Matar o morto

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MATAR O MORTO


Universidade Federal Fluminense REITOR Sidney Luiz de Matos Mello VICE-REITOR Antonio Claudio Lucas da Nóbrega Eduff – Editora da Universidade Federal Fluminense CONSELHO EDITORIAL Aníbal Francisco Alves Bragança (presidente) Antônio Amaral Serra Carlos Walter Porto-Gonçalves Charles Freitas Pessanha Guilherme Pereira das Neves João Luiz Vieira Laura Cavalcante Padilha Luiz de Gonzaga Gawryszewski Marlice Nazareth Soares de Azevedo Nanci Gonçalves da Nóbrega Roberto Kant de Lima Túlio Batista Franco DIRETOR Aníbal Francisco Alves Bragança Programa de Pós-Graduação em Antropologia – UFF Alessandra Siqueira Barreto, Ana Cláudia Cruz da Silva, Ana Paula Mendes de Miranda, Antônio Carlos Rafael Barbosa, Daniel Bitter, Delma Pessanha Neves, Edilson Márcio Almeida da Silva, Eliane Cantarino O’dwyer, Fábio Reis Mota, Gisele Fonseca Chagas, Gláucia Oliveira da Silva, Jair de Souza Ramos, José Sávio Leopoldi, Júlio César de Souza Tavares, Laura Graziela Figueiredo Fernandes Gomes, Lenin dos Santos Pires, Luiz Fernando Rojo Mattos, Lygia Baptista Pereira Segala Pauletto, Marco Antonio da Silva Mello, Marcos Otávio Bezerra, Nilton Silva dos Santos, Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto, Renata de Sá Gonçalves, Roberto Kant de Lima, Sidnei Clemente Peres, Simoni Lahud Guedes, Tania Stolze Lima


Flavia Medeiros

MATAR O MORTO Médico Legal do Rio de Janeiro


Copyright © 2015 Flavia Medeiros Copyright © 2016 Eduff – Editora da Universidade Federal Fluminense Coleção Antropologia e Ciência Política, 57

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da editora. Direitos desta edição cedidos à Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense Rua Miguel de Frias, 9, anexo/sobreloja - Icaraí - Niterói - RJ CEP 24220-008 - Brasil Tel.: +55 21 2629-5287 www.eduff.uff.br - faleconosco@eduff.uff.br Impresso no Brasil, 2016 Foi feito o depósito legal.


Para o meu pai, in memoriam.



Agradecimentos Em primeiro lugar, agradeço à Coordenação de Apoio e Pesquisa de Ensino Superior – Capes, por ter fomentado a pesquisa que resultou neste livro por meio de uma bolsa de mestrado e de outra de mestrado sanduíche. Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia, cujo ambiente acadêmico acolheu a pesquisa e financiou a publicação deste livro. Agradeço ao funcionário Marcelo e à estagiária Fernanda e também a todos os professores do Programa, em especial às professoras Ana Paula Mendes de Miranda, Laura Graziela Gomes e Simoni Lahud Guedes. Agradeço aos pesquisadores, professores e colegas do Equipo de Antropología Juridica y Politica, em particular a Joaquín Gomez, Maria José Sayarrabousse, Maria Victoria Pita e Sofía Tiscornia por terem me recebido e acolhido em Buenos Aires durante o período em que realizei o mestrado sanduíche. Aos professores Antônio Rafael Barbosa, Edilson Almeida, Glaucia Mouzinho e Letícia Mesquita, agradeço as leituras generosas e todas as críticas e comentários feitos a este texto. Agradeço à equipe do Nufep e do InEAC, em especial Virgínia Taveira, Lúcio Duarte, Sônia Castro e Cláudio Salles. A Kant, meu orientador e professor, cuja força, generosidade e inteligência inspiram. A Lucía Eilbaum, minha coorientadora, por todo carinho, interesse e estímulo. Sem você eu não teria conseguido realizar este trabalho. Agradeço também à pequena Olívia e a Lenin Pires, pela amizade e pela generosidade.


Agradeço a Marta Fernandez, Juliana Rodrigues, Bárbara Lupetti e Izabel Nuñez, pelos encontros e desencontros, pelas conversas e por compartilharem. A Fábio Mota, Zé Colaço, Marcos Veríssimo, pelo interesse que sempre demonstraram pelo meu trabalho e pela amizade. Agradeço também a Anna Carolina Ferraz, Natalia Nichols, Lívia Motta, Luciana Vasconcellos, Amanda Morato e Ludmylla Mendes pela paciência e companheirismo. Ao “pessoal”, Alessandra Freixo, Eric Macedo, Rômulo Labronici, Vânia Nascimento, Victor Hugo Barreto, muito obrigada por compartilharem e por tantos grandes momentos vividos. A Frederico Policarpo, muito obrigada por todo o incentivo. Pela nossa amizade e nosso amor. Agradeço a minha família. Em especial a minha mãe Dora, meus irmãos Rafael e Ana Clara. Finalmente, agradeço aos interlocutores do IML. Na maioria das vezes, interessados e dispostos a ajudar em minha pesquisa e a responder as minhas perguntas. Obrigada por me permitirem participar de sua rotina e tentar compreender o óbvio e o não óbvio do matar os mortos.


Cedo ou tarde você vai perceber, como eu, que há uma diferença entre conhecer o caminho e percorrer o caminho. (Morpheus – Matrix) De mim, Sim, também de si, não por ser você, mas por estar desse lado, Que lado, O dos vivos, é difícil a um vivo entender os mortos, Julgo que não será menos difícil a um morto entender os vivos, O morto tem a vantagem de já ter sido vivo, conhece todas as coisas deste mundo e desse mundo, mas os vivos são incapazes de aprender a coisa fundamental e tirar proveito dela, Qual, Que se morre, Nós, vivos, sabemos que morreremos, Não sabem, ninguém sabe, como eu também não sabia quando vivi, o que nós sabemos, isso sim, é que os outros morrem, Para filosofia, parece-me insignificante, Claro que é insignificante, você nem sonha até que ponto tudo é insignificante visto do lado da morte, Mas eu estou do lado da vida, Então deve saber que coisas, desse lado, são significantes, se as há, Estar vivo é significante, Meu caro Reis, cuidado com as palavras, viva está a sua Lídia, viva está a sua Marcenda, e você não sabe nada delas, nem o saberia mesmo que elas tentassem dizer-lho, o muro que separa os vivos uns dos outros não é menos opaco que o que separa os vivos dos mortos, Para quem assim pense, a morte, afinal, deve ser um alívio, Não é, porque a morte é uma espécie de consciência, um juiz que julga tudo, a si mesmo e à vida, Meu caro Fernando, cuidado com as palavras, você arrisca-se muito, Se não dissermos as palavras todas, mesmo absurdamente, nunca diremos as necessárias, E você, já as sabe, Só agora comecei a ser absurdo, Um dia você escreveu Neófito, não há morte, Estava enganado, há morte, Di-lo agora porque está morto, Não, digo-o porque estive vivo, digo-o, sobretudo, porque nunca mais voltarei a estar vivo, se você é capaz de imaginar o que isto significa, não voltar a estar vivo, Assim Pero Grulho ensinaria, Nunca tivemos melhor filósofo. (José Saramago – O ano da morte de Ricardo Reis)



Sumário Apresentação, 15 Prefácio, 17 Prólogo, 21 Introdução, 25 Do princípio, 26 Do objeto, 29 Do campo, 34 Do texto, 36 Dos capítulos, 37 Esqueleto, 39 Morte, 39 Mortos, 47 Medicina, 59 Polícia, 64 Medicina-Legal, 77 O Instituto Médico-Legal, 81 Carne e sangue, 85 Entre linhas, 87 A remoção, 90 A Guia de Remoção de Cadáveres, 93 Na Permanência, 95 No balcão, 97 Da Itinerância à Necropsia, 98


Na Necrópsia: “Seis baleados, tudo de Manguinhos”, 101 Na Necrópsia: “Hemoperitônio devido à ruptura de tumor hepático”, 105 A costura, 108 A Minuta, 110 Nas Evidências Criminais, 111 No Processamento de Laudos, 112 O Laudo Médico-Legal, 116 Os quesitos, 118 Na Identificação, 122 De volta ao balcão, 128 Os documentos, 129 Na Liberação do Óbito, 130 Espírito, 137 Estando aqui, 139 “Quem vê nem acredita que ela possa fazer um trabalho de campo desses!”, 140 Dente de alho, 143 Estando lá, 145 Cheiro, 152 Banquete, 156 Piadas e Sacanagens, 160 Impressões e comentários, 162 Necroshopping, 164 O corpo morto, 166 A continuidade dos mortos, 172 Família, 174 Não identificado Reclamado, 178 O caso do “menino Juan”, 183 Não reclamados, 185 Considerações finais: Matar o Morto, 191 Epílogo: O atirador de Realengo, 195 Referências, 201


Lista de abreviaturas e siglas ACADEPOL – Academia de Polícia ARC – Auto de Remoção de Cadáveres BAM – Boletim de Atendimento Médico CBMERJ – Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro CP – Código de Permanência CSRC – Coordenação do Serviço de Remoção de Cadáveres DH – Divisão de Homicídios DO – Declaração de Óbito DP – Delegacia Policial GRC – Guia de Remoção de Cadáveres IIFP – Instituto de Identificação Félix Pacheco IML – Instituto Médico Legal IMLAP – Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto IML-RJ – Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro INCT-InEAC – Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos NUFEP – Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisa PDL – Programa Delegacia Legal PPGA – Programa de Pós-Graduação em Antropologia RO – Registro de Ocorrência SEDESC – Secretaria de Defesa Civil Estadual SDP – Setor de Descoberta de Paradeiros SILO – Serviço de Identificação e Liberação de Óbito SIM – Sistema de Informação de Mortalidade SVO – Serviço de Verificação de Óbito TRIC – Termo de Reconhecimento e Identificação de Cadáver VPI – Verificação Preliminar de Inquérito



Apresentação Este não é um livro para aqueles que pensam que a morte é o fim. Fruto de sua dissertação de mestrado no PPGA-UFF, o trabalho de Flavia Medeiros nos leva a pensar que a morte é o ponto de partida para se compreender como um fenômeno “natural” se torna cultural por meio de uma série de ritos e processos institucionais que expressam significados de um corpo sem vida. A autora retrata com sensibilidade os meandros do funcionamento do Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto (IMLAP), do Rio de Janeiro, e os modos de tratar os falecidos, buscando desvendar como se pode “matar o morto”, ou seja, como é desenvolvido um conjunto de procedimentos que visam identificar o corpo e a causa de sua morte. Através de categorias médico-legais, classifica-se o óbito, tornando possível redefinir as relações sociais que, supostamente, seriam interrompidas por esse evento imprevisível. Descobre-se afinal se morreu de “morte matada” ou de “morte morrida”. Ao analisar as rotinas e procedimentos referentes à identificação dos cadáveres, a autora apresenta a transformação de corpos desfigurados em corpos apresentáveis às famílias, ao mesmo tempo que discute como esses mortos se institucionalizam através de sua conversão em “provas” de crimes, o que é resultado da associação de dois saberes acadêmicos (Medicina e Direito) e um saber profissional (Polícia Judiciária), que caracterizam a construção de verdades pela “Polícia Técnico-Científica”. 15


Se são os ritos funerários que constituem o morto e explicam as representações que uma sociedade tem acerca da morte, a proposta de compreender o papel do IML nesse processo é de fundamental importância, já que para lá são levados aqueles que, por distintas razões, foram vítimas de uma morte violenta. Não reclamado, não identificado, baleado, presunto, putrefato, carbonizado, suicida, morte indeterminada. A diversidade de situações encontrada pela autora revela que os mortos não são todos iguais e que os corpos falam sobre as condições das mortes e das vidas. Como ocorre em boas etnografias, Flavia Medeiros articula a capacidade de estranhar com a possibilidade de ser afetado pelo “campo”, permitindo ao leitor compreender como ela conseguiu realizar a pesquisa num local pouco comum, do mesmo modo que nos permite ver como os funcionários do IMLAP, mesmo tão acostumados a lidar com os cadáveres, são também afetados pelos mortos, por suas histórias e relações sociais. Assim, os processos institucionais de identificação de cadáveres, analisados pela autora, nos permitem pensar sobre o papel social dos mortos, que não se restringe a indicar a transitoriedade da vida, mas principalmente aquilo que os mortos falam aos vivos: o indivíduo não está só. Os ritos e os cuidados revelados por Flavia Medeiros estão aí para demonstrar que a posição social do falecido explica que há vida após a morte, mas que isso não tem a ver com crenças na ressurreição ou reencarnação, mas sim com a recomposição de tramas sociais nas quais todos estão envolvidos.

Ana Paula Mendes de Miranda Professora do Departamento de Antropologia Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia

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Prefácio A pesquisa que originou este livro, conduzida sob minha orientação no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense, certamente beneficiou-se do ambiente proporcionado pelos seminários e encontros, em variadas ocasiões, entre os membros do Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos – INCT-InEAC,1 coordenado por mim. Esta circunstância, que institucionaliza, legitima e estimula não só a pesquisa, mas a difusão e divulgação pública de seus resultados, uma das finalidades dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia, representa um marco importante na discussão sobre os processos de administração institucional de conflitos e sobre a segurança pública, no Brasil. Isso porque essa área sempre esteve fracionada entre um conhecimento prático, que obedece a valores e significados implícitos, e um conhecimento abstrato-normativo-formal, que se vincula a outros valores e significados, num quadro esquizofrênico que obstaculiza sua investigação acadêmica e científica, mergulhando suas análises no campo da opinião e do contraditório. Por isso temos insistido na necessidade do emprego de procedimentos metodológicos qualitativos, entre eles especialmente o trabalho de campo e a etnografia comparados, para iluminar e compreender os significados que são articulados 1

Disponível em: <www.uff.br/ineac>.

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pelos agentes envolvidos nas diversas operações de segurança pública em nosso país. Os resultados têm sido bastante relevantes e se expressam em inúmeros livros, artigos, eventos, cursos e entrevistas na mídia que têm sido publicizados nos últimos anos. Espera-se que essa divulgação produza, por um lado, a oportunidade de melhor conhecimento dos significados das práticas nessa área e, por outro lado, um campo novo de diálogo entre os agentes encarregados de implementar as políticas públicas do setor e os pesquisadores acadêmicos, que podem contribuir criativa e criticamente com subsídios para sua formulação, acompanhamento e avaliação de sua efetividade. No caso específico deste trabalho, trata-se de compreender um ponto completamente obscuro dessa área em que o sistema congrega diversas atividades como parte de um campo pericial. A começar com a sua identificação com certos procedimentos científicos, muitas vezes oriundos de um certo saber articulado pelo discurso criminológico, seguindo por sua ambígua articulação administrativa, ora pertencente aos quadros da Polícia Civil, ou Judiciária, ora obtendo autonomia e independência no sistema, até sua difícil relação com o sistema judicial em função das características escolásticas de nosso processo penal. Como temos discutido alhures, nosso processo judicial, seja penal, seja cível, é orientado pelo chamado princípio do contraditório, que implica um necessário contraponto das partes envolvidas a qualquer afirmação que se faça em juízo. No entanto, diferindo de outras tradições processuais, este princípio, também chamado de adversário em outros sistemas, ganha no Brasil um aspecto inusitado, pois submete-se essa discussão judicial à lógica escolástica do contraditório. Essa submissão implica oferecer às partes a possibilidade de infinito desacordo, estimulando fortemente as oportunidades de litigiosidade e desestimulando acordos e negociações em ações judiciais que somente terão fim quando interrompidas pelo poder da autoridade judicial, com a sentença do juiz. Nesse duelo não 18


há momentos em que o processo estabelece fatos consensualizados, pois somente ao seu término a sentença judicial dirá não só o que ficou ou não provado, mas quais foram os fatos arguidos na demanda, entre os quais se encontram os dados apresentados pelas diferentes perícias. É onde reina, então, o Poder, que se sobrepõe ao Saber. Não há, portanto, nenhuma garantia de que o conhecimento, científica e tecnicamente produzido, de maneira correta e indubitável, seja aceito em juízo, uma vez que o princípio do livre convencimento motivado do juiz, associado aos princípios do contraditório e da ampla defesa, constituem os polos estruturantes de nosso processo judicial criminal. Talvez, por isso mesmo, as condições em que se fazem as perícias – desde os levantamentos de locais de crimes aos exames laboratoriais que produzem laudos periciais oficiais – costumam, com raras exceções, ser de alta precariedade, além de se arrastarem no tempo, conformando-se à conhecida e generalizada lentidão processual de que tradicionalmente tanto se queixa a sociedade brasileira. Produzir conhecimento sobre essas condições e circunstâncias, portanto, é de extrema relevância para se poder informar devidamente a academia e a sociedade sobre o contexto e os significados que os agentes emprestam a suas práticas, assim como também sobre seu papel probatório no sistema judicial. Esse conhecimento deve ser completado com a observação da utilização desses laudos periciais nos julgamentos, assimilando-se também estudos comparativos que contrastem esses significados com outros que são assumidos em outras tradições processuais ocidentais. Está de parabéns Flavia Medeiros Santos, que iniciou e se iniciou, corajosamente, em pesquisa por terreno tão acidentado e opaco, para iluminá-lo com sua bela etnografia, que também já inclui em seus planos futuros de doutoramento observações de outros sistemas periciais e judiciais. Aguardemos mais, portanto. 19


Estamos todos de parabéns também se esse esforço contribuir para o tão necessário diálogo entre as Ciências Sociais, o Direito e a Segurança Pública, alargando os horizontes de nós todos, em benefício de uma sociedade brasileira mais transparente, segura e democrática. Roberto Kant de Lima

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Prólogo O Homem1 saiu de casa antes das 11 horas da manhã, no último dia do mês de março, como fazia a cada três dias. Em sua motocicleta, se dirigiu ao trabalho localizado no bairro de Honório Gurgel, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Quando virava na esquina da rua de seu posto de trabalho, perdeu o controle da motocicleta. Caiu próximo ao meio-fio e foi atropelado por um ônibus que se aproximava da calçada em que se localizava o ponto de ônibus. O Homem usava capacete. No entanto, esse não foi suficiente para proteger sua cabeça da força de uma das quatro rodas do ônibus. Logo, se reuniram algumas pessoas ao redor do acidente. E o corpo do Homem, que não tinha mais vida, ficou em “posição de decúbito dorsal”2 por aproximadamente 15 minutos. O veículo do Corpo de Bombeiros, que realizava o translado de cadáveres, chegou. O cadáver do Homem foi levado ao necrotério policial. Quando o Homem, sem vida, chegou ao necrotério, os que deveriam realizar os procedimentos necroscópicos e burocráticos referentes ao cadáver já o aguardavam. Assim, imediatamente após a chegada do corpo do Homem, foi iniciado o exame de necropsia. O Homem media um metro e setenta 1

A maioria dos nomes utilizados neste livro é fictícia. Além de nomes próprios que criei para os meus interlocutores, utilizei as formas de nominação apresentadas em registros ou acionadas pelos atores. A exceção são os nomes de mortos em casos repercutidos em veículos de comunicação, que são verdadeiros.

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Informação explicitada no registro preenchido pelos bombeiros que realizaram o translado do cadáver.

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e três centímetros. No momento do acidente vestia camiseta, jaqueta de couro e calça jeans. O exame indicou que a causa da morte foi um “politraumatismo craniano por ação contundente”.3 Foi constatado que sua última refeição havia sido recente e que, enquanto se dirigia ao trabalho, seu organismo digeria banana, pão e um líquido que poderia ser suco de laranja. Após a realização do exame, os cortes que foram feitos no corpo foram suturados cuidadosamente. O policial que se dedicou a realizar a sutura cuidou para que os ossos cranianos ficassem organizados e dedicou algum tempo montando parte do quebra-cabeças que eram os ossos fraturados do cadáver do Homem. Depois, dois policiais do necrotério lavaram o corpo e passaram um pano úmido sobre toda a extensão de sua pele. Um deles utilizou uma grande faixa para enrolar a cabeça do cadáver, mantendo firme a mandíbula e o topo da cabeça, fazendo o que, no necrotério, denominam capacete. O corpo do Homem foi retirado da mesa de necropsia e posto numa bandeja sobre um carrinho. Nessa, seus braços foram cruzados sobre o corpo, os pés postos paralelamente e a cabeça apoiada num retângulo de madeira, o que permitia que ela se mantivesse um pouco inclinada e evitasse qualquer tipo de hemorragia. Chumaços de algodão foram postos na boca, narinas e orelhas do Homem. Após esses procedimentos, o corpo sem vida foi levado à câmara frigorífica para aguardar os trâmites burocráticos que, simultaneamente, já estavam sendo realizados em outro setor do necrotério policial. Chegava o meio-dia. Havia dois cadáveres na parte externa da câmara frigorífica que seriam depositados em caixões. Uma das funcionárias da chefia do necrotério, responsável pelo seu bom funcionamento, apressava o papiloscopista para que fosse logo realizada a identificação via impressão digital do cadáver 3

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Informação explicitada no registro preenchido pelos policiais que realizaram o exame necroscópico do cadáver.


do Homem. Este era pardo, divorciado, tinha 48 anos e possuía anotações criminais por peculato mediante erro de outrem,4 como disposto no artigo 313 do Código Penal Brasileiro. O papiloscopista afirmava que logo ia preencher o documento com a identificação do cadáver, mas a responsável reclamava que havia muita demora para a coleta das digitais. “Qual é o problema?” perguntava, e impunha um ritmo de trabalho acelerado a esse policial. Logo depois, a responsável se dirigiu aos policiais que finalizam os documentos referentes à liberação do corpo e atendem os familiares. Os familiares do Homem ainda não haviam chegado. Um dos policiais informou a responsável de que havia uma muda de roupas, meias e sapatos que deveriam ser entregues àqueles que iriam vestir e preparar o corpo do Homem no caixão. A responsável solicitou que o papiloscopista, ao coletar as digitais, informasse ao policial do setor que vestia os cadáveres que buscasse as roupas naquele outro setor. A documentação do cadáver do Homem já estava pronta quando o papiloscopista se dirigiu à câmara frigorífica para coletar as impressões digitais do corpo. Procurou o Homem, e só o encontrou quando olhou na parte interna da câmara frigorífica, de onde retirou o cadáver. O corpo do morto estava nu e limpo. As suturas, na cabeça e no tronco, realizadas após o exame de necropsia, apresentavam pontos firmes e curtos. Os braços, que estavam cruzados sobre o corpo, foram abertos pelo papiloscopista para a coleta das impressões digitais. Após a coleta, o profissional deixou o cadáver na parte externa da câmara frigorífica. Aproximadamente cinco minutos depois, a responsável aproximou-se com quatro colegas de trabalho do Homem e com um dos policiais que participou do exame necroscópico. A 4

Trata-se de um crime contra a administração pública que se refere a apropriação de dinheiro ou qualquer utilidade no exercício da função por funcionário público, quando diante do erro de outra pessoa.

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responsável consolava os homens e pedia que o policial explicasse o exame que fora realizado e como a causa da morte foi identificada. Após as explicações, o policial se dirigiu à câmara frigorífica com os quatro homens e mostrou as suturas no corpo do Homem. A pedido dos colegas de trabalho do Homem, pôs sobre a bandeja em que repousava o cadáver, os braços que haviam sido abertos pelo papiloscopista. O policial afastou-se um pouco e deixou os quatro homens a sós com o corpo sem vida do Homem na câmara frigorífica. Eles queriam se despedir. Um deles beijou a testa do colega morto, enquanto outro passava a mão sobre seu braço esquerdo. Os outros dois observavam atentamente o cadáver, quando um deles começou a chorar, pondo as mãos no rosto. Foi consolado pelo colega. Os quatro homens deram-se as mãos e fizeram um círculo ao redor do corpo do Homem. Iniciaram, então, a oração católica Ave Maria e depois rezaram o Pai Nosso. Após as orações, os homens ficaram em silêncio por alguns minutos. Um deles fez o sinal da cruz na testa do Homem. Retiraramse da sala, abraçados. Antes de uma hora da tarde, o corpo sem vida do Homem era posto no caixão. Camisa, calça, meias e sapatos foram vestidos no seu corpo sem vida. O cadáver do Homem, que havia chegado ao necrotério envolto por um saco preto e coberto de sangue, saiu numa caixa de madeira, limpo e com meias novas.

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Introdução Em 20 de julho de 2011, o Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro – IML-RJ – realizava a necropsia no cadáver de número 3.453. Desses, pelo menos 241 corpos haviam sido enterrados como não reclamados; pelo menos um corpo não era um cadáver, mas um boneco de plástico confundido com um feto por policiais da Divisão de Homicídios; pelo menos um corpo era de um policial civil; pelo menos 116 corpos foram enterrados sem nome; pelo menos cinco corpos eram de crianças com menos de um ano de idade; e outros tantos, tantos que quase incontáveis, eram corpos de homens e mulheres baleados; atropelados; carbonizados; suicidas; adoentados; corpos de mortos.1 A sede do IML-RJ, cujo nome homenageia o médico Afrânio Peixoto, realiza em média 17 necropsias por dia. Nessa instituição, que faz parte do quadro da Polícia Técnico-Científica da Polícia Civil do Rio de Janeiro, corpos de pessoas vítimas de mortes violentas2 são examinados e identificados a partir das 1

Dados referentes aos meses de janeiro a junho de 2011 que obtive junto aos registros dos Setores de Não reclamados e de Identificação e Liberação de Óbito.

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Ao discorrer sobre as “mortes violentas”, Miranda e Pita (2011, p. 177) afirmam que enquanto em Buenos Aires a categoria “mortes violentas” se refere a mortes que agenciam tanto o sistema de saúde quanto o sistema penal, sendo usada principalmente para distinguir, no âmbito do sistema de saúde, as mortes que foram advindas de enfermidades de outras mortes e engloba “mortes por acidentes de trânsito, suicídios e homicídios”, no Rio de Janeiro, de forma semelhante, a categoria “morte violenta” tem seu foco na circunstância da morte e na imposição de um limite aos procedimentos burocráticos e jurídicos vinculados à morte. “Desse modo, a instituição policial não tem acesso a todos os tipos de mortes,

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técnicas de medicina legal, e registros públicos são construídos através de práticas burocráticas. Os exames dos corpos e a produção de registros têm como objetivo revelar a causa da morte; determinar a identificação civil do cadáver, declarando assim o morto; produzir informações sobre a morte e o morto; e encaminhar o corpo ao enterro. Foi no Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto – IMLAP3 – que realizei oito meses de trabalho de campo para a elaboração deste livro – originalmente uma dissertação de mestrado em Antropologia – que apresento sob a forma de etnografia. Aqui, demonstro como o IML dá prosseguimento à morte na medida em que a define. Esse prosseguimento se desenvolve em forma de um processo, e em termos nativos é reconhecido como matar o morto, referindo-se à identificação do corpo e à causa da sua morte. Isto é, definir quem morreu e como morreu.

Do princípio Dia 23 de dezembro de 2010, antevéspera do Natal. Acompanhada de Nilson, papiloscopista do Instituto de Identificação Félix Pacheco – IIFP –, contato a mim indicado por uma colega do Programa de Pós-Graduação em Antropologia – PPGA –, entrei pela primeira vez na nova sede do Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro – IML-RJ. Diferentemente do antigo prédio, no qual eu já havia estado por acaso no ano de 2008, acompanhando um amigo advogado, a nova sede do Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro, que foi inaugurada em novembro de

mas apenas àquelas relacionadas a possíveis crimes. [...] Nos dados provenientes do sistema de saúde (Sistema de Informação de Mortalidade – SIM), os casos de mortes violentas também não representam todas as mortes ocorridas, mas o problema de qualidade das informações tem outras explicações, das quais vale ressaltar a dificuldade de identificação de cadáveres.” 3

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Ao longo da dissertação, utilizo indistintamente três diferentes siglas para me referir à instituição em que realizei trabalho de campo: IML, IML-RJ e IMLAP.


2009, possui uma estrutura física voltada à principal atividade dessa instituição, a realização de exames médicos-legais. O novo prédio do IML foi planejado e construído com a finalidade de abrigar o Instituto Médico Legal. De acordo com a descrição feita por Aldé (2003), que realizou uma pesquisa sobre a qualidade do ambiente de trabalho dos policiais do IMLAP, o edifício antigo era uma construção adaptada às atividades do IML e apresentava grandes deficiências quanto à estrutura dos ambientes de trabalho e à conservação dos equipamentos: Em todos os setores o que se via eram equipamentos antigos e mal conservados, ambientes escuros, mobiliário velho ou improvisado. Em algumas salas administrativas, vários funcionários trabalhavam em um espaço reduzido, enquanto andares quase inteiros pareciam espaços abandonados, com salas vazias, sucatas de antigos equipamentos, estantes cheias de papéis jogados, sem organização ou finalidade, possíveis informações valiosas perdendo-se no descaso. (ALDÉ, 2003, p. 26).

A implantação de uma nova sede veio com o intuito de melhorar as condições de trabalho dos policiais, com espaços de trabalho organizados e bem iluminados e laboratórios e salas equipados. Essa mudança também representava uma tentativa de modificar o perfil do IML, dando a esse Instituto uma nova cara ante a população e no âmbito da própria instituição. Foi Nilson quem me apresentou pela primeira vez os corredores e setores do lugar que, a partir de então, seria o espaço empírico da minha pesquisa. Encontramo-nos no Instituto de Identificação Félix Pacheco – IIFP –, local em que Nilson trabalhava como papiloscopista. Fomos no seu carro, do IIFP ao IMLAP, e no breve trajeto conversamos sobre a universidade, a nossa colega em comum e a minha pesquisa, quando tive a oportunidade de comentar que meu objetivo era compreender como são identificados os corpos sem vida. 27


Quando chegamos ao IMLAP, ele me deu seu crachá de identificação da Polícia Civil e pediu que eu o colocasse. Eu quis saber o que fazer se alguém me perguntasse algo. Ele respondeu que ninguém ia perguntar nada, exatamente por eu estar usando aquele crachá. Entramos pela porta que dava acesso ao estacionamento. Posteriormente eu viria a saber que aquela porta era a entrada principal para o Serviço de Necropsia do IML. Nilson cumprimentou duas moças na recepção e abriu a porta de uma sala onde havia três homens, com quem conversou brevemente. Em seguida, entramos por uma porta com a indicação acesso restrito e Nilson me mostrou o setor em que eram necropsiados os corpos. Perguntou-me se eu tinha medo de ver cadáveres e eu, quase que imediatamente, respondi que não. O policial buscava identificar meus limites e, naquele momento, eu não deveria ou não queria expor nenhum deles. Seguimos andando e passamos por um corredor com diversas portas com janela de vidro. Na última, havia umas seis macas com corpos. No final do corredor, uma grande porta se abria para uma sala bem ampla, na qual ficavam as câmaras frigoríficas. Dois serventes lavavam uma das salas de necropsias. Saímos pela mesma porta pela qual entramos e nos dirigimos ao Setor de Necropapiloscopia. Havia um homem na sala, Miguel. Nilson perguntou por Soares, que não estava presente. Automaticamente, talvez por considerar que aquela sala era o meu destino final, retirei o colar de identificação e o entreguei ao Nilson. Miguel “brincou” dizendo que aquilo era “falsidade ideológica!” Nilson me apresentou a Miguel como sua amiga. Ele também lhe explicou sinteticamente que eu era antropóloga e desejava escrever minha dissertação de mestrado sobre a identificação de cadáveres no IML. Miguel perguntou se eu era jornalista. Respondi negativamente e tentei explicar com um pouco mais de detalhes do que trata a Antropologia e quais eram minhas motivações. 28


Logo, Nilson se despediu, e eu fiquei com Miguel na sala. Miguel me ofereceu a cadeira em que estava sentado e disse: “aqui tem jornal, computador com internet, fique à vontade”. Apesar de suas palavras, eu senti que ele não estava muito à vontade com a minha presença. Mesmo assim, iniciamos uma conversa. Miguel era um senhor de aproximadamente 60 anos. Trabalhava na Polícia Civil há mais de 20 anos, quando realizou o concurso para papiloscopista. Na época, recém-casado, buscava um emprego estável e a carreira pública era a melhor opção. Depois de falar sobre como se tornou um papiloscopista, Miguel começou a me explicar o caminho percorrido por um corpo dentro do IML: inicia no Setor de Necropsia, tira-se uma foto, e por último, é feita a identificação através da datiloscopia que, segundo ele, é o principal instrumento para a identificação: a impressão digital. Com aproximadamente 15 minutos de conversa, entrou na sala Fernando, na época, chefe do Setor de Identificação e Liberação do Óbito – SILO, porém, depois de iniciada a pesquisa, Fernando trocou de função, tornando-se chefe do Setor de Necropapiloscopia.4 Fernando tinha aproximadamente 35 anos e era formado em Direito. Miguel nos apresentou, e Fernando imediatamente demonstrou interesse pelo meu trabalho, tendo se tornado, ao longo da pesquisa, um dos meus principais interlocutores no IML. Ele me disse para voltar no dia seguinte, quando estaria de plantão, e que eu poderia ir ao IML sempre que ele estivesse lá.

Do objeto A principal curiosidade dos policiais era saber o que uma jovem de 22 anos gostaria de saber sobre o IML. A resposta que eu havia dado a Miguel parecia não ser suficiente, e eu ainda 4

O cargo de chefe não modificava em nada o salário ou os abonos recebidos pelos policiais, apenas os faziam responsáveis pela organização dos plantões de trabalho e culpabilizados caso o setor apresentasse problemas (KANT DE LIMA, 2009).

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não tinha para mim uma resposta muito clara do que desejava discutir e de como poderia esclarecer meus interlocutores sobre minha problematização. Ao longo do trabalho de campo, comecei a perceber que para eles, eu, como antropóloga, deveria perguntar-lhes a respeito de um problema social (LENOIR, 1998).5 Por isso me informavam sobre casos de violência, os mortos pelo narcotráfico e pelas milícias, a diminuição de mortes devido à Lei Seca6 e à implementação das Unidades de Polícia Pacificadora.7 Indicavam-me também casos de mortos em brigas familiares e destacavam o modo como as “recentes tragédias” das chuvas 5

Remi Lenoir (1998) afirma que, quando um fato específico de um grupo social passa a ser tomado como uma dificuldade para a sociedade, através da imposição dessa dificuldade e da expansão de seus questionamentos para além do grupo diretamente afetado, ele se torna um “problema social”. O autor demonstra que é no processo de apreensão e compreensão desse “problema social” que os cientistas sociais constroem um “objeto sociológico”.

6

A “Lei Seca” é o nome pelo qual ficou conhecida a lei nº 11.705/2008, que alterou as regras do Código de Trânsito Brasileiro, no ano de 2008. A partir dessa lei, o consumo de qualquer quantidade de bebida alcoólica por condutores de veículos foi criminalizado. No Rio de Janeiro, o governo do Estado implantou uma intensa campanha, a Operação Lei Seca, que inclui panfletagem e as denominadas Blitz da Operação Lei Seca – BOLS, nas vias. De acordo com o governo e com diversos agentes, como os policiais do IML, essa ação educativa, mas também repressiva, diminuiu drasticamente o consumo de bebidas alcoólicas por parte de motoristas e, como consequência, também diminuiu o número de acidentes no trânsito (JERMANN, 2010).

7

As Unidades de Polícia Pacificadora – UPP – fazem parte da atual política de segurança pública implementada em favelas pelo governo do Estado do Rio de Janeiro. Têm ênfase na pacificação através da expulsão dos narcotraficantes, do controle do espaço público pela Polícia Militar e da regularização dos serviços públicos. Tal política se insere no escopo de modificações na cidade em consequência dos eventos esportivos sediados no Rio de Janeiro (a Copa do Mundo, em 2014, e os Jogos Olímpicos, em 2016). Como argumentado por Machado da Silva (2010), a implementação de UPP tem influenciado diretamente na sensação de segurança dos moradores da cidade, sejam os que habitam as favelas ou não, e recebido uma avaliação positiva. Mas, o controle do espaço público e as estratégias de regularização trazem problemas para os moradores das favelas, que têm seu estilo de vida posto em jogo (CUNHA; MELLO, 2011).

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após desabamentos em Angra do Reis8 e no Morro do Bumba,9 em Niterói, intensificaram o trabalho. No decorrer da pesquisa de campo, passei a perceber que esses casos, apesar de parte da rotina de trabalho no IML, eram citados como exemplo da relevância dos serviços daquele instituto. Se para os meus interlocutores, como antropóloga, eu deveria olhar para um problema social, eu me propunha, como antropóloga, a construir, dentro dos limites do IML, um objeto sociológico. Ao identificar essa problemática obrigatória (BOURDIEU, 2001),10 durante a pesquisa busquei perceber

8

No réveillon de 2010, a cidade de Angra dos Reis, no litoral sul do Rio de Janeiro, foi atingida por chuvas intensas que resultaram em dois desabamentos e vitimaram fatalmente 53 pessoas. A maioria das vítimas ocupava uma pousada e sete casas de veraneio na Enseada do Bananal, localizada na Ilha Grande. Outras 11 vítimas viviam no Morro da Carioca, comunidade residencial de ocupação irregular próxima ao centro histórico de Angra dos Reis. Os policiais do IML destacavam que, “por sorte” dos moradores do morro também houve vítimas fatais, pois só assim houve quantidade de mortos suficiente para demandar os serviços do IML da capital e a atenção devida dos órgãos públicos e da mídia. A “sorte” era atribuída ao fato de que aqueles que estavam comemorando a virada do ano na ilha eram turistas e famílias ricas e de classe média alta, o que chamava mais a atenção para a tragédia.

9

Após três dias de fortes chuvas na região metropolitana do Rio de Janeiro, os moradores do “Bumba” ouviram um grande estrondo. Em 7 de abril de 2010, na cidade de Niterói, um grande deslizamento vitimou fatalmente mais de 260 pessoas. O Morro do Bumba era uma comunidade residencial regularizada pela prefeitura, que teve início no final da década de 1980. Antes, o terreno era utilizado como depósito de lixo pelo município. A instabilidade do terreno devido à grande camada de lixo combinada aos processos de decomposição que produzem gás metano e chorume (um líquido tóxico gerado a partir da decomposição de lixo) provocou o saturamento do solo da região que, com a chuva, desmoronou. O espaço ocupado pela parte desmoronada do morro se tornou uma área de lazer e ainda há pessoas que habitam o local. Ninguém foi responsabilizado pelo acidente e mais de dez pessoas ficaram desaparecidas nos escombros.

10

Para Pierre Bourdieu (2001, p. 207), a “problemática obrigatória” se refere ao “conjunto de questões obrigatórias que definem o campo cultural de uma época”. Nesse sentido, o “problema social” da “violência urbana” e as “tragédias” indicadas a mim como relevantes pelos meus interlocutores compõem o “repertório de lugares-comuns” no contexto do IML.

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como todos esses fatos, histórias e casos de repercussão se vinculavam às práticas cotidianas no âmbito dessa instituição. Quando iniciei o trabalho de campo e fui apresentada a Nilson, Miguel e Fernando, me interessava em saber como uma instituição da Polícia Civil do Rio de Janeiro, o Instituto Médico Legal, identificava cadáveres. Chamava-me a atenção a grande quantidade de indivíduos que era enterrada sob a categoria de “não identificados” (FERREIRA, 2007)11 e como isso se relacionava com a “não resolução” de casos de homicídios, em que havia desconhecimento por parte das instâncias policiais de quem eram as vítimas dessa categoria de “morte violenta”.12 Nesse sentido, durante a pesquisa busquei reconhecer as práticas institucionalizadas de trabalho dos profissionais do IML, no que se refere à produção de registros dos cadáveres. Assim, observando como era a rotina burocrática da instituição, vi que, mais do que identificar, ou não, cadáveres enquanto indivíduos ou pessoas, o IML constrói institucionalmente corpos sem vida enquanto mortos. A partir dessa constatação, passou a me chamar a atenção como tais práticas institucionalizadas de trabalho se inserem num percurso, ou nos termos de Tiscornia (2009), num 11

A antropóloga Letícia Ferreira (2007) realizou sua pesquisa nos arquivos de registros do IML, na qual verificou como era estabelecido o processo identificatório de cadáveres classificados como não reclamados, entre os anos de 1942 e 1960.

12

De acordo com o Conselho Nacional do Ministério Público (2011), o estado do Rio de Janeiro é aquele com o maior número absoluto de homicídios não solucionados, quer dizer, inquéritos referentes a homicídios que foram arquivados. Se no ano de 2007, havia um total de 8.526, em 2010 totalizavam mais de 60 mil casos não resolvidos nos últimos dez anos. O arquivamento de inquéritos foi uma forma de o Estado, através do Ministério Público Estadual, cumprir uma meta nacional que dizia que todos os inquéritos abertos até o ano de 2007 deveriam estar concluídos em 2011. Sobre a produção de estatísticas por parte do Estado, Miranda e Pita (2011) demonstram como essa se refere à produção da “linguagem do Estado” que configura as classificações produzidas por seus agentes. Dessa maneira, os registros estatísticos são reflexo das categorias escolhidas pelo Estado para que ele diga sobre ele próprio.

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“labirinto burocrático”, em que dezenas de registros eram preenchidos diariamente para que, ao final de todo o caminho, um cadáver pudesse ser inumado. A entrada no campo através do Setor de Necropapiloscopia se vinculava ao interesse de pesquisar os procedimentos relativos à identificação, e isso permitiu que eu percorresse o fluxo dos profissionais e dos papéis em relação aos cadáveres. Afinal, todos os que ingressam no IML têm suas impressões digitais coletadas pelo papiloscopista. Nessa rotina de papéis e de corpos, com e sem vida, notei que inclusive os não identificados (FERREIRA, 2007) são parte dessa rotina. Ao identificar a prática de trabalho no IML, chamavamme a atenção as características da burocracia cartorial brasileira (KANT DE LIMA, 1995; MIRANDA, 2000). O interesse em compreender essa faceta burocrática e a possibilidade de identificar questões nesse sentido vinculam-se diretamente a minha participação enquanto pesquisadora no Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas – NUFEP,13 e no Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos,14 INCT-InEAC. 13

O NUFEP é o Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisa, com sede na Universidade Federal Fluminense – UFF – e está vinculado academicamente ao Programa de Pós-graduação em Antropologia – PPGA – e administrativamente ao Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. Criado em 1994, o NUFEP organiza um espaço na academia que congrega membros docentes e discentes independentemente das rotinas e ordenações inerentes à atividade acadêmica regular. Os projetos desenvolvidos buscam focalizar processos de administração institucional de conflitos, em perspectiva comparada. Dois ambientes empíricos originalmente se destacam nas abordagens dos pesquisadores: as políticas públicas ambientais que envolvem pescadores artesanais e os sistemas de Segurança Pública e de Justiça Criminal. Minha pesquisa se insere nessa segunda abordagem, que busca analisar os conflitos e as formas de administração de instituições e atores vinculados às áreas da Segurança Pública e da Justiça Criminal.

14

O INCT-InEAC é o Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos. Coordenado pelo professor Roberto Kant de Lima, foi criado em fevereiro de 2009, através da iniciativa do Programa Institutos de Ciência e Tecnologia, proposto pelo CNPq em parceria com a FAPERJ. O

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Devido a minha inserção num grupo de pesquisa que há mais de 15 anos investiga práticas policiais e jurídicas, destacou-se, também, a importância que esses corpos apresentam, sendo por vezes fragmentados e olhados através de suas partes destacadas como evidências criminais que permitem o estabelecimento de verdades policiais. Assim, cadáveres são construídos enquanto mortos que, transformados em provas de crimes, permitem a produção e a reprodução de verdades, estando sujeitos a mecanismos institucionalizados de construção da verdade. Neste livro, discuto como uma instituição da burocracia pública estatal, submetida à polícia, exerce o controle sobre corpos sem vida e como esses corpos mortos são produzidos pela burocracia. Demonstro como os registros públicos são produzidos, mas também destaco como se dão outros momentos de interação no cotidiano de trabalho com cadáveres, que não são registrados e que se relacionam à produção de verdades sobre os mortos. Assim, elucido e discuto as formas como mortos são produzidos institucionalmente e cotidianamente no âmbito dessa instituição policial, bem como analiso um conjunto de representações sobre a morte e os mortos.

Do campo A descrição de como são transformados cadáveres em mortos e de como são produzidos corpos pela burocracia, a partir da observação da realização de exames médicos-legais, permite explicitar como os policiais do IML constroem documentos públicos e estabelecem verdades. Para isso, realizei trabalho de campo no período de dezembro de 2010 a agosto de 2011 no Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto – IMLAP. InEAC promove um programa de pesquisa e formação, nas áreas de Ciências Humanas e Ciências Sociais, sobre a diversidade das formas institucionais de administração de conflitos nos diferentes âmbitos dos sistemas de Segurança Pública e de Justiça Criminal, em uma perspectiva comparada.

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Também acompanhei o trabalho da Coordenação de Serviço de Remoção de Cadáveres – CSRC – entre os meses de agosto e novembro de 2010. Durante esse período, sistematicamente, realizei trabalho de campo com uma equipe que cumpria plantão semanal de 24 horas e, também, quando possível, acompanhei os plantões dessa mesma equipe, aos domingos. Em relação aos horários, propunha-me a estar a maior parte do dia no IML. Em geral, chegava lá poucas horas depois de o plantão ter começado. Assim, acompanhava a chegada dos primeiros corpos e os primeiros exames realizados pelos policiais daquele plantão. Passava toda a parte da manhã e da tarde no IML, participando da rotina de trabalho. Muitas vezes ficava até à noite, quando o ritmo de trabalho era menos intenso, mas a entrada de corpos era sempre aguardada. Por algumas madrugadas fiquei no IMLAP, acompanhando o trabalho dos policiais e descansando no alojamento que lhes era destinado, enquanto quase todos dormiam. Essa prática de pesquisa permitiu-me compreender a rotina de trabalho dos policiais, bem como os fluxos de corpos, pessoas e papéis. Além de dados que obtive na pesquisa no Rio de Janeiro, ao longo do livro apresento brevemente, em caráter contrastivo, dados sobre Buenos Aires. Estes foram obtidos após estadia de três meses, de setembro a dezembro de 2011, no âmbito do convênio CAPG-BA, entre o Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFF, do qual sou aluna, e o mestrado e o doutorado em Antropologia da UBA.15 Essa missão de estudos se insere num bem-sucedido percurso de convênios binacionais entre Brasil e Argentina, com sede no InEAC, através dos programas CAPES/SPU e CAPES/MinCyT. Tais convênios vêm possibilitando a produção de trabalhos diversos que analisam, 15

Realizada através do projeto Experiências comparadas em Antropologia Social. Brasil e Argentina CAPG – BA 041/10, coordenado pela professora Simoni Lahud Guedes e pelo professor Claudio Guevara.

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em particular, os sistemas de administração de conflitos no Rio de Janeiro e em Buenos Aires.16 Em Buenos Aires, tive a oportunidade de realizar pesquisa na Morgue Judicial de Lomas de Zamora, localizada na parte sul do conurbano de Buenos Aires, na Província de Buenos Aires, Argentina, que abrange uma área correspondente a dois milhões e meio de habitantes. Essa instituição é a responsável pela identificação de cadáveres e realização de exames médico-legais em corpos vítimas de “mortes violentas” ou por razão desconhecida. Por ser a única Morgue Judicial da Província, além da morgue da capital,17 corpos de pessoas mortas pela polícia na província de Buenos Aires também são encaminhados a Lomas de Zamora. A realização de breve trabalho de campo em outro país permitiu-me compreender melhor aspectos da pesquisa que realizei no Rio de Janeiro pois, a partir da identificação de práticas e representações diferentes, pude contrastar elementos com aqueles observados no IMLAP. Assim, a desnaturalização e o estranhamento provocados pela pesquisa em Buenos Aires propiciaram compreender quão diversas podem ser as relações que os vivos estabelecem com os mortos. Discutir acerca do lugar social dos mortos e elucidar os procedimentos institucionais referentes aos cadáveres em Buenos Aires me possibilitaram contrastar e reconhecer esses fatores no Rio de Janeiro.

Do texto Ao construir esta descrição etnográfica, organizei a análise a partir das categorias nativas mas dando-lhes destaque na medida de sua relevância no campo, constituindo, assim, 16

Destaco os trabalhos de Pires (2010) e Eilbaum (2010), que utilizo ao longo deste livro.

17

Todas as outras 17 morgues localizadas na província de Buenos Aires estão subscritas à Polícia da Província de Buenos Aires. A morgue de Lomas de Zamora está vinculada ao sistema de justiça através do órgão acusatório que é o Ministério Público Fiscal.

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a minha discussão. Nesse sentido, as categorias nativas estão apresentadas em letra cursiva – itálico, e as extraídas das falas ou dos registros estarão também entre aspas. Os conceitos teóricos que serão apresentados estão apenas entre aspas.

Dos capítulos Inspirando-me livremente em Bronislaw Malinowski (1978), ao discorrer em sua antropologicamente conhecida introdução ao livro Argonautas do Pacífico Ocidental, sobre as técnicas de realização do trabalho etnográfico, os dados que construí a partir dessas experiências estão organizados em três capítulos: Esqueleto, Carne e Sangue e Espírito. Para ­Malinowski, estas representam as três camadas de um todo que devem ser analisadas num estudo antropológico. Aqui, permitindo-me acionar simbólica e metaforicamente esse consagrado conjunto analítico, ressalto as distinções e as idiossincrasias daquilo que, a partir da etnografia, compreendi ser a estrutura do IML, sua rotina e seus sistemas classificatórios. Assim, no primeiro Capítulo, intitulado Esqueleto, apresentarei como a morte, os mortos, a medicina, a polícia e a medicina legal são partes constituintes do Instituto ­Médico-Legal e possibilitam a existência dessa burocracia pública. Dessa maneira, utilizando-me, principalmente, da produção antropológica sobre esse tema, enfatizarei como o acontecimento morte se tornou tema de discussão científica. Discutirei também a relevância dos mortos na definição e apreensão desse acontecimento. E apresentarei, em caráter comparativo, o lugar social dos mortos na sociedade portenha e qual o lugar do corpo sem vida na construção dos mortos. Ainda no Esqueleto, destaco aqueles saberes e poderes que considerei como estruturantes da cultura na construção institucional de mortos. Nesse ponto, discutirei como diferentes saberes e poderes da medicina e da Justiça constituíram a medicina-legal e como numa instituição policial o saber médico 37


e o saber médico-legal se articulam. Assim sendo, o Esqueleto é o que está anterior ao próprio IML, constituindo-o e possibilitando a sua existência. No segundo Capítulo, denominado Carne e Sangue, explicitarei como são cotidianamente produzidos os mortos. Nesse sentido, demonstrarei como, desde a remoção via rabecão, o Serviço de Necropsia do IML se apresenta enquanto espaço de construção de significados sobre os cadáveres, mas também como uma linha de produção de linhas classificatórias entre vivos e mortos. Para compreender a construção dessas linhas e dos seus significados, passarei a explicitar os imponderáveis da vida institucional e as práticas dos sujeitos no que se refere à produção de cadáveres que mata os mortos. A partir dos cadáveres, buscarei descrever a produção de registros e verdades e, através dos cadáveres e dos registros, compreender como é vivida a rotina na instituição que constrói mortos entre os corpos e os papéis. Logo, Carne e Sangue se refere ao que circula e conforma o IML e sua rotina. Finalmente, no Espírito, o terceiro e último Capítulo, falarei de como a minha experiência, enquanto antropóloga no Instituto Médico Legal, me permitiu acessar certas ideias, sensações e sentimentos no que se refere ao cotidiano com os mortos. A partir dessa discussão, explicitarei nesse Capítulo a maneira como são compartilhados e vividos o tempo e o espaço do IML, seja pela percepção de odores, por piadas e comentários jocosos, ou pela relação estabelecida com os mortos. Também destacarei nesse capítulo a continuidade dos mortos. Isto é, como a construção institucional dos mortos classifica-os no que concerne às suas relações sociais. O Espírito é, em certo sentido, o que é dito e construído sobre e pelos mortos após a sua morte. É o que dá vida ao IML e aos mortos. Em suma, neste livro demonstrarei como os mortos são mortos burocraticamente e como nessa instituição pública, responsável por construir os mortos institucionalmente, são estabelecidas as relações dos vivos com os mortos. 38



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