Quando o céu é o limite
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Cristina Teixeira Marins
Quando o cĂŠu ĂŠ o limite Um olhar antropolĂłgico sobre o universo dos casamentos e dos cerimonialistas
Copyright © 2014 Cristina Teixeira Marins Copyright © 2016 Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense
Nova Biblioteca, 10
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Impresso no Brasil, 2016 Foi feito o depósito legal.
Este livro é para você, Thiago. Que você receba com ele a minha gratidão, a minha admiração e, acima de tudo, o meu amor.
Sumário Prefácio | 9 Introdução | 13
Primeiros passos | 14 Incursão etnográfica preliminar | 17 Levantamento bibliográfico preliminar | 21 A centralidade das noivas | 23 Breves considerações sobre metodologia | 27
Os cerimonialistas em contexto | 39
Sobre a indústria | 41 Cerimonialistas no Rio de Janeiro | 52 O que fazem os cerimonialistas | 58
A construção do cerimonialista | 71
De noivas a cerimonialistas | 77 O aprendizado do ofício | 83 Cerimonialista não é convidado | 89 Lidando com noivas | 91 Algumas palavras sobre autoridade | 96 Lidando com redes profissionais | 102 Os cerimonialistas como artesãos | 107
O casamento | 109
A montagem | 110 A cerimônia | 116 A festa | 127 O tradicional versus o alternativo | 137
Considerações finais | 141 Referências | 147 Anexos | 151 Agradecimentos | 157
Prefácio
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m meados de 2014, estreava mais um folhetim na principal emissora de TV do Brasil. Exibida no assim chamado horário nobre, a trama contava com um núcleo que prometia causar polêmica. A razão era simples: para viver um profissional bem-sucedido, casado, pai de dois filhos e que manteria um romance extraconjugal com um jovem aspirante a ator, foi escalado um galã conhecido por interpretar personagens tidos como másculos, fortes, viris. Embora este aspecto tenha sido o principal chamariz para a mídia e o grande público, um outro (ainda que em escala mais modesta), também atraía a atenção dos telespectadores: o personagem em questão era um cerimonialista de referência no mundo dos poderosos e, portanto, figura constante em badaladas festas do Rio de Janeiro. Naquele mesmo ano, poucos meses antes, acontecia, nas dependências do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense, a defesa da dissertação de mestrado que deu origem ao livro que ora tenho a honra e o prazer de prefaciar. Como informa o título, Quando o céu é o limite: um olhar antropológico sobre o universo dos casamentos e dos cerimonialistas, o trabalho aborda o fazer de uma categoria profissional que, para muitos, vem se tornando praticamente imprescindível na construção de eventos, dentre os quais destacam-se os ritos e festejos que acompanham a celebração do casamento. Se, como define o sociólogo Norbert Elias, as profissões são “funções sociais especializadas que as pessoas desempenham em resposta a necessidades especializadas de outras” (2001, p. 90), dado o cenário de tensão, ansiedade e expectativa no qual, não raro, costumam atuar, os cerimonialistas poderiam ser encarados como uma espécie de magos modernos, cuja eficácia simbólica repousa na crença de que, em 9
suas mãos, tudo há de transcorrer sob o mais absoluto controle; que o Grande Dia será, como se deseja, simplesmente perfeito! Embora, de algum modo, dialogue com o ramo das Ciências Sociais a que se convencionou denominar sociologia das profissões, Quando o céu é o limite... vai além do estudo de uma categoria profissional e é precisamente aí que reside a sua originalidade. Para desenvolvê-lo, a autora recorre, de forma criativa, à análise das práticas e discursos dos cerimonialistas, não como um fim em si mesmo, mas como um meio privilegiado para interpretar alguns dos múltiplos e variados significados que envolvem a celebração do casamento. E este é apenas um dos méritos da jovem etnógrafa que, em seu début antropológico, mostra-se bastante à vontade quanto ao emprego dos métodos e técnicas próprios da disciplina. Prova disso é que combina, com indiscutível competência, diferentes estratégias de pesquisa, o que, por corolário, lhe permite lançar um olhar caleidoscópico sobre um campo empírico, a um só tempo, rico, fascinante e (permitam-me dizer) complexo. Orientada pela máxima de que “os campos de produção de bens culturais são universos de crença que só podem funcionar na medida em que conseguem produzir, inseparavelmente, produtos e a necessidade desses produtos” (BOURDIEU, 2004, p. 30), a pesquisadora nos conduz pelo interior da chamada “indústria dos casamentos” (com suas cifras monumentais!), desvelando, com riqueza de detalhes, o ofício de cerimonialista e o lugar de destaque hoje ocupado por ele na construção dos mais diversos eventos sociais. Ao descrever e analisar o desempenho de suas funções, utiliza-o, também, como uma espécie de lente através da qual torna-se possível enxergar um mundo que, para muitos de nós, soa familiar, sem ser, de fato, conhecido; vivido, mas não necessariamente refletido. Uma outra qualidade digna de nota no trabalho que se segue diz respeito a um aspecto importante, embora nem sempre suficientemente reconhecido. Refiro-me, no caso, ao nada simples processo de textualização etnográfica. Após acumular considerável massa de informações junto às mais variadas fontes (como, por exemplo, em cursos, workshops, palestras, feiras, encontros, almoços, chás de confraternização etc.), a autora nos 10
brinda com um texto elegante, sucinto e, sobretudo, claro, muito claro! Contrariando a tradição que nos ensina a falar apenas aos iniciados (ou, como se diz, de pregar aos convertidos), empenha-se em produzir um texto acessível sem, contudo, prescindir dos devidos rigores teórico-metodológicos, o que, ao menos potencialmente, o habilita a ter uma ampla circulação, tanto entre leigos quanto entre o público especializado. Embora a tentação seja grande, não pretendo repetir, aqui, o conhecido clichê sobre a leitura obrigatória do livro, até porque, a despeito das razões eventualmente evocadas, de fato, não consigo acreditar nesse tipo de propaganda! Isso, porém, não me desobriga de, ao menos, recomendá-lo como leitura agradável e instrutiva, que pode, inclusive, revelar-se útil àqueles que admiram trabalhos monográficos inovadores, nos quais a curiosidade e a imaginação sociológica se conjugam com a fina sensibilidade etnográfica. Se esse for o seu caso, caro leitor, não me resta muito a dizer, a não ser lhe desejar um bom proveito! Edilson Márcio Almeida da Silva Universidade Federal Fluminense
Referências BOURDIEU, Pierre. A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos. 2. ed. São Paulo: Zouk, 2004. ELIAS, Norbert. Estudos sobre a gênese da profissão naval: cavalheiros e tarpaulins. In: Mana: estudos de antropologia social, 7 (1). Rio de Janeiro: Relume-Dumará; PPGAS/Museu Nacional/ UFRJ, 2001.
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Introdução
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m língua portuguesa, o termo “casamento” abarca, pelo menos, alguns significados distintos. Sem pretender dar conta da polissemia do termo, noto que, por “casamento”, podemos entender a vida em conjugalidade marcada pela coabitação; o vínculo estabelecido legalmente entre duas pessoas; ou, ainda, dentro de um espectro mais restrito, as formas do ritual que, arquetipicamente, celebra a união em matrimônio entre um homem e uma mulher. A respeito do último significado, julgo interessante mencionar a existência, em língua inglesa, de um termo específico que designa a dimensão ritual do casamento: refiro-me à palavra wedding, que diz respeito estritamente à cerimônia de casamento e às festividades que a acompanham, enquanto o termo marriage abrange um sentido mais vasto, que inclui a união em conjugalidade entre duas pessoas. Chamar a atenção para os múltiplos sentidos do casamento é importante para traçar os primeiros contornos do objeto aqui apresentado. Nesta pesquisa, trato, essencialmente, do casamento tal como definido pelo termo wedding. Mais precisamente, volto minhas atenções para o evento, o acontecimento de significância, conforme assinalou Sahlins1. Portanto, ao longo da dissertação, ao me referir a casamento, o faço em alusão à cerimônia (religiosa 1
“Um evento é de fato um acontecimento de significância e, enquanto significância, é dependente na estrutura por sua existência e por seu efeito. ‘Eventos não estão apenas ali e acontecem’, como diz Max Weber, ‘mas têm um significado e acontecem por causa de um significado’. Ou, em outras palavras, um evento não é somente um acontecimento no mundo; é a relação entre o acontecimento e um dado sistema simbólico. E, apesar de um evento enquanto acontecimento ter propriedades ‘objetivas’ próprias e razões precedentes de outros mundos (sistemas), não são essas propriedades, enquanto tais, que lhe dão efeito, mas a sua significância, da forma que é projetada a partir de algum esquema cultural.” (SAHLINS, 2011, p. 191).
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ou não) que marca a união entre duas pessoas (seja ela legitimada pelo Estado ou não) e os festejos que lhe dizem respeito. É no complexo ritual2 que encontro o ponto de partida e o fio condutor deste trabalho. Dada a amplitude do tema, deparei-me com a n ecessidade de realizar alguns recortes, empregando nesta complexa tarefa uma dose inevitável de arbitrariedade. Por ora, gostaria de mencionar duas destas escolhas que, como veremos adiante, acabaram por conferir contornos particulares a este trabalho. Em primeiro lugar, circunscrevi a realização da pesquisa à cidade do Rio de Janeiro3 – menos como um resultado de reflexão teórico-metodológica do que pelos aspectos práticos que esta opção de trabalho implicaria. Em segundo lugar, optei por não delimitar previamente um recorte por “classe” ou “estrato social”. Tudo que eu pretendia era compreender quais eram os significados, códigos e valores investidos nos ritos matrimoniais contemporâneos da cidade do Rio de Janeiro.
Primeiros passos Não deve ser por acaso que uma parcela dos textos produzidos por antropólogos seja, ao menos em algum grau, pontilhada por conteúdo autorreferente. Estou convencida de que o caráter de personificação destes escritos (sobretudo o de suas seções introdutórias), menos do que manifestação de vaidade, constitui uma consequência inevitável do aprendizado do olhar etnográfico e da aceitação de que, como pesquisadores, tomamos nossos objetos do mundo em que vivemos – e que isto, por si só, produz importantes implicações. Assim sendo, sinto-me inclinada a situar os primeiros passos deste trabalho em minha trajetória pessoal. Utilizo o termo “complexo ritual”, conforme assinalado por Victor Turner (1968, p. 3). A partir desta noção, podemos compreender o casamento como um conjunto de sequências de momentos rituais, “fases”, “estágios”, “episódios” ou “ações” que o constituem. 3 Isto não significa, entretanto, que eu tenha desprezado informações que eu julgava úteis e que dissessem respeito a outras regiões do Brasil. 2
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No ano de 2008, quando iniciava meus estudos no campo das ciências sociais, recebi um presente inesperado: meu então namorado me ofertava uma pequena caixa de cor preta, envolvida por um laço prateado, que continha um par de alianças. Informada por uma série de representações em torno deste gesto singelo, logo entendi que se tratava de um pedido de casamento e, mesmo tendo sido surpreendida pelo presente, tinha alguma noção de que aceitá-lo significaria uma iminente mudança em meu estado civil que, possivelmente, seria precedida da organização de um ritual que marcasse esta data. Talvez tenha sido pela minha parca familiaridade com o universo dos casamentos que o passo seguinte tenha se convertido na descoberta de um mundo que, além de me parecer estranho, se revelaria bastante promissor para meu exercício intelectual. Com o olhar um pouco mais atento, não tardou para que eu me desse conta da destacada posição que estes rituais ocupam no imaginário cultural brasileiro4. Observando contextos e discursos cotidianos, percebi, por exemplo, que, em nosso país, são produzidos e exibidos diversos programas de TV que acompanham os preparativos de festas de casamento. Comecei a reparar também nas numerosas publicações dedicadas ao tema, largamente comercializadas em bancas de revistas e em livrarias da cidade. Descobri que há um calendário de feiras e eventos voltados aos ritos matrimoniais, e que eles costumam atrair milhares de pessoas durante todo o ano. Atentei ainda para o espaço de destaque ocupado pelos casamentos na teledramaturgia e para as minuciosas coberturas das festas de casamentos de famosos que rendem páginas e mais páginas das revistas de fofoca. Se levarmos tudo isso em conta, talvez já não nos impressionem tanto as estimativas do setor de eventos que apontam para a existência de uma indústria poderosa: segundo especialistas ouvidos no ano de 2012, o mercado de casamentos no Brasil vem experimentando
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Não quero dizer com isso que o fenômeno seja estritamente nacional. A propósito, compartilho da visão de Otnes e Pleck, que percebem o fascínio por festas de casamento como um fenômeno ocidental em plena ascenção em outras partes do mundo (ver: OTNES; PLECK, 2003, p. 2).
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um crescimento sensível e movimenta, anualmente, algo em torno de 15 bilhões de reais5. O lugar marcante ocupado pelos casamentos em nosso país se tornava, aos meus olhos, um tanto perturbador, sobretudo quando confrontado com sua história recente. Convencionalmente, os ritos matrimoniais são exemplos emblemáticos dos chamados “ritos de passagem”6 pois marcam, entre outros aspectos, a transferência do casal para uma nova moradia e o acesso ao estatuto de adulto, inaugurando formalmente os direitos à sexualidade e à procriação. No entanto, considerando as transformações ocorridas há poucas décadas no campo dos costumes e da vida privada (tais como o feminismo, a progressão das uniões livres e a chegada da mulher ao mercado de trabalho), os rituais de casamentos pareciam destinados a se tornarem, pouco a pouco, destituídos de sentido. E, se isto acontecesse, seria perfeitamente plausível que estes rituais experimentassem cedo ou tarde um declínio irremediável. Mas eis que testemunhamos um movimento contrário: recentemente, os ritos matrimoniais vêm adquirindo uma importância expressiva e vêm se tornando objeto de crescente investimento de tempo, dinheiro e energia. Dado que os casamentos não marcam, ao menos não de forma tão pronunciada como o faziam outrora, a passagem dos noivos ao mundo dos adultos e que eles tampouco entraram em declínio, deduzi que seus sentidos tivessem sido profundamente reformulados. Assim, eu começava a me questionar a respeito dos novos sentidos dos quais eram supostamente investidos os rituais de casamento contemporâneos. Queria compreender o modo como o casamento é hoje planejado, percebido e lembrado, em uma palavra, representado pelos diferentes atores sociais O montante aqui apresentado diz respeito às estimativas publicadas pela Revista Exame: “A expansão do mercado de casamentos”. Revista Exame PME, 23/7/12. Contudo, julgo pertinente ressaltar que ao longo da pesquisa me deparei com uma série de dados desencontrados (e isto, creio, deve se relacionar ao alto grau de informalidade verificado no setor). Por outro lado, a ideia de que este se trata de um mercado em franca expansão parece ser unânime. 6 Recorro aqui à afirmação de Van Gennep, segundo quem “casar-se é passar da sociedade infantil ou adolescente para a sociedade madura, de certo clã para outro, de uma família para outra, e muitas vezes de uma aldeia para outra” (VAN GENNEP, 2011, p. 112). 5
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nele envolvidos. Mas deste ponto até a formulação de um projeto de pesquisa que cumprisse as exigências inerentes a um trabalho científico, um longo caminho ainda haveria de ser percorrido.
Incursão etnográfica preliminar Os argumentos desenvolvidos neste livro b aseiam-se em um trabalho de pesquisa que excedeu o período de duração do curso de mestrado. Isto porque, antes que eu estivesse inscrita no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense, esbocei uma primeira aproximação do campo entre os meses de novembro de 2010 e janeiro de 2011. Neste período, buscava, fundamentalmente, avaliar as possibilidades etnográficas que o tema oferecia e, para tal, valendo-me da ajuda de pessoas de meu círculo de amizades, empreguei-me em uma pequena empresa de convites e brindes para casamento. Tratava-se de um estabelecimento comercial que funcionava em um edifício no centro da cidade havia pouco mais de um ano. Sua proprietária, uma designer que deixara o emprego em uma agência de publicidade para se dedicar exclusivamente ao pequeno negócio, concentrava a quase totalidade das atividades da empresa, o que incluía a elaboração da arte dos produtos, pagamentos a fornecedores e entrega dos convites e brindes. A empresa tinha apenas uma funcionária, que trabalhava na etapa de produção e acabamento dos pedidos. Recém-contratada, eu deveria desempenhar a função de atendimento dos clientes. Minha responsabilidade ali consistia, predominantemente, em atender os potenciais compradores por e-mail, telefone ou face a face. Ainda que com menor frequência, eu também era incumbida de conduzir negociações com fornecedores da indústria de casamentos. Trabalhava de segunda a sexta-feira, em horário comercial e, eventualmente, aos sábados, conforme as solicitações de clientes. A maior parte de minha jornada de trabalho era preenchida respondendo a solicitações de orçamento, 17
fornecendo esclarecimentos sobre prazos e outros detalhes do processo de confecção dos produtos de papelaria. Quase todos os clientes que pretendiam fechar negócio agendavam um horário comigo para que pudessem conhecer de perto os produtos, esclarecer dúvidas e tentar negociar preços e condições de pagamento. Era comum que estas reuniões ultrapassassem uma, duas horas de duração e que os compradores acabassem por me contar sobre seus casamentos, compartilhando angústias e mesmo solicitando conselhos relativos aos eventos que eles preparavam. Os clientes que eu atendia provinham de contextos sociais bastante diversos. Eram profissionais liberais, estudantes, comerciantes, médicos, vendedores, bancários. Vinham de bairros como Ipanema, Barra da Tijuca, Cascadura, Vila Valqueire ou de cidades próximas, como Duque de Caxias, Macaé, Nova Friburgo. E eu achava interessante que, a despeito das diferenças que guardavam entre si, eles quase sempre convergissem no que dizia respeito a suas inquietações. Escolher um convite de casamento costumava ser uma tarefa demorada, acompanhada de inúmeras dúvidas e, não raro, demandava algumas visitas à empresa. Sentados diante de mim na pequena sala do edifício no centro da cidade eles expunham um rol extenso de preocupações: deveriam optar por um texto clássico, no qual os pais convidariam para a cerimônia seguida de recepção? Seria de bom tom indicar no convite o local onde deveriam ser comprados os presentes de casamento? O tamanho e o formato dos envelopes se adequavam à festa que eles preparavam? Deveriam optar pelo acabamento com fita? Em caso positivo, a fita seria de cetim ou de gorgurão? Na cor cinza, branca ou pérola? Seria possível imprimir na papelaria a mesma estampa floral utilizada na confecção das almofadas da festa? O nível de detalhamento era acachapante. Trabalhando nesta empresa, aprendi que um simples convite de casamento poderia ser fruto de uma série de idealizações, de escolhas cuidadosas e de investimento financeiro considerável. Embora o valor dos itens de papelaria não costumasse ser significativo, se levado em conta o montante total gasto na festa de casamento, ainda assim ele pode ser considerado alto. 18
Dependendo da gramatura e do tipo de papel, do tamanho do envelope e do acabamento escolhido, o preço de cada unidade de convite poderia ultrapassar vinte reais – valor que eu sabia estar distante do mais alto do mercado. Assim, um cliente que comprasse 150 convites, pagando quinze reais por unidade (considerando o valor de um convite de preço intermediário), desembolsaria 2.250 reais (um valor que, na época, equivalia a, aproximadamente, 4,4 salários mínimos). Para a maior parte dos clientes não se tratava de um episódio corriqueiro empregar tanto dinheiro em produtos feitos, essencialmente, de papel, cola e tinta, o que se podia observar pela hesitação dos noivos no momento de assinatura de um contrato. Os clientes que eu atendia costumavam, em algum ponto de nossa conversa, ponderar sobre a angústia suscitada pelos altos custos implicados nas festas de casamento. E quanto mais conversávamos sobre os preparativos do evento, mais eu ouvia desabafos sobre uma indústria propaladamente oportunista, capaz de triplicar o preço de um produto ou serviço diante da simples menção da palavra “casamento”. Nossas reuniões de atendimento, quase sempre, partiam do mesmo ponto: eu perguntava aos potenciais clientes como eu poderia ajudá-los e eles rapidamente replicavam que estavam à procura de convites “que não fossem caros”. Pelo que pude notar trabalhando naquele pequeno empreendimento, os convites não ocupavam posição muito elevada na hierarquia dos itens de consumo de um casamento. Em termos práticos, isso significava que os clientes costumavam procurar a empresa já no final dos preparativos (quando, muitas vezes, o orçamento previsto para festa já havia sido estourado) e tratavam este item como um pormenor, justificando que os convites “sempre vão parar no lixo mesmo”. Eu costumava encarar esse discurso com certa naturalidade, até que ouvi um experiente profissional do ramo de casamentos retrucar esta ideia. Dizia ele que “com exceção das fotos e do vídeo, todos os itens de um casamento vão parar no lixo, o que muda é a via”. E quanto mais eu pensava no assunto, mais eu ficava convencida de que ele estava com a razão: do extenso inventário de itens incorporados ao casamento (tais como o bolo, os doces, as bebidas, as flores, a maquiagem da 19
noiva e os trajes quase sempre alugados) pouco restaria não fosse a lembrança materializada na produção audiovisual do evento. Porque será, então, que alguns itens eram considerados centrais em detrimento dos demais7? Além disso, outra questão chamava minha atenção: salvo um ou outro caso, as reuniões eram sempre agendadas pelas noivas. Aos encontros, elas poderiam comparecer sozinhas, acompanhadas de seus noivos, de suas mães, amigas ou parentes, mas me parecia inequívoco que a palavra final competia sempre a elas. Pouquíssimas vezes vi pisar na empresa os pais8 da noiva, amigos ou parentes do sexo masculino. Os detalhes do convite pareciam ser discutidos somente entre mulheres e, muito embora o evento dissesse respeito à união de um casal, ao menos naquela fase dos preparativos do casamento, os noivos pareciam ser coadjuvantes. E isto fez com que eu começasse a me perguntar como seriam construídos e desempenhados os papéis de gênero ao longo do complexo ritual. Terminados os três meses de trabalho na empresa de convites, eu me encontrava em estado de ainda maior inquietação. Mas, a despeito de tantas indagações (ou exatamente impulsionada por elas), eu estava convencida de que o tema poderia render uma dissertação interessante. Tanto que, àquela altura, eu imaginava já existirem numerosos estudos antropológicos sobre o tema. Era chegada a hora de realizar um primeiro levantamento bibliográfico.
Posto que minha remuneração na loja de convites estava diretamente atrelada às vendas, eu tentava converter minha curiosidade antropológica em estratégia comercial. Assim, eu apresentava aos clientes a opção de fazer os convites por e-mail, sem qualquer custo, ou ainda, questionava sobre a possibilidade de escrever bilhetes à mão, sobre folhas de papel quaisquer. O silêncio que sucedia minhas indagações evidenciava um descompasso entre os discursos que apontavam para os convites como itens sem importância e as inúmeras preocupações implicadas na compra destes. Mas se a pergunta costumava surtir um efeito interessante para venda, elas eram realmente inquietantes para a pesquisadora: se a função do convite era simplesmente a de informar a data e a hora do casamento e se os convites acabariam por ser descartados, porque então empregar tamanha energia na escolha desses itens? 8 Uma vez que, em língua portuguesa, a palavra “pais” designa o plural de pai, mas também de pai e mãe, cabe ressaltar que, neste contexto, me refiro ao primeiro caso. 7
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