Sertão, selva e letra: Euclides da Cunha em atravessamentos

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SertĂŁo, selva e letra:

Euclides da Cunha em atravessamentos


Universidade Federal Fluminense REITOR

Antonio Claudio Lucas da Nóbrega VICE-REITOR

Antonio Claudio Lucas da Nóbrega

Eduff – Editora da Universidade Federal Fluminense Gestão 2018-2020 CONSELHO EDITORIAL

Renato Franco [Diretor] Ana Paula Mendes de Miranda Celso José da Costa Gladys Viviana Gelado Johannes Kretschmer Leonardo Marques Luciano Dias Losekann Luiz Mors Cabral Marco Antônio Roxo da Silva Marco Moriconi Marco Otávio Bezerra Ronaldo Gismondi Silvia Patuzzi Vágner Camilo Alves


Anabelle Loivos Considera

SertĂŁo, selva e letra:

Euclides da Cunha em atravessamentos


Copyright © 2019 Anabelle Loivos Considera. É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da editora. Equipe de realização

Editor responsável: Renato Franco Coordenador de produção: Marcio Oliveira Copidesque e revisão: Ricardo Borges e Graça Carvalho Normalização: Márcia Santos Emendas: Armenio Zarro Jr. Capa: Marcio Oliveira Projeto gráfico e diagramação: Álvaro Faria

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C755 Considera, Anabelle Loivos. Sertão, selva e letra : Euclides da Cunha em atravessamentos / Anabelle Loivos Considera. – Niterói : Eduff, 2019. – 296 p. ; 23 cm. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-228-1340-7 BISAC LIT007000 LITERARY CRITICISM / Books & Reading 1. Crítica literária. 2. Cunha, Euclides da, 1866-1909. Os Sertões. I. Título. CDD B869.939 Ficha catalográfica elaborada por Fátima Carvalho Corrêa (CRB 3.961)

Direitos desta edição reservados à Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense Rua Miguel de Frias, 9, anexo/sobreloja - Icaraí - Niterói - RJ CEP 24220-008 - Brasil Tel.: +55 21 2629-5287 www.eduff.uff.br - faleconosco@eduff.uff.br Impresso no Brasil, 2019 Foi feito o depósito legal.


Ă€ AymĂŠe, leitora sempre de mim.



Agradecimentos

À Anélia Pietrani, pela amizade atenta e pela revisão criteriosa dos textos. A Leopoldo Bernucci, pela generosa leitura crítica e agudeza do prefácio. A Luiz Fernando Sangenis, pela coescrita de um artigo e de muitas histórias. A Aníbal Bragança, pelo aceite primeiro e entusiástico para a editoração desta coletânea de artigos. A Álvaro Faria, pela competente concretização do projeto editorial final. À PR-5 – Pró-Reitoria de Extensão da UFRJ, pelo apoio à publicação do livro, através do edital Pró-Cultura 2016. À Eduff, pela importante chancela a esta investigação autoral sobre Euclides da Cunha. Ao professor Emérito da UFRJ, Manuel Antônio de Castro, pelas instigantes conversas em torno das tantas paideias, da Grécia a Euclides. À Maria Olívia Garcia Ribeiro de Arruda, pela gentileza da leitura entusiástica e sensível do livro, traduzida na apresentação da capa.

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Ilude-se a nossa incompetência para abranger a simultaneidade do que aparece, por meio de processos vários nos nomes pretensiosos, mas na essência perfeitamente artísticos, porque consistem em exagerar os caracteres dominantes dos fatos, de modo a facultar-nos uma síntese, mostrando-no-los menos como eles são do que como deveriam ser. Assim nós vamos – idealizando, conjecturando, devaneando. [...] Assim nos andamos nós – do realismo para o sonho, e deste para aquele, na oscilação perpétua das dúvidas, sem que se possa diferenciar na obscura zona neutral alongada à beira do desconhecido, o poeta que espiritualiza a realidade, do naturalista que tateia o mistério. (Euclides da Cunha, em prefácio a Poemas e Canções, de Vicente de Carvalho, 30 setembro de 1908.)

Escolha seu bigode Euclides Brasileiro da Cunha. Euclides Rodrigues Cantagalense da Cunha. Euclides da Escrita Polida da Cunha. Euclides Rodrigues Sertanejo da Gota. Euclides de Todos os Cantos e Cunhas. Euclides da Cunha Arauto da Nação. Euclides Rodrigues da Memória dos Povos da Floresta. Euclides Moreno Tapuia Celta Grego da Cunha. Euclides Simplesmente. Euclides. (Anabelle Loivos Considera)

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Sumário

Prefácio | 13 Para além de Os sertões: leituras, consórcios e derivações | 19 Samba n’Os sertões – Euclides da Cunha e a cultura popular brasileira | 35 Ecoleitura da Amazônia euclidiana: praticando “letras verdes” na sala de aula | 75 Euclides da Cunha presente e plural – uma leitura de intertextos errantes | 101 Euclides ao largo da Rua do Ouvidor | 123 Euclides e Sinzig: um filojesuíta ateu e um franciscano alemão em Canudos | 153 A paideia euclidiana: esboços para o Brasil das margens | 189 O Rei Encoberto e o mito sertanejo: releituras do sebastianismo na obra de Euclides da Cunha | 221 Sofro de euclidianamentos | 269 Referências | 279

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Prefácio

Mais de cem anos da publicação d’Os sertões (1902), Euclides da Cunha consegue ainda incomodar seus leitores. Imediatamente após o estrondo que a chegada desse livro causou nos meios intelectuais do Rio de Janeiro, os primeiros críticos, e por sorte esses eram os mais abalizados, teceram panegíricos em torno do livro. Uns poucos, entretanto, tentaram manchá-lo, com comentários tendenciosos e foram se dar mal contra um intimorato discurso de defesa do próprio Autor inserido nas “Notas à 2.a Edição”, discurso que, a bem da verdade, acabaria elevando a estatura de Euclides como homem de ciências e letras. Basta repassar os oito pontos, que formam o conjunto dessa crítica contida nas “Notas”, para dar-nos conta da firmeza com que Euclides rebateu cada argumento e de quão impávido se sentia ele ao participar de uma diatribe. Este rápido panorama dos primeiros momentos da recepção d’Os sertões já estaria comprovando a reação daqueles que o leem e que nunca se sentem passivos ou indiferentes a este livro; pelo contrário, reagem sempre aos instigantes e provocativos enunciados de Euclides, pois estes exigem uma ativa resposta à maneira de diálogo entre o leitor e o livro. Portanto, Sertão, Selva e Letra: Euclides da Cunha em atravessamentos não poderia deixar de incluir também algo desta reação de leitura, sob a forma de comentários judiciosos da autora, que os textos euclidianos incitam na atualidade. Nos nossos dias, diante de correntes de pensamento tão diversas e, de um modo geral, muitas vezes obscuras, simplistas, radicais e contraditórias, o juízo em grande parte da crítica parece ter suspendido todo e qualquer racionalismo em benefício de um incessante ardor de posições e agendas pessoais, todas elas marcadas por assertivas ideológicas duvidosas. Na chamada era pósmoderna costuma-se relativizar o conhecimento científico e apontar a uma certa crise epistemológica na historiografia. Para o caso de Euclides, por exemplo, este cenário ainda de acentuado relativismo tem dado a certos espíritos incautos oportunidade de desferir críticas levianas ou frívolas às teorias raciais esposadas em Os sertões e à censura mordaz que seu autor dirige a Antônio Conselheiro e suas 13


prédicas. Deixemos este ponto claro: ler Euclides, na atualidade, e julgá-lo como politicamente incorreto é sempre má leitura e, pior ainda, má fé, por não se querer encontrar na obra desse brilhante escritor os inúmeros e memoráveis momentos que superam alguns dos seus deslizes. Estes, como produto de suas saudáveis e honestas contradições, vem mostrar o quanto Euclides se esforçou para vencêlas, sucumbindo vez ou outra, é certo, mas sempre auferindo para nós um extraordinário lucro em forma de seu humanismo e humanitarismo candentes. Acredito que estas observações seriam suficientes para resumir o desafio que enfrentamos hoje de “traduzir” Euclides para leitores algo familiarizados com sua obra e também para os chamados principiantes. É justamente esse esforço que Anabelle Loivos Considera abraça com valentia, paixão e, por que não dizer, com um certo humor, interpretando um conjunto de obras do grande escritor, das mais complexas, para seus leitores e leitoras. E é assim que o seu presente livro chega até nós: cheio de intenções, todas elas louváveis, sinceras e com uma finalidade muito prática, que é a de servir também na notável tarefa educacional que ela, já há alguns anos, vem desenvolvendo no nosso meio estudantil. Sertão, Selva e Letra: Euclides da Cunha em atravessamentos está dividido em oito instigantes capítulos, iniciando-se com “Para além de Os sertões” (capítulo I), no qual se dá uma breve discussão em torno da ontologia discursiva da obra-prima de Euclides; para logo passar ao capítulo II, “Samba n’Os sertões...” no qual a se examina o samba de enredo carnavalesco “Os Sertões”, considerando-o em diálogo com a história de Canudos. Aqui noções como cultura popular e cultura de massa são discutidas e, de igual maneira, uma resumida história do carnaval, seus objetivos e manifestações ao longo dessa tradição vinda da Europa. O capítulo III, “Ecoleitura da Amazônia Euclidiana...” mostra uma prática de ensino pouco conhecida entre os aficionados de Euclides, isto é, um método eficaz de como fazer chegar até os alunos do ensino médio a obra de um escritor difícil como ele. Entrando pelo veio ecológico, Anabelle soube estrategicamente alcançá-los através de um assunto atualíssimo, as ameaças ao meio-ambiente da Amazônia, espaço que Euclides percorreu durante quase todo o ano de 1905. Segundo essa metodologia, como resultado de um trabalho de equipe sistemático, os alunos se conscientizam da atual problemática dessa imensa região, 14


ao mesmo tempo em que são convidados a entrar no fascinante universo euclidiano de seus textos. Já no capítulo IV, “Euclides da Cunha, presente e plural”, a despeito da temática que ali se estende a partir do capítulo anterior, discute-se uma peça lapidar, “Judas Ahsverus”, empreendendo impecável análise histórica da lenda e ressaltando os melhores momentos dessa narrativa de Euclides. Este capítulo de Sertão, Selva e Letra: Euclides da Cunha em atravessamentos encerra, a meu ver, uma característica única do modo de escrever da autora, ora brindando-nos com conclusões sobre a natureza discursiva e híbrida do texto euclidiano (poesia, prosa e drama), ora oferecendo-nos dados históricos precisos dentro da tradição literária; e, finalmente, tecendo instrutivos comentários sobre o mito do Judas Errante. O capítulo V, “Euclides ao largo da Rua do Ouvidor”, revestese de interesse invulgar para qualquer leitor ou leitora do grande escritor ou até mesmo para especialistas que queiram aprofundar o seu conhecimento da simbologia dada a uma das principais ruas daquele Rio de Janeiro da belle époque. O esboço histórico dessa via urbana traçado por Anabelle é admirável, posto que realizar tal síntese em tão poucas páginas não é tarefa nada fácil. O capítulo como tal leva-nos ainda a uma demonstração emblemática da personalidade irascível de Euclides com respeito ao meio urbano carioca, tão detestado por ele, que se sentia ainda perturbado pelo seu ruído, sua agitação, mas também sua politicagem e o seu mundo de aparências, tudo isso enfim concentrado e metaforizado, principalmente, naquela rua. No capítulo VI, “Euclides e Sinzig”, demonstra-se de modo convincente e com serena análise a posição de Euclides acerca da presença histórica dos missionários jesuítas e franciscanos no Brasil. Anticlerical, e com tão altos propósitos de se afastar deles, o Autor, porém, ao passar em revista a atuação histórica dessas duas ordens, surpreendentemente reconhece o seu papel “civilizador”. Este capítulo está também dedicado à apreciação crítica que Anabelle realiza do missionário Pedro Sinzig, como rara testemunha dos eventos da Guerra de Canudos, e de seus relatos em Reminiscências dum Frade. Tem-se comentado muito pouco até agora as diversas tentativas de Euclides de se engajar no ofício de docente ao longo de 15


sua atribulada carreira profissional e de escritor. O capítulo VII, “A paideia Euclidiana...” preenche essa lacuna e ressalta os anseios do nosso escritor de seguir na mira desse objetivo. Educação para Euclides, como aqui bem se nos mostra, era entendida como conceito amplo, incluindo tanto ciências e artes quanto um modo de melhorar as condições de vida de seus patrícios. Era, ademais, coerente com o seu pensamento progressista a educação de todos os cidadãos, a qual – assim teria raciocinado Euclides –, com toda certeza, ajudaria a removê-los das trevas do obscurantismo e das superstições, aperfeiçoando-lhes o modo de pensar e provendo-lhes de dignidade própria. Em Canudos, como Anabelle nos faz lembrar, Euclides acreditava que se necessitava de um “mestre-escola e não de balas e canhões”. Chegado ao capítulo VIII, “O Rei Encoberto...”, talvez o mais denso do livro, historicamente falando, a autora nos guia através da trajetória que o sebastianismo teve em Portugal e no Brasil. Como lenda, e concebido em alguns casos como culto, esse fenômeno – comentado inclusive por estrangeiros que no século XIX passaram algum tempo no Brasil, como o historiador Ferdinand Denis e o botânico e viajante George Gardner – despertou também a atenção do Autor. Longe estamos de conhecer todas as intenções de Euclides com respeito ao uso que ele faz deste mito. No entanto, segundo ele, parece ser lógico e apropriado sua eclosão em ambiente supostamente de grande fé religiosa; e além do mais, este tipo de religiosidade que se combina com perfeição com outras narrativas contidas em Os sertões sobre antigas tradições vindas de Portugal e que deitaram fortes raízes em território brasileiro. Para a conclusão finalíssima do seu livro, Anabelle idealizou um sugestivo título: “Sofro de euclidianamentos...” em claro porte -manteau que combina o seu sacrifício e sua extrema dedicação ao ensino. Que juízo formarão os pósteros, daqui duas ou três décadas, de um escritor que pôs o seu espírito e corpo inteiro à disposição de uma nobre missão social? Esta pergunta estaria de alguma forma latente ao longo das reflexões da autora, já que Euclides resiste ainda ao tempo, e que ela, e nós também, gostaríamos de pensar que a obra do Autor continuará imperecível ao longo dos anos. Nesta última parte de Sertão, Selva e Letra: Euclides da Cunha em atravessamentos, com todas as cordas do coração, Anabelle nos mostra


também o seu compromisso, despojamento, a sua dedicação e constância em missão educativa. Tal missão, absolutamente indispensável nos nossos dias, não é menos nobre que a de Euclides à época. Celebremos, então, o seu esforço pedagógico e a realização deste belo livro de Anabelle! Leopoldo M. Bernucci – University of California – Davis

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Para além de Os sertões: leituras, consórcios e derivações

Ajusta-se sobre os sertões o cautério das secas; esterilizam-se os ares urentes; empedra-se o chão, gretando, recrestado; ruge o nordeste nos ermos; e, como um cilício dilacerador, a caatinga estende sobre a terra as ramagens de espinhos... [...] E vivem. Vivem é o termo — porque há, no fato, um traço superior à passividade da evolução vegetativa... Revoluteia, “brabo e corado”, o sertanejo moço. O heroísmo tem nos sertões, para todo o sempre perdidas, tragédias espantosas. A campanha de Canudos despontou da convergência espontânea de todas estas forças desvairadas, perdidas nos sertões (Euclides da Cunha, em Os sertões).

Já se contam 117 anos de publicação do clássico Os sertões, de Euclides da Cunha, e as leituras que a monumental obra mereceu e ainda merece continuam por fascinar leitores e teóricos de diversos campos do saber. Malgrado o lugar de enunciação ou o movimento de cada um desses leitores, especialistas ou não, buscam eles estabelecer hipóteses para o fato de, mais de um século depois de seu lançamento, o livro permanecer como relato consagrado sobre a guerra de Canudos e sobre os destinos da nação brasileira. São múltiplos os pressupostos teóricos e vieses interpretativos que tentam dar conta desse seu modus narrativo tão peculiar e de suas tramas intra e paratextuais. Em última análise, o relato euclidiano permanece vivamente inscrito na história da nossa cultura como uma referência paradigmática do conceito que fazemos de nós mesmos como povo e nação. Glosado, relido, criticado – desde a primeira hora em que comparece à cena da peculiar “modernidade” brasileira, em meio às efabulações primeiro-republicanas – e reconhecido, enfim, como narrativa tutelar dos vários “sentires” e “ciências” que se propõem 19


a pensar o que faz o brasil, Brasil, na acepção de Roberto da Matta (1986), o clássico euclidiano parece ainda oferecer à contemporaneidade o sacrifício de uma necessária redenção: a da palavra “ciente” de que pode e deve se comprometer, via “arte”, com as questões de seu tempo e de sua gente. E, até, sabedora de que é possível fazê-lo para além desse mesmo tempo e dessa mesma matéria narrativa. Apesar do notório ecletismo da historiografia do século XIX, em cujas fontes Euclides se abasteceu de pressupostos metodológicos como os de Thomas Carlyle1 – que lhe ofereceu uma representação da história expressiva e emocionante como a literatura e baseada na figura paradigmática do herói –, é importante compreendermos a adesão enviesada do autor fluminense a essa mesma escola historicista de que comungariam também um Victor Hugo e um Göethe. Pois não surpreende o fato de que nós, leitores de Euclides hoje, tenhamos, talvez mais do que ele teve à época, a nítida noção de sua escolha pela construção literária e seu poder universalizante e congregador de múltiplos discursos – no que transmuda o “herói soberano” em “herói ao avesso”, rasurando os valores de uma época e expondo as suas contradições, acolhendo-as todas na tecedura de seu texto. Desde o primeiro impacto de Os sertões no escopo do pequeno setor ilustrado de que Euclides fazia parte – leia-se: a classe dominante, que a si mesma outorgara o título de “vanguarda intelectual” daquela sociedade –, muitas e variadas foram as leituras que se produziram sobre “a leitura” euclidiana da “guerra do fim do mundo” e, avant la lettre, sobre o Brasil do Segundo Reinado e da Primeira República. Apesar de toda uma produção crítica recente, que rechaça a hegemonia da interpretação de Euclides da Cunha sobre o evento “Canudos” (em grande parte, tributária das proeminentes pesquisas conselheiristas de José Calasans), é difícil pensar tais fatos da história e da memória coletiva nacional sem que se mencione o nome do escritor e o seu contributo para trazê-los à luz. Nas palavras de Regina Abreu, “tanto a crítica moderna e científica seria fundamental para a consagração de Os Sertões, quanto o 1  Adotando a forma discursiva do ensaio entre a reflexão histórica e a ficção literária, ao feitio de Carlyle, Euclides acaba por readaptá-la às suas demandas pessoais e à complexa e paradoxal realidade brasileira. Lemos, em Contrastes e Confrontos: “Acompanhei-os; e não esqueci um adorável companheiro e mestre, Thomas Carlyle, em cujas páginas nobremente revolucionárias me penitencio do uso desta espada inútil, deste heroísmo à força e desta engenharia mal-traçada...” (Cunha, 2009a, v. 1, p. 82).

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aparecimento de Os Sertões seria fundamental para o exercício e afirmação da nova crítica” (Abreu, 1998, p. 262). Ainda que esses eventos estejam invariavelmente marcados pela precariedade do depoimento euclidiano, em que pesam, por vezes, a falta de tratamento profissional das fontes e o caráter datado de muitas de suas avaliações, o relato que Euclides delega à posteridade torna-se a “sua” verdade narrativa – cuja sinceridade impõe-se muito mais no ato criador da escrita do que nas sequências de acontecimentos. Já na “Nota Preliminar” a Os sertões, numa das passagens mais conhecidas do livro, Euclides reafirma sua crença no progresso, na civilização e na ciência do século XIX. Trata-se de uma opção discursiva essencialmente teleológica, que enuncia de forma cabal a visão de mundo cientificista incensada pelos intelectuais da época. É também uma partilha de leituras que o autor julga importantes para embasar seu trabalho, e que oferecem ao seu leitor uma prévia da escrita híbrida, vicejante e dialógica que se seguirá: “A civilização avançará nos sertões impelida por essa implacável força motriz da história que Gumplowicz, maior do que Hobbes, lobrigou, num lance genial, no esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes” (Cunha, 2009a, v. 2, p. 93). Claro está que as polêmicas em torno dessa admiração de Euclides pelo pensamento do sociólogo polonês Ludwig Gumplowicz eclodiriam nas críticas que Os sertões receberiam ao longo de sua fortuna crítica. Para Gumplowicz, a luta racial entre os fortes e os fracos constituía a grande força geradora da história mundial – e Euclides, que provavelmente terá lido a tradução francesa de seu livro Der Rassenkampf (La lutte de races), de 1883, adere sem ressalvas a essa tese. Talvez porque, em grande medida, tal teoria se coadunasse à visão niilista que o escritor fluminense possuía sobre o futuro do Brasil e de seu povo. Mas, ao advogar que a luta de raças, e não a de classes, é que era a força motriz da história, Euclides precisou reformular seus (pré)conceitos, sem necessariamente negá-los, na trama do próprio texto em que ousava compreender a complexidade desses movimentos históricos e sociais. Com o ônus de parecer ter lido Gumplowicz “pela metade”,2 o autor de Os sertões envereda por uma ins2  LIMA, Luiz Costa. Autor leu mal ideias de Gumplowicz. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 23 ago. 2009. Disponível em: http://cultura.estadao.com.br/noticias/artes,autor-leu-mal-ideias-degumplowicz, 423100. Acesso em: 25 mar. 2016.

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tigante teia retórica para dar conta desta contradição latente: para o polonês, os embates entre vencedores e vencidos se dão de forma autóctone, mas o que os constitui como grupo é da ordem da civilização (língua, costumes etc.); ou seja, o dado biológico, o tal “elemento do sangue”, só mais tarde entra na composição desse processo identitário. Daí, Euclides ter tido tanto trabalho para situar o conceito de “raça biologicamente superior/inferior” – ou, mesmo, ter percebido que tal teorema não funcionava, na prática social e discursiva do sertão brasileiro. A índole incoerente, desigual e revolta do mestiço, como que denota um íntimo e intenso esforço de eliminação dos atributos que lhe impedem a vida num meio mais adiantado e complexo. Reflete – em círculo diminuto – esse combate surdo e formidável, que é a própria luta pela vida das raças, luta comovedora e eterna caracterizada pelo belo axioma de Gumplowicz como a força motriz da História. O grande professor de Gratz não a considerou sob este aspecto. A verdade, porém, é que se todo o elemento étnico forte “tende subordinar ao seu destino o elemento mais fraco ante o qual se acha”, encontra na mestiçagem um caso perturbador. A expansão irresistível do seu círculo singenético, porém, por tal forma iludida, retarda-se apenas. Não se extingue. A luta transmuda-se, tornando-se mais grave. Volve do caso vulgar, do extermínio franco da raça inferior pela guerra, à sua eliminação lenta, à sua absorção vagarosa, à sua diluição no cruzamento. E durante o curso deste processo redutor, os mestiços emergentes, variáveis, com todas as nuanças da cor, da forma e do caráter, sem feições definidas, sem vigor, e as mais vezes inviáveis, nada mais são, em última análise, do que os mutilados inevitáveis do conflito que perdura, imperceptível, pelo correr das idades. É que neste caso a raça forte não destrói a fraca pelas armas, esmaga-a pela civilização (Cunha, 2009a, v. 2, p. 91).

Luiz Costa Lima defende a tese de que Euclides da Cunha leu mal ou não compreendeu bem as propostas de Gumplowicz, que discordava abertamente do darwinismo social que o próprio Euclides professa em Os sertões. A compreensão que o polonês tem de raças 22


é muito mais sociocultural do que biológica; para ele, o sangue vem depois da dinâmica sociocultural. “[...] ‘a ideia de laço de sangue é um elemento mais forte, contudo, se trata de um elemento posterior.’ Ou seja, o laço de sangue, a base do que a gente entende como raça se estabelece depois que aqueles critérios socioculturais se verificam” (Lima, 2009). Apesar de não faltarem autores em que Euclides baseie suas ideias biológicas, a tendência da crítica em atribuí-las a Gumplowicz é um erro, segundo Costa Lima: Quaisquer que sejam as reservas quanto à sua interpretação, é inegável que Euclides foi o escritor que mais se empenhou em tentar compreender o país, não se deixando para isso enredar em vantagens e compromissos. Sem a desleitura, portanto, de Gumplowicz, os impactos da afirmação da “rocha viva” da nacionalidade e, indiretamente, da denúncia da “civilização de empréstimo” arraigada no litoral seria nenhum. Escoimar o erro interpretativo ou de alguma maneira neutralizá-lo comprometeria a obra que o acolhera; a diminuiria em mero documento de um massacre planejado (Lima, 1997, p. 32).

Rediscutindo as interpretações de Costa Lima, o professor Leopoldo Bernucci fala em “expansão e avaliação da parte do crítico feita posteriormente em ensaio publicado sob o título Euclides da Cunha: contrastes e confrontos do Brasil”, publicado em 2000 (Bernucci, 2009, p. 52). Para Bernucci, o incômodo com a possibilidade de uma leitura racista de Euclides – que erroneamente atribuiria à teoria de Gumplowicz sobre a luta das raças pela dominação um significado biológico que inexiste nela – relaciona-se, no entanto, “ao maior ou menor grau de sentimento de um corpo coletivo com respeito aos laços de união entre seus membros participantes (singenetismo)” (Bernucci, 2009, p. 52). E continua a defender que não se pode interpretar que Euclides estivesse a sugerir superioridade ou inferioridade raciais com base exclusiva em pressupostos biológicos, ressaltando a aguda percepção histórica que teve o autor para esse encontro de raças e culturas: Encontramos um Euclides no melhor desses momentos quando, olhando para a história, vê com otimismo o resultado dessa “absorção final”, isto é, comunidades ou populações que se aglu23


tinam (energia acumulada) como resultado de um processo mais pacífico (menos à custa da brutalidade guerreira) do que aquele vislumbrado por Gumplowicz e produzindo, enfim, um sistema de dominação menos impositivo (conquista democrática da terra) (Bernucci, 2009, p. 52 e 53).

Leopoldo cita, ainda, as notas manuscritas Euclides da Cunha, reunidas sob o título de Páginas resumidas de Gumplowicz, e pertencentes ao acervo do Grêmio Literário Euclides da Cunha, de São José do Rio Pardo-SP, nas quais “o nosso autor esboça claramente a teoria escoimada do professor de Graz, como ela aparece, de influências genética” (Bernucci, 2009, p 53). Nelas, lê-se a acomodação de categorias aparentemente díspares, mas muito caras a Euclides – essencialismo e cientificismo, pareados num “duelo formidável” (Cunha, 2009a, v. 1, p. 648) para uma tentativa de compreensão da arqueologia dos saberes e suas produções alineares: 30 Influência do Grupo Social sobre o Indivíduo – A nossa conduta é determinada não por motivos psicológicos, mas por motivos sociais. Porque andamos vestidos nos climas quentes? Obedecemos à moda. É de fato inegável a servidão da vontade individual às tendências coletivas. 31 Bases Naturais da Evolução Histórica – Em cada foco de vida histórica – nas tribos – os mais fortes se tornam classes dominadoras, fundam organizações e, pela divisão forçada do trabalho, o progresso. Durante esse processo se extinguem as diferenças primitivas das raças e se acentuam as das classes e do estado social (Bernucci, 2009, p. 53).

Euclides não foi o único, nem o primeiro, e talvez não tenha sido, mesmo, o melhor repórter daquela guerra fratricida em terra ignota.3 Muito provavelmente, ter escrito ou não Os sertões não fizesse 3  Chegaram até nós relatos de outros jornalistas que também estiveram presentes ao palco de guerra, como Manoel Benício, do Jornal do Comércio, e Fávila Nunes, da Gazeta de Notícias, ou mesmo de observadores do conflito que publicaram suas impressões em órgãos de imprensa, como o então estudante de medicina, Lélis Piedade, no Jornal de Notícias, da Bahia, ou o notório monarquista, Afonso Arinos, no Comércio de São Paulo (Galvão, 1977). Muitos relatórios técnicos também vêm à luz, sob o pretexto de registrar a atuação dos agrupamentos militares na guerra – e, dentre estes, é mister destacar o de César Zama, deputado baiano monarquista que produziu uma inflamada defesa do conselheirismo, acusando os equívocos do poder cen-

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muita diferença para o registro dos fatos que lá sucederam, em sentido lato. Até porque, nascido sob a égide de uma literatura canônica, o futuro clássico teria interesse apenas, e a princípio, para as mesmas elites intelectuais que, a duras penas, construíam a utopia republicana. Mas a realidade discursiva da guerra era outra: “a urbs monstruosa” ou a pretensa Canudos de Euclides extrapolara os teoremas dos letrados como ele, e fora “figurar” nas páginas dos jornais, nos folhetos propagandísticos, nas modinhas e pequenas poesias que circulavam livremente pelo setor não-ilustrado da população. Urge, portanto, tentar recuperar o como e o porquê esse “povo” – compreendido aqui não apenas como categoria sociológica, mas como “conarrador” da construção do imaginário republicano –, tanto no “Belo Monte” do Bom Jesus Conselheiro quanto nas cidades como o Rio de Janeiro, e antes mesmo da vanguarda intelectual, já experimentava “ficcionalizar” o sertão. Cremos que, na confrontação da escrita euclidiana com esses fragmentos, possamos de fato encontrar alguns dos motivos que asseguram, à obra de arte, a sua perenidade, além do seu poder de disseminação, discussão e problematização dos mais diversos discursos, quais sejam: literatura, política nacional e internacional, economia, história, sociologia, geografia e geopolítica, para citar os mais recorrentes no clássico seminal de Euclides. Faz-se necessária a confrontação entre Os sertões e as narrativas não canônicas inseridas no próprio livro – fragmentos de preces, quadras populares, entrevistas etc. –, exatamente para aquilatarmos em que medida tão estrondoso sucesso editorial acabou por facilitar a circulação vinculada desses textos, localizados “à margem” da literatura tradicional. Tal confronto aponta para a compreensão dos desníveis existentes no discurso oficial sobre as causas e os efeitos do evento Canudos sobre a ainda incipiente República e sua necessidade de afirmação. Se observarmos que, em Euclides mesmo, das anotações feitas em sua Caderneta de campo até as páginas finais de seu tral no episódio de Canudos em seu Libelo Republicano Acompanhado de Comentários sobre a Guerra de Canudos (1899). Manoel Benício, assim como Euclides, dá forma outra aos seus escritos jornalísticos de primeira hora sobre a Guerra de Canudos, publicando, em 1899, O rei dos jagunços – crônica histórica e de costumes sertanejos. Afonso Arinos fez o mesmo, um ano antes, com seu romance Os jagunços (1898). De toda a forma, dentre todas as reportagens e crônicas de guerra, o relato euclidiano persevera como paradigmático e ensejador de linhas de leitura – durante muito tempo, quase hegemônicas, segundo Calasans (1986) –, a partir da denúncia monumental que faz de que “Ademais, não havia temer-se o juízo tremendo do futuro. A História não iria até ali” (Cunha, 2009a, v. 2, p. 454).

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clássico, os habitantes de Canudos passam, de uma simples citação (por vezes pejorativa) como personagens, a merecer os epítetos de “brasileiros” e “irmãos”, talvez possamos inferir disso que haja, na troca do índice metafórico, a sugestão de um projeto embrionário de explicitação da nossa nacionalidade. “E persistem indestrutíveis, porque o sertanejo, por mais escoteiro que siga, jamais deixa de levar uma pedra que calce as suas junturas vacilantes” (Cunha, 2009a, v. 2, p. 18). “A uniformidade, sob estes vários aspectos, é impressionadora. O sertanejo do Norte é, inegavelmente, o tipo de uma subcategoria étnica já constituída” (Cunha, 2009a, v. 2, p. 89). O sertanejo tomando em larga escala, do selvagem, a intimidade com o meio físico, que ao invés de deprimir enrija o seu organismo potente, reflete, na índole e nos costumes, das outras raças formadoras apenas aqueles atributos mais ajustáveis à sua fase social incipiente. É um retrógrado; não é um degenerado. Por isto mesmo que as vicissitudes históricas o libertaram, na fase delicadíssima da sua formação, das exigências desproporcionadas de uma cultura de empréstimo, prepararam-no para a conquistar um dia (Cunha, 2009a, v. 2, p. 92). “O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral” (Cunha, 2009a, v. 2, p. 95). “[...] e da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente [...]” (Cunha, 2009a, v. 2, p. 96). “Mas terminada a refrega, restituída ao rebanho a rês dominada, ei-lo, de novo caído sobre o lombilho retovado, outra vez desgracioso e inerte, oscilando à feição da andadura lenta, com a aparência triste de um inválido esmorecido” (Cunha, 2009a, v. 2, p. 97).

A voz do narrador, longe de ser diletante, valoriza exatamente as curvas e os oximoros do que enuncia: o sertanejo encourado de Euclides é primevo e heroico; retrógrado, mas não degenerado; tabaréu canhestro e titã acobreado. O fato é que, ao redor dos mortos 26


de Canudos, cantados por Euclides numa quase ode triunfal, toda uma nação os “figurativiza” como “humanos” e compatriotas. Embora não se possa reduzir Os sertões a uma mera tentativa de mea culpa coletiva, como toda grande obra, ela terá a função de organizar e dar forma aos paradoxos daquela sociedade, expressando-os de maneira simbólica. E, talvez, grande parte da “perturbação” causada nas consciências dos letrados e iletrados deste país sobre a guerra de Canudos deva-se, sim, ao monumental registro literário que Euclides faz dela. Talvez, também por causa dessa leitura enviesada, cheia de senões e passível de indagações, o beato Conselheiro e o povo dos sertões tenham, a cada releitura, presentificada a sua saga, sugerida a sua ressurreição e repetidas as suas necessárias epifanias. Retornemos à “Nota Preliminar” de Os sertões, que não nos deixa dúvida quanto a este expediente narratológico: o autor se interpõe entre a história, a memória e a escritura dessa saga-a-se-contar, postando-se como quem “quer se sentir bárbaro entre os bárbaros, e, entre os antigos, antigo”, na citação de Taine. E se qualifica, portanto, como o historiador que trata a história como ela o merece, isto é, como ciência: Aquela campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo. E tanto quanto o permitir a firmeza do nosso espírito façamos jus ao admirável conceito de Taine sobre o narrador sincero que encara a História como ela merece: “Il s’irrite contre les demi vérités que sont des demi faussetés, contre les auteurs qui n’altèrent ni une date, ni une généalogie, mais dénaturent les sentiments et les moeurs, qui gardent le dessin des événements et en changent la couleur, qui copient les faits et défigurent l’âme; il veut sentir en barbare, parmi les barbares, et, parmi les anciens, en ancien” (Cunha, 2009a, v. 2, p. 6).4

4  Tradução livre do trecho citado em francês por Euclides da Cunha: “Ele tem raiva contra as meias-verdades que são meias-mentiras, contra os autores que não alteram a data nem uma genealogia, mas distorcem os sentimentos e hábitos, que mantêm o desenho dos acontecimentos mas mudam sua cor, que copiam os fatos e desfiguram a alma; ele quer se sentir bárbaro entre os bárbaros, e, entre os antigos, antigo” (apud Bernucci, 2002a, p. 61).

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Para penetrar com maior agudeza nas formas de representação de uma comunidade que lhe era estranha, Euclides optou por “literaturizar-se”, ele mesmo, assumindo-se como uma espécie de “arauto”, à medida que retoma a dicção da tragédia clássica, com todo o seu pathos e dinamicidade. Teatralmente, empresta e delega a sua voz a quem e ao que fora silenciado, apresentando-a de forma sincera ao crivo do porvir: e segue narrando os acontecimentos; lamentando e redimindo as vítimas; fazendo apontar o indicador implacável da história sobre os pseudovencedores, conclamando-nos, os leitores de sua escrita, a repensarmos, na trama de que também fazemos parte, os valores de uma nação que se (quis) quer civilizada e igualitária. O conceito de “narrador sincero”,5 originalmente cunhado pelo positivista Hippolyte Taine, indica o tipo de narrador que intui e descreve a história “como ela o merece”. Para Berthold Zilly, “É significativo a citação de Euclides só começar com ´il s´irrite´, ficando, portanto, fora a reivindicação de que a história seja uma ´science´ e uma busca do ´vrai absolu´” (Zilly, 2001, p. 300). A sequência que contextualiza a transcrição euclidiana de Taine e clarifica o motivo da omissão da parte referente à verdade absoluta da ciência é esta: “Estimem o historiador que trate a história como ela o merece, isto é, como ciência [...]” (Zilly, 2001, p. 300). Daí, concluir que “A empatia, uma certa pluriparcialidade [...]”, em Euclides, “[...] é mais generalizada, justa, equitativa, menos partidária, pois a sua compaixão é suprapartidária, estendendo-se a homens de todas as condições, plantas, animais, pedras, a todos os seres sofridos e martirizados” (Zilly, 2001, p. 300). Para Ronaldes de Melo e Souza, nesta mesma clave, e pensando no quanto de máscara irônica há em tal estratégia discursiva, a sinceridade de Euclides da Cunha é mais evidente no contrapelo: “Euclides se revela insincero com o patriotismo farfalhudo da oligarquia travestida de república, precisamente porque se comporta como advogado de defesa dos supostos monarquistas sertanejos” (Souza, 2004, p. 3). E arremata, interpretando que ao historiador sincero assumido pela dicção euclidiana resta não se credenciar pelo tom neutro e imparcial do cientista louvado por Taine: “Pelo contrário, a militância participativa do historiador euclidiano se traduz na dissonância irônica da 5  O conceito de “narrador sincero”, na obra de Euclides da Cunha, foi detidamente analisado por Berthold Zilly (2001), brasilianista e tradutor de Os sertões para o alemão, em artigos diversos.

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voz que interpela os vencedores e na consonância trágica da voz que se compadece dos vencidos” (Souza, 2004, p. 3). As preocupações dialéticas de Euclides, neste sentido, não diferem muito das de seus contemporâneos. Rui Barbosa, por exemplo, já então uma referência do pensamento intelectual brasileiro, e que chegara, em seus discursos, a referir-se aos insubmissos de Canudos como uma “horda de mentecaptos e galés sobre a razão nacional”, passaria, não obstante, a requerê-los como seus “clientes”, numa genial solução retórica em que declarava pedir habeas corpus para os desprotegidos do Belo Monte. O detalhe “jocoso” desse habeas corpus, sugerido por Rui Barbosa em julho de 1897, num artigo publicado no jornal O Comércio de São Paulo (apud Arbex Júnior, 2003, p. 150), é que o pedido foi feito exatamente assim: em nome de e para os mortos na guerra. Cumpre ressaltar, ainda, o contributo de algumas iniciativas de leitura não ortodoxas que contribuem para a permanência do discurso euclidiano, e que fazem entrever certo arrebatamento que a obra de Euclides proporciona aos seus leitores. Elas se constituem, de fato, como processos de transbordamento do texto canônico, abrindo-o ao hipertexto tão ao gosto do multifacetado ato de leitura da contemporaneidade. No sentido que lhe empresta o crítico literário Gerárd Genette (2010), a hipertextualidade6 opera na transformação, na imitação, na paródia, no travestimento e no pastiche, diferentemente do intertexto, que se concretiza numa espécie de copresença de um texto em outro, como são os casos da citação, da alusão e do plágio. De uma forma ou de outra, trata-se de palimpsestos ou “textos de segunda mão” que derivam de textos primeiros. Assim, Os sertões representam o “hipertexto” e as suas fontes, os “hipotextos”. Citemos como exemplos dessa fecunda derivação: o próprio evento da “Semana Euclidiana”, em São José do Rio Pardo-SP, cidade em que Euclides exerceu sua engenharia e onde, há mais de um século, inin-

6  Gerard Genette chamou o recurso do hipertexto de “literatura de segunda mão”, em seu livro Palimpsesto, publicado em 1982: “Um palimpsesto é um pergaminho cuja primeira inscrição foi raspada para se traçar outra, que não a esconde de fato, de modo que se pode lê-la por transparência, o antigo sob o novo. Assim, no sentido figurado, entenderemos por palimpsestos (mais literalmente hipertextos), todas as obras derivadas de uma outra obra anterior, por transformação ou por imitação. Dessa literatura de segunda mão, que se escreve através da leitura o lugar e a ação no campo literário geralmente, e lamentavelmente, não são reconhecidos. Tentamos aqui explorar esse território. Um texto pode sempre ler um outro, e assim por diante, até o fim dos textos. Este meu texto não escapa à regra: ele a expõe e se expõe a ela. Quem ler por último lerá melhor” (Genette, 2010, p. 5).

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terruptamente, se reúnem interessados de todo o Brasil e do exterior, dentro e fora do meio acadêmico, para discutir a obra euclidiana e temas afins; a edição integral de Os sertões, na internet, em Real Áudio, programa que possibilita “ouvir” a leitura do texto, feita por familiares de Euclides, estudiosos de sua obra e leitores-anônimos, apaixonados pelas vozes que saltam do clássico; a peça Os sertões, de José Celso Martinez, encenada em longas cinco partes pelos mais de 70 integrantes do grupo teatral Teatro Oficina, com cerca de cinco horas de duração cada uma. Cremos que estas e outras leituras para além de Os sertões devam merecer nossa especial atenção, pelo muito que dizem, e pelo diálogo que travam com o texto euclidiano – nem sempre brando, digamos; mas pertinente porque multiplicador de sentidos, a partir da obra primeira. Assim, lado a lado com a leitura da tradição canônica de inspiração trágico-épica, a partir do legado grego nas letras, podese entrever a “modernidade” euclidiana na citação não-canônica de fontes orais, como os poemas populares e as profecias religiosas, encontrados ainda no calor da hora em papéis e cadernos, misturados às ruínas de Canudos e por elas mesmas marcados. Sabemos que Euclides “criou” uma leitura sua de certas profecias apocalípticas, encontradas pelos soldados do Exército em Canudos. Não consta que o escritor tenha conhecido, de fato, na época da guerra, quaisquer dos manuscritos7 de Antônio Conselheiro; mas é certo que, baseado nos 7  Os manuscritos das prédicas do beato Antônio Conselheiro, intitulados “Tempestades” e datados de 1897, só foram publicados quase oito décadas depois, no ano de 1974, acompanhadas de estudo crítico e histórico de Ataliba Nogueira (1978). Sabe-se que foram recolhidos in loco, dentro de uma caixa de madeira, pelo acadêmico da Faculdade de Medicina da Bahia e integrante da 4.ª expedição a Canudos, João de Souza Pondé, que atuou no front da guerra e participou da exumação do cadáver do Conselheiro. As “prédicas” ou pregações do beato passaram, então, às mãos de Afrânio Peixoto, que doou os manuscritos ao próprio Euclides da Cunha, bem após a publicação d´Os sertões, provavelmente no ano da morte do escritor – e talvez por isso nem tenham chegado a ser lidos por Euclides, que à época encontrava-se totalmente envolvido na preparação para o concurso do então Ginásio Nacional (Colégio Pedro II), além de estar vivenciando problemas familiares que o levariam à dramática morte, em agosto de 1909. Certo é que não houve nenhum movimento, por parte de Euclides, para rever a sua própria obra e a figura equivocada de Antônio Conselheiro que ela acabou por ajudar a cristalizar. Após a morte de Euclides, a obra foi adquirida num sebo por Aristeu Seixas, da Academia Paulista de Letras, cuja família o repassou para o pesquisador baiano, José Calazans. Há, ainda, um outro conjunto de manuscritos mais antigo, de 1895, intitulados “Preceitos” e também encontrados no “Santuário”, a casa de morada de Antônio Conselheiro, por Eugênio Carolino de Sayão Carvalho, um soldado de brigada do 25.º batalhão de infantaria, que ofereceu o material ao Jornal de Notícias, gazeta baiana cujo diretor era o jornalista Aloísio de Carvalho. Anos depois, essa compilação de prédicas de foi doada ao professor José Calasans, por seu amigo, Paulo Maciel. Estes e outros manuscritos do Conselheiro, pertencentes a Calasans, foram por ele doados ao Núcleo Sertão da Universidade Federal da Bahia (Galvão; Peres, 2002).

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escritos apócrifos que lhe chegaram ou nas falas que foi possível recolher no campo de batalha, Euclides estabeleceu para o beato o retrato trágico de um heresiarca, projetando sobre essa personagem muitas de suas idiossincrasias, tal como a do mito da irracionalidade, de que derivaria o caos e a anarquia. D. Sebastião já chegou E traz muito regimento Acabando com o civil E fazendo o casamento! O Anti-Cristo nasceu Para o Brazil governar Mas ahi está o Conselheiro Para delle se livrar! Visita nos vem fazer Nosso rei D. Sebastião. Coitado daquele pobre Que estiver na lei do cão! (Cunha, 2009a, v. 2, p. 163 e 164). Em 1894 há de rebanhos mil correr da Praia para o certão, então o certão virara Praia e a Praia virará certão. Em 1897 haverá muito pasto e pouco rasto e um só pastor e um só rebanho. Em 1898 haverá muitos chapéus e poucas cabeças. Em 1899 ficarão as águas em sangue e o planeta há de aparecer no nascente com o raio do Sol que o ramo se confrontará na terra e a terra em algum lugar se confrontará no céu... Há de chover uma grande chuva de estrelas e aí será o fim do mundo. Em 1900 se apagarão as luzes. Deus disse no Evangelho: eu tenho um rebanho que anda fora deste aprisco e é preciso que se reúnam porque há um só pastor e um só rebanho! (Cunha, 2009a, v. 2, p. 137).

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Em Os sertões, a releitura desses fragmentos poético-proféticos aponta para a construção metafórica de Canudos como movimento sebastianista e messiânico, vinculado à crença no retorno do “Desejado” ou “Encoberto” rei português D. Sebastião, para derrotar a República “do Cão” e restaurar a Monarquia de “Bastião”. Pensamos que, embora haja atualmente consenso na crítica de que esse “sebastianismo” em Canudos seja muito mais uma alegorização euclidiana, a serviço da composição trágica que a sua leitura particular da guerra e dos homens e mulheres que a fizeram exigia, julgamos que seja relevante uma pesquisa sobre os índices mitológicos que permeiam a produção desses mesmos fragmentos, e sob que forma a leitura de Euclides da Cunha desloca o sebastianismo do campo do mito e da história para o campo fértil da literatura. Conforme assinalou Ventura, o autor de Os sertões “[...] adotou um modo historiográfico ousado, ao dar um arranjo poético ao conflito, criando uma obra híbrida entre a narrativa e o ensaio, entre a literatura e a história” (Ventura, 1997a, p. 18). A força do relato euclidiano, a tragicidade de sua pena e o sentido de sua permanência estariam, portanto, ancorados na metaforização arquetípica não só do imaginário brasileiro, mas, por que não dizer?, do imaginário ocidental, que Euclides reúne, amplia e promove na construção do seu primeiro “livro vingador”. A metáfora desse livro reivindicante e vingante é recorrente em Euclides da Cunha. O autor lança mão dela para classificar metalinguisticamente suas duas grandes obras – a escrita, Os sertões, e a projetada, Um paraíso perdido. Em especial sobre sua obra a partir dos acontecimentos de Canudos, Euclides declara, em carta ao amigo Francisco Escobar, em abril de 1902: Alenta-me a antiga convicção de que o futuro o lerá. Nem outra coisa quero. Serei um vingador e terei desempenhado um grande papel na vida – o de advogado dos pobres sertanejos assassinados por uma sociedade pulha, covarde e sanguinária... Além disto terei o aplauso de uns vinte ou trinta amigos em cuja primeira linha estás. E isto me basta (Galvão; Galotti, 1997, p. 133).

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Ao mesmo destinatário, sobre seu “segundo livro vingador”, Euclides diz que está alinhando “[...] as primeiras páginas de Um Paraíso Perdido, o meu segundo livro vingador” (Galvão; Galotti, 1997, p. 306). E completa: “Se o fizer, como o imagino, hei de ser (perdoa-me a incorrigível vaidade) hei de ser para a posteridade um ser enigmático, verdadeiramente incompreensível entre estes homens” (Galvão; Galotti, 1997, p. 306). Inconscientemente ou não, o próprio escritor, para além de sua máscara narrativa vindicante, dá os primeiros passos para a construção do monumento literário em que acabou se transformando Os sertões. Um escritor, uma obra, uma proposta de intervenção artística que se pauta na retradução dos pressupostos científicos de uma época. Para além de Os sertões, a visada ética e estética de Euclides da Cunha irrompe o maniqueísmo das observações neutras e avulta na apreensão de um mundo em conflito, disperso, sertanejo e apátrida. Para Euclides, o fenômeno da guerra, se trespassado por múltiplas perspectivas, revela-se complexamente através de uma estrutura mais bem acabada, se em comparação com a ótica monocular. Se não pôde ser feliz na manutenção da “linha reta” a que se propunha – ele, um “caboclo sans peur et sans reproche”8 –, em todas as suas teses, o escritor ofereceu-se, como porta-voz de seu tempo e de sua gente, ao crivo da posteridade, sem reservas. Em carta ao amigo Otaviano da Costa, Euclides parece ter consciência desta incontornável polivalência de sua ação enquanto intelectual: Nostalgia e Revolta: tu não imaginas como andam propícios os tempos a todas as mediocridades. [...] Em cada esquina um O´Connel; em cada degrau de Secretaria um salvador das instituições e da pátria. Da noite para o dia surgem não sei quantos imortais... É asfixiante! A atmosfera moral é magnífica para os batráquios. Mas apaga o homem. Já [...] penso em romper a

8  CUNHA, Euclides da. Carta a Otaviano da Costa Vieira – 8 de agosto de 1909 (apud Galvão; Galotti, 1997, p. 423). A locução francesa, que significa “sem medo e sem censura”, refere-se ao cavaleiro medieval francês, Pierre Terrail, seigneur de Bayard (1473-1524), designando sua conduta irrepreensível na conquista de numerosas vitórias em nome do Rei Francisco I (muito embora haja registros históricos de que o “chevalier sans peur et sans reproche” se utilizava de armas mecânicas e mandava eliminar os seus prisioneiros).

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fundo com tudo isto: dois ou três artigos desabalados e rijos – tomando a frente de toda essa sujeira [...] canalha com o meu rubro desassombro de caboclo sans peur et sans reproche. Mas contenho-me [...] (apud Galvão; Galotti, 1997, p. 423).

Entre consórcios, leituras e derivações, Euclides da Cunha estabeleceu para o Brasil uma representação como país, e para seu povo como nação, de natureza sofística e inventiva. E o fez ousando transcrever a história em fractais narrativos múltiplos, atravessados igualmente pela memória dos vencidos, pela pretensão dos que se disseram vencedores e pelo olhar intercambiante e mediador do narrador sincero que não se acostuma, que não transige. Se “Canudos não se rendeu” (Cunha, 2009a, v. 2, p. 404), também Euclides não capitulou frente ao desafio estrondoso de escrevê-lo. E de vivê-lo.

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