Os manuscritos do Brasil

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Os manuscritos do Brasil

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Universidade Federal Fluminense REITOR Sidney Luiz de Matos Mello VICE-REITOR Antonio Claudio Lucas da Nóbrega

Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense CONSELHO EDITORIAL Aníbal Francisco Alves Bragança (presidente) Antônio Amaral Serra Carlos Walter Porto-Gonçalves Charles Freitas Pessanha Guilherme Pereira das Neves João Luiz Vieira Laura Cavalcante Padilha Luiz de Gonzaga Gawryszewski Marlice Nazareth Soares de Azevedo Nanci Gonçalves da Nóbrega Roberto Kant de Lima Túlio Batista Franco DIRETOR Aníbal Francisco Alves Bragança

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Marialva Barbosa (Org.)

Os manuscritos do Brasil Uma rede de textos no longo sĂŠculo XIX

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Copyright © 2017 Marialva Barbosa Copyright © 2017 Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense

Série Pesquisas, 5

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Sumário

Introdução A ordem comunicacional manuscrita e o lugar da comunicação

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Primeiros passos em direção ao mundo manuscrito

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Prolegômenos temporais: uma história do tempo passando

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O método e o tema: questões e hipóteses

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Os pasquins sediosos da Revolta de 1798 – Bahia

43

Negros e pobres contra a monarquia portuguesa

48

O conteúdo dos manuscritos e o papel da comunicação oral na Revolta

58

Considerações finais

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O Pharol: notícias da Revolução Farroupilha pela pena de ferreiro

69

Uma história cultural dos manuscritos

70

Notícias da Revolução Farroupilha

71

Tabernas do Vinagre

74

A letra bonita do ferreiro

76

Considerações finais

77

Gazeta de Buenos Aires, o primeiro manuscrito jornalístico da Bacia do Rio da Prata

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Primeiros escritos platinos

83

A pioneira folha jornalística

86

Muitos motivos e diversos propósitos: os manuscritos do século XIX Muitos propósitos e uma só materialidade

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97 98

A escrita e os sons da oralidade

107

O Archote – ensaios de literatura

112

Os manuscritos das décadas de 1890 e 1900

123

A Justiça de pernas pro ar – ensaios do mundo político

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A Setta: estudo de caso de um jornal estudantil manuscrito no século XIX

141

Conhecendo A Setta 145 Considerações finais

151

Riscar a face do imperador: marcas manuscritas sobre selos e os espaços públicos de manifestação no Segundo Reinado no Brasil

153

O imperador “por detrás das grades”

155

Rabiscos variados

165

Jornal e leitores:

múltiplas escritas, inúmeros sentidos

173

Um jornal, múltiplas relações

174

Muitos leitores, anotações plurais

189

Considerações finais

193

Referências

195

Sobre os autores

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Introdução A história da comunicação, como qualquer história, passa periodicamente por revisões, seja porque foi descoberto ao acaso um arquivo precioso e que deixa ver sistemas de comunicação em toda a sua complexidade, seja porque as inquietações do tempo obrigam a direcionar o olhar para o passado, tentando compreender turbilhões e redemoinhos de mudanças que avançam sobre cada um de nós no mundo que denominamos contemporâneo. Foi por obra do acaso e, em razão das inquietudes de um tempo encharcado de “presentismo”, que chegamos a este texto. Agora tomando a forma de livro, foi digitado no computador, mediação fundamental para a escrita nessas primeiras décadas do século XXI, para procurar compreender um processo comunicacional tão apartado do cotidiano e do nosso tempo ultrapresente, que se torna difícil nomear. Seria este um livro sobre manuscritos? Mas quais manuscritos? Jornais manuscritos, papéis manuscritos, cartas, desenhos e traços, cartazes difamadores e/ou bem-humorados? Ou o manuscrito é apenas uma das escritas que mescla, no suporte jornal/revista observações periódicas sobre sua leitura, fazendo uso de variados textos escritos à mão? Por que algumas publicações misturam propositadamente os modos impressos e manuscritos na edição final? Quando preparava os originais do livro História da comunicação no Brasil, deparei-me com um texto que fazia referência à existência de um fundo documental na Fundação Biblioteca Nacional do Brasil (FBN) e que reunia duas dezenas de periódicos, qualificados como “insólitos jornais” (Cunha, 1994, p. 137), todos cuidadosamente produzidos à mão. A coleção era apresentada pelo chefe da Divisão de Manuscritos, Waldir Cunha, que destacava o fato de não haver ainda “a história da imprensa no Brasil detectado a existência de jornais manus-

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critos, de produção essencialmente artesanal e semelhante em alguns aspectos aos pasquins” (Cunha, 1994, p. 137). Portanto, o acaso tinha feito chegar ao meu conhecimento não apenas esses periódicos estranhos, manuscritos, de cuja circulação pouco se sabia, bem como dos próprios processos de confecção. Como eram esses jornais, quem os produzia e com que propósito? Quais as razões de produzirem em papel almaço, com ou sem pauta, tentativas de reprodução dos jornais impressos que inundavam as principais cidades do Império, a partir da segunda década do século XIX? Muitas eram as perguntas e poucas, as respostas. Se o acaso tinha produzido o encontro desta pesquisadora com seu material empírico, não fora apenas o acaso que tinha entrelaçado seu destino e caminho com o do responsável pelo fundo documental. Waldir Cunha também era professor de História e Geografia de colégios do subúrbio. Num deles, foi meu professor de História e, por meio de suas aulas, a então garota do subúrbio ficou sabendo que existia no Centro do Rio um lugar enorme onde todos os livros do mundo (acreditava então) estavam guardados. Livros e jornais, eu aprenderia mais tarde. Cada um desses periódicos tem uma história. Desvendá-la é um desafio, como também é perceber as razões de sua produção, como foram preservados e, mais do que isso, o que essas páginas informam sobre os processos de comunicação existentes no longo século XIX. Mais perguntas e ainda menos respostas. Contudo o desafio estava lançado. Diante dos olhos, 20 periódicos que, também o acaso levou à sua preservação. Pela ação criteriosa do chefe do Setor de Manuscritos, estes periódicos, que estavam espalhados em diversas coleções particulares, foram reunidos numa única, a dos jornais manuscritos. E lá permaneceram, à procura do olhar de algum pesquisador que pudesse desvendar a ordem manuscrita, os processos de comunicação ali investidos e, sobretudo, compreender um mundo comunicacional habitado sempre por múltiplos modos.

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Com tiragens mínimas (a maioria editava um só exemplar), muitos eram satíricos. Outros eram críticos. Havia ainda os eróticos, os difamadores. De quase a totalidade era produzido (ou foi preservado) apenas um exemplar que podia se multiplicar diante de dezenas de olhares, já que seus idealizadores, não raro, fixavam-nos em locais públicos. Se as condições de circulação e produção dificultaram a sobrevivência, também os modos como eram apropriados eram convites à deterioração. Lidos ao ar livre e expostos às intempéries da natureza, lidos em grupo, o que pressupõe um manuseio extensivo, diversas foram as razões para a degradação de cada um dos exemplares. Mas muitos sobreviveram e, assim, poderemos, nas páginas que se seguem, tentar desvendar um mundo em que, singularmente, a ordem manuscrita teve supremacia. Parece claro que mesmo após a chegada da impressão, no século XV, ou no caso brasileiro, mesmo com a permissão de se imprimir obras as mais variadas – com a chegada da Família Real, em 1808 –, os manuscritos não perderam seu posto de escrita dominante e meio de comunicação fundamental para a disseminação da palavra pública. Portanto, a análise dos periódicos manuscritos, editados e preservados na FBN é apenas a primeira parada na tentativa de desvelar o que denominamos ordem comunicacional manuscrita. As letras manuscritas dividiram durante muitas décadas espaço com textos impressos. Isso era comum nas revistas ilustradas que ampliaram sua circulação junto ao público, desde 1870 (Barbosa, 2013). Ou seja, havia nos impressos brechas para a inclusão de uma palavra, comentário ou indagação. Sempre sob a forma manuscrita. À margem, nas margens, mas de maneira concomitante, manuscritos e impressos podiam formar (e formavam) uma mesma plataforma comunicacional. Assim, nos jornais e nas principais revistas ilustradas do século XIX é recorrente a adição de textos manuscritos a uma base material, na qual se sobressaem ritos de impressão. Aparecem, ora como legenda das ilustrações, ou ainda podem ser acrescentados à margem dos periódicos, como observação em 9

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relação à leitura que era realizada. Nesse caso, não havia nem a espera, nem a permissão prévia para a brecha manuscrita. O ato era de imposição. As bordas em branco se constituíam em lugares-síntese decorrentes de uma leitura particular. Nas margens e às margens havia nos impressos um lugar vazio para a inclusão de modos manuscritos. Na história da imprensa brasileira já se tornou lugar-comum demarcar o ano de 1808 como o da mais expressiva ruptura em termos de processos históricos envolvendo modos de expressão. Naquele ano, com a vinda da Família Real, que, fugindo do enviado de Napoleão Bonaparte, se transferiu com armas e bagagens para a Colônia, vieram também os prelos que foram embarcados numa das naus que rumou em direção às terras coloniais.1 Junto também havia um tesouro da mineração, ou seja, uma riquíssima coleção de minerais, além de instrumentos para o estudo da química. Zarpando do Tejo, em 29 de novembro de 1807, esses tesouros chegaram a salvo ao Porto do Rio de Janeiro, em 6 de março de 1808. A montagem dos prelos numa tipografia que era capaz de editar um volume expressivo de papéis públicos – despachos, avisos, editais, dentre outros documentos multiplicados pela burocracia oficial –, se, por um lado, reincluiu o território de além-mar na ordem impressa, por outro, obrigou a instalação de diversos órgãos da administração direta que passaram a produzir aos borbotões papéis públicos manuscritos. Ou seja, a chegada da impressão acrescentou à ordem manuscrita a permissão de divulgar e opinar sob a forma de letras impressas, mas também ampliou as possibilidades de uma ordem comunicacional de outra natureza. Com a vinda da Corte, exacerbaram-se as práticas e processos comunicacionais, deixando à mostra gestos existentes no Brasil Colonial e que expressam a concomitância das três ordens de comunicação: oral, manuscrita e impressa. 1

Também foi em junho de 1808, que Hipólito José da Costa editou o Correio Braziliense. Impresso em Londres, mas que circulava – tal como outros papéis – de maneira clandestina nos principais portos brasileiros. Sobre o tema, consultar Barbosa, 2010a.

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Deve-se considerar também que o desejo de se produzir jornalismo fazia com que, ao lado de inúmeros periódicos impressos que começaram a ser editados, proliferassem jornais manuscritos com muitos formatos e intenções ainda mais plurais. Recuperando estes jornais efêmeros e duradouros (como uma rede de textos), mostraremos, num primeiro momento, como, por meio de uma metodologia de pesquisa específica, voltada para a recuperação de traços e indícios do que existiu no passado, pode-se reinterpretar uma história que, só em aparência, parecia terminada. Entretanto, o próprio caminho da pesquisa indicou outros processos que deveriam ser compreendidos e explicados, em relação a esse mundo dos manuscritos. Observamos também que era impossível recuperar os manuscritos do Brasil sem a formação de uma rede de pesquisadores que identificasse o que existia em outras províncias no longo século XIX, já que inclui a última década do século XVIII e as primeiras do século XX. Assim, este livro não é de um autor. Tal como a rede de textos dos quais trata, também se formou uma rede de pessoas envolvidas no desvelamento da ordem manuscrita no Brasil e que se revelou de enorme complexidade. Seria impossível para um único pesquisador percorrer de maneira solitária esse caminho. Foi então proposta a formação de uma rede de pesquisa que integra a produção que ora apresentamos, com o apoio institucional do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq). Formada por professores que estudam processos históricos comunicacionais, a rede permitiu o conhecimento particular desse denso mundo comunicacional, como também ampliou as possibilidades explicativas em função das peculiaridades de cada território cultural analisado. Como estratégia metodológica, dividimos o território denominado Brasil nas mesmas regiões existentes no início do século XIX. Do ponto de vista territorial, o Brasil (ainda não consolidado como Estado Nacional), no fim dos anos 1820, era constituído por três grandes espaços: o Oeste Marítimo; os Governos Gerais do Leste e os Governos do Interior. O Oeste Marítimo incluía o Grão-Pará, o Maranhão e as demais 11

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províncias chamadas do Norte; os Governos Gerais do Leste englobavam a Bahia e os governos secundários de Sergipe, Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul. E os Governos do Interior, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso (Morel, 2005, p. 153). Para melhor delimitar o objeto de estudo, nos ocupamos preferencialmente da análise de periódicos que surgiram ao longo do século XIX, não com a pretensão de recuperar o verdadeiro passado e, assim, dar conta de jornais manuscritos que existiram em diversos estados. O propósito é apenas revelar e interpretar fatias deste passado. Inicialmente, privilegiamos o material que está sob a guarda da Biblioteca Nacional e, posteriormente, a partir da constituição da rede de pesquisadores, outros que são também peças-chave para o entendimento da transformação da imprensa em algumas províncias do Império. Desse modo, incluímos na análise algumas províncias dos chamados Governos Gerais do Leste (Bahia e Rio Grande do Sul). Ainda que seja uma fonte difícil de ser recuperada, há não apenas indícios e sinais da existência desses jornais manuscritos, como alguns permaneceram guardados nos arquivos de diversos estados do Brasil. Para explicitar também como metodologicamente construímos a pesquisa, o foco recai sobre a produção de manuscritos, sendo o objetivo analisar seus aspectos conceituais (gráfico, editorial, produção, distribuição etc.) num complexo entendimento do que estamos chamando ordem manuscrita. O livro é dividido em oito temas, reunindo reflexões de diversos autores em torno da produção da comunicação manuscrita no Brasil, como parte da formação do espaço público do Estado Nacional em gestação. Procurar-se-á mostrar, em primeiro lugar, que a interdição para que se imprimisse no território colonial jornais e outros opúsculos não foi empecilho para a construção de ordem comunicacional manuscrita, fundamental na ação complexa de constituição de uma arena pública política.

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Concordamos com Marco Morel (2005) que as primeiras décadas do século XIX foram decisivas na construção de uma arena pública e que a passagem da América Portuguesa para o Brasil independente representou significativas transformações, com alterações igualmente importantes nas maneiras de fazer política nas cidades, espaços de expressão privilegiada da cena pública. Assim, tão importante como conceber a expansão exponencial da imprensa, que começou a circular a partir de 1808, e com intensidade estonteante desde 1822, é saber que, se houve rupturas nas maneiras de se comunicar publicamente como ator político, houve também permanências. Assim, a sociedade que existia não mudou subitamente. Se havia novas formas de fazer política, as práticas e valores consagrados continuaram representando atos comunicacionais desse mundo que se transformava. Lado a lado com a imprensa – expressão mais acabada da modernidade desejada –, outras formas de exprimir opiniões, contentamentos ou descontentamentos em relação às normas políticas existiam em diversas modalidades. Papéis incendiários, manuscritos de todos os tipos, tomavam a cena pública, ao lado das vozes que gritavam a favor ou contra a nova ordem. Como mostra Morel (2005), papéis incendiários, gritos e gestos também foram fundamentais para a construção dessa arena entre 1820 e 1840. O que ocorreu no período de formação do espaço público no Brasil foi a expansão de redes de comunicação, tanto aquelas oriundas das práticas da oralidade, quanto as que se desenvolviam na esteira das novas possibilidades tecnológicas de comunicação. A criação de redes administrativas, de transportes, de mercadorias, de produção e circulação dos impressos, difundindo interesses, ideias, palavras de ordem e propostas de organização e mobilização, é crucial para a formação desses espaços (Morel, 2005, p. 151). Ao lado das expressões verbais e gestuais (que continuaram tendo enorme importância mesmo depois da consolidação da imprensa periódica), havia também as expressões manuscritas, papéis de múltiplas naturezas e que eram tornados 13

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públicos com os mais variados propósitos. Numa sociedade caracterizada pela comunicação oral e visual, tais papéis que, na feliz expressão de Marco Morel, “flamejavam nas ruas”, foram fundamentais para a construção e ampliação dos debates públicos, indispensáveis na formação de uma arena política. Assim, o cerne do livro é o desvendamento dessas práticas manuscritas que reproduziam ideias e palavras de ordem no momento da constituição do espaço público numa nova nação que se organizava. Esses jornais e papéis de diversas naturezas, incendiários e flamejantes, formaram a ordem comunicacional manuscrita. Em alguns momentos, foram decisivos. Quando havia necessidade de conclamar um público mais vasto e de incendiar o espaço público, recorria-se seguidamente a eles, que eram lidos em lugares de grande ajuntamento de pessoas (casas comerciais, praças, muros e fachadas comerciais da cidade, na porta dos próprios jornais etc.). Foram feitos para serem lidos de forma partilhada, convidando naturalmente também às partilhas de opiniões, de desejos e ações. No ápice das revoltas, antecedendo, sobretudo, momentos em que as palavras de ordem se transformavam em palavras de ação, esses manuscritos ganhavam novos formatos hiperbólicos do ponto vista da linguagem. Eram expressões de convocação para a luta e para a guerra corpo a corpo. Alguns deles sobreviveram e são, principalmente, sobre os manuscritos das revoltas que tratam os primeiros temas do livro. Assim, o segundo e o terceiro falam, respectivamente, dos boletins sediciosos da Revolta de 1798, na Bahia, e das notícias que circularam, no Rio Grande do Sul, durante a Revolução Farroupilha, no jornal O Pharol. Na sequência, Mauro César Silveira analisa a Gazeta de Buenos Aires, o primeiro manuscrito jornalístico da Bacia do Rio da Prata. Os dois temas seguintes tratam, especificamente, de jornais manuscritos que circularam no século XIX, procurando mostrar os diversos propósitos que levaram a editar periódicos com essa formatação. O quinto tema enfoca alguns jornais manuscritos que circularam nas décadas de 1860, 1870 e 1890 e analisa dois jornais em particular: O Archote – produzido pelo 14

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escritor Raul Pompéia quando ainda estudante secundário no Colégio Abílio, e A Justiça, jornal dos presos políticos da Casa de Correção do Rio de Janeiro, editado em 1894. O sexto tema trata de outro jornal estudantil que circulou em São Paulo no fim do século XIX: A Setta. O sétimo tema, de autoria de Marco Morel, faz uma análise instigante das marcas manuscritas postadas sobre os selos, que se traduziam assim em espaços de manifestação no Segundo Reinado no Brasil. Analisando em detalhes os traços que eram fixados nos diversos selos das correspondências, Morel nos leva a refletir também sobre os propósitos presentes na ordem comunicacional manuscrita. O oitavo tema apresenta a análise sobre o território manuscrito complementar existente nos impressos do século XIX, uma história pelas margens desses periódicos e que pode revelar apropriações singulares realizadas pelo público, que também escrevia à margem dos periódicos. Seguindo as pegadas do público deixadas no Conciliador do Maranhão, pode-se, em grande medida, desvendar o destinatário dessas publicações. São, portanto, múltiplos os exercícios interpretativos presentes neste livro que pretende lançar novos olhares sobre os manuscritos do longo século XIX, revelando, principalmente, uma densa e peculiar ordem comunicacional.

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A ordem comunicacional manuscrita e o lugar da comunicação

Marialva Barbosa

De 1822 a 1840, assiste-se à proliferação de periódicos em quase todas as províncias do Império, apesar das dificuldades iniciais de produção. Tipografias canhestras, com pouco e deficiente material tipográfico, obrigavam ao improviso: mistura de tipos de letras, impressão de palavras e frases inteiras faltando vogais e consoantes, substituição de uma letra por outra semelhante. Muitos periódicos, em função das limitações tecnológicas, não tinham periodicidade para circular, saindo “quando puder ser”.1 Apesar de todas essas dificuldades, podemos dizer que havia o desejo de produzir jornais, o que fazia aqueles que não dispunham da tecnologia necessária lamentarem o fato de não estarem incluídos naquela esfera de produção impressa. Considerando que a história da comunicação pode revelar como os homens e mulheres compreendem sua própria experiência, a partir do entendimento de como davam sentido aos acontecimentos e transmitiam informações (Darnton, 2005, p. 41), podemos dizer que no século XIX (1820-1840) houve muita necessidade de transformar informações, maledicências, embates, divergências, ideias, opiniões, em letras impressas nos periódicos, apesar das inúmeras dificuldades que representavam imprimir e editar jornais (Barbosa, 2013, p. 73). O desejo de estar inserido num novo mundo tecnológico explicaria a proliferação de folhas manuscritas? Seriam apenas as diversas dificuldades que explicariam a existência concomitante de folhas manuscritas ao lado dos impressos que circulavam pelos diversos espaços sociais? Quais as razões de permanência desses periódicos atravessando o século XIX 1

Era dessa forma que indicavam as dificuldades de edição, informando aos leitores as falhas na publicação, justificando que essas sairiam “quando puder ser”, expressão encontrada em inúmeros jornais.

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e chegando ao XX? O que observamos é que o surgimento dos impressos não significou o término de tais periódicos pertencentes a um mundo mais antigo: a ordem comunicacional manuscrita. Marco Morel (2005) identifica no século XIX a proliferação pelo espaço público de todo o tipo de expressões do mundo da comunicação, desde a constituição de uma esfera pública atuante, na qual os jornais impressos tiveram papel fundamental. Mas nesse mundo em que a vida política como vida pública se desenrolava para além das paredes das casas, palácios ou gabinetes, ganhando as ruas, também se multiplicavam os modos (e meios) de comunicação. Dentro do contexto de transformações do espaço público, a rua se tornava lugar privilegiado de múltiplas expressões do mundo político e também do mundo da comunicação. Se a fronteira entre os espaços privados e a rua é cindida, observa-se também, por meio de relatos, que era ali que se manifestavam múltiplas ordens comunicacionais, quando modos antigos permaneciam como expressão privilegiada, ao lado de novas formas que ganhavam corpo naquele momento. A oposição antigo/moderno que se deixa antever nas formas como é explicitada a lógica política da sociedade, numa época ainda marcada por práticas e valores de um mundo antigo, num momento em que muitos se pretendiam não mais pertencentes àquele mundo, também se manifesta nos modos de se comunicar: é isso que denominamos mundo de misturas de diversas ordens comunicacionais (Barbosa, 2013, p. 103). Li ontem um cartaz manuscrito afixado na porta de M. Francisco de Paula, que exigia a cabeça de pessoas as mais distintas e que se quer enviar para as galeras na África a maior parte dos indivíduos que atacaram a pessoa do soberano. Eu vi todo tipo de pessoas fazendo cópias com um descaramento inconcebível (Correspondence Publique du Brésil (CPB), vol. 1. Archives du Ministères des Affaires Étrangères, AMAE Paris, despacho 5/3/1821. (apud Morel, 2005, p. 225, grifos nossos).

Na citação do Ministério dos Negócios Estrangeiros, o missivista informa a existência de um cartaz manuscrito 18

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afixado na porta de Francisco de Paula, mas também constata que, diante do manuscrito, “todo tipo de pessoas” fazia cópias, o que indica uma apropriação específica dos manuscritos. Se não conseguiremos saber as razões por que faziam cópia do cartaz, podemos remarcar a proliferação dos manuscritos por meio do ato de copiar aquilo que era lido. Mas não eram apenas os cartazes que ficavam expostos à curiosidade do público, nem papéis públicos (editos, proclamas, avisos etc.) das mais variadas naturezas. Também era comum a fixação dos números mais atuais dos periódicos que passam a proliferar de maneira expressiva em todo o território nacional. Ainda que esses papéis manuscritos de todas as ordens não sejam o objeto privilegiado nesta análise, a evidência de sua existência permite pensar numa ordem manuscrita pública preexistente à circulação dos jornais que carregavam também essa materialidade. Ou seja, há a proliferação no espaço público, primeiro de uma ordem manuscrita diversa, para só então ser possível produzir jornais que sintetizam dois mundos: o novo da tecnologia impressa e o mais antigo da tecnologia das letras manuscritas que também tem o objetivo de se tornar expressivo no espaço público. Cartazes, proclamações, avisos e caricaturas se espalhavam por muitos lugares – nas paredes das casas e das lojas, nos muros e nas portas –, de forma a difundir a informação que se desejava. “Na tarde de anteontem encontramos fixados em muitos lugares sobre as portas de várias casas e nas lojas do comércio um aviso aos habitantes desta cidade” (CPB, vol. 1, despacho 22.9.1821, AMAE, Paris, apud Morel, 2005, p. 226). Ou ainda: “Em 4 de junho no despontar do dia encontramos afixados em vários lugares, duas Proclamações manuscritas: uma endereçada as tropas e outra aos habitantes do Brasil” (Idem. Despacho de 9/6/1821, AMAE, Paris, apud Morel, 2005, p. 225). Esses papéis manuscritos vão gradualmente se condensando em jornais de muitos tipos e feitos com muitos propósitos. Essas folhas não foram apenas, na nossa hipótese, ponto intermediário até que se criasse a possibilidade de serem 19

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transformadas em impressos. Muitas resistiram assumindo a materialidade manuscrita. E durante o longo século XIX, que inclui os primeiros anos do século XX, observamos o transbordamento dos modos de comunicação sob a forma de jornais manuscritos.

Primeiros passos em direção ao mundo manuscrito Alguns repetiam o formato in quarto, assemelhando-se aos livros, como os periódicos impressos do início do século XIX. Possuíam, em média, quatro páginas, mas havia outros que ostentavam número maior. Uns reuniam desenhos e ilustrações cuidadosamente elaborados, enquanto outros se limitavam a reproduzir, sob a forma de texto, em colunas que repetiam a fórmula jornal, aquilo que desejavam ver divulgado. Poucos chegaram intactos até o século XXI. Mas, vez por outra, encontramos aqui e ali, perdidas em textos avulsos, pequenas referências aos jornais manuscritos que circularam no Brasil em diversos estados e com múltiplos propósitos. A referência mais repetida é a que circulou em São Paulo, em setembro de 1823, sob a forma manuscrita o que teria sido o primeiro jornal daquela província: O Paulista. Mas os próprios periódicos impressos podem trazer marcas desses antecessores. Esse é o caso de O Conciliador do Maranhão. Nas margens do periódico que está depositado na Biblioteca Nacional, vemos escritas informações sobre o primeiro impresso a circular na Província do Maranhão. Por essa história pelas margens do próprio jornal (Barbosa, 2010a), ficamos sabendo que, até o número 34, ele era manuscrito. Só a partir do número 35, publicado em 10 de novembro de 1821, é que assumiria a forma impressa.2 2

O Conciliador do Maranhão saiu sob a forma manuscrita pela primeira vez em 15 de abril de 1821. O Governador da Província Manoel Bernardo da Silva Pinto da Fonseca manda importar de Londres a máquina necessária para imprimir o jornal. Saia duas vezes por semana tendo como redatores Antônio Manoel da Costa Soares e o Padre José Antônio da Cruz Ferreira Tizinho. A partir de 6 de abril de 1822 passou a chamar-se O Conciliador. Circulou até 16 de julho de 1823, quando foi substituído pela Gazeta Extraordinária do Governo Provisório, com circulação gratuita até

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Essas duas referências aos manuscritos do século XIX indicam a primeira intenção destas publicações: a que pretendia ser extensiva, de forma a levar as “Luzes” e o esclarecimento por meio das letras. A ausência da tecnologia indispensável à impressão, mas a existência do modo jornal nas teias do cotidiano deixaria evidente a necessidade da circulação desses veículos, que almejavam um público em maior escala, ainda que a dependência do modo tecnológico impedisse sua circulação de forma exponencial. Mas a não existência de tipografias para a impressão dos periódicos não representou necessariamente entraves à circulação de jornais. Na Província de São Paulo, por exemplo, a não existência até 1823 de nenhuma tipografia causava desconforto aos “publicistas”.3 Ao contrário de outras províncias até aquele momento, São Paulo não possuía uma única tipografia. Marisa Midori (2008, p. 36) interpreta a maneira inusitada como dezenas de exemplares de O Paulista circularam, em 1823, como um protesto de Antônio Mariano de Azevedo Marques, o “Mestrinho”, que não conseguia alcançar seu intento de ver oficinas, capazes de fazer circular folhas impressas, instaladas em terras paulistanas. Aquilo que a autora qualifica como “um tipo pitoresco de imprensa, feita por obra de amanuenses” (p. 33) revela um intrincado processo de produção para tornar possível a circulação de apenas umas poucas dezenas de cópias.4 No Plano de um estabelecimento de uma tipografia em São Paulo, Antonio Mariano de Azevedo Marques mostrava como o jornal era produzido. “Deverá ser suprida a falta de tipografia pelo uso de amanuenses, que serão pagos por uma sociedade patriótica.” Eram eles os amanuenses, que deveriam escrever o número de folhas que, por sua vez, seriam repartidas entre os assinantes no dia determinado para a publicação. 1824 (Cunha, v. 114, 1994, p. 101). Sobre o Conciliador, cf. tema “Jornal e leitores: múltiplas escritas, inúmeros sentidos”. 3

Publicistas ou gazeteiros eram como se autonomeavam os editores das publicações no século XIX.

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Plano para o estabelecimento de uma tipografia em São Paulo, 1823 (manuscrito). Esse documento encontra-se no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Maço C363/61.

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Além do redator, responsável pela edição dos dois números semanais, foi necessário contratar amanuenses encarregados de copiar manualmente o jornal. Os entraves técnicos eram também responsáveis pela limitação do número de subscritores (assinantes, diríamos hoje), que não iam além de 40. Mas, mesmo assim, não era possível que cada assinante tivesse uma folha só para si: um exemplar era dividido entre cinco pessoas em oito turnos. No fim de cada turno, o assinante deveria devolver o exemplar à casa do redator (ou a outro lugar previamente combinado) que o passaria ao assinante seguinte. Criava-se uma rede de leituras e constituía-se um público presumido pela partilha de conteúdos entre aqueles que se tornaram leitores de O Paulista.5 Além de pretenderem atingir um público vasto, havia ainda outras intenções nos jornais manuscritos que assumiam diversas expressões comunicacionais. Podiam ser direcionados a um público específico; podiam ser treinamento para se produzir jornal “de verdade” ou para exercitar a verve literária (esse parece ser o caso de O Archote, jornal manuscrito criado e produzido por Raul Pompéia, quando aluno do Colégio Abílio, no Rio de Janeiro, e que será objeto da nossa reflexão no tema “Muitos motivos e diversos propósitos: os manuscritos do século XIX”); podiam ainda ser a expressão da liberdade momentaneamente perdida (como parece ser o caso de A Justiça, jornal dos presos políticos da Casa de Correção do Rio de Janeiro, editado em 1894, e sobre o qual também falaremos no mesmo tema). Mas podiam ser prática desejada num mundo em que proliferavam folhas impressas ao sabor do domínio da nova tecnologia de comunicação. A impressão transformava-se em desejo dos letrados em ampliar a palavra pelos novos modos: não seria o fascínio diante da tecnologia, até então desconhecida, que tornava esses letrados gazeteiros e pasquineiros de jornais manuscritos?

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Para uma descrição mais detalhada dos processos produtivos do jornal O Paulista, (Barbosa, 2013, p. 113-115).

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Algumas vezes são os trabalhos da memória que trazem referências esparsas a essas formas comunicacionais. Nos textos de época, na literatura memorialística e mesmo ficcional podemos encontrar restos residuais da existência dos manuscritos na sociedade, produzindo múltiplos sentidos para os que tinham contato com essas textualidades. Mas mesmo que possamos achar aqui ou acolá alusões a esses modos de comunicação, as referências a tal material na história da comunicação no Brasil figuram numa espécie de silêncio compulsório, também porque a história dos meios produzida no país privilegia os impressos. Desta forma, os manuscritos que circularam com expressiva intensidade desde o século XVIII são desconhecidos da maioria dos pesquisadores. E mesmo quando se referencia os pasquins incendiários do Primeiro Reinado há a presunção de que adotavam obrigatoriamente a forma impressa.6 A explosão da palavra pública logo após a Independência assumiu várias materialidades comunicacionais – da voz amplificada nas ruas sob a forma de gritos e protestos até os impressos que saíam aos borbotões das tipografias – e, dentre elas. a forma manuscrita. A verdadeira revolução impressa dos anos 1820-1830 não foi apenas a revolução dos impressos: havia pasquins, folhas de uma só página, cartazes, folhetos, cartas e jornais manuscritos. As acusações, as intrigas, as injúrias e as calúnias, os impropérios, os insultos verbais não eram divulgados apenas sob a forma impressa: os jornais manuscritos indicam a permanência de outra materialidade na cena comunicacional, convivendo com os modos impressos. Ao lado do poder da palavra impressa, havia o poder da palavra manuscrita. Feitos para circularem num determinado grupo, para assumirem o papel de cartas particulares, mas também para se tornarem parte da ordem comunicacional no espaço público, os jornais manuscritos se, num primeiro momento, foram usados 6

Exceção a esse tipo de abordagem é o: AZEVEDO, Francisca L. Nogueira de; GONÇALVES, Roberta Teixeira. Libro de Mano: novela política e sentimental, um pasquim manuscrito. Revista Brasileira de História, v. 30, n. 60, p. 175-193, 2010.

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no sentido de suprir a interdição dos impressos, com o passar dos anos (e do século), ganharam outras significações. Embora fosse o seu texto infinitamente mais restrito do que os impressos, havia na ordem comunicacional manuscrita uma expectativa de inclusão de público e o desejo de atingir de maneira mais extensiva o destinatário da mensagem. A limitação em função da tecnologia, entretanto, induzia a maneiras de apreensão de sentidos daqueles periódicos que indicam sociabilidades diretamente relacionadas a modos de comunicação peculiares. Em primeiro lugar, naquele mundo em que a impressão se tornara visível há pouco tempo, sem dúvida, as letras manuscritas eram mais familiares. Em segundo lugar, a ordem manuscrita é mais facilmente identificada com um texto particular, privado, mais próximo do ponto de vista afetivo do mundo do leitor. Em terceiro lugar, a limitação na circulação, também imposta pelos processos de produção, pressupõe uma partilha mais intensa desses periódicos, não só porque várias pessoas deviam ler um mesmo exemplar, mas também porque eram feitos visando à leitura coletiva. A guerra de opiniões pelos manuscritos produziria, por fim, uma mistura mais intensa do mundo oral com o dos escritos: o que era decifrado era partilhado em brados e sonoridades e se tornavam integrantes dos modos de leitura. O historiador espanhol Fernando Bouza (2001, p. 22), ao chamar a atenção para a presença dos manuscritos de caráter crítico existentes na Península Ibérica nos séculos XVI e XVII, refere-se também ao fato de esse tipo de publicação “ganhar fôlego” no Brasil, começando em 1821, quando “a nova cultura política germina com base nas pasquinadas escritas à mão, que corriam a cidade clandestinamente defendendo e exigindo a publicação de uma Constituição”. Outro aspecto destacado por Bouza, em relação a esse tipo de jornais, era sua clandestinidade. Eram folhas volantes, “lidas clandestinamente”, o que faz com que seja incluída nessa ordem comunicacional uma quarta característica: a identificação da materialidade jornal com a interdição, com a ação de 24

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burlar regras, criando uma possibilidade de comunicação, a partir da lógica da privação. Há de se acrescentar ainda outras peculiaridades em função das formas comunicacionais que assumiam: copiados cuidadosamente, permitiam a quem fazia esse gesto se deter nas informações que transcreviam letra por letra, palavra por palavra, até compor a frase, o parágrafo, o texto inteiro. Ao transcrever o texto de um autor, com a mesma tecnologia que o outro dispunha, figurava como um segundo autor. Ao lado do autor primordial, todos os outros, de meros copistas, transmutavam-se em autores já que também eram capazes de dominar o texto de forma absoluta. Claro que o autor podia ser um dos que transcrevia os jornais ou podia haver outras mãos que também compunham aqueles textos. A participação coletiva nas obras – a cópia manuscrita revela e torna possível reconhecer várias mãos na sua produção – transfigura gradualmente a ideia de autor: ao invés de um criador todo-poderoso, a ordem manuscrita, transmitida como comunicação pública para diversas pessoas, insere nos processos produtivos a produção autoral coletiva, da qual o leitor também fazia parte. As redes de autoria pressupunham redes de leitura. As permanências em relação a esse tipo de modo comunicacional indicam que não foram apenas as muitas limitações (dificuldades de impressão dos jornais, em função do preço do papel, do desconhecimento da tecnologia, alto custo na montagem das casas tipográficas, censura prévia aos impressos etc.) que fizeram com que os manuscritos fossem duradouros nas paisagens urbanas. Um tipo de comunicação – mais pessoal, mais próxima, amadora, quase caseira e que se misturava com práticas orais – era próprio da ordem manuscrita. E será assim ao longo de todo o século XIX (e as primeiras décadas do século XX) que esses jornais com colunas marcadas por fios traçados a lápis ou a bico de pena, com letras trabalhadas ou quase indecifráveis, com desenhos e ilustrações detalhadas e cuidadosamente compostas ou como garatujas quase infantis permaneceram 25

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circulando de maneira própria, indicando a mistura do antigo com o novo. E mais: mostrando que uma ordem comunicacional permanece por muitos séculos, perdurando, enquanto outra, gradativamente, vai impondo sua dominação. O ingresso no universo dessas folhas manuscritas, algumas cuidadosamente elaboradas do ponto de vista gráfico, muitas com o sentido crítico e satírico, outras com o claro propósito de espalhar opiniões de natureza política, nos leva a um mundo até então desconhecido, mas certamente fascinante.7 As perguntas que nos movem são de três ordens: por que os jornais manuscritos foram durante tanto tempo submetidos à dimensão do esquecimento? E o que levava esses homens do século XIX (e do início do século XX) a produzirem jornais escrevendo cuidadosamente em folhas de papel, reproduzindo nos manuscritos os modos impressos de fazer jornal? Que tipo de aproximação e distanciamento pode ser formulado da ordem comunicacional manuscrita com os periódicos impressos do século XIX? Como movimento inicial, analisamos 20 jornais que fazem parte do acervo da Fundação Biblioteca Nacional e foram publicados entre 1863 e 1903, constituindo uma rede de textos produzidos com os mais díspares propósitos. Quadro 1. Jornais manuscritos da Biblioteca Nacional do Brasil – 1863-1903. Jornal

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Ano Publicação

Outras informações

A Careta. Jornal crítico-poético e literário

1863

A BN possui em sua coleção o nº 4. Semanal (domingo), custava 160 réis, por mês, “pagos adiantados”. Podia ser subscrito na rua Direita, 82 e também na rua São Gonçalo, 4. 4 p.

O Liberal. Jornal crítico, poético e político

1864

A BN possui dois números. Não tinha dia certo para publicação; custava 40 réis, a folha avulsa. Podia ser subscrito na rua Direita, 82. 4 p.

Todos os jornais manuscritos objetos de observação neste tema do livro fazem parte da coleção da Biblioteca Nacional do Brasil.

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A Braza. Crítico e poético

1867

A BN possui o nº 1. Não tinha dia certo para publicação. Distribuído gratuitamente. 4 p.

O Archote

1874

A BN possui o nº 4. Jornal manuscrito por Raul Pompéia, quando aluno do Colégio Abílio. Faz críticas aos professores, inspetores e alunos. Ilustrado. 4 p.

O Verme

1874

A BN possui o nº 1 do mês II. Saía uma vez por semana, em dia incerto. Seu formato é em papel almaço, folha grande. Redatores: Borges e Hugo. 4 p.

O Clarim

1874

A BN possui quatro números. Saía duas vezes por semana. Continuação de O Verme. 4 p.

O Tico-Tico

1880

A BN possui o nº 3. Jornal manuscrito a tinta e lápis, com ilustrações. Redator: Guidam. 1 p.

1885

A BN possui o nº 2. Lê-se abaixo do título: “Este pequeno órgão é filiado aos liberais e abolicionistas”. Editado em Itaboraí, de propriedade de Felix Pereira da Silva (vulgo Felix-Sem Queixo. Testa de ferro). 2 p.

1892

A BN tem exemplares do Ano II, nº 17, 34 e 35. Editado em São João Marcos. Publicado aos domingos e distribuído gratuitamente. Número de páginas variava, sendo mais frequente quatro p. Redator-chefe responsável: José de Paula Assunção.

1894

A BN tem a coleção com quinze documentos. Jornal publicado pelos presos políticos da Casa de Correção. Ilustrado. Tinha como subtítulo “Journal de très mauvais augure” e indicava tipografia, redação e administração na rua da 5ª Galeria, 103 e 106. E vangloriava-se: “A Justiça é o jornal de maior circulação em toda a 5ª Galeria”. 4 p.

O Município

1894

A BN possui o n º 2. Outra folha editada no município de São João Marcos (RJ). Semanal, tinha como redator-chefe responsável o mesmo J. de Paula Assumpção, que fora redator chefe de O Mosquito. 4 p.

A Setta

1895

A BN possui o nº 1. Dedicado ao Salvador da República brasileira. Quinzenal. Editado em São Paulo. 4 p. Diretor: A.M.V. Secretário: Dr. X.P.T.O.

O Vigilante. Órgão noticioso, literário, político, crítico e operário

1896

A BN possui o nº 1. Editado na cidade do Rio de Janeiro, tinha editorial assinado por Mário Proença Gomes. O exemplar da BN foi dedicado “À ilustre redação do Paiz”. 2 p.

O Chefe

O Mosquito. Órgão do Povo

A Justiça

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O Tiro

1896

A BN possui o nº 1. Editado em Santo Antônio dos Tiros (MG) e de periodicidade quinzenal. 4 p. Redator-chefe: Fortunato Pinto Coelho.

O Prego

1896

A BN possui o nº 10. Editado no Rio de Janeiro. 2 p.

A Setta. Órgão infantil republicano

1897/1898

A BN possui duas edições especiais: uma dedicada à memória de Floriano Peixoto (29/6/1897), indicando que aquele número era o 21 do segundo ano da publicação, e outra em memória Ao Glorioso Salvador da República (23/1/1898). Editado em São Paulo. 4 p. Diretor-redator: Alfredo de Vasconcellos.

O Bolina. Órgão dos Ditos

1900

A BN possui apenas um exemplar. Jornal de cartuns. 4 p.

O Sexo. Órgão imparcial, crítico e literário, consagrado ao belo sexo da capital federal

1900

A BN possui apenas o nº 4 do primeiro ano. 4 p. Direção de Silvino Rolim.

A Revista do Rio. Órgão dos interesses ligados ao Brasil

1902

A BN possui apenas o nº 5. Ilustrada a lápis. 4 p.

O Sol. Revista liberal ortológica

1903

A BN possui apenas o nº 1. Editado em Curitiba pela União Libertária Universal. 4 p.

Fonte: CUNHA, Waldir da. Coleção de Jornais Manuscritos. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, v. 114, 1994, p. 135-147.

O objetivo é perceber o circuito da comunicação imposto por esses jornais e desvendar os processos e práticas comunicacionais envolvidos nas suas produções. A mesma metodologia já utilizada para a análise dos jornais impressos será também aplicada aos manuscritos do século XIX, evidentemente, guardadas algumas especificidades (Barbosa, 2007a; Barbosa, 2010a). Ou seja, importa desvendar quem escrevia estes jornais, o que eram esses periódicos, que significações e idealizações construíam, qual o público almejado, qual era seu processo de produção, que materialidades os envolviam e como estas induziam a apropriações múltiplas. Olhando rapidamente esses exemplares, chama a atenção uma série de características que remete primeiramente às 28

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suas materialidades. Alguns eram cuidadosamente copiados em papel branco, indicando o cuidado com a caligrafia. Outros, apesar da atenção gráfica sempre dispensada ao título, apresentavam uma letra quase incompreensível, denotando também a pressa com que foram escritos. Havia aqueles que eram claramente escritos por mais de uma pessoa, enquanto a maioria saía do lápis ou da pena de apenas um copista. Quando isso acontecia, o cansaço decorrente de escrever em colunas (o que faz com que o hábito de escrever na linha inteiriça não seja observado, produzindo também quebra do pensamento) quatro páginas de papel (esse era o padrão mais comum dos manuscritos), em uma letra cuja proposição era ser compreensível, aliado ao fato de terem de otimizar os espaços disponíveis para tantas informações, tudo isso levava à adoção de fórmulas abreviadas, produzindo uma nova economia cultural da escrita. Possuindo expectativas de públicos diversos, havia aqueles que almejavam o leitor anônimo que viesse, por diversos motivos, a se interessar por tais publicações. Mas havia os destinados a alguém cuja face era perfeitamente identificável. Esse é o caso do jornal criado por Raul Pompéia, sob o pseudônimo de Fabricius, dirigido aos alunos do Colégio Abílio, se construindo como porta-voz autorizado das queixas de outros estudantes e ampliando para além dos muros da escola o que ocorrera ali, e que o jovem considerava uma violência. Além do jornal concebido e produzido por Raul Pompéia, outro chama particularmente a atenção: A Justiça. Foi editado pelos presos políticos da 5ª Galeria da Casa de Correção no Rio de Janeiro, em 1894. Os 15 números cuidadosamente encadernados, por si só, já se constituem um universo inesgotável de pesquisa. Será possível, olhando detidamente esses periódicos, desvendar igualmente os processos de produção? Mas não era apenas na capital do Brasil que estes periódicos circulavam. Na coleção da Biblioteca Nacional há exemplares editados em Minas Gerais, no interior do estado do Rio de Janeiro e em São Paulo. Tanto nos da capital, quanto nos de outras cidades, observamos que procuravam 29

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ser o mais fiel possível à materialidade impressa dos periódicos da mesma época. Observa-se, assim, a proposta de esses jornais serem semelhantes aos impressos. À medida que as décadas se sucedem, também mudam os formatos, as formas editoriais, as colunas fixas. Passam a ser comum a escrita em letra de forma, tentando reproduzir os tipos impressos pelo desenho feito pelos que laboriosamente copiaram aquelas palavras. Ou seja, há muitas possibilidades interpretativas diante do mundo dos manuscritos ou da ordem comunicacional manuscrita. Feitas essas considerações, resta-nos apontar algumas questões que dizem respeito ao anacronismo, ação temida por todos que se aventuram na seara histórica. Talvez um dos enganos mais repetidos nas análises históricas seja aquele que imputa o nosso conhecimento e a nossa forma de pensar aos homens do passado. Não se considera, algumas vezes, a longa trajetória temporal, repleta de possibilidades de novos saberes, que foi construída do passado até o instante em que nos encontramos e que, absolutamente, os homens do passado não poderiam saber. Num belo texto em que aborda a questão – “O passado tinha um futuro” –, Paul Ricoeur (2001) alerta para o fato de que é “efeito de uma temível tendência para o anacronismo o fato de projetar sobre o passado o conhecimento que temos hoje dos acontecimentos que ocupam o intervalo que vai entre o acontecimento considerado e o momento em que o examinamos”. Entre essas duas posições temporais – o passado dos homens de outrora e futuro onde nos movemos –, foram construídos todos os acontecimentos que pertencem tão somente ao nosso passado de historiadores, mas que nunca fizeram parte da vida daqueles homens, a não ser como prospecção de um futuro possível (e, às vezes, desejado). “Anacronismo ainda maior”, alerta Ricoeur (2001, p. 377), “é atribuir a esses homens o conhecimento que temos da sequência posterior dos acontecimentos. Dessa forma é que chegamos a acusar nossos predecessores em nome de um saber que eles não poderiam ter”.

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Tendo em vista essas premissas gerais, pode-se ainda acrescentar outros pressupostos teóricos como definidores metodológicos para a produção de uma história da comunicação. Como qualquer história, a demarcação temporal é essencial em qualquer análise. Seguindo habitualmente as pegadas do tempo-calendário, a preocupação numa história que se ocupa de processos comunicacionais é sempre a de correlacionar esses processos aos contextos históricos e aos contextos particulares de produção, numa narrativa que mistura materialidades, mediações e plataformas, produzindo um território, no qual os processos comunicacionais ocupam o centro da análise, mas que é, antes de tudo, um território de práticas humanas. Uma das possibilidades metodológicas é eleger, no período recortado, momentos axiais desse processo (a circulação de jornais manuscritos, por exemplo), colocando em proeminência a questão das transformações tecnológicas em correlação com o mundo social (Barbosa, 2013). Ou seja, num mundo em que as recém-chegadas tecnologias da impressão produziam um “desejo de jornalismo”, os jornais manuscritos reproduziam não só a materialidade-jornal, como fazia parte desse mundo que se transformava também pela adoção de novas possibilidades tecnológicas comunicacionais.

Prolegômenos temporais: uma história do tempo passando

Repetidas vezes dissemos que há inúmeras formas de fazer história. Pode-se considerar que fazer história é trazer o passado para o presente tal como ele se deu, ou, ao contrário, supor que, ao lançar olhares sobre o passado, estamos procedendo a uma interpretação. Uma interpretação dentro de determinados parâmetros teóricos e narrativos, mas sempre uma interpretação. Por outro lado, considera-se que a visão extremamente presentista dos estudos de comunicação desvaloriza as análises históricas. É como se fizéssemos uma pesquisa que se encontra, por natureza, fora do lugar. 31

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Entretanto, a perspectiva de uma história da comunicação (ou da imprensa, para ser ainda mais específica) não é a mesma adotada por uma visão genérica de história. Há uma inversão das possibilidades analíticas: se para a história, estrito senso, o contexto é o que prevalece na análise, numa história da comunicação o foco desloca-se para complexas relações processuais dos sistemas de comunicação analisados. Ainda que o campo comunicacional tenha se constituído das trocas significativas com outros lugares teóricos, a característica mais marcante dos estudos da área é o presentismo. Mas isso é perfeitamente explicável: como o que está sob o foco do olhar do pesquisador são processos envolvidos em práticas comunicacionais (considerando a objetivação, mas também a subjetivação), as complexas relações deste mundo que denominamos contemporâneo se sobressaem. Assim, o passado ocupa lugar estanho no universo das pesquisas em comunicação. O passado torna-se, de fato, “terra estrangeira”, como diz David Lowenthal (1995), e lugar de desconfiança instaurado pelo próprio campo. A excessiva preocupação com o ultracontemporâneo, com processos inacabados ou que apenas se iniciaram, por outro lado, tornam a pesquisa um eterno devir. Os objetos empíricos que são escolhidos, muitas vezes, ao sabor de modismos, esfacelam-se diante de transformações igualmente ultra velozes. Os objetos de estudos acabam e são substituídos por outros no meio do processo de pesquisa. Se a análise for governada não por questões que revelam os mecanismos processuais fundamentais do ponto de vista metodológico, mas pelo material empírico escolhido para análise, pode-se viver o dilema de ver a dilaceração temática em função da fluidez temporal dos objetos de pesquisa. A característica presentista dos estudos de comunicação, na qual o valor do passado ocupa lugar secundário, se, por um lado, é sintoma da nossa época, por outro, conduz à emergência de se perceber a dimensão temporal como categoria conceitual fundamental nas discussões teóricas. Há a construção de uma

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temporalidade comunicacional que define um tempo peculiar e que deve ter lugar reflexivo prioritário nas pesquisas realizadas. Num tempo de aceleração temporal exacerbada e diante de um mundo que não admite a existência de projetos e perspectivas futuras, vive-se o alargamento do presente de tal forma que o futuro nele já se inclui. Um tempo cujo presentismo substituiu definitivamente o futurismo. Podemos considerar que nossa época, intensificada de presentismo, deseja reincluir o passado no presente e, ao mesmo tempo, quer apagar qualquer sentido (ou desejo) de futuro como projeto. Em consequência, devemos concordar com François Hartog (2014, p. 148), que o presentismo substituiu o futurismo, que se deteriorou. Mas é preciso perceber que tal presente não é nem uniforme, nem unívoco e que, em função do lugar que se ocupa no mundo, é vivenciado de uma ou de outra forma. Se de um lado há o tempo dos fluxos, da aceleração e da mobilidade (Hartog, 2014, p. 14), de outro, há o dos que continuam excluídos pela lógica perversa do capitalismo, em que se vivencia a permanência do transitório, nas relações de precarização do trabalho, o presente sem passado dos deslocados, dos que vivem as múltiplas diásporas sociais e onde não há um futuro, já que o tempo dos projetos nunca esteve aberto para eles. O alargamento da percepção do presente, a eclosão de um individualismo exacerbado, a consciência da ação destruidora humana, a nostalgia do passado e de sua documentação e o término da ideia de futuro como promessa, marcas fundamentais de um mundo governado pela virtualização e midiatização da vida, impõem um olhar metodológico que inclui a visão histórica. Isso porque as pesquisas de comunicação seguem quase que obrigatoriamente os processos históricos que denominamos como contemporâneos, fazendo da comunicação uma história do tempo passando. Se fizermos uma breve análise das pesquisas realizadas nos programas de pós-graduação de Comunicação nos últimos dez anos, é facilmente observável a supremacia de temas que

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dizem respeito ao ultracontemporâneo de cada época.8 Processos em percurso, de um tempo histórico que permanece passando, são privilegiados. Estudam-se questões relativas às práticas e aos processos comunicacionais que ainda estão em curso. É o tempo passando que é o objeto permanente dos estudos de comunicação. Alguns pressupostos da história como ciência são fundamentais, não apenas para as pesquisas que dizem respeito especificamente ao que pode ser identificado como histórico relativo aos processos comunicacionais, mas também aos estudos de comunicação de maneira geral. Metodologicamente, a adoção das premissas da história como teoria pode ser indispensável para a construção de uma disciplina encharcada de presentismo. Mas essa característica não retira dos estudos seu caráter histórico, devendo reconhecer como fundamental um presente passando de forma intermitente em direção a um futuro que permanece envolto sob o signo da incerteza. O primeiro pressuposto diz respeito à adoção da visão processual como fundamento. As análises devem considerar as permanências, ou seja, vínculos com as durações mais profundas e as continuidades, ao mesmo tempo em que não se deve abandonar as rupturas, isto é, as descontinuidades observadas nos fenômenos analisados. Essa conexão entre rupturas e permanências, chave metodológica para os estudos históricos, ajuda a perceber as dimensões históricas presentes nas análises realizadas. O segundo pressuposto é a adoção da categoria tempo, uma vez que mesmo sem ser a ciência do tempo passado, ou melhor, “dos homens no tempo” (a história)9, a comunicação seria a ciência do tempo passando, ou seja, aquela que procura 8

Só para fins de amostragem, realizando breve análise no banco de teses e dissertações da Capes, utilizando como filtro palavras precisas, encontramos, desde 2011, 98 trabalhos tendo como temática o Orkut, 134 abordando o Twitter, 91 registros em relação ao Facebook e 1.620 estudando de maneira genérica as redes sociais. Disponível em: <http://bancodeteses.capes.gov.br>. Acesso em: 17 jul. 2015.

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A feliz expressão ou definição da história como ciência dos homens no tempo é de Marc Bloch (2002).

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interpretar as transformações de um presente que é marcado por três instantaneidades: o agora mesmo, o agora e o estando agora (Heller, 1993). O agora mesmo, em relação ao passado e ao futuro no sentido ordinário, denota ação e mostra o tempo passando para a frente e para trás. O agora deixa ver a relação com um passado que já terminou e é único (os tempos idos), sendo uma fronteira entre o que ocorreu e o que ainda não ocorreu. O estando agora indica a interseção do ser na sequência do mundo da vida, ou seja, num tempo que se situa entre o começo e o fim (Heller, 1993). O presente seria o estando agora, denotando que se está encarcerado num tempo e num espaço, entre o começo e o fim, mas, sobretudo, num agora mesmo, isto é, a ação humana num tempo presente que passa durando. É esse tempo durando, denotado na atitude presentista dos estudos de comunicação, que deve ser considerado como categoria teórica-fundamental. Este estando agora mostra a ação comum, denominada por Agnes Heller (1993) de conjuntividade, o comum humano, aspecto metodológico fundamental da comunicação, como também enfatiza Muniz Sodré (2014). O terceiro pressuposto diz respeito à questão das interpretações. Ao produzir uma narrativa sobre um fenômeno digno de consideração científica, a comunicação, como a história, produz interpretações e as apresenta sob a forma narrativa, produzindo explicações (e compreensão) para processos que se desenrolam no universo da vida. Como interpretação, permite que aspectos, olhares, épocas e acontecimentos sejam escolhidos subjetivamente pelo pesquisador que quer, afinal, também seguir uma história. Produz-se uma narrativa com começo, meio e fim, uma interpretação entre muitas possíveis, mas governada pela plausibilidade das questões teóricas e conceituais, fundamentais para as análises científicas. Afinal, o método também é a produção de procedimentos ordenados, necessários para se alcançar objetivos preestabelecidos. O método depende da visão de ciência de onde se parte, está acoplado à teoria do conhecimento e às teorias escolhidas para a análise. O objetivo é, a partir de conceitos, fornecer uma representação mental de processos que ocorrem no mundo. 35

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O quarto pressuposto refere-se à adoção de uma análise que considera os particularismos como fundamentais para a produção do passo seguinte, isto é, as sínteses interpretativas. Ainda que pesquisas pontuais possam (e sejam) realizadas, tendo como pressuposto peculiaridades dos territórios considerados, há de se fazer o movimento de produzir sínteses conclusivas. A questão do espaço, conceito fundamental para as análises históricas, deve ser igualmente considerada, não apenas na perspectiva meramente geopolítica, mas como lugar de significações, na qual a forma como se olha e analisa indica o distanciamento, a amplitude ou o microcosmo, enfim, as escolhas diante do que está sendo analisado. O olhar de perto permite ver não apenas a árvore, mas os galhos, as folhas, os veios das folhas, numa dimensão microscópica. O olhar de longe descortina a árvore num ambiente mais amplo, fazendo parte do mesmo cenário outras árvores, construindo a densa mata verde indiferenciada, mas, ao mesmo tempo, capaz de ser identificada como uma floresta. Estamos enfatizando que se observa a existência de fenômenos, a começar dos contextos onde se desenrolam. Os fenômenos do mundo estão sempre acoplados ao desenrolar da vida, que é histórica e que, portanto, apresenta singularidades em função de contextos precisos. Não é possível generalizar conclusões, como se fossem produzidas por sujeitos sem história. O que vale para um contexto não é válido de maneira holística para todas as espacialidades consideradas. O quinto pressuposto refere-se à inclusão da dimensão conceitual do espaço como categoria nas análises comunicacionais, relacionando-a obrigatoriamente à categoria tempo. Ingressa-se numa densa discussão que envolve a questão das escolhas metodológicas, em que o movimento dos particularismos em direção às generalizações se relaciona também aos jogos de escala (Lepetit, 1998; Revel, 1998). Para a história, o espaço sempre foi indissociável da categoria tempo e considerar essa correlação é uma opção metodológica promissora. Se considerarmos, como Agnes Heller (1993, p. 389), que historicidade não é “aquilo que acontece conosco, nem tampouco alguma coisa, na qual entrássemos como uma vesti36

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menta”, mas como a consciência de nossa existência, podemos considerar que a ação do homem no mundo se faz sempre num espaço-tempo. “Até mesmo o absurdo é temporal e espacial, porque nós somos tempo e espaço” (Heller, 1993, p. 14). Nos moldes da historicidade, o tempo também é espaço. Ao se buscar o início, que demarca o lugar físico de quem estava lá, produzindo com sua presença o testemunho, momentos de presença que se deixam emergir por atos de historicidade são espacialmente construídos. É o espaço, ou melhor, o espaço-tempo que, para Heller (1993), demarca as maneiras como nos sentimos históricos e como se constrói a consciência histórica, que ela vai enumerando como estágios de possibilidades. Considera-se ainda, que a dimensão do espaço como lugar está presente na própria concepção de tempo linear que se encadeia numa linha imaginária, indicando a passagem de dias, meses, anos e épocas. O tempo-calendário, fundamental para a narrativa histórica, se estrutura de maneira encadeada e no qual cada evento ocupa lugar específico. Esse lugar previamente demarcado possui a intencionalidade que permite mais do que a sua localização na relembrança: permite caracterizar durações com conteúdos diferentes passado, presente e futuro (Ricoeur, 1997, p. 59). Por outro lado, a narrativa histórica introduz na trama textual a espacialidade dos tempos de outrora, isto é, a espessura de um tempo como espaço de possibilidades, mas que só existe na trama narrativa. Abrem-se janelas em direção a um espaço-tempo que é reavivado pelas histórias que passam a serem contadas. O presente se direciona para o passado. Do presente ao passado, de um espaço ao outro. Paul Ricoeur (2007, p. 235 e 236) aplica as noções de escala e de suas variações também às modalidades intensivas do tempo histórico. A pluralidade dos mundos históricos estaria submetida às escalas dos regimes temporais. Passa-se a reordenar as durações em diversas possibilidades interpretativas que remetem, mais uma vez, à questão espacial. Salto, fratura, desvio e crises são categorias propostas por ele, e em todas está presente a dimensão espaço temporal. 37

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Se por um lado, umas pressupõem tempos breves e abruptos, outras se inscrevem na continuidade. Mas todas são figuras do espaço, já que não há saltos sem se deslocar de um ponto a outro, assim como não há fratura sem a imobilidade inscrita e localizável em um objeto espacial. Mas sua acepção mais comum – o espaço demarcando uma unidade política transfigurada em países e nações – foi permanentemente questionada ao longo do século XX. Havia de se ultrapassar o progresso como fábula do mundo, retirando das análises o predomínio da lógica e das explicações baseadas no eurocentrismo. Esse movimento permitiria a inclusão e, sobretudo, a percepção da história de outros povos, antes ausentes de qualquer perspectiva analítica. Em suma, ampliava-se a dimensão histórica na proporção de um mundo. Os povos não europeus, os colonizados, a África e muitos outros territórios ganharam existência com o abandono do modelo linear da história do progresso. Se a rejeição à lógica eurocêntrica ampliou a territorialidade do mundo, no sentido estreito e largo, a desnaturalização da diferença entre Ocidente e Oriente construiu novas abordagens inspiradoras. Esses dois movimentos fazem parte de um mesmo processo: o de inclusão de lugares que eram amalgamados como espaços da diferença e do silêncio. Povos apartados da sua própria história e, mais do que isso, da possibilidade de terem história. Talvez o caminho para a pesquisa seja a adoção, como diz Josep Fontana (2004), de um relato polifônico, no qual “vozes altas e baixas, grandes e pequenas” possam estar articuladas. Nessa acepção, o espaço-tempo seria o lugar da experimentação da vida e da produção da historicidade em toda a sua dimensão humana, mesmo considerando o tempo passando e não o tempo passado.

O método e o tema: questões e hipóteses O método científico se desenvolve em cinco grandes etapas: a percepção do problema, a construção do modelo teórico, a dedução de consequências particulares das hipóteses, 38

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a prova das hipóteses e a introdução de conclusões para a teoria do conhecimento. O método produz consequências para o campo científico, por meio da proposição de mudanças teóricas e da extensão das conclusões da pesquisa a temas ou campos próximos, envolvendo modelos dedutivos de conhecimento (construção de modelos teóricos, dedução de consequências particulares e elaboração de sínteses conclusivas). Algumas das premissas que elencamos para construir uma história da comunicação (Barbosa, 2013) servem – guardadas as devidas proporções – para pensar metodologicamente a produção, a circulação, a significação e a apropriação dos jornais manuscritos brasileiros. A primeira delas é que temos de pensar esses jornais em múltiplas dimensões: visualizando as épocas, os meios (e as materialidades), os processos e as relações humanas. Mais do que uma história que se sucede no tempo e nas tecnologias que colocam em cena outros processos, há de pensar os manuscritos do Brasil como um processo social, no qual estão envolvidas práticas humanas. Assim, ao invés de nos determos exclusivamente nas materialidades (as páginas dos jornais), nas gramáticas (o discurso que profere) e na organicidade (as estruturas administrativas e processos produtivos), devem-se visualizar os sujeitos envolvidos diretamente nessa história. A história dos jornais manuscritos brasileiros deve ser também uma história das ações humanas. Como se dá o processo de produção destes jornais num universo cultural específico? Quais são os seus atores centrais? Como se constitui a dimensão interna dessas publicações? Qual a relação dessa dinâmica interna com o mundo exterior? Ou seja, como se dão as trocas entre um universo e o outro e qual o mundo que está em torno? Como esse jornalismo era percebido? São algumas questões para distinguir e articular os diferentes tempos que se acham sempre sobrepostos. Como objeto empírico, analisamos sempre vestígios. São os vestígios significantes que chegam até nós que serão objetos de interpretação. Esses sinais significantes podem estar em múltiplos lugares. No caso da nossa análise, principalmente, 39

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nos documentos esquecidos nos arquivos ou nos guardados pessoais e particulares. Mas podem também estar em pequenas referências que encontramos nos jornais impressos e que relatam processos de um mundo do jornalismo perdido na poeira do tempo. Enfim, podem estar nos ecos que o passado produz no presente. Para terminar essas premissas teórico-metodológicas gostaria de deixar claro que essas são questões fundamentais para os estudos históricos, que realizo há mais de 30 anos, do universo histórico da comunicação. Evidentemente, não é a única forma de pensar os meios, mas apenas a que foi eleita como mais confortável ou que pareceu mais precisa para analisar esse mundo. Se por um lado é preciso pensar a história como epistéme (conhecimento verdadeiro) que se opõe à doxa (simples opinião), é necessário também inserir o aspecto ficcional da narrativa. Quando enfatizamos o aspecto ficcional, não quer dizer que o passado não tenha se dado: o que está se destacando é a característica de relato de um texto escrito por um narrador do presente, inserido num mundo completamente diverso daquele que está interpretando. Dizer que a história carrega uma textualidade que a faz ficcional não quer dizer que ela não seja uma ciência, nem que produza um conhecimento menor. Muito pelo contrário. A história está sempre encharcada de representância, no sentido que Paul Ricoeur (1997, p. 242 e 243) atribui ao termo, e, assim, tem a outorga para falar do passado. Ao abordar o passado, o transforma, sempre, no verdadeiro passado. A expectativa de que a história revela o passado e o conhecimento histórico pressupõe um pacto que permite ao historiador descrever situações que existiram antes de sua existência. Cabe a ele buscar o verdadeiro passado. Mesmo quando o que é narrado é apenas o verossímil, este se transforma na verdade do passado. A cristalização das expectativas da história implica sempre uma relação do texto construído pelo pesquisador com seu referente, ou seja, aquilo que utilizou para, em

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certa medida, dar luz ao passado: no caso do texto histórico este referente é o rastro que perdura sob a forma de vestígios. Dos sinais que chegam até o presente, cabe tentar compreender a mensagem produzida no passado dentro de suas próprias teias de significação. São estes vestígios, que aparecem como documentos e como ato memorável (no qual está incluída a memória do próprio narrador/pesquisador), que permitirão também reconstruir a história dos jornais manuscritos. O que será decifrado, por meio da interpretação, está sempre localizado no presente. Vendo nestes sinais a possibilidade de conter uma mensagem e atribuindo valor a eles no presente, produz-se a interpretação indispensável. Para contar uma história deve-se levar em conta existir vestígios, predisposição para ler e a leitura, isto é, a interpretação crítica. A ação de fazer história implica, pois, em leituras de mensagens sobre algo considerado como ausente no nosso aqui e agora, a disponibilidade para visualizar, nos indícios, a mensagem (método) e sua leitura (a crítica). Mas não basta identificar o que ocorreu. É preciso dizer como ocorreu e, sobretudo, por que ocorreu. No artigo “Muitos motivos e diversos propósitos: os manuscritos do século XIX”, retomaremos a análise de alguns desses periódicos. Para organizar a abordagem, reunimos os periódicos por afinidade editorial, e não meramente por data de publicação. Assim, procuramos primeiramente classificar o manuscrito para, na sequência, proceder a uma análise que inclui tanto questões de natureza editoriais, quanto aspectos de sua produção gráfica. O objetivo é traçar uma radiografia dos periódicos, mas também procurar visualizar quem os produziu, com que propósito e para quem. Tentamos alcançar o destinatário mudo da mensagem, procurando o olhar que mirou folhas de papel almaço em formato in-quarto e às quais se dava o nome de jornal.

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