vinham para o Brasil na faixa dos 15 aos 30 anos. Por serem, na sua maioria, solteiros, competiam com os brasileiros tanto no mercado de trabalho como nas questões gerais ligadas à sobrevivência, incluindo aí as disputas amorosas (o número de mulheres lusitanas era bem inferior ao de homens). Mas as disputas amorosas, que não analisei na dissertação, foram abordadas em artigo escrito com Martha Campos Abreu.34 Porém, a imigração portuguesa não parou de crescer a partir de 1890. Justamente entre essa data e 1930 houve o maior fluxo migratório de portugueses para o Brasil; e eles entravam majoritariamente pelo porto do Rio de Janeiro. De acordo com o Recenseamento do Brasil de 1920, a população do Rio de Janeiro, na época, era de 1.157.873 habitantes, 598.307 homens e 559.566 mulheres. Havia 917.481 (79,2%) brasileiros e 239.129 (20,8%) estrangeiros. A percentagem de estrangeiros na cidade diminuiu um pouco em comparação com os outros censos. O número e o percentual de lusos na cidade também decresceram: 172.338, o equivalente a aproximadamente 14% da população total. Desses, 117.604 eram homens e 54.734 eram mulheres. 34 Ribeiro, Gladys Sabina; Esteves, Martha Abreu. “Cenas de amor entre nacionais e imigrantes”. Revista Brasileira de História. São Paulo, 1989. p. 217-235.

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O imigrante lusitano, majoritariamente homem, solteiro e em idade considerada produtiva, era um concorrente em potencial do brasileiro: o mercado apresentava oportunidades escassas e dava preferência ao trabalhador imigrante branco. A capital do país contava com uma “população em proporção superior às limitadas necessidades do seu setor industrial e de serviços”.35 Logo, a oferta de força de trabalho era superior às colocações existentes, o que resultava, consequentemente, no desemprego e na dificuldade de obtenção de postos de trabalho. Os estudos existentes apontavam ainda custos de alimentação altos, queixas contra a carestia de vida e insatisfações salariais.36 As rivalidades entre brasileiros e portugueses tinham nessas questões as suas origens. O português era considerado pelos populares um explorador das oportunidades de trabalho e um concorrente na sua própria terra natal; um verdadeiro usurpador e aproveitador que não reconhecia a benevolência e o acolhimento do povo brasileiro e transformava-se, assim, em um “irmão urso” responsável por desordenar a vida do brasileiro. Como tal, era encarado como uma ameaça. Por outro lado, da perspectiva da valorização crescente do trabalho, o português era visto com bons olhos pela classe dominante. Nesse caso, representaria o bom e ordeiro trabalhador e era caracterizado como morigerado.37 Explicando melhor, uma vez que não era o tão desejado imigrante alemão ou italiano, ao menos era europeu e “branco”. Em outras palavras, podia dar continuidade ao processo de embranquecimento que levaria à civilização. Do ponto de vista ideológico, ser branco e europeu também era ser inegavelmente mais trabalhador; e ser trabalhador significava não se escusar às tarefas mais árduas para ganhar o pão na nova pátria. Naquela sociedade, pensava-se que o trabalho levaria não somente ao crescimento econômico, mas traria como consequência o progresso e a modernidade, tão festejados e renovados com o advento da República.

35 FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito social (1890-1920). Rio de Janeiro: Difel, 1977, p. 25. 36

Lobo, Eulália Maria Lahmeyer. História do Rio de Janeiro. Do capital comercial ao capital industrial e financeiro. Rio de Janeiro: Ibmec, 1978. p. 301-305; Idem. La revolución industrial y la vivienda popular en Rio de Janeiro (1880-1920). Madrid: Separata da Revista de Indias, 1980. p. 445-552; Lobo, Eulália Maria L. et al. Questão habitacional e movimento operário. Rio de Janeiro: UFRJ, 1989.

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Carvalho, Maria Alice de Rezende. Cidade e fábrica: a construção do mundo do trabalho na sociedade brasileira. Dissertação de mestrado. Campinas: Unicamp, 1983.

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A ambiguidade de sentimentos com relação ao imigrante português foi criada no espaço do trabalho, mas igualmente tinha como uma das marcas políticas a reconstrução da sua imagem como ex-colonizador. Sobre ele pairava a suspeita de tramar a restauração do Império bragantino e de fazer falcatruas para manter o predomínio político, como nos velhos tempos do Brasil imperial. Partia-se dessas desconfianças para se fazer propaganda contra as diferentes associações fundadas pela colônia lusitana e dar ensejo a perseguições variadas: comícios contra o predomínio luso, meetings populares e artigos de jornais antilusitanos. Os periódicos dividiam-se em dois partidos: aqueles que pregavam a irmandade e os que propugnavam a xenofobia. Até mesmo políticos influentes, como o presidente Epitácio Pessoa, na década de 1920 davam apoio às manifestações antilusitanas quando lhes convinha. Mas se do ponto de vista político o elemento português era uma ameaça aberta ou latente, no convívio social devia ser tolerado ou satirizado: podia se constituir em um explorador ferrenho e impiedoso dos brasileiros, ou em um sujeito pacato, esforçado, modelo do bom trabalhador, burro sem rabo, burro de carga, portanto um verdadeiro burro. E já não eram raras, naquela época, as piadas sobre a burrice do português. Trabalhar duro, de sol e sol, sem descanso, não deixava de ser uma estratégia para viver e sobreviver na terra de adoção. Vindo de regiões agrícolas e pobres de Portugal,38 não era portador de uma disciplina férrea de trabalho, nem muito menos havia incorporado a ideologia do bem trabalhar, como muitas vezes se pensou. Tendo de construir a vida em uma região estranha e distante – fazer a América, ou, mais apropriadamente, construir o Brasil –, precisava se adaptar às novas condições, nem que fosse camaleonicamente, construindo uma nova cultura e uma nova forma de agir em terras brasileiras.39 Justamente por isso a atuação dos 38 Pescatello, Ann Marie, op. cit. 39 Não usei a noção de adaptação de uma cultura. Entendo, como os antropólogos Sidney Mintz e Richard Price, que uma determinada cultura é recriada a partir das experiências vividas. No Brasil, os portugueses construíram uma nova percepção de vida e novas estratégias, que envolviam a sua relação com o bem trabalhar. Clifford Geertz também nos oferece uma perspectiva instigante para pensarmos as sobrevivências e retenções sempre revestidas de novos conteúdos e significados. Nesse sentido, parece-nos interessante a sua definição de cultura como as “teias de significados que [o homem] teceu”. Ver: Mintz, Sidney; Price, Richard. An Anthropological Approach to the Afro-american Past: a Caribbean Perspective. Philadelphia: Institute for the Study of Human Issues, 1976; Clifford, Geertz. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1976. p. 15.

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portugueses na cidade não era sempre previsível. Às vezes encontramos rixas, conflitos e brigas de verter sangue até mesmo entre patrícios, principalmente se o seu conterrâneo desejava “explorá-lo”. Portanto, a exploração vivida pelos populares expressava-se de variadas formas. Em muitos casos, os portugueses eram acusados de ocupar os empregos destinados aos nacionais, de explorar a população por meio de práticas extorsivas nos preços e do roubo nos pesos e nas medidas. Também “abusariam” quando patrões ou em postos de mando, exigindo dos empregados uma maneira de trabalhar árdua, operosa e dentro dos ditames de uma disciplina do tempo estritamente capitalista. Por esse motivo, não raro eram acusados de aduladores, de interesseiros e sem caráter. Dentro desse contexto, os portugueses ora eram concorrentes em potencial, ora inimigos do povo, porque monopolizadores de certos ramos de atividade e de empregos, como sejam o comércio a retalho e o serviço atrás dos balcões. Máxima devido a aceitarem baixos níveis de remuneração. Também, à medida que parte desses imigrantes não conseguia integrar-se na economia urbana, eles reproduziam certos traços da economia de subsistência sob a forma de atividades autônomas e de serviços. Estas, embora desenvolvidas no âmbito espacial da cidade, eram mais dificilmente integradas à economia urbana capitalista. Aceitando baixos salários, os portugueses limitavam e retardavam a expansão de empresas e ramos de atividade organizados em moldes capitalistas, além de acirrarem as rivalidades com os nacionais na disputa por uma vaga no setor produtivo. Consideremos, agora, outro caso: aquele do português que desembarca com um pequeno capital ou era ajudado por parentes e amigos que já se encontravam aqui. Sua tendência era estabelecer-se. Integrar-se à pequena burguesia ou à caixeirada. Como consequência, observamos que passava a tirar proveito do comércio local, dos novos imigrantes e dos nativos. Seu objetivo era acumular. De novo estouram conflitos e mais conflitos. O Rio de Janeiro do início do século não era somente aquele dos passeios pela rua do Ouvidor ou das elegantes tardes de chá na Confeitaria Pascoal, tampouco resumia-se às greves operárias e a movimentos sindicalistas. Havia uma outra face da história da cidade, aquela das guerras travadas nas ruas com vieses nacionais e raciais, conflitos oriundos da briga pela sobrevivência. Seguindo uma tradição colonial, o grito de “mata galego” era continuamente reeditado no alvorecer da vida republicana.

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Muitos desses ingredientes se misturam nos processos pesquisados. É no contexto dessas brigas no mundo de trabalho que o antilusitanismo emergia com clareza, alimentava-se e se mantinha ao longo da Primeira República, embora não apenas os trabalhadores tivessem sentimentos antilusitanos. Em alguns anos específicos, tais como nos de 1890 e por volta do governo de Epitácio Pessoa (1919-1922), visões negativas sobre os portugueses foram veiculadas pelos jornais e pelos intelectuais, que passaram a militar contra a imigração vinda de Portugal; da mesma forma, queriam correr daqui aqueles imigrantes já estabelecidos. E, para tornar ainda mais complexa a análise sobre o antilusitanismo, verifiquei que geralmente esse aparecia entrelaçado com o preconceito contra o negro. Percebi, então, que o antiportuguesismo expressava-se muitas vezes em brigas iniciadas por brasileiros pretos e mulatos contra portugueses brancos. Como contraponto do preconceito da população negra com relação aos portugueses, a documentação evidenciou com igual força o preconceito dos lusos contra os brasileiros, principalmente se esses fossem homens ditos de cor. Portanto, o preconceito em ambas as direções aparece em rixas e conflitos ocorridos no cotidiano; histórias coligidas nos processos criminais. São muitos os conflitos gerados pela mistura de todos estes ingredientes. É no bojo de brigas que o antilusitanismo emerge com clareza, alimenta-se e se mantém ao longo desse período estudado. Um caso exemplar é aquele que envolveu o português Manoel Pinto Gaspar, casado, gravador, com 33 anos, alfabetizado, e Jacintho Telles, brasileiro e pardo. Os processos criminais geralmente nos dão um panorama claro dos indivíduos ao fornecer dados tais como a cor, a nacionalidade e, por vezes, a naturalidade, a idade, o estado civil, o grau de instrução, a profissão e o endereço; ajuda-nos também a situar socialmente as testemunhas, os acusados e ofendidos, bem como a entender e reconstruir o dia a dia da população, das suas lutas, tensões e conflitos. A rixa entre Manoel e Jacintho era antiga. O fato ocorrido na Praça Mascarenhas, no lugar denominado Murundu, foi apenas uma gota d’água no oceano de tensões que permeavam as relações entre o lusitano e o brasileiro.40 40 A “escalada de tensões” e todo ritual das rixas, bem como seus antecedentes, são explicadas por Chalhoub, Sidney. “Matando o bicho” e resistindo aos “meganhas”, op. cit.

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Era aproximadamente cinco horas da tarde do dia 23 de setembro de 1899. Um grupo de trabalhadores da Fábrica Bangú, chefiados por José de Medeiros, dirigia-se à casa de Otto Fisher. Lá, dentro de um cercado, seriam provisoriamente guardadas duas vacas. Uma delas pertencia a Manoel Pinto Gaspar, operário da fábrica, e a outra a João Frederico de Figueiredo, farmacêutico da localidade. A trilha da estação de Bangu ao curral era acidentada. Àquela hora havia muita gente na rua e um acidente acabou por quebrar os chifres de um dos animais. Nessa ocasião, Jacintho Telles provocou a briga insultando o português: “Ô, Gaspar, a sua vaca quebrou os chifres, antes os do dono da vaca do que os da mesma”. É claro que a agressão não foi gratuita. A frase foi uma provocação. O problema em si datava de fevereiro daquele ano, ou mesmo, quem sabe, da convivência entre Manoel e Jacintho no espaço fabril. João José da Silva era um dos condutores dos animais. Brasileiro, casado, com 24 anos e jornaleiro, repentinamente se viu envolvido com o conflito que narrou da seguinte forma: que no dia e hora que a denúncia trata, quando ele retirava-se de seu trabalho na Fábrica Bangú, fora chamado por José de Medeiros para que ele, Alfredo José da Silva, David de Tal, Francisco José da Silva, conduzissem duas vacas à casa de Otto Fisher pertencentes as mesmas, uma a Manoel Pinto Gaspar e a outra a João Pinto, digo, João Felippe de Tal, em caminho quando levavam as vacas próximo à Praça Mascarenhas, aí achavam-se reunidos Jacintho Telles de Moraes e outros desconhecidos, nesta ocasião saíra Jacintho da venda onde se achava perguntando aos condutores a quem pertenciam as ditas vacas, respondendo-se nesta ocasião que as vacas pertenciam a Gaspar, gravador, dizendo Jacintho neste ato o seguinte: Então aquele galego já tem dinheiro para comprar vacas, respondendo neste ato Leonardo Telles de Moraes, só os aduladores dela só não têm o que não querem, que um caminho, quando conduziam as vacas, uma delas partiu o chifre o que fez com que Leonardo dissesse que sentia menos que a vaca tivesse quebrado o chifre do que o acusado (...) que havia prevenção da parte de Jacintho para com o acusado, pois este segundo ele testemunha acredita responsabilizar Gaspar pela saída da Fábrica não só do capitão Jorge Estrella como do ofendido; que depois que Jacintho e Leonardo perguntavam-lhe de quem eram as vacas que conduziam e tendo ele testemunha respondido que eram de Gaspar e Figueiredo, Jacintho proferiu as seguintes injúrias con-

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tra Gaspar: aquele filho da puta, antes fosse os cornos do gravador do que os da vaca.41

O trecho acima contém vários ingredientes capazes de gerar conflitos e rivalidades entre brasileiros e portugueses. Nos depoimentos fica evidente que se tratava de uma briga por questão de trabalho e, obviamente, por garantia da sobrevivência. Todos os envolvidos faziam parte de um mesmo universo: a Fábrica Bangú e suas adjacências; eram empregados desta ou haviam sido, em algum momento, ligados àquele estabelecimento. Nos depoimentos fica clara a existência de grupos políticos distintos dentro da fábrica, compreendendo o termo política como ligado a um microuniverso com brigas pelo poder, no seu sentido mais amplo. De um lado havia aqueles que se alinhavam ao português Manoel Pinto Gaspar. De outro, o grupo de Jacintho, tios, primos e amigos, ao que parece, ligados a um certo Capitão Estrella. Do processo podemos depreender que o lusitano tinha uma posição privilegiada na Fábrica Bangú. Segundo o inquérito feito pelo advogado da Justiça a João José, havia a suspeita de que Manoel Gaspar acumulasse dois cargos na dita fábrica. Além disso, é certo que o português tinha uma posição social melhor do que a dos brasileiros, possivelmente um posto de mando. Ele havia sido capaz de requisitar trabalhadores colegas seus e ainda pagá-los, a ponto de José Medeiros, na hora das provocações de Jacintho, ter se defendido dizendo: “que não era adulador nem bandido, que só tratava ali de ganhar a sua vida”. Fora isso, algum poder deveria ter o português a ponto de a ele ter sido atribuída a dispensa de empregados. É justamente por conta do Capitão Estrella, Jacintho e outros terem sido despedidos que se originou o motivo da rivalidade e do conflito. O luso havia se outorgado o direito de delatar empregados da fábrica que haviam entrado em greve, em fevereiro. Isso é a versão de alguns. Se Manoel internalizou ou não a ideologia do trabalho e a disciplina de aproveitamento do tempo, é uma incógnita. Contudo, ele atuava de uma determinada forma e seus contemporâneos tinham uma certa percepção de seus atos. Corriam visões do que fazia, fez ou mesmo deixou de realizar.

41 Processo crime Manoel Pinto Gaspar (réu), maço, ano 1900, Arquivo do Primeiro Tribunal do Juri. A.P.T.J. Cabe registrar que todos os documentos serão aqui reproduzidos respeitando-se a pontuação e as letras maiúsculas. Somente a grafia será atualizada.

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Manoel Gaspar e outros negavam a responsabilidade pelas demissões. Esta é, portanto, uma outra versão dos fatos que se passaram naquele ano de 1899. Não nos interessa apurar a verdade de como tudo se passou. Através das mentiras, contradições, incoerências e quase ficções criadas pelas testemunhas, pretendemos fundamentalmente compreender as versões e aduzir uma possível explicação de como o antilusitanismo era constantemente criado, recriado, alimentado e vivido pela população carioca. Para os nacionais Jacintho e Capitão Estrella, o português era um “adulador” e havia na prática tomado ilegitimamente posse da “terra” e dos seus empregos. Manoel era um “abusado”, e os abusos cometidos pelos portugueses eram respondidos prontamente. Não eram raros os xingamentos de “galego” e os gritos de “mata! mata!”, com frequência ouvidos nas ruas do Rio de Janeiro. Apesar de frequentemente os adjetivos ordeiros e turbulentos, morigerados e ociosos, constarem nos autos criminais tecendo caminhos em prol da absolvição ou da culpa, nos vários processos analisados foi comum encontrarmos o estrangeiro, especificamente o português, como trabalhador. Já o nacional, notadamente o negro, o pardo e o mulato, era assinalado como contestador das regras básicas do bem-viver, que não raro se confundiam com o assalariamento. Por isso, encontramos a expressão não ter palavra comumente associada à vadiagem. A ideia de suspeição criada sobre o brasileiro, principalmente sobre o não branco, não somente se restringia à esfera do mundo do trabalho. Encontrei alguns casos nos quais o brasileiro era suspeito por não ter dinheiro para pagar uma dívida, ou por não querer quitá-la, muitas vezes por se sentir explorado por algum português dono de estabelecimento comercial ou pelos preços escorchantes de um período de constantes altas inflacionárias. Assim, nos anos finais do Império e na Primeira República, dava-se ao mesmo tempo a recriação do preconceito racial contra o negro e a recriação do estereótipo de bom trabalhador relacionado ao imigrante europeu, que seria responsável pelo progresso e pela modernidade. Posso dizer que, além de contribuir para inaugurar aqui no Brasil os estudos sobre imigração portuguesa, tema quase nada estudado naquela

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época,42 ao trabalhar a imigração, procurei uma nova perspectiva que situasse os portugueses no cotidiano das ruas, marcado por relações sociais transpassadas pelo preconceito de etnia e gênero, nas quais a sobrevivência e a subsistência davam o norte da vida e a nacionalidade servia de escudo a outras questões de fundo, em uma sociedade que se industrializava fortemente e as necessidades do bem trabalhar, na passagem ao trabalho livre, marcavam clivagens e preferências. Mais do que nunca o ato de trabalhar tornava o indivíduo digno e concedia-lhe o passaporte para uma vida social marcada pelo progresso, pela civilização e pelos ares da modernidade que bafejavam o Distrito Federal de então.

42 Depois de minha dissertação defendida, outros trabalhos sobre imigração surgiram em seguida e, nos anos 1990, tais estudos frutificaram. Por ora, para finalizar, cabe dizer que em 1989 foi defendida a dissertação de mestrado de Fructuoso, Maria Suzel Gil. A emigração portuguesa e sua influência no Brasil: o caso de Santos – 1850 a 1950. Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 1989, sobre portugueses na cidade de Santos, e o livro de Lobo, Maria Eulália Lahmeyer. Imigração portuguesa no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2001, que saiu em 2001. Eulália abordou o processo migratório de 1888 a 1970, tendo como referência obras gerais que tratavam desse longo período nos aspectos referentes à literatura, à música, ao teatro, à arquitetura, à cultura, às artes e à assistência social dos portugueses. Usou obras portuguesas clássicas sobre emigração, o meu trabalho e algumas dissertações, como a minha e a de Maria Suzel, e outras que tangenciavam o tema, tais como a de Albuquerque, Marli Brito Moreira de. Trabalho e conflito no porto do Rio de Janeiro,1904-1920. Dissertação de mestrado. Niterói: UFF, 1983, e a de MOURA, Ana Maria da Silva. Cocheiros e carroceiros; homens livres no Rio de senhores e escravos. São Paulo: Hucitec, 1988, esta última publicada em livro.

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