Algernon Sidney: um pensador republicano do século XVII

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Universidade Federal Fluminense REITOR

Antonio Claudio Lucas da Nóbrega VICE-REITOR

Fabio Barboza Passos

Eduff – Editora da Universidade Federal Fluminense Gestão 2016-2017

Gestão 2018-2020

CONSELHO EDITORIAL

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Aníbal Bragança [Diretor] Antônio Amaral Serra Carlos Walter Porto-Gonçalves Charles Freitas Pessanha Guilherme Pereira das Neves João Luiz Vieira Laura Cavalcante Padilha Luiz de Gonzaga Gawryszewski Marlice Nazareth Soares de Azevedo Nanci Gonçalves da Nóbrega Roberto Kant de Lima Túlio Batista Franco

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Renato Franco [Diretor] Ana Paula Mendes de Miranda Celso José da Costa Gladys Viviana Gelado Johannes Kretschmer Leonardo Marques Luciano Dias Losekann Luiz Mors Cabral Marco Antônio Roxo da Silva Marco Moriconi Marco Otávio Bezerra Ronaldo Gismondi Silvia Patuzzi Vágner Camilo Alves

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Luís Falcão

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Agradecimentos Aos meus amigos, colegas e professores de graduação, mestrado e doutorado, com quem tive o privilégio de travar diversos debates sobre temas pertinentes a este trabalho e outros tantos que me fizeram amadurecer profissionalmente. Agradeço especialmente ao meu orientador, professor Marcelo Jasmin. Em nenhum momento desta pesquisa, durante o doutorado, e mesmo ainda na fase do mestrado, como professor e como membro da banca examinadora da defesa de dissertação, ele se furtou a despender todos os esforços necessários à realização deste trabalho. Agradeço por sua conduta comprometida e por sua disposição na resolução dos trâmites acadêmicos, mas agradeço-lhe, sobretudo, por todas as conversas, debates e orientações que, não obstante a importância do conteúdo, ultrapassaram os temas contidos neste estudo e chegaram aos diversos campos das Ciências Humanas. Agradeço sua dedicação e gentileza nesses anos de convívio que apenas iniciam nossa relação da qual já posso dizer que transformou-se em amizade. Agradeço aos membros da banca examinadora da defesa do projeto de tese, professores César Guimarães, do IESP, e Claudio de Farias Augusto, da UFF, pelos comentários e sugestões naquela ocasião. Ao Claudio, também devo muito mais do que agradecimentos, grande amizade que já se vão mais de dez anos, desde quando fui seu aluno no primeiro semestre de graduação em Ciências Sociais na UFF. Por todo o empenho e dedicação, agradeço-lhe. Aos membros da banca examinadora da tese de doutorado, que fundamentou este livro, devo um profundo agradecimento. Novamente, ao mesmo César Guimarães, agora como presidente da banca, por todo o profissionalismo, atenção e perspicácia de seus comentários sempre construtivos, particularmente sobre a relação entre republicanismo e democracia, a perspectiva revolucionária de ambas as tradições quanto ao ódio pelas tiranias, que pode ser visto muito claramente na obra de Sidney. Agradeço ao professor Bernardo Ferreira, da UERJ, não apenas pelos comentários sobre o conteúdo, particularmente sobre o “programa” e a “linguagem” do republicanismo, mas também sobre as indicações de organização temática, que, em parte, foram aqui incorporadas. À professora 5

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Eunice Ostrensky, da USP, agradeço pela leitura crítica sobre os diferentes modos de abordar os autores, as tradições e as teorias, sobretudo, no que se refere ao tema do conflito político entre os republicanos. Mas, principalmente, agradeço a gentileza e a dedicação com a qual tratou o trabalho. Agradeço ainda à professora Heloísa Starling, da UFMG, por chamar minha atenção para as teorias republicanas das formas de governo, das variantes antigas de politeia e res publica às formas contemporâneas nos Estados modernos, com o devido destaque para a importância de Maquiavel. Também agradeço à professora Heloísa pelo carinho e generosidade de sua atenção. Aos membros da banca, agradeço enormemente, claro, sem responsabilizá-los pelos equívocos. Agradeço ao professor Renato Lessa, meu orientador de mestrado no recém-fundado IESP. Ao professor Newton Bignotto, da UFMG, além de membro da minha banca de defesa de dissertação de mestrado, também agradeço pelo diálogo sobre Maquiavel e maquiavelismo nos últimos anos. Agradeço à professora Maria das Graças de Moraes Augusto, da UFRJ, por toda a ajuda, sobretudo, com relação à leitura de autores antigos pelos modernos. Mas agradeço-lhe principalmente pelo enorme incentivo às pesquisas e estudos em todos os anos de nossa amizade. Devo um agradecimento especial ao professor Paulo Butti da Università degli Studi di Bari, com quem tive, e continuo a ter, o privilégio do constante diálogo a respeito de inúmeros temas da teoria política clássica e moderna. Tenho, e continuo a ter, a honra de dividir com ele o andamento dos meus trabalhos e questões. O professor Paulo Butti me recebeu na Itália, não apenas nas oportunidades em que pudemos nos encontrar, mas também sempre me indicando congressos e atividades das diversas áreas da Ciência Política. Profundo incentivador de minhas pesquisas desde minha graduação, quando nos conhecemos pessoalmente em um congresso no Rio de Janeiro, o professor Butti foi o responsável primeiro por abrir as portas para meu período sanduíche na Itália, inicialmente como coorientador e depois, por sugestão dele mesmo, por me apresentar o professor Marco Geuna, da Università degli Studi di Milano, que aceitou prontamente a coorientação. Meu sentimento em relação ao professor Marco Geuna também é da mais alta estima. Desde os primeiros momentos de nosso contato, antes de minha estadia na Itália, ele se dispôs a discutir paulatinamente comigo diversos aspectos do republicanismo, do maquiavelismo e de

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pontos bastante específicos deste trabalho. Entre indicações bibliográficas, disponibilizações de textos e convites para congressos e seminários em muitas cidades italianas, o professor Geuna sempre esteve atento às minhas pesquisas e à minha estadia em Turim e não deixou de fazê-lo após meu retorno ao Brasil. Mais do que isso, desenvolvemos uma relação profissional da qual muito me orgulho. Devo ainda dizer que ele me disponibilizou diversas cartas de aceite para que eu tivesse acesso às bibliotecas italianas, sem as quais não teria possibilidade de realizar este estudo. Ainda sobre a estadia italiana, devo agradecer à Fondazione Luigi Firpo, à Fondazione Luigi Einaudi e ao Centro di Studi Piero Gobetti por abrir as portas para meus estudos, levantamento de material bibliográfico e pelas inúmeras vezes em que os bibliotecários muito gentilmente permitiram que eu ficasse após o horário a fim de terminar o trabalho do dia. Nessas fundações, assisti a conferências semanais sobre “História das Doutrinas Políticas”, consultei publicações dos séculos XVI ao XIX, travei contato com outros estudantes e pesquisadores, fui presenteado com materiais de consulta e pesquisa, além de edições recentes de Leonardo Alberti e Girolamo Savonarola. Por todo esse acolhimento, agradeço particularmente à diretora e à bibliotecária da Fondazione Luigi Firpo, doutora Cristina Stango e doutora Chiara Carpani, respectivamente; a Paolo Bergoni, responsável da biblioteca pelo acesso ao Arquivo Histórico da Fondazione Luigi Einaudi; ao diretor do Centro di Studi Piero Gobetti, doutor Pietro Polito, que permitiu e incentivou minha pesquisa na biblioteca do centro, incluindo o arquivo de documentação e de textos pessoais de Norberto Bobbio. Agradeço à Università di Studi della Repubblica di San Marino, particularmente, à responsável pela Biblioteca del Dipartamento di Studi Storici, Gabriella Lorenzi. Agradeço ainda à Università degli Studi di Milano, que me aceitou como estudante de doutorado durante o período sanduíche. Durante minha estadia na Itália, pude ainda discutir, mesmo que brevemente, alguns pontos da pesquisa com o professor Francesco Tuccari, da Università degli Studi di Torino; professor Luciano Canfora e professor Raffaele Ruggiero, da Università degli Studi di Bari e com o professor Diogo Pires Aurélio, da Universidade Nova de Lisboa. Ainda referente à estadia italiana, agradeço ao professor Enzo Baldini e ao professor Angelo d’Orsi, da Università degli Studi di Torino; ao professor

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Alessandro Campi, da Università di Perugia; ao professor Stefano Vissentin, da Università degli Studi di Urbino. Agradeço ao professor Jason Maloy, da Oklahoma State University, por permitir-me pessoalmente, via contato eletrônico, o acesso a um de seus manuscritos sobre a relação entre maquiavelismo e puritanismo na Inglaterra, bem como sua citação além de recentes indicações bibliográficas. Agradeço, por fim, à CAPES pela bolsa de estudos de doutorado e pela bolsa de estudos sanduíche, sem as quais este trabalho não poderia ser realizado. ... No prefácio à edição de 1971 de The world turned upside down, Christopher Hill afirma que existem poucas atividades humanas mais cooperativas do que o esforço intelectual de escrever a História e, por isso, aquele que coloca seu nome no trabalho para receber as críticas sabe melhor do que ninguém que aquele estudo dependeu de um grande conjunto de outras pessoas, muitas vezes, ausentes nas referências, ou mesmo desconhecidas do próprio autor. Neste ponto, o trabalho de um estudioso da Teoria Política não se distingue em nada de um da História e, assim, faço de suas palavras as minhas, com o aviso comum de que qualquer falha não deve ser creditada a ninguém mais do que a mim mesmo. Luís Falcão

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It is not necessary to say any thing concerning the person of the author. John Toland, Preface to the Discourses Concerning Government, Londres, 1698

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Abreviações e esclarecimento sobre as principais obras utilizadas

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ão há uma edição que reúna todos os escritos de Sidney. Por isso, os Discourses Concerning Government (Discourses) serão citados pelo capítulo e seção, seguidos da página da edição curada por Thomas West em 1996 e, quando necessário, contrastados com a edição base de 1772 (Works) e com a original de John Toland, publicada em 1698. O diálogo Court Maxims (1996) só possui uma edição em idioma original, visto que o texto foi descoberto apenas nos anos 70 do século XX, por Blair Worden. Assim, segue-se o número do diálogo, contido no manuscrito, e a página da edição de Hans W. Blom, Eco Haitsma Mulier e Ronald Janse. Existem dois textos que Sidney escreveu em parceria. Um deles é England’s Great Interest, in the Choice of This New Parliament (2002), com William Penn. Apesar de não conter a indicação autoral na edição dos escritos políticos do fundador Quaker aqui utilizada, seguimos a orientação de Jonathan Scott (1991, p. 135) de que o texto teria sido escrito a quatro mãos. O outro, única publicação de Sidney em vida, foi escrito com William Jones, e utilizar-se-á a publicação contida na compilação State Tracts of the Reign of Charles II, publicada em 1689. Dois outros textos possuem edições apenas em apêndices de outros livros, também utilizados. Das 106 cartas em que se atesta a autoria de Sidney, 69 foram publicadas em numerosas e esparsas edições (Scott, 1991, p. 361 e 362). Por isso, as referências bibliográficas contêm a indicação de cada carta consultada, salvo as coletâneas cuja citação carrega apenas os anos inicial e final das cartas nelas contidas. Todas as cartas serão citadas, no corpo do texto, pela data, seguida da página da edição de referência. Aos demais textos serão oferecidas as indicações nas referências bibliográficas, priorizando a coletânea The Works of Algernon Sidney, publicada em Londres, em 1772. Nesta publicação, em um único volume, a paginação é reiniciada a cada texto, de modo que as referências às páginas poderão se repetir, justificando, pois, a necessidade de inserção do título em cada citação. De modo a facilitar a identificação de obras de outros autores de época, devido à quantidade de edições, como, por exemplo, as de Hobbes, inserem-se o título e, quando houver, o número da parte e do referido 11

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capítulo, seguidos da página da edição de referência. Caso se empregue mais de uma edição da mesma obra, será oferecido o ano de publicação da citação em questão. Quando o idioma original não for utilizado como principal referência, como no caso de Grotius, a citação e a referência ao título serão feitas no idioma consultado. Escritos contidos em edições compiladas de textos integrais, como, por exemplo, de Filmer e Milton, terão a indicação precisa de qual texto se trata no ato da citação e, nas referências finais, apenas a edição empregada. As obras de Maquiavel serão citadas do seguinte modo: os Discur­ sos sobre a primeira década de Tito Lívio (Discorsi), de acordo com o livro, capítulo e linha, seguindo a edição estabelecida por Giorgio Inglese em 2010; O Príncipe (Principe), citado pelo capítulo e linha, seguindo a edição estabelecida também por Inglese em 2013. Todas as outras seguem as marcações da edição dos escritos completos estabelecida por Corrado Vivanti em 1997 com a devida página. Quaisquer outras referências, inclusive de outras edições dos Discorsi e de Il Principe, serão indicadas com os padrões acadêmicos tradicionais. Devido ao número e dispersão das edições existentes de documentos, panfletos e textos de intervenção, com ou sem o conhecimento da autoria, serão indicados precisamente nas referências bibliográficas e também no ato da citação, de modo a facilitar o entendimento e identificação. Por fim, com relação à grafia dos nomes próprios e palavras com arcaísmos, respeitaremos a letra dos textos das edições utilizadas, mesmo quando haja variações significativas ou quando o responsável pela edição modernizou a escrita. Quando inseridos em nosso próprio escrito, manteremos os usos mais correntes em português dos nomes próprios, como Algernon Sidney. Com relação aos verbos e substantivos comuns, quando tratados no idioma original, para marcar o emprego da palavra pelo autor em questão, manteremos, igualmente, a grafia da edição utilizada. Outros esclarecimentos bibliográficos, bem como obras não contidas nas referências finais, quando necessários, serão feitos ao longo do texto ou em notas.

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Sumário Prefácio |15 Apresentação |19 Introdução geral |21 Parte I: Natureza humana, direito natural e contratualismo |45 Introdução |47 Natureza humana e estado de natureza |61

O conhecimento da política e do homem Homens e animais: razão e história Estado de natureza Igualdade e desigualdade em estado de natureza

Lei da natureza e direito natural |87

Lei da natureza como liberdade e como razão Unidade das leis da natureza Do direito natural ao direito positivo Hierarquia dos direitos

O contrato |111

A instituição da sociedade: o primeiro contrato Progressão contratual: demografia, liberdade, bem e ação Igualdade e desigualdade em sociedade: virtudes, propriedade e representação Origem do governo: o segundo contrato

Parte II: Os termos do republicanismo maquiaveliano |143 Introdução |145 A virtude moral |163

Governo das leis A distribuição das virtudes: Aristóteles O conteúdo da virtude: Cícero Virtude, vício e fortuna: Maquiavel

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O governo |201

Ciclos de governo Redução aos princípios As monarquias Democracia, aristocracia e os extremos Governo misto

Conflito e expansão |239

Liberdade e virtude Matéria, tumulto e harmonia Sedição, tumulto e guerra Expansão

Conclusão |271 Referências |275

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Prefácio

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ornou-se comum assistirmos a políticos brasileiros de hoje defenderem suas atitudes ou proposições como “republicanas” para se referirem ao fato de que fomentam o bem público da população, ao mesmo tempo que respeitam as leis do país. A despeito da desconfiança com que muitas destas declarações são recebidas por seus ouvintes, o fato é que o uso de termos referidos à “república” e ao “republicanismo” tornou-se corrente na linguagem ordinária. Ser “republicano” é sinônimo de coisa boa na política, de algo que se deve prezar e respeitar. Como acontece no mais das vezes em casos como esses, a difusão de termos centrais à linguagem política é acompanhada de disputa, não raro intensa, acerca dos seus significados legítimos e de quais atores estão autorizados a incorporá-los a sua identidade política, o que produz uma complexa polifonia e uma instabilidade inerradicáveis em seus sentidos usuais. De modo breve, poderíamos afirmar que, enquanto um termo permanece central à linguagem política e participa da definição da legitimidade das práticas e das instituições que conformam a vida em comum, ele será objeto de disputa acirrada e sofrerá de inevitável polissemia. Esse é o caso, por exemplo, de termos como democracia ou liberdade, para nos referirmos aos mais notórios. E não poderia ser diferente, pois tais palavras constituem complexos semânticos de muitos significados, cujos usos não apenas descrevem o mundo, mas prescrevem como ele deve ser, mesmo que os atores que mobilizam tais termos nem sempre se deem conta disso. Por isso mesmo, quanto mais as perspectivas que constituem as opiniões no mundo público necessitam de um dado termo para se afirmarem como legítimas ou melhores, mais forte e indecisa será a polêmica em torno da sua definição tanto usual como acadêmica. É isto que constitui um conceito fundamental na política, por diferença de outras palavras que podem ter significados unívocos. A possibilidade de definição clara e distinta de um conceito fundamental à vida política e social só se torna possível, portanto, quando o termo deixou de servir à prática agônica dos

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atores sociais num dado tempo, o que não significa dizer que o mesmo termo não possa voltar à tona sob polêmica em outro momento. O termo “república” está, certamente, neste último caso. Embora tenha frequentado o vocabulário político brasileiro nas últimas décadas, seu significado parece estabilizado para referir-se a uma forma de governo, tal como apareceu na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, com um conteúdo legitimado pelo plebiscito realizado em 21 de abril de 1993, no qual os eleitores foram convocados a escolher a forma de governo – monarquia ou república – e o sistema de governo – parlamentarismo ou presidencialismo. Contudo, a experiência prática da vida política democrática a partir de então pareceu exigir complementações a este significado de “república” à medida que se avançava na reivindicação do respeito à coisa pública e do interesse no bem comum quando da condução dos negócios públicos. Este fenômeno tornou-se particularmente sensível na intensificação das demandas de cidadania e de participação democrática que acompanharam a crítica ao esvaziamento e aos limites da representatividade das instâncias tradicionais da vida parlamentar. Certamente, este não foi um fenômeno exclusivamente brasileiro. Já em 1969, ao analisar as reivindicações dos movimentos estudantis radicalizados do período, Hannah Arendt chamava a atenção para o fato de que o clamor por uma “democracia participante” fora o “único slogan positivo” que se tornara “denominador comum das rebeliões de Leste a Oeste”. O slogan, embora marcado por uma “timidez em assuntos teóricos, estranhamente contrastante com uma arrojada coragem na prática”, tinha como duplo endereço as democracias ocidentais em vias de perder “até mesmo a sua função representativa para as enormes máquinas dos partidos que não ‘representam’ seus filiados, mas seus funcionários” e as “burocracias unipartidárias do Leste, que excluem a participação em princípio”.1 Arendt salientava que a proposição tinha suas raízes no que havia de melhor na tradição revolucionária – “o sistema de conselho”, considerado por ela o resultado sempre derrotado, embora o único autêntico, das revoluções contemporâneas. Mas a pesquisa em busca da fundamentação teórica de modelos participativos e de cidadania ativa encontrou muitas outras fontes nas quais se inspirar, além da tradição revolucio1

ARENDT, Hannah. Da violência. In: ______. Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 1973. p. 108-109.

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nária moderna. Os estudos históricos acerca das tradições republicanas da política e da liberdade do mundo clássico à época do Renascimento italiano, das fundações teóricas das repúblicas norte-americana e francesa, e as especulações de caráter claramente normativo em torno da democracia “deliberativa” ou “participativa” proliferaram desde os anos 1960 e ganharam autonomia intelectual em relação às questões políticas mais imediatas, mas nem por isso deixaram de informar a crítica contemporânea dos limites éticos e políticos das democracias representativas e da política em geral. No Brasil, pelo menos desde a década de 1980, vários esforços acadêmicos associaram pesquisa histórica e reflexão teórica no sentido de incorporar tradições republicanas clássicas e modernas à discussão contemporânea da política. A crescente sofisticação acadêmica neste terreno é notória.2 O livro de Luís Falcão que o leitor tem em mãos se inscreve nesta tradição de investigações que associa história e teoria política e traz para o público brasileiro um belo trabalho sobre uma das vertentes republicanas menos conhecidas entre nós, a inglesa, e sobre o ainda menos conhecido formulador republicano inglês do século XVII, Algernon Sidney. Entre os autores maiores do republicanismo inglês, John Milton tem recebido atenção das editoras brasileiras,3 mas James Harrington, Marchamont Nedham e Algernon Sidney, salvo engano, continuam inéditos e não constam sequer da Wikipedia em língua portuguesa. Os estudos específicos sobre o republicanismo inglês têm como marco referencial internacional a publicação, em 1945, da obra pioneira do professor de língua inglesa Zera Fink (1962) sobre os republicanos clássicos. Posteriormente, foram desenvolvidos pela historiadora Caroline Robbins (1978), nos capítulos iniciais do seu livro publicado, em 1961, sobre o Commonwealthman do século XVIII, e ganharam grande notorie2

Significativa nesta direção foi a constituição do grupo dos Repúblicos, ao final dos anos 1990, que reuniu acadêmicos de instituições diversas e das várias áreas das ciências humanas e sociais, como Heloisa Starling, José Murilo de Carvalho, Luiz Werneck Viana, Maria Alice Rezende de Carvalho, Olgária Matos, Renato Janine Ribeiro, Sérgio Cardoso, Wander Melo Miranda e eu em torno do tema do republicanismo e produziu dois livros pioneiros sobre o tema: Bignotto (2002) e Cardoso (Org.), Retorno ao republicanismo (2004), ambos editados pela Editora da UFMG. Para uma visão geral das várias tradições do republicanismo, veja-se a obra coletiva também publicada pela UFMG, Bignotto (2013).

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Veja-se, por exemplo, as traduções de O paraíso perdido (Tradução de Daniel Jonas. São Paulo: Editora 34, 2015), de Aeropagítica (Tradução de Raul de Sá Barbosa, Rio de Janeiro: Topbooks, 1999) e a coletânea de Escritos políticos (Tradução de Eunice Ostrensky. São Paulo: Martins Fontes, 2005).

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dade com os trabalhos de John Pocock (2003) e de Quentin Skinner.4 No Brasil, o professor Alberto R. G. Barros, do Departamento de Filosofia da USP, após suas pesquisas de mestrado e de doutorado sobre Jean Bodin, especializou-se mais recentemente no republicanismo inglês e publicou, em 2015, o primeiro livro especificamente dedicado ao tema no Brasil, discutindo as obras de Milton, Harrington e Nedham.5 Luís Falcão (2013c), que em seu mestrado discutiu as teorias da república em Maquiavel, Montesquieu e James Madison, buscou em seu doutorado em Ciência Política no IESP (UERJ), cuja tese foi defendida em fevereiro de 2015, reconhecer a especificidade do republicanismo inglês, especialmente a partir das leituras de Harrington e de Sidney. Sua pesquisa, reelaborada e em parte apresentada no presente livro, desenvolveu-se tendo como foco a permanência das formulações maquiavelianas no republicanismo inglês, especialmente o tema da relevância do conflito para a existência da liberdade política, e nos mostra como o pensamento político de Sidney foi elaborado em diálogo contínuo e tenso tanto com a obra do florentino como com as teorias do direito natural moderno. Trabalho de grande fôlego, de rara disposição investigativa e excelência, o livro de Luís Falcão muito nos ensina sobre esse extraordinário pensamento político inglês do século XVII e nele encontraremos uma riqueza de argumentos e de significados do conceito de república e do campo do republicanismo que contribuem para a compreensão e a elaboração mais judiciosas da política democrática no mundo contemporâneo. Marcelo Jasmin – PUC/Rio Rio de Janeiro, 27 de maio de 2016.

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Das muitas obras de John Pocock refiro-me, especialmente ao The Machiavellian moment: florentine political thought and the Atlantic republican tradition (2003) e das muitas de Quentin Skinner à coletânea por ele editada em parceria com Martin van Gelderen, em dois volumes: SKINNER, Quentin; GELDREN, Martin (Ed.). Republicanism: a shared European heritage. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. 2 v.

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BARROS, Alberto R. G. Republicanismo inglês: uma teoria da liberdade. São Paulo: Discurso Editorial/FAPESP, 2015. Vale notar que a professora Eunice Ostrensky, do Departamento de Ciência Política da USP, que vem se dedicando a pesquisar e a traduzir o pensamento político inglês clássico, produziu pelo menos uma tradução (não publicada) de A arte de governar, de Harrington, para uso dos seus alunos de graduação.

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Apresentação

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ste livro é o resultado da minha tese de doutorado em Ciência Política, A recepção de Maquiavel nos republicanismos de Ja­ mes Harrington e de Algernon Sidney, defendida em fevereiro de 2015, no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP), sob orientação do professor Marcelo Jasmin. O trabalho objetivava, como tentou-se formular em seu título, destrinchar os alicerces do republicanismo maquiaveliano no pensamento de James Harrington e de Algernon Sidney. Conveio que fossem esses os autores, como logo será devidamente explicado, pela surpreendente proximidade de suas teorias políticas, em parte compreendidas pelo mesmo contexto histórico, não obstante a inquestionável e profunda diferença de seus fundamentos intelectuais. Autores menos divulgados no Brasil, mesmo por estudiosos de diversas disciplinas que têm a reflexão política como objeto, Harrington e Sidney têm ganhado destaque nos círculos acadêmicos internacionais, particularmente, em função do recente engrandecimento do interesse pelo republicanismo. Na tese, procurei evidenciar os aspectos teóricos propriamente e as explicações contextualistas ficaram apenas como marcações de coerência interna das ideias dos autores quando indispensáveis. O presente livro, porém, não é uma simples transposição da parte da tese referente a Sidney. Antes disso, é uma reordenação ligeiramente encurtada desta parte. Procurei aqui reduzir ao máximo os comentários às origens intelectuais das quais Sidney se valia, que ocupavam espaço significativo naquele trabalho, de modo que muitas fontes primárias foram suprimidas, bem como o contraste das diferentes edições dos textos de Sidney e toda a parte referente a Harrington. Em situações específicas, quando a argumentação requeria, mantive breves explicações ou indicações em notas de rodapé. No caso particular de Maquiavel, apesar de cortadas inúmeras citações e interpretações de fundo, mantive-o pela própria essência do estudo, mas suprimi ao máximo os comentadores. Não se trata, todavia, de uma investigação comparativa de dois ou três autores, e, neste livro, nem mesmo da recepção de Maquiavel em Sidney. Trata-se da hipótese

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central deste trabalho, qual seja, a de que o republicanismo de Sidney se desenvolve na linha tênue e muitas vezes antagônica que separa as teorias modernas do direito natural e o pensamento de Maquiavel. Reduzi também os diálogos com os comentadores de Sidney, de tal maneira que busquei produzir uma experiência de leitura mais agradável e menos detalhista quando suspeitosamente prolixa.1 Algumas modificações ou precisões conceituais foram feitas de modo a incorporar as sugestões e críticas da banca examinadora que ora, mais uma vez e sempre, agradeço profundamente. Não obstante essas alterações, pretendi que os argumentos se mantivessem inalterados. A organização dos capítulos e seções segue a ordem original, o esforço foi o de construir um desencadeamento lógico do pensamento de Sidney, dos argumentos mais gerais e abstratos aos mais específicos e concretos de seu republicanismo. Reafirmo, como é prática corrente, que a responsabilidade pelas interpretações é inteiramente minha.

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Devo aqui um esclarecimento sobre uma publicação recente. Alberto Ribeiro G. de Barros, poucos meses depois de minha tese ter sido defendida, publicou Republicanismo Inglês: uma teoria da liberdade, de modo que esta obra não foi lida ou referenciada àquela altura. Senti-me compelido a incorporá-la durante a organização deste livro, já em andamento, assim que veio a público. Entretanto, dois motivos me levaram a abdicar da empreitada. Primeiramente, os comentários a outras contribuições teriam de ser refeitos, com mais ou menos riqueza de detalhes, a fim de serem honestos com o trabalho do professor Alberto Barros, e isso requereria um tempo maior do que dispunha. Em segundo lugar, apesar da importância da publicação para os estudiosos do republicanismo inglês, a obra não tem Sidney como objeto, o que não diminuiu meu interesse por ela, mas me permitiu, espero, não comprometer tanto o meu livro.

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