Expressividades
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Denise Farias da Fonseca
Expressividades Pensamento, produção de subjetividades, enlaces e embates na experimentação clínica
Copyright © 2015 Denise Farias da Fonseca Copyright © 2017 Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense
Série Nova Biblioteca, 23
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Impresso no Brasil, 2017 Foi feito o depósito legal.
Aos sonhadores, Ousados e insistentes criadores que, ainda que “a duras penas”, afirmam cada passo desalinhado em relação ao que oprime, constrange e obstrui a força criadora. A todos aqueles com quem compartilho, diferentemente, e que arrastam meu “corpo-pensamento” para longe de seu equilíbrio ordinário.
Sumário Prefácio: O risco do devir (Regina Benevides e Eduardo Passos) | 11 Apresentação: Uma outra imagem da clínica (Tania Mara Galli Fonseca) | 15 Introdução | 23 I – Imagem do pensamento e produção de subjetividades: nossa semeadura | 27
Passagem 1 | 27
1.1 Pensar ordenado para “pensar bem” | 30
Uma coexistência perturbadora | 32
Adversidades do pensamento clássico-moderno | 41
1.2 Pensar “esquizo” e suas relações com a produção de subjetividades | 48
Instabilidade, imprevisibilidade e incertezas | 50
Reviravoltas do/no contemporâneo | 55
II – Expressividades e experimentação clínica | 63
Passagem 2 | 63
2.1 Expressividades | 65
Agenciamentos coletivos: nada a mais, nada a menos | 70
Desacostumar as palavras, desacomodar o corpo | 73
2.2 Estados de corpo, passagens, sintomas... | 86
A reciprocidade... | 92
Três modos de funcionamento... | 100
III – Olhar, ouvir, afetar e ser afetado | 107
Passagem 3 | 107
3.1 Prática clínica e psicologia: vicissitudes no/do contemporâneo | 115
O poder do olhar | 119
O poder do ouvir | 128
3.2 O poder de ser afetado e afetar | 132
Distanciar-se de “si”... | 136
Partilhar... | 139
IV – Entretecendo: enlaces e embates | 143 Passagem 4 | 143
4.1 Enlaces e embates | 144
Acerca dos enlaces... | 146
Acerca dos embates... | 150
4.2 Voltar é poder partir para outro lugar... | 153
Travessias... | 158
Apontamentos “finais” | 162
Referências | 165
Prefácio O risco do devir Regina Benevides e Eduardo Passos
Expressividades: pensamento, produção de subjetividades, enlaces e embates na experimentação clínica vem a público agora na forma de um livro depois de sua primeira publicização na defesa da tese de doutorado de Denise. Tornar público o que pensamos e escrevemos é um compromisso da universidade, sobretudo a pública, pelo menos a que luta por manter-se como tal, defendendo o ensino gratuito e de qualidade para qualquer um, a pesquisa implicada com os problemas contemporâneos e com o mundo em que vivemos e as interfaces extensionistas com a comunidade em torno. Fazemos isso na Psicologia da UFF, onde Denise, antes de ser doutoranda, foi, por muitos anos, psicóloga envolvida com projetos clínicos no Serviço de Psicologia Aplicada (SPA). Como técnica na universidade, atendeu a população que busca tratamento na clínica-escola, e interagiu com professores e alunos da UFF, ajudando a formular a direção que damos ao trabalho clínico e que designamos desde a década de 80 de abordagem transdisciplinar da clínica. Em 1993, Cristina Rauter e Beatriz Weeks criaram no Departamento de Psicologia da UFF o projeto de especialização “Teorias e práticas psicológicas em instituições públicas: uma abordagem transdisciplinar da clínica”. A transdisciplinaridade era proposta por Cristina Rauter como a designação para uma experimentação no limiar entre a clínica e o não clínico. Extrair a clínica da política, da filosofia e da arte e extrair a política, a filosofia e a arte da clínica, eis a aposta trans. Cristina, na inteligência aguda e delicada que lhe é característica, designou o que fazíamos e faríamos. As interfaces nos orientam para esta zona 11
limiar onde certamente não temos sossego, ou melhor, onde é inevitável certa agonia. O trabalho de Denise se insere perfeitamente neste plano trans. Por isso a íntima relação deste livro com as práticas de pesquisa, ensino e extensão do Instituto de Psicologia da UFF. O desassossego está aqui presente, mais do que isso, esta agonia impulsionadora do pensamento da clínica é aqui tematizada. A experiência da agonia é o fio que tece o dizer. Esta tomada de posição frente à experiência clínica indica que o caminho é arriscado. O risco, aqui, é menos o que vulnerabiliza e mais o que traça, desenha contornos, deixa abertas interrogações, acolhe espantos. Entretanto, é risco. Mas, há outro jeito de experimentar a clínica que não seja este? Não é exatamente esta aposta no risco que a caracteriza? Denise topa o risco. Aceita a agonia. Aceita a agonia de desviar do dizer para o ensaiar e o expressar. É isso que Denise experimenta na clínica. Melhor, é isso que é a experiência clínica ou, ainda, é isso que a clínica experimenta. Lendo Denise, somos tocados por aquilo que Kandinsky descreve no fim do século XIX quando vai a uma exposição de Monet em Moscou. O que o impressiona – e que tem o efeito disparador de fazê-lo tomar a decisão de tornar-se um pintor – é menos o tema apresentado por Monet, mas a potência das cores. É o amarelo da “Catedral de Rouen no entardecer” (1894) que está como tal no “Palheiro no amanhecer” (1891). Diz ele, alguns anos mais tarde: “Para que a cor tenha seu efeito, é necessário que ela se liberte da forma real”. O abstracionismo é então para Kandinsky a busca de “pura cor”, e aqui, parafraseando Deleuze/Godard, o que busca é não a cor pura, a cor justa, mas justo a cor. Pensamos ter sido este o exercício de Denise durante a construção de sua tese, assim como o que ela nos apresenta como sendo o exercício da clínica: não um pensar sobre, o dizer sobre, mas o dizer como desviar. O desvio do dizer é ensaio para o expressar. Algo se preludia nas formas desviantes do dizer, apontando para um aquém da linguagem, seu fundo sensível, seu “sentido sentido” (o felt-meaning de Claire Petitmengin). O dizer na clínica é assim, desviante, porque através dele linhas de errância podem ser traçadas, linhas 12
de devir podem ser potencializadas. A clínica é caso de devir. E dizer a clínica não pode ser menos assim, errante, desviante, ou seja, expressivo. Denise, apoiada por Deleuze, pergunta até que ponto suportamos o exercício de uma clínica sem imagem. Kandinsky pergunta até que ponto é possível pintar a cor sem que ela esteja concluída numa forma. Na arte, na clínica, os fragmentos são expressividades, são partes que contêm um todo. Ou, ainda, como dizem Deleuze e Guattari em o Anti-Édipo, partes que não configuram um todo, a não ser um todo feito de partes ao lado, um todo que fica ao lado e não acima como em um sobrevoo codificante. Os fragmentos são o excesso, o transbordar, a secura, a sofreguidão... Na clínica, como nos indica Denise, as funções do olhar e da escuta devem dar passagem às expressividades, estas indicando a potência de afetar e ser afetado. Começo a me sentir apertado aqui nesta cadeira... posso trocar de lugar com vc? Fragmento
11
(p.
137)
(catalisador
da
dimensão
clínico-política)
Denise topa o risco. Risco do riscado, do traçar percursos, do trançar embates e enlaces. Na clínica, como na arte, o tempo é sempre tempo de risco, mas também de prudência. Trata-se de um expressar-se forçando os limites para consistir um outro plano. Mas, de onde vem a coragem para tomar os riscos e ousar as travessias? Denise diz: das rodas. Rodas que, horizontais, quebram as hierarquias sufocantes; rodas que transversalizam saberes, que permitem escutas, trocas de olhares, conexões afectivas; rodas que se abrem, se multiplicam, que suportam os riscos. Denise, faz tempo que a conhecemos, é gente de roda. Denise foi nossa companheira de lutas na UFF, companheira do SPA, do curso de especialização em práticas clínicas, das aulas de filosofia com Claudio Ulpiano.
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Começamos a orientação do doutoramento de Denise quando Regina já estava morando em Moçambique, África. Topamos a tarefa da orientação titubeando. A distância colocava questões e impasses para o necessário acompanhamento de um trabalho de fôlego como este que Denise realizou. O trajeto que escolhemos fazer naquele momento jogava-nos em outros territórios. Nos quatro anos de orientação, muita coisa se passou em nossas vidas. Em muitos momentos tivemos dúvidas quanto ao caminho a percorrer. Tomamos atalhos, desvios, estivemos frente a encruzilhadas, paramos, tropeçamos, mas sabíamos que não haveria resposta a não ser percorrendo os caminhos que se fariam ao caminhar... e quanto a isso não houve titubeio. Entretanto, devemos dizer que este trabalho que Denise agora apresenta ao público só foi possível pelas rodas que dão suporte, só foi possível pela vibração encantadora, comprometida e competente de Denise, só foi possível porque, quando Regina estava do lado de lá do Atlântico, à beira do Índico e agora do lado de cá no hemisfério norte, esteve sempre presente Edu, o conector potente das redes, o que fez a roda da orientação – dentre muitas outras – girar. Estar nas rodas implica apostar nas conexões, no que está entre. Os caminhos por onde seguir são sempre os do meio. Isso é também o que o livro de Denise nos convoca ao reunir pensamentos sem imagem, afectos e amigos. Ela nos convoca a seguir pelo meio.
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Apresentação Uma outra imagem da clínica Tania Mara Galli Fonseca
Debrucei-me sobre as páginas da tese de Denise, que agora se torna livro, procurando lê-las com ouvidos. Tratava-se de tomá-las como audição de um combate, cujos começos, sempre renovados e indizíveis, se assemelhariam a marteladas surdas e graves no gelo que envolve a vida em movimento. Recebi a tese, anos atrás, como um sopro quente, como um grito contra a corrosão que nos envolve. Ali, pude ler que seu teor não indicava apenas mais uma experimentação clínica no seu stricto sensu. Sua narrativa encontrava-se encharcada pelas águas de uma delicada corrosão desterritorializante, fazendo saltar dos encontros clínicos múltiplas irradiações escapulidas de finos gestos e estreitas frestas. Uma outra imagem da clínica refluía apontando para um mundo de possíveis. Este livro que ora tenho a alegria de apresentar, expressa-se, pois, como um corpo-pensamento e nos aparece tal como uma pérola ensanguentada, porque extraído das entranhas de um trabalho clínico que pode ser traduzido como aquele mergulho do nadador no grande mar aberto. Mais do que com coragem, é com medo que o nadador se lança no momento escuro de seu encontro com o inominável. Contudo, sabe que deve se lançar para sustentar o jogo da vida, para agarrá-la com unhas e dentes enquanto ela esperneia para escapulir, tornando pesado demais o próprio fato de estar vivo. Experiência-limite, de salvamento, sem garantias. Das cenas, saltam imagens de um combate entre viver e morrer. Desesperado combate, pois tudo se dá como se tivesse chegado o tempo de uma defecção fulminante, regida tão somente pelo refrão do “tarde demais”. Urgência, luzes vermelhas 15
piscantes alertam para o perigo iminente, uma vida se esvai, se esvaiu, poderá voltar? Lugar clínico constituído no vazio dos corpos e que aposta nas potências destes como sendo o próprio socorro, aliás, o único socorro possível para a contenção de um desmanchamento, de uma abolição. Corpos que se encontram no plano não mais de suas individualidades, e tampouco da universalidade que poderia nomeá-los e classificá-los a priori: agora se cria o transcendental, e o que acontece no entre-corpos é como se acontecesse entre os profundos duplos dos mesmos que se encontravam abatidos ou aquietados pelas formas conhecidas e aparentes: ambos, tornados impessoais, regram o seu encontro como desconhecidos desde sempre e para sempre, buscam a singularidade irrepetível do encontro, buscam saber em suas núpcias o grau de potência que os habita, tornam-se emissores do incessante murmúrio que busca responder a Espinoza sobre o que pode um corpo. Da mesma forma, pode-se pensar que o que sustenta este entranhado encontro de urgências é a crença na possibilidade de um outro mundo. Unidos por esta crença que, por vezes, poderá se manifestar como dependência e heteronomia, os corpos se produzem naquilo que é o seu limite, alargam-se e aumentam-se em suas potências até que, com sorte, em algum outro dia, possam se esquecer de que estiveram tão intimamente unidos no parto de um renascimento. Renascimento que pode fazer advir uma vida nova, ou apenas a retirada do bebê já morto das entranhas. Reunidos e agenciados na própria contingência propiciada pelos seus lugares, nadador e afogado funcionam como sobreviventes: ensaiam uma estranha dança que ainda não aprenderam, dança que deve ser dançada como se tudo fosse pela primeira vez e a cada vez. Dança que é o próprio movimento insubmisso aos quereres, que não provém de um programa musical colocado a priori e que se produz à medida que evolui, restando sempre como prova de que é incessante experimentação de momentos mais ou menos felizes dos próprios encontros. Trata-se de uma dança como aposta, como risco, como exposição de insuficiências, como insistência à pergunta daquilo que nossos corpos podem afetar e se deixar afetar pelas forças provindas deste outro de 16
nossos próprios mundos individuais, deste outro do nosso próprio mundo no qual a pergunta sempre retorna: seremos, enfim, amados? Poderemos compor com a dança do mundo, mesmo a partir dos passos de um ensaio interminável que não nos concede a expertise dos resultados marcados pelo sucesso e pelo espetáculo? Dança-simpatia, dança-amizade que se produz, contudo, como minoritária, gaguejante e desalinhada daquela, exaustivamente ensaiada e treinada nos palcos da espetacularização das cifras capitalísticas. Denise nos diz de uma clínica extranumerária que se encontra fora dos trilhos retos da razão e do tempo evolutivo e linear. Nela impera, talvez, uma espécie de esquecimento daquilo que nos foi abarrotado como cânone científico; nela, torna-se necessária uma certa imprecisão na concretização do encontro alegre a cada vez, pois sabemos que ela se dá sem as garantias das promessas e das dívidas recíprocas. Nesta clínica, o homem, doente de história, desvia-se de sua própria, para introduzir-se no escuro das vidas minúsculas e adjacentes que o habitam, silenciosas, temerosas de aparecer, frágeis para se fazerem existentes na superfície de seu dizer e de seu agir. “Se ele se joga ao mar, vou atrás dele, se ela senta-se à minha cadeira, deixando-me o divã, sento-me no divã, se ele chora, também me curvo àquela emoção que já não mais é dele somente, mas recebe minha simpatia, pois eu própria também choro e sofro a vida e seu sem sentido”... Uma dança em que as palavras, mais do que representar os ditos e já sabidos refrões, saltam vivas de uma intuição e de um contágio que apreendem tendências e que emergem de um poderia ser, de um quem sabe, de um talvez. Somos todos sobreviventes. Viver a perspectiva do outro, a dor do outro, não significa, aqui, colocar-se no lugar do outro, expurgando de si o próprio sofrer. Refere-se, antes, a uma autoapropriação, estar mais do que nunca consigo, em seu próprio lugar, na impropriedade de seu próprio viver, sem que isto venha significar que a própria história vivida de modo pessoal forneça fáceis associações de ideias e analogias que se tornariam um parâmetro de medida do outro. Sem interioridade, agora é um Fora que age no vazio, no intervalo entre os corpos. Disjunção inclusiva é o acontece. Disjuntos, os corpos se incluem na partilha de uma vida que passa entre eles e 17
que, ali estando, também está para qualquer um, restando saber como usá-la, dizendo respeito a uma estilística, a um modo de expressão cuja peculiaridade é não ser capturado por fórmulas e proposições antecipadas. Na disjunção inclusiva, não há pretensão de harmonia, pois o que se inclui é sempre a teia paradoxal do pensamento movido por tensionamentos e disparações para múltiplas direções. Uma conversa entre corpos sempre é disjunta e inclusiva. Dela, disparam-se centelhas, fagulhas, fragmentos errantes em direções díspares a bombardear a atmosfera do plano. Neste mar aberto, correntezas atraem e repelem o movimento voluntário do esforço do nadar. Deixar-se levar pelas direções que arrastam, pois sabemos que muitas delas se tornarão possíveis e podem conduzir à expansão da vida. Há muitas saídas para os caminhantes sem caminho preestabelecido. Mas, isto exige não se sabe quanto de atitude amorosa, para que não seja interrompido o caminho que se abre. Conheci Regina Benevides e Eduardo Passos anos atrás. Então, já havia sentido e me contagiado com seu ímpeto maquínico, sua disposição para ampliar o combate, sua originalidade em fazer composições, sua generosidade afetiva e intelectual para a produção e acolhimento das diferenças e das diferenciações. Como máquina, ambos uniram seus fogos contra os aniquilamentos de futuros da atualidade de nosso presente; fizeram, para usar a expressão de Laymert, “a guerra dos órgãos”, uma insurreição que não havia começado com eles, mas que perdurava com e neles. Os abalos, como bem nos mostra seu trabalho de orientação à tese de Denise, foram dados muitos séculos antes, com Espinoza e Nietzsche, depois com outros, que não aqui nomearemos, até chegarmos a Deleuze & Guattari e Foucault, e ainda num depois muito depois, a nós próprios, quando pudemos firmar uma posição na qual nos encontramos como minoritários, como aqueles que deram atenção à sua asa oblíqua e que gostam do que ainda resta a dizer. Trabalhamos com restos, não como o lixo descartável ou como aquilo que não importa; resto, para nós, refere-se àquilo que ainda permanece empoeirado nas tramas discursivas e não discursivas do imenso arquivo de nossos saberes. Tendemos para aquilo que ainda não encontrou expressão, 18
para aquilo que está na ordem do silêncio, do inaudível, do não aparente, do que não encontrou condições de se efetuar, mas que, contudo, insiste e subsiste ao lado das luzes da história. Restos como as sombras da história, como seu lado noturno e, sendo assim, referimo-nos ao que resta dizer como ainda sendo o escuro de nosso presente, como a noite onde repousam as potências silenciosas e silenciadas dos devires. Contemporâneo, o combate de nossa pequena multidão vai a contrapelo dos ditos e escritos, torna-se insubmisso às verdades dadas, às palavras de ordem e de comando instituídas. Produz seus combatentes como resistentes que agem na noite, com ela e contra ela, contra os milhares de anos de noite em que temos soterradas tantas ideias e possíveis caídos no esquecimento. Estes combatentes munem-se de uma crença: sabem que a noite não é um negativo a ser recusado e secundarizado; entendem que sendo interminável e produto mesmo da zona do claro-escuro, a noite de nossos dias torna-se a fenda por onde passam novas alianças, novos dizeres, novos olhares. Na noite, sem homem e sem linguagem, na noite que ainda não se tornou historicizada, o homem encontra sua aurora para além do homem, pode martelar os edifícios e para-raios construídos, pode desfazer barragens, pode inserir-se na história de seu presente, cabendo-lhe fazê-lo para afrontar o que ainda não pode ser dito, para produzir as condições de dizibilidade de todas as vergonhas que ainda se acham encurraladas. Partilhar a nova aliança com o mundo, criar condições para fazer advir o outro dos mundos, mesmo que o saibamos inconcluso e precário. Regina e Eduardo contagiam e produzem centelhas, mas estas não ungem as cabeças como as de um Espírito Santo. Antes, atingem-nas como vindas de demônios, porque sempre vão às avessas e o que propõem é sempre difícil e grande demais. Fazem-nos afrontar a pequenez que nos possui, desalojam-nos do conforto desta própria pequenez apta para traduzir o mundo e a vida como objetos interpretáveis, manipuláveis e acessíveis ao olho que se garante em “salvar as aparências”. Neste combate, caso entrarmos nele, já estamos para sempre perdidos daquilo que nos dá certezas e daquilo que mima nosso ego: tornando-nos experimentadores, situamo-nos sempre fora de casa, errantes, sem formar raiz, sem deixar o mofo 19
abafar a carne viva, temos a carne e os ossos expostos, também náufragos nos tornamos, porque o trabalho desse combate nós o sabemos como interminável e sem garantias. Com Denise, o contágio não foi diferente. Reúne-se ela àqueles que a precederam, reúne séculos de indignação, reúne tempos distantes e que, entretanto, se encontram ligados pela mesma disposição minoritária e revolucionária. Sua tese, agora tornada livro, encontra-se marcada pela autoridade de uma experiência levada em sua inteireza, e de cada uma de suas palavras extraem-se secreções de um corpo-pensamento que, em paralelismo, maquina gestos, minúsculas ações, palavras e não palavras, enfim, produz uma sintonia afetiva e anômala que, ao se trasladar para além da linguagem, não se reduz ao código do patológico e da normalidade. O que é engendrado a cada movimento exprime aquilo que o pensamento pensa do corpo que sente, as afecções produzidas pelo corpo vibrátil e sensível tornam-se pensamento que manifesta a conexão entre o sentido e o expresso do corpo. Por isto, neste encontro clínico, o encontro não quer dizer recognição. Nele, tudo se embaraça, se desalinha, e já não se pode andar equilibrado e ereto. Rasteja-se, tateia-se, torna-se sem fala quando se é deixado tocar pelo grande demais do real dos encontros clínicos. Abandona-se a pretensão de anjos da guarda imunes aos efeitos do sensível, afastados das sensações de frio e de calor, de fome e de sede e de medo da morte. Vivendo a finitude dos momentos drásticos, entende-se que cada instante porta uma infinitude de sentidos que se abrem ao plano do atual, aqui e agora acontecendo, banhado pelos outroras e pelos longínquos que habitam cada um e seus mundos. Amplia-se a potência do tempo, concede-se-lhe a chance de uma duração desdobrável em tantas direções de entendimento quanto for possível maquinar e produzir, e talvez fosse importante ainda dizer, possível de suportar. Gostaríamos de chamar a atenção para o tom dos fragmentos inseridos no corpo deste livro, para dar-lhes um teor testemunhal, uma vez que os percebemos como expressões de uma clínica em ação, traduzida, por seu modo literário, ao plano dos afetos. Refiro-me a testemunhos porque são extraídos da própria experiência, possuem a autoridade para serem chamados à 20
partilha. Dizem respeito ao resto, fecundam os olhos e os ouvidos com imagens que ultrapassam o comedido do setting, falam por aqueles que não podem falar, que perderam a linguagem, que se encontram muitas vezes beirando a vida nua e sacrificável. Nos fragmentos, a impotência torna-se digna e o não saber torna-se dádiva e dom. Uma inocência envolvente, uma amizade íntima e sem palavras traduz-se em sutis movimentos, em fracos lampejos, em tardias ações. Nos fragmentos, podemos ver a importância do complexo agenciamento que entra em ação no ato clínico. Nada ali existe ou está que não possa ter efeito no ato de criação clínica. Em seu contexto, os fragmentos, ao contrário do que talvez pretendessem, soaram, em minha leitura, como acontecimentos envolventes das seções que os precederam; localizados sempre ao final de alguma seção ou capítulo, operaram mais do que uma conclusão, fechamento ou arremate. Mesmo ditos ao final, retorcem-se sobre o já decorrido como narrativa de um texto anterior, e fixam-se em nossa mente exatamente como a dramática cena de corpos em mar aberto, como aquilo que marca nossa sensibilidade e que também confere sentido às tantas teorias discorridas. Não poderei deixar de mencionar especialmente os de número 11, 12 e 14 pela grandeza de sua intensidade e narração cristalina. Como cristais do tempo, os fragmentos nos levam ao movimento bifurcante: do presente em que estamos, percebemos também o passado e o futuro que lhe são coexistentes. Nossa percepção se alarga pela narrativa cristalina que coloca em cena a situação-problema e seus embaraçantes elementos constituintes. Imagens-tempo, nos diria Deleuze. Quanto à trama conceitual que sustenta o texto, torna-se importante observar que ela não adveio à problematização como uma escolha padronizada e antecipada. O que quero louvar é o espírito que a constituiu, que a elegeu como efeito exatamente de uma problematização que se fazia no curso do acontecimento-clínico, posteriormente deslocado para a linguagem. Como corpus teórico, a trama é o próprio corpo-pensamento expresso em autores e enfoques que conferem arquitetura ou moldura, como nos diz Denise, ao sentido imprimido ao texto. A trama é feita com rigor, qualidade que está distante do enrijecimento, 21
mas que se aproxima da insistência em desdobrar conceitos, em tomá-los como entes compostos, como agenciamentos complexos de ideias, como personagens desdobráveis, intercessores ativos na formulação dos caminhos. Os conceitos são, por sua vez, tornados vivos e passam a assumir função ativa ao invés de meras ilustrações de um saber acumulado e regimental. Devo agradecer ter sido convidada a esta leitura. A trama conceitual que delineia esta tese me é muito familiar e muito estranha ao mesmo tempo, pois com estes autores com que lidamos, mantemos um fascínio e ao mesmo tempo uma reserva, uma vez que não os captamos de um só golpe, de uma só vez a um só tempo. Para mim, lê-los sempre se traduz como algo novo que ainda não havia sido dito, pois seus conceitos mostram-se plásticos às matérias nas quais operam, se amalgamam a elas, deixam-se sujar pelo seu barro. A cada vez, novamente, a cada vez, eles retornam sempre novos, descortinando em nós uma estranha amizade pelo que resta a dizer, pela noite de nossos dias, pela infância de nossa vida. De alguma maneira, tais conceitos possuem a potência clínica de se furtarem às fáceis apreensões e utilidades e, por isso, em sua incessante esquiva, fazem-se úteis e ativos apenas nos encontros e nas relações que permitem que recusemos envelhecer, permitem que também recusemos o “tarde demais”. Tendo sido convidada a uma apresentação deste livro, receio ter apenas deixado, nas linhas acima, o meu depoimento testemunhal que a sua leitura me propiciou. Contudo, podem seus possíveis leitores vir a saber que, ao testemunhar o curso desta leitura em mim própria, pude perceber que não só o pensamento se reveste de outras Imagens, estando assim a própria prática da clínica situada naquilo que a faz diferir do que tem sido, fazendo emanar do plano de própria experimentação imagens sobreviventes que duram no tempo e se inscrevem na história como um outro possível.
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