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Estética Transcultural NA UNIVERSIDADE LATINO-AMERICANA

1 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

Universidade Federal Fluminense REITOR Sidney Luiz de Matos Mello VICE-REITOR Antonio Claudio Lucas da Nóbrega

Eduff – Editora da Universidade Federal Fluminense CONSELHO EDITORIAL Aníbal Francisco Alves Bragança (presidente) Antônio Amaral Serra Carlos Walter Porto-Gonçalves Charles Freitas Pessanha Guilherme Pereira das Neves João Luiz Vieira Laura Cavalcante Padilha Luiz de Gonzaga Gawryszewski Marlice Nazareth Soares de Azevedo Nanci Gonçalves da Nóbrega Roberto Kant de Lima Túlio Batista Franco DIRETOR Aníbal Francisco Alves Bragança

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NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

Copyright © 2015 Dinah Guimaraens Copyright © 2016 Eduff – Editora da Universidade Federal Fluminense Coordenação geral do projeto Capes/Cofecub – Comitê Francês de Avaliação da Cooperação Universitária com o Brasil: Prof. Dinah Guimaraens – Escola de Arquitetura e Urbanismo/Programa de Pós-Graduação em Arquiteura e Urbanismo, Universidade Federal Fluminense

Colaboradores: Guilherme Werlang – Instituto de Artes e Comunicação Social, Universidade Federal Fluminense Zeca Ligiero – Núcleo de Estudos das Performances Afroameríndias, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Marina Vasconcellos de Carvalho – Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Aquitetura e Urbanismo, Universidade Federal Fluminense

Capa, projeto gráfico e diagramação: Marina Vasconcellos de Carvalho

Apoio:

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da editora Direitos desta edição cedidos à Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense Rua Miguel de Frias, 9, anexo/sobreloja - Icaraí - Niterói - RJ CEP 24220-008 - Brasil Tel.: +55 21 2629-5287 www.eduff.uff.br

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Impresso no Brasil, 2016 Foi feito o depósito legal.


APRESENTAÇÃO

“A Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana” HISTÓRICO DO PROJETO CAPES-Cofecub n.752/12

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s linhas de atuação do projeto CAPES-Cofecub n. 752/12 foram idealizadas de modo a fazer da universidade latino-americana um locus para práticas investigativas transculturais. Visam essas linhas desconstruir o procedimento de bloqueio reflexivo e de primitivização das faculdades humanas posto em prática pela pragmática contemporânea. O principal objetivo do projeto é fomentar o intercâmbio entre o Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo/PPGAU da Escola de Arquitetura e Urbanismo/EAU da UFF, o Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas/PPGAC da UNIRIO e a Université Paris 8 – Saint Denis/UNESCO acerca de práticas investigativas transculturais. Atingir tal entendimento, alternativa única à perpetuação das hegemonias culturais, é o objetivo geral de uma análise transcultural que lance mão de múltiplas vozes. A ênfase estética aqui presente coincide com o esforço inicial já feito por uma rede de diferentes universidades latinoamericanas para o estabelecimento de Programas de Pós-Graduação e Institutos Transculturais, sob a inspiração do próprio Poulain, coordenador da equipe francesa deste projeto. Tal proposta vem pois se juntar a projetos inovadores já em curso em países vizinhos ao Brasil, como a Argentina, o Uruguai, o Chile, o Equador, a Venezuela e a Bolívia.

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José Simões de Belmont Pessôa Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense – PPGAU/UFF

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ste livro é resultado da colaboração científica entre o Programa de PósGraduação em Arquitetura e Urbanismo-PPGAU da Universidade Federal Fluminense-UFF, o Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas-PPGAC da UNIRIO e a Universidade Paris 8-Saint Denis. Colaboração esta viabilizada pelo programa de intercâmbio entre o Brasil e a França, CAPES-COFECUB, por meio do projeto “A Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana” iniciado em maio de 2012. Coordenado pelo catedrático de Filosofia da Cultura e das Instituições da UNESCO/Universidade Paris 8-Saint Denis, professor Jacques Poulain e pela professora Dinah Guimaraens do PPGAU/UFF, o projeto atua numa abordagem filosófica, estética e cultural, visando desconstruir o procedimento de bloqueio reflexivo das faculdades humanas que tem sido posto em prática pela pragmática universitária contemporânea. No período de desenvolvimento do projeto, entre maio de 2012 e dezembro de 2015, coube aos corpos acadêmicos das instituições envolvidas – representadas, no lado francês pelos professores Bruno Cany, Irma Medoux, Philippe Tancelin e Plínio Prado Jr., e, no lado brasileiro, pelos professores Dinah Guimaraens, Guilherme Werlang, Zeca Ligiéro, Charles Feitosa e Tiago de Oliveira Pinto – lançar mão de uma análise transcultural feita de múltiplas vozes para se opor à perpetuação de hegemonias culturais. O diálogo transcultural proposto pelo projeto nas áreas de artes visuais, arquitetura, artes cênicas/performance e música conduziu a uma interdisciplinaridade decorrente de um espaço dialógico e intercultural, permitindo o afloramento de realidades autônomas que o filósofo Jacques Poulain conceitua como representando “uma estética transcultural das percepções e das concepções de mundo que possa determinar o horizonte cosmopolita das memórias e das expectativas de todos”. A interdisciplinaridade ficou marcada na realização de dois seminários, o primeiro em maio de 2013 no Museu de Arte Contemporânea de Niterói, intitulado “Museus e Transculturalidade: Novas Práticas Pós-Modernas”, que contou com a participação de agentes indígenas urbanos da Aldeia Maracanã, ao lado de índios Kamayurá, Yawalapiti, Aweti, Guarani e Marubo; o segundo em maio de 2015 na UNIRIO, intitulado “Estética Transcultural: Filosofia, Espaço e Performance”; e na construção de uma oca do Alto Xingu no campus da Praia Vermelha/UFF em novembro/dezembro de 2014, integrando a disciplina “Arquitetura Indígena Bioclimática” ministrada pela professora Dinah Guimaraens. É, então, com enorme satisfação que apresento aos leitores este livro, resultado de uma pertinente colaboração entre instituições de ensino superior no Brasil e na França, esperando que outros projetos surjam no meio universitário por ele inspirados!

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO O desafio da antropologia intercultural para uma estética transcultural Jacques Poulain Tradução: Daniel Mendes Fernandes

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Transculturalidade estética: experimentação pragmática da arte e da arquitetura Dinah Guimaraens 18 Educação e cultura na formação da cidadania Carlos Alberto Ribeiro de Xavier 30 Parte I Práticas transculturais

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Partilha da verdade universitária no campus da Praia Vermelha| UFF: a construção da oca xinguana como protótipo bioclimático Dinah Guimaraens e Marina Vasconcellos de Carvalho Escola xamânica: arte e transculturalidade na Amazônia ocidental Guilherme Werlang

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Instituto Tamoio, povos originários e Aldeia Maracanã Carlos Tukano 60 Antes ocas de palha, hoje teias de concreto Carolina Camargo de Jesus

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Parte II Ensaios: poética e estética Antonin Artaud: o homem-teatro vindo do Alhures Bruno Cany Tradução: Guilherme Werlang

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Museu, poesia e patrimônio imaterial em Alphonsus de Guimaraens Lucas Guimaraens 84 De que corpo se trata no niilismo europeu e no niilismo brasileiro? Charles Feitosa

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A exploração da arte africana primitiva sobre a economia neoliberal transcultural 95 Eyene Mba Tradução: Daniel Mendes Fernandes O surrealismo enquanto poética no mundo moderno Augusto de Guimaraens Cavalcanti 100 Perfomando “Dona Mariana, princesa turca, cabocla curandeira, arara cantadeira Zeca Ligiéro 112 Musicologia e transculturação Tiago de Oliveira Pinto 129 A antropologia intercultural para a transculturalidade de gêneros Irma Julienne Angue Medoux 145 Tradução: Daniel Mendes Fernandes

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Parte III Comunicações

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Um caso em transculturalidade: Brasil e a arte-ethos do continente afroatlântico George Nelson Preston 152 Arte pública: educação em escolas públicas de Nova York Liza Renia Papi 157 A transculturalidade como desafio epistêmico Evandro Vieira Ouriques O museu nacional latino do Smithsonian Luis R. Cancel

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O Museu Nacional do Índio Americano e a transculturalidade Rosane Maria Rocha de Carvalho

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Patrimônio imaterial como museografia Jack Lohman

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Preservando o patrimônio imaterial em casa: primeira nação Huu-ay-aht (Nuu-chah-nulth) Angela Wesley

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MAMIWATA: dança em deslocamento Denise Mancebo Zenicola

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Interpretações Ticuna sobre a iconografia das máscaras rituais Priscila Faulhaber 207 Temas transversais e cultura afro-brasileira e indígena Norma Sueli Rosa Lima

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INTRODUÇÃO – Professor Jacques Poulain Université Paris 8 – Saint Denis Cátedra UNESCO de Filosofia da Cultura e das Instituições

O desafio da antropologia intercultural para uma estética transcultural

Jacques Poulain

Tradução: Daniel Mendes Fernandes O desafio de uma antropologia do diálogo: a configuração das figuras da felicidade

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antropologia do diálogo explorou as origens da arte e da cultura retraçando a dinâmica da comunicação, a qual constitui a base de qualquer experiência. Nascido um ano mais cedo e desprovido de correlações hereditárias com o ambiente, o aborto crônico – que é o homem – vive inicialmente um hiato entre seus aparelhos sensoriais e motores. Não consegue ele se agarrar a um estímulo para ativar um programa motor tal como fazem os animais bem formados e nascidos no tempo certo. Dessa forma, o ser humano teve de se prender a uma linguagem, fazendo o mundo falar, para aí encontrar a felicidade ligada à escuta intrauterina da voz da mãe. O movimento de emissão e recepção dos sons permite que se prenda a realidades e goze delas encontrando o que lhe interessa. No entanto, o uso dos olhos, das mãos e de todos os órgãos de seu corpo só foi possível quando projetou, pelo uso dos olhos, esse movimento de emissão e recepção próprio à linguagem, conferindo às suas percepções visuais um valor igualmente gratificante que confere aos sons que recebe e pelos quais se imagina recebendo a fala do próprio mundo. Essa propriedade do uso dialógico da linguagem foi descoberta pelo linguista W. von Humboldt em 1836, e por ele foi chamada de “prosopopeia”. A antropologia filosófica da linguagem de A. Gehlen mostrou, no século XX, que essa prosopopeia não se restringia à linguagem, mas que também se transferia para o uso de todos os aparelhos sensoriais e motores: a visão, o tato, a manipulação das coisas e a locomoção são vividos como projeção e recepção de sensações que são vividas como gratificações tão significativas quanto os sons, e que podem ser registradas pela memória e, portanto, reproduzidas como tais. Distinta das experiências motoras e perceptivas quotidianas, a experiência da arte encontra sua dinâmica específica na busca sistemática de todas as experiências do mundo, de nós mesmos e dos outros que nos falam gratificando com voz de mãe, isto é, nos respondendo de maneira necessariamente favorável. Descobriu-se esta também, inicialmente, na experiência do sagrado. Porque a experiência de escutar o mundo que fazemos falar não é apenas gratificante: esta nos permite acessar a realidade do mundo e as diversas realidades que ele contém como aquelas que nos gratificam em razão de sua Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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realidade. Portanto, a experiência do diálogo com o mundo também é cognitiva: ela nos permite reconhecêlas como tais, tão gratificantes e satisfatórias quanto, sob o ponto de vista hedônico, é a realidade do mundo. Em sua evolução filogenética, o ser humano se apoiou nessa dupla qualidade de resposta gratificante do sagrado e de reconhecimento desse sagrado como realidade última para se orientar e se descobrir, pouco a pouco, em si mesmo, naquela que ele deseja ser e na qual ele pode gozar de si mesmo ao alcançar sua própria realidade, sua própria realização e, por conseguinte, sua própria felicidade. Assim, a própria especificidade da arte surgiu ao se reconhecer como produtora das figuras da felicidade, sem as quais o ser humano não podia viver e sem as quais não poderia encontrar sentido em sua vida. No entanto, a autonomia dessa experiência se impôs com a rejeição do sagrado e dos mitos religiosos operada pelo Iluminismo, pois esta se manifestou durante a Renascença e, em seguida, na Modernidade como lugar de reconhecimento de sua própria verdade, ou como lugar de verdade do que é o ser humano. No Romantismo alemão descobriu-se que a dinâmica dialógica da arte não era somente a da arte, ou seja, ela determinava também a dinâmica da vida mental e social humana, tanto quanto a dinâmica de sua imaginação. A imaginação produtiva permaneceu sendo um mistério, de tal maneira que foi reduzida a uma qualidade visual ou pictórica. Ao descobrirmos que a imaginação humana é comunicacional ou dialógica, não somente percebemos que a renovação da vida mental não era redutível a esse fluxo de serialização sequencial – tal como parece ser para a consciência que tomou consciência disso –, mas também permitimonos compreender que o diálogo consigo mesmo – que para Platão já era a alma – ditava a lei de renovação da consciência e que sua criação das figuras de felicidade guiava a escolha das formas de vida, nas quais o ser humano pode se reconhecer se reconhecendo que é feliz por se deleitar com uma obra de arte. Esse diálogo consigo mesmo não é puro prazer de si mesmo na invenção de suas formas de vida: o ser humano somente alcança seu destino quando julga que este é realmente, ou não, as formas de vida e felicidade das quais goza ao reconhecer que atendem às suas expectativas de felicidade. Deve ele julgar se são realmente, ou não, essas formas de rearmonização verbal e mental consigo mesmo, com o outro e com o mundo que teve de imaginar que o era para conseguir imaginá-las, dar-lhes existência e permitir através delas, sua própria existência. A criatividade do pensamento e da imaginação não mais pode ser pensada com base no modelo do “gênio”, isto é, de uma natureza inconsciente que imprime suas regras à arte, como afirmava Kant. É esta ativada pelo reconhecimento e/ou julgamento da forma em que vivemos, segundo o qual tal forma de vida não mais nos satisfaz, mas reside em uma posição tal que nos coloca distantes da nossa percepção de mundo e de nossas expectativas: esta não acontece de maneira mágica como um evento que bastaria aguardar da mesma forma que Heidegger aguardava o “último deus”. Depende esta desse sentimento de insatisfação que torna insuportáveis para nós uma ou outra forma de vida, um ou outro mundo, uma ou outra conduta de nós mesmos ou do outro. Depende, ainda do julgamento que distingue, no sentimento de infelicidade, o sentimento de sofrimento, o que produz a insatisfação e o sentimento de não mais poder ser essa forma ou nela se reconhecer. A criatividade do imaginário dialógico com nós mesmos e do diálogo artístico com o mundo necessita do reconhecimento de um julgamento negativo de realidade e de verdade sobre a felicidade que, inicialmente no passado, uma ou outra forma de vida nos havia proporcionado. Essa criatividade ativa a busca pela nova forma de vida, pela nova obra ou pelo novo comportamento que atenda realmente às nossas próprias expectativas ou às do outro e que nos permita, a nós mesmos e ao outro, que nos reconheçamos nessa forma de vida como sendo nossa realidade comum. A dinâmica do julgamento que dá vida à criatividade da criação artística, tal como a da nossa vida mental e social, é o que permite que essa busca por figuras de felicidade – própria à arte e à nossa própria vida – alcance algum lugar. Essa dinâmica é o que constitui a cultura, isto é, o conjunto de atitudes, estados de alma, ações e julgamentos, o que nos possibilita fazer da nossa vida uma cultura que chegue ao seu destino e 12


nos permita acessar o nosso próprio destino, dando-nos a oportunidade de, ao mesmo tempo, identificar as expectativas de respostas favoráveis nas quais nós nos reconheçamos e possamos atender a essas expectativas, seja realizando-as, encarnando-as ou encontrando nelas o nosso destino. Porque esse acordo de julgamento e de felicidade com o mundo, com o outro e com nós mesmos é o nosso destino; destino que faz do acordo dialógico, do acordo de julgamento artístico ou do acordo de cultura uma realidade na qual somente gozamos da felicidade que encontramos nesse acordo, quando nele reconhecemos a nossa própria realidade. Longe de ser uma obra do acaso, somente gozamos dela quando a reconhecemos como sendo a realização presente do esforço de toda a nossa vida passada. O espaço dialógico e intercultural e sua neutralização musealizada A busca por figuras da felicidade se expressa hoje no diálogo intercultural, na experiência de procurar gozar das formas de vida culturais estrangeiras, como se elas fossem também as nossas, e conseguir obter sucesso nesse intento. A antropologia do diálogo nos permite que as reconheçamos aprendendo a discernir as formas culturais de vida e de arte, ausentes na nossa própria cultura e que ainda nos impedem de acessar a nossa própria. Conduz-nos a uma concepção da memória das culturas que revoluciona profundamente nossa relação com as “musas”, e com a memória das figuras da felicidade, artísticas ou culturais, que habitualmente denominamos de “museu”. Porque a função deste último é permitir que nos apropriemos de todas as coisas que, nas culturas do mundo, atende às nossas expectativas e possamos relançá-las aos moldes da imaginação dialógica que age em nós. Faz-nos também, participar de uma estética transcultural das percepções e das concepções do mundo que possa determinar o horizonte cosmopolita das memórias e das expectativas de todos. Hoje, o diálogo intercultural é uma necessidade porque este se impõe como a única maneira de poder superar o que se apresenta como a guerra das culturas. A globalização promovida pelo neoliberalismo não consegue nos fazer reconhecer a cultura econômica do nosso comércio como destino cultural, necessário e suficiente da humanidade. Refuta esta igualmente, o imaginário coletivo e sua busca cultural de sentido na memória das tradições como se estas constituíssem os últimos refúgios de sentido e verdade de cada um. Cada cultura imita, nesse refluxo, a caça globalizada aos monopólios que caracteriza o comércio de direitos, de deveres e de bens no capitalismo avançado, num capitalismo que visa à maximização da fruição dos bens respeitando a liberdade autárquica de cada um. Na caça à verdade, cada cultura afirma o valor e a verdade de sua própria cultura como se as outras nada valessem. Nesse contexto, o diálogo intercultural surge como uma necessidade, mas, com bastante frequência, este se contenta em promover uma busca pela compreensão recíproca das culturas e prescrever o respeito pela cultura do outro como se essa cultura fosse uma pessoa jurídica, em que bastaria reconhecer sua própria existência para reconhecê-la como tal. A partir do momento em que a fala cultural do outro é responsável por uma memória de felicidade e de expectativas de um reconhecimento universal das verdades presentes nessa memória, o respeito de sua fala não pode continuar sendo puramente formal, arbitrário e moral. Estamos aqui empenhados em julgar, queiramos ou não, se essas verdades e felicidades, pelas quais a cultura do outro é responsável, criam condição para nós, como para este, de alcance do nosso destino, isto é, nossa própria humanidade. Tanto a compreensão das culturas quanto a obrigação de respeitá-las relativizam as culturas como patrimônios acidentalmente adquiridos por grupos mais ou menos grandes e poderosos. Tal compreensão as considera como bolhas fechadas em si mesmas que vivem apenas de consenso e rituais tribais, suficientes para proteger os indivíduos contra ataques de outras culturas e outros grupos. Na globalização do comércio de mercadorias e no comércio especulativo de ações da bolsa investidas pelos acionistas nas multinacionais, os quais constituem o horizonte Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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dessas bolhas e desses refúgios culturais, as culturas surgem como experimentações de formas de vida que são confirmadas ou anuladas pelo apoio consensual das comunidades que partilham. São estas, portanto, privadas de suas capacidades de expressar, para todos, o destino cultural universal de todos. Além disso, a compreensão recíproca que visa produzir um diálogo intercultural, unicamente preocupado em superar seus antagonismos, obrigando cada um a respeitá-los formalmente, constitui a pior injustiça à qual essas culturas poderiam ser submetidas, uma vez que delas são retiradas, de antemão, a possibilidade de contituirem uma forma de felicidade e de verdade para todos como uma forma de vida universal. Na verdade, são subtraídas delas mesmas o julgamento ao qual seus portadores aderem, reconhecendo a figura de felicidade e de verdade que é a única que lhes permite ser o que eles julgam dever ser. Essa despotencialização radical das culturas é acompanhada de uma despotencialização da arte e do julgamento estético. A partir da modernidade, o julgamento estético parece revelar a maneira como a criatividade artística se torna uma forma de vida. Esse julgamento oferece um modelo de sensibilização e de realização da razão como faculdade de desejo superior. A arte aí, supostamente, demonstra a figuração do desejo e da felicidade que atrai irresistivelmente para si a identificação dos indivíduos que a produzem. Reconhece-se nela a beleza do fato de que essa figuração antecipa a satisfação que não se pode deixar de desejar obter. A recepção dessa figura, tanto, pelo artista quanto pelos outros espectadores, deve se impor sozinha, sem desvio de conceito, simplesmente porque foi recebida e compreendida de forma gratificante, independentemente da sua atuação na realidade ou na ação. A transformação experimental e pragmática dessa cultura artística reside na maneira pela qual buscamos nos apropriar dessa criatividade, experimentando-a seguindo o modelo da experimentação científica. Como essa transformação pragmática da cultura da arte prolonga pura e simplesmente a transformação que foi desenvolvida pelos tempos modernos, sua neutralização exige a remoção dos limites desse modelo, os quais foram herdados de uma filosofia da consciência. É essa própria experiência de produção e de recepção da figuração artística que é vinculada hoje, como objeto de experiência e apropriação direta dos efeitos dessa experiência, às diferentes transformações pragmáticas da arte, como se verifica através da evolução exemplar da pintura contemporânea, do impressionismo e do cubismo até a arte dita abstrata. Tal transformação pode ser lida como uma adaptação do meio de figuração estética que visa ao prazer estético: a obra de arte é bela, se e somente se, permitir gozar da experiência estética pelo simples fato de que nós a programamos como tal, a percebemos como tal, e temos consciência de percebê-la realmente como tal. De igual maneira, a relação com a felicidade reduzida como felicidade comum, na relação de sua visibilização nas relações de justiça se encontra reduzida na arte do belo, quando neutralizamos seu valor cultural colecionando seus diversos resultados visíveis num museu vazio de todas as musas que lhe davam vida. A relação de visibilização das figuras da felicidade e do seu prazer no julgamento estético é frequentemente reduzida, nos museus, à sua pura recepção visual e aos esforços de compreensão hermenêutica do sentido, do qual seriam todos depositários e o qual seria necessário decodificar sem que se tenha as chaves para essa decodificação. A dinâmica cultural da arte, da pesquisa e da apresentação das figuras de felicidade que norteiam o diálogo de descoberta do mundo, do outro e de si mesmo é pura e simplesmente neutralizada. Os patrimônios culturais surgem, assim, como incomensuráveis culturais: são estes respeitados e preservados como monumentos visíveis de incompreensibilidade para seus visitantes e como monumentos imemoriais, descarregados de sua memória viva. Essa neutralização é derivada da redução do prazer estético àquela da percepção visual ou pictórica e da redução do uso da linguagem em seu uso descritivo e científico. Através dela, todo imaginário é pensado sob o modelo do imaginário visual e pictórico. Como o sentimento de deleite do belo natural ou artístico é reduzido ao de uma surpresa reservada pelo mundo ou pela sensibilidade criadora, seus resulta14


dos são supostamente, desde Kant e sua Crítica do Julgamento, universalizáveis para todos, sem que saibamos porquê. Proporcionam estes uma gratificação estética tão misteriosa quanto o mistério da criatividade artística qualificada de especialidade do “gênio”, tão misteriosa quanto a ocorrência do mundo cujo caráter sublime é reconhecido precisamente como o que está além de todas as nossas expectativas e se revela, portanto, incomensurável em sua grandeza, infinidade e reprodução perpétua. E esta é tão misteriosa quanto aquela que atribuímos ao ser humano como sendo a propriedade que o distingue dos outros seres vivos: sua propriedade de ser pensante. É assim que inventamos um mundo estético separado do que aquele que nos motiva a nele viver e percebê-lo; um mundo separado do movimento pelo qual o fazemos falar por meio de percepções auditivas, visuais, locomotoras, táteis e de manipulação. Damos a esse mundo o horizonte de uma espécie de prosopopeia visual em que reunimos as percepções, as obras culturais, as formas de vida institucionais nos museus como se bastasse pendurá-las à altura dos olhos para evitar ter de compreendê-las, nos compreendermos nelas e julgá-las como sendo,, ou não nossa própria realidade. Imitamos, assim, as ciências humanas que nunca, antes, nos apresentaram tantas formas de vida, mas que são incapazes de nos fazer reconhecer as formas de vida nas quais nós possamos nos reconhecer como nós mesmos, apresentando a nossa verdade, a nossa real humanidade. Mas esse mundo não pode mais ser reduzido à simples felicidade do olho senão no mundo em que vivemos, pois ao suprimirmos do “museu” a musa que deu vida à reunião desses resultados suspensos, suprimimos junto dele a nossa capacidade e a do mundo de falar. Novamente, reduzir o museu ao simples ato de pendurar coisas bonitas à altura dos olhos depende da redução da vida do espírito a uma metáfora da visão, a uma teoria descritiva do que produzimos como estética transcultural. O reconhecimento da dinâmica de diálogo interno tanto na percepção como na ação de criação artística não caberia, portanto, visar à construção de um museu intelectual reduzido a esse museu do olho, à pura e simples descrição da existência do mundo transcultural. O mundo-museu enquanto espaço de uma estética transcultural Somente damos vida aos museus quando os inserimos naquilo que o diálogo intercultural produziu como museu universal: o próprio mundo. O mundo, todos os dias, relança a nossa caça às musas, recorre ao reconhecimento da invenção das figuras de felicidade, incluindo a infelicidade que afeta algumas culturas e nos faz sofrer com sua falta. O mundo arranca essas figuras de felicidade do puro e simples deleite do belo, reinserindo-as na percepção e na antecipação imaginativa das figuras da humanidade, nas quais a pressão de uma infelicidade universal nos incita a nos reconhecermos. A emergência da alterglobalização, para a qual tanto contribuíram os encontros de Porto Alegre, é indissociável da crítica ao neoliberalismo feita pelos melhores economistas tal como Joseph Stiglitz, e da formação dos Brics, que reuniram recentemente os países emergentes em Durban: esses fenômenos testemunham o reinvestimento das expectativas de felicidade comum numa justiça social cosmopolita. O mundo, como lugar de interação das figuras de felicidade que este obriga a inventar e realizar, se constrói, assim, como espaço de uma estética transcultural. Não é necessário passar para o campo da geopolítica liberal ou antiliberal para notar a velocidade com que a televisão propaga as infelicidades ligadas ao desprezo às mulheres verificadas em algumas culturas. A dependência das mulheres em relação aos homens nos países mulçumanos, nos países que instituíram uma poligamia que as humilha ou ainda nos países em que se multiplicam os estupros, não somente despertou o apoio daqueles que há séculos lutam pela igualdade cívica e civil das mulheres e dos homens. Incentivou, de fato, que essas mulheres se juntassem em associações multinacionais para a defesa de seus Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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direitos, bem como também as obrigou a reconhecer os fundamentos antropológicos dessa igualdade ao estabelecer a paridade de uso do julgamento confiado aos dois sexos, em razão do uso comum da linguagem, em quaisquer que sejam seus idiomas. O reconhecimento do que inspira essas descobertas é tão importante quanto a que inspira o tratamento dos conflitos civilizacionais entre a Europa e as Américas. A publicação dos 34 volumes da ética que reuniram a colaboração de intelectuais e universitários espanhóis, brasileiros, sul-americanos e mexicanos é, nesse sentido, exemplar, na medida em que rompe as correntes do passado de escravidão dos negros e dos homicídios de índios sem contestar suas consequências ainda em vigor, mas transforma a análise do passado em exigências de justiça e felicidade social, e em motivações de emancipação intelectual para o futuro. Essas exigências de emancipação do julgamento em relação ao passado não nos isenta de promover as exigências impostas pelo tempo presente. Não é menos urgente fazer esquecer, de uma vez por todas, as falsas figuras da felicidade que invadiram o mundo sob a aparência das promessas de salvação populistas, nacional-socialistas ou soviéticas no século XX, ou sob a aparência da economia de mercado liberal ou da especulação gangrenosa do comércio de capitais. Há muito que a opinião pública internacional manifesta recusa categórica em relação à injustiça perpetrada por essas falsas promessas, mas somos forçados a reconhecer que as prescrições morais que acompanham essa recusa revelam-se incapazes de conter os efeitos. A utilização dos museus de estilo clássico foi invocada, por exemplo, em Berlim, no Museu do Holocausto ou em Caen, no Memorial da Segunda Guerra Mundial para superar essas catástrofes, mas há muito tempo esses monumentos de memória revelaram-se insuficientes para impedirem a recaída nos excessos da barbárie que denunciam. A percepção generalizada das infelicidades presentes exige que a antropologia intercultural nos dê acesso a esse esquecimento necessário, retraçando a parasitagem das fontes de comunicação pelos mercados que as fez surgir como únicas vias possíveis do progresso da humanidade rumo ao seu destino. A confiança na equidade inerente ao mercado à qual convidava Adam Smith, vinha, como bem se sabe, da dinâmica da comunicação que exige que os interlocutores respeitem, em suas trocas, as relações de reciprocidade que vivenciam no diálogo em seus acordos e desacordos. A parasitagem dessas relações é concebida de forma muito incompleta quando a alegada justiça inerente ao mercado é feita sob “a mão invisível” do mercado. Deriva esta de um engodo mais profundo. Como fenômeno de secularização da salvação, herda, tal como revelado por Max Weber, as expectativas de retribuição do sagrado, análogas às que inspiravam os candidatos protestantes à predestinação para a salvação. Porém, ainda mais profundamente, esse engodo é depositário das chamadas e respostas de felicidade inerentes ao uso das emissões de sons e suas recepções, na medida em que a emissão-recepção de sons gratifica infalivelmente a si mesma, em si mesma, pois aquele que o emite – a criança que balbucia – não pode distinguir o som ouvido do som emitido quando o projeta para o mundo e o consome num mesmo movimento. É essa a dinâmica de uma chamada de felicidade que gratifica simultânea e infalivelmente a si mesma, que se projeta na relação das trocas do mercado para fazer da experiência uma figura de felicidade que satisfaz, infalivelmente, a si mesma de forma imparcial. É como relação indefectível de encarnação da justiça que essa relação faz gozar a si mesma como relação que somente se incentiva a se tornar mais intensa e garantida ao reinvestir os lucros no capital da empresa. Essa relação de justiça na troca do mercado não é simplesmente análoga à relação de diálogo concebida sob o modelo desta; esta é a relação do próprio diálogo, o qual supostamente se aplica infalivelmente ao comércio de riquezas e, em seguida, ao comércio de ações, à troca das operações do trabalho contra sua retribuição salarial, da mesma maneira pela qual já se aplica ao comércio econômico das riquezas. É como gratificação comunicacional que esta não tem mais a necessidade de passar pelos meandros de um conceito senão o julgamento estético kantiano, quer lembre o deleite estético kantiano, quer inspire também a experimentação contemporânea da arte, tal como inspira a experimentação pragmática do consenso democrático. É como tal que ele próprio 16


se experimenta na especulação financeira sobre as ações das empresas, nas especulações sobre o comércio bancário dos capitais ou bem como nesta instância que aborda as moedas nacionais dos Estados-nações ou naquela que prolifera em ações imobiliárias. Garantida por essa consciência de justificabilidade inerente aessa relação de comunicação dos indivíduos e dos grupos com o mundo social, essa estetização econômica do mundo social está, antes de tudo, acima das leis. Quer seja bem-sucedida ou malsucedida, ela é, antes de tudo, gratificada e feliz, uma vez que é apenas uma prova da liberdade autárquica por si mesma, que se dedica assim a gozar infalivelmente de si mesma. Portanto, não é magicamente que nós nos livramos do “horror econômico”, assim chamado por Viviane Forrester, contentando-se em denunciá-lo ou descrever sua lógica. É preciso, ainda, conseguir introduzir no seu desenvolvimento o que ele exclui de antemão, a intervenção de um julgamento de objetividade. Não tem este, somente, de descrever os fatos do empobrecimento produzido, por exemplo, pelo investimento de capital nos países de terceiro mundo e sua retirada arbitrária em boa hora, seguido de uma cura de estabilização econômica imposta pelo Banco Mundial e pelo FMI com a ajuda da aplicação da receita do Consenso de Washington, com o lema “liberalização da economia, seguida de privatização das empresas públicas, seguida de austeridade imposta para reembolsar as dívidas”. É preciso, também, poder inventar e julgar as intervenções políticas, econômicas e industriais necessárias nos diferentes jogos do mercado para trazê-los de volta à razão, quer dizer, ao exercício de um julgamento objetivo de equidade e a um exercício de julgamento partilhado por todos os parceiros sociais implicados, também analisado por Joseph Stiglitz em seu ensaio Globalização: como dar certo. Apenas se conseguirmos fazer funcionar o julgamento feito por todos sobre a estetização econômica do mundo é que teremos uma chance de mandar o neoliberalismo para o calabouço de um museu capaz de tornar visíveis suas extravagâncias passadas e torná-lo esquecido.

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Transculturalidade estética: experimentação pragmática da arte e da arquitetura

Dinah Guimaraens Professora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense, Coordenadora CAPES-Cofecub n. 752/12

A

universidade se universaliza necessariamente dentro de um horizonte de experimentação do homem pela comunicação, ao se reconhecer como forma dada de toda comunicação [...] de seu ser teórico através de um processo de experimentação dela mesma que é submetido a este julgamento de verdade. (POULAIN, 1998) Em eventos realizados, entre 2012 e 2015, no bojo do projeto de pesquisa “A Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana”, na Universidade de Paris 8-Saint-Denis, na Universidade Federal Fluminense e na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO, integrados pelos professores Dinah Guimaraens, Guilherme Werlang, Charles Feitosa, Zeca Ligiéro e Tiago de Oliveira Pinto, do lado brasileiro, e Jacques Poulain, Bruno Cany, Irma Medoux, Plínio Prado Junior e Phillipe Tancelin, do lado francês, tivemos a oportunidade de discutir questões sobre a reformulação ético-política do pensamento da imagem, passando à experimentação pragmática da arte e da estética expressa em uma filosofia transcultural conceituada por Jacques Poulain. A tese apresentada pelo professor Bruno Cany, durante estes eventos, foi que a modernidade do pensamento-artista é o pensamento visual como crítica à sociedade do espetáculo, totalmente comunicacional e consumista. A imagem poética tem a vantagem de não ser prisioneira da esfera técnica, e o pensamento-artista não reduz o pensamento ao conceito e à lógica, na medida em que este emprega a polissemia, os símbolos e as narrativas para criar a linguagem artística. Enfatiza Cany a relevância da pintura metafísica de Giorgio de Chirico, ao destacar a reversão da música à imagem. A pintura metafísica é, então, contemporânea da pintura pura ao recusar os limites da metáfora musical. O pensamento visual, que vê além da presença do visível, apreende a presença ausente do invisível. E ao articular o ver-tocar-à-distância à palavra-matéria-sonora, a imagem poética literária detém um considerável poder aglomerante de objetivação para criar o “teatro da mente”. A poesia é um universal indeterminado, afirma ainda Bruno Cany. O que é comum tanto para o artista-filósofo clássico (Platão e Nietzsche) quanto para o filósofo-artista moderno (De Chirico e Artaud) é o teatro da mente do pensa18


mento visual através da etnopoética, além dessas criações (De Chirico, Artaud) que se verificam constituir um universal antropológico. Pensar a poesia no nível mundial e no contexto de uma antropologia filosófica comporta, portanto, a criação poética em sua finalidade ético-política. Poética ético-política filosófica em música, literatura e teatro Em sua crítica literária, Charles Feitosa estabelece um diálogo filosófico sobre a transculturalidade da cultura brasileira, tendo como inspiração a música dos Titãs para se referir às supostas formas brasileiras de niilismo. Música e literatura são vasos comunicantes na cultura brasileira niilista, como revelado no poema “Não-Nada”, que foi inspirado pelo “Nonada” inventado pelo escritor Guimarães Rosa. O termo “Nonada”, que abre o Grande Sertão: Veredas (Diadorim, na versão francesa), é de extrema importância para o significado do romance, e se tornou apenas “nada” na tradução inglesa. Curt Meyer Clason, famoso tradutor da edição alemã, considera esse termo intraduzível, um dos “oito mil neologismos de Rosa” e, assim, o transformou em quatro palavras, em uma frase principal composta por quatro sílabas, para tentar manter o impacto: “Hat sich auf nichts”, onde “Nonada” é o que não importa e que, literalmente, não tem nada nele. Feitosa não está sugerindo, em seu texto, que Rosa é um niilista, pelo contrário, emprega a apropriação de um de seus “brasileirismos” como uma espécie de emblema para a pergunta: existe um niilismo à brasileira? Na apresentação do livro de Phillipe Tancelin Quando o Caminho Retorna à Luta Poesia e Filosofia (2005), Jacques Poulain pretende remeter a palavra às suas fontes: uma poética filosófica de resistência ao falar sobre o Centro Internacional de Criação de Espaços Poéticos (CICEP), coordenado pelo próprio Tancelin e que trata do encontro da poesia com as outras artes. Poulain sublinha ali os aforismos poéticos e filosóficos que capturam o espírito intransigente das linhas de resistência desenhadas com ardor, mas com paciência, ao longo de 35 anos de experimentação poética e teatral, engendradas juntamente com Geneviève Clancy. De forma a alcançar uma visão filosófica sobre a única realidade que o homem pode viver no contexto deste mundo – no qual a intolerância, sob a denominação de liberalismo, imposta pela lei da selva no mundo político produz seu oposto: a monopolização e a privatização frenética sob a denominação enganosa de globalização –, Jacques Poulain opõe o hedonismo poético e a alegria do consumo da verdade poética, anexando-os ao exercício do reconhecimento da crítica próprio do julgamento filosófico. O CICEP representa, então, para Poulain, uma utopia política que só expõe a dinâmica do discurso que anima na medida em que anima todo o mundo na dinâmica do diálogo de compartilhamento da verdade. Aos aforismos poéticos de Tancelin junta este reflexões filosóficas sobre as experimentações da pragmática artística através das quais buscou, na verdade, restaurar em cada um a capacidade de perceber esta realidade como realidade insuperável. Para se obter tal resultado, devem-se unir os mais fortes prazeres poéticos numa crítica implacável, removendo o transe autista e substituindo seu próprio transe pelo transe da verdade poética. Jacques Poulain destaca que o transe autista da pragmática artística cria performances de “autismo chamânico” como expressão do fracasso da democracia liberal, o que, portanto, faz com que cada autista possa se dedicar a negar, para si mesmo, o poder criativo e crítico de seu próprio discurso em seu próprio pensamento, não desfrutando de si mesmo a não ser nessa mesma negação. A transculturalidade estética proposta pelo CICEP com a reunião da poesia às outras artes, simboliza uma “estética do coletivo” com a criação coletiva a partir dos anos 1970 que ilustra este “estar junto” que representa o seu fruto. A imagem deve nos fazer refletir, finalmente, sobre os desejos íntimos daquilo que Brecht chamou de Teatro, remetendo a uma nova compreensão e ao desejo de apreensão sensível do significado de “viver junto dos homens”, como sugere Poulain. 19 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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Zeca Ligiéro foi o criador, em 1998, do NEPAA (Núcleo de Estudos das Performances Afroameríndias) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO, com o objetivo principal de entender por que as mudanças na vida social e cultural na América Latina levaram alguns países a buscar identidades nativas e africanas, embora seus métodos de ensino não houvessem seguido tal tendência nos currículos, mantendo, ao contrário, uma base essencialmente eurocêntrica. O objetivo do NEPAA, nos últimos 15 anos, consiste, portanto, no processo de ensino e aprendizagem do teatro com a análise da história das escolas de teatro no Brasil, tendo como base a Escola de Arte Dramática (Escola de Teatro) da UNIRIO. Como educador, a pergunta feita por Ligiéro é esta: “Por que, apesar do conhecimento brasileiro haver sido estabelecido em torno de três grupos étnicos: índios, europeus e africanos, as escolas (e as universidades) foram criadas simplesmente tomando como base uma dessas três tradições?” Tal conhecimento se adequa a nossa tradição, e muda através da história do Brasil com as lutas de artistas e professores quanto às crescentes exigências do poder público. Ligiéro acredita que um bom exemplo dessas mudanças educativoculturais reside na luta entre os métodos tradicionais do teatro burguês e outros tipos de teatro experimental, em circunstâncias idênticas à significação dos restos de pequenas tradições africanas e indígenas americanas. A lógica eurocêntrica partilhada pelo sistema escolar brasileiro vem sendo, então, criticada pelo NEPAA por representar um modelo das pretensões hegemônicas estatais brasileiras no domínio cultural e educacional. A propósito, três formas de erro escolástico foram destacadas por Bourdieu (1997), os quais criam uma escola autômata como produto da constituição (e do próprio esquecimento) das restrições do meio acadêmico com sua finalidade de conhecimento, em que a ciência estabelece o fim da ética (da lei e da política) e da estética enquanto áreas de atuação a serem incorporadas aos campos de dissociação da filosofia. Discorre Bourdieu, ainda, sobre o etnocentrismo escolástico que anula a especificidade da lógica prática, quando se deve reenviá-la de volta à lógica escolástica na qual a alteridade radical a não existência e o não valor do bárbaro como vulgar – como salientado na noção kantiana de “gosto bárbaro”–, acabam conduzindo a um “bárbaro interior”. A lógica da globalização parece se afirmar opondo-se a um “gosto bárbaro”, a partir de um consenso de igualdade cultural universal. Na realidade, a desigualdade cosmopolita entre as culturas, orquestrada pela globalização, depende da reivindicação hegemônica à verdade. Jacques Poulain destaca a primitivização das diversas culturas, na qual a identificação com o consenso cultural reproduz a identificação dinâmica das sociedades arcaicas à palavra dos deuses. A maior injustiça social gerada pela globalização parece produzir o maior bem, a emancipação intelectual e cultural forçada de povos e indivíduos no que diz respeito às suas condições materiais de existência e sua disposição para o consumo. O resultado deste aparente consenso de igualdade da globalização cultural representa a autofalsificação da antropologia liberal na globalização, simbolizando a incapacidade das democracias, nas chamadas culturas avançadas, de justificar a fundação de seu poder sociopolítico sobre um conhecimento antropológico universalizado (POULAIN, 2001). Lógica da globalização e abordagem transcultural universitária Na sequência da reivindicação ilegítima de consenso cultural sublinhada por Poulain contra os afro-brasileiros e os nativos americanos, Zeca Ligiéro acrescenta críticas à hegemonia europeia nos conteúdos dos currículos da universidade brasileira. Se esta experimentação humana cognitiva no diálogo intercultural pode muito bem acompanhar a experimentação sociopolítica defendida pela generalização do capitalismo, a experiência de consenso cultural não pode magicamente superar a guerra cultural desencadeada pela consciência da injustiça econômica e social (POULAIN, in op. cit. p. 20). Desta forma, a identidade europeia no mercado 20


mundial, as multinacionais e as democracias deliberativas simplesmente reproduzem a postulação republicana de igualdade civil e são, também, incapazes de estabelecer uma igualdade transcultural de julgamento na república cosmopolita do diálogo. Se uma abordagem transcultural universitária opõe ao comparativismo com a cultura europeia a necessidade de uma transdisciplinaridade acadêmica, Tiago de Oliveira Pinto mostra que a audição representou o último dos cinco sentidos, em grau de importância, para os habitantes europeus que queriam experimentar algo do universo sensorial tropical. Quando voltaram para seus países de origem, os viajantes da Europa nos trópicos trouxeram com eles curiosos objetos, imagens e desenhos, – e, mais tarde, fotografias – de regiões distantes, ao lado de relatos de locais fantásticos, cheiros, gostos e até mesmo equipamentos que ofereciam novas experiências táteis, mas nunca seus respectivos sons. Em vez disso, para se concretizar de fato uma invenção tecnológica era necessário preservar elementos do universo “ex-acústico”, como no caso do fonógrafo de Edison, de 1877. A tecnologia europeia foi desenvolvida até o ponto de poder dar conta da gravação contemporânea dos componentes musicais de sons dos índios norte-americanos. A intervenção de Guilherme Werlang fala sobre os indígenas amazônicos Marubo, com um breve relato de Ivãpa (Vicente) sobre o mito-canto Saiti-Mokanawa Wenía, – literalmente “O surgimento dos povos tóxico-amargos”–, revelando que foi este ritual feito sem o contexto de um festival real, mas sim com a intenção deliberada de salvá-lo. O pesquisador sentou-se em uma tapo-cabana perto da shovo-maloca, na comunidade Marubo de Vida Nova, no Alto Rio Ituí, no Vale do Rio Javari, na Amazônia ocidental, em um quente meio-dia de abril de 1998. A conclusão da pesquisa é que o tom e a duração são códigos homólogos que dividem as células musicais em frases e aquelas frases formam lacunas nas melodias e ritmos sucessivos no tempo, estabelecendo espacialmente estruturas concêntricas e diádicas no caso de Mokanawa Wenía. Embora nem todos Saiti sejam estruturas diádicas, essa função de estruturação das características de tonalidade e a duração de todas as canções-mitos, do mesmo modo que as palavras que correspondem a essas notas musicais e aos intervalos nos quais pulsam as frases, são sempre estruturadas em células compostas por versos de linhas verbais em sucessão, através do qual a história mítica é contada poeticamente, com o uso de rimas e estrofes paralelas. Sobre o significado simbólico e filosófico da poesia Saiti, o índio filósofo-artista-sul-americano não é meramente um criador de conceitos, mas, sobretudo o criador da linguagem que traz à tona este pensamento mítico, bem como o criador da forma singular pela qual o pensamento mítico organiza as palavras. Bruno Cany, no prefácio do livro Que Pintura?, de Lyotard (2008), afirma que a literatura constitui o topo desta filosofia da solidão que, desde Kierkegaard e Nietzsche, foi capaz de traçar os trilhos da arte literária. A perspectiva musical, apresentada por Cany na pintura, é transcultural e simboliza “o amor de solilóquio do pensamento e da expressão, este desejo infinito da discussão com outras pessoas que Lyotard nomeou Le Différend (CANY, in op. cit., p. 7) e que aparece no mito-canto Marubo. Como o mito-canto Mokanawa Wenía que é polifônico, o pensamento do artista não se refugia na abstração conceitual, mas sim assume seu fraseado – sua sinuosidade sintática – e seu dispositivo dialógico duplo: os personagens interagem uns com os outros e o próprio leitor pode, então, interagir com o autor. Na arte da polifonia, como na arte da fuga do pensamento, se junta o domínio da polifonia e do contraponto, como salientou Cany. Na polifonia, seja com duas ou mais vozes, os papéis de entrevistador e entrevistado se modificam, deslizam e se invertem tantas vezes quantos sejam necessários para a implantação da composição. Já no contraponto, na medida em que os papéis dialéticos desaparecem, o questionador é menos propulsor que questionador de suas próprias questões, em contraponto aos padrões do respondente (CANY, in op. cit., p. 7). Heidegger considerava a linguagem como casa do ser e o Dasein (ser aí) como um pastor do ser. Pretendia ele estabelecer uma estrutura autocompreensível e pré-compreensível do Dasein, a partir da qual este ser aí se identifica com sua verdade de enunciação e de ser pensante. A comunicação per21 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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mite reconhecer uma realidade comum e uma verdade do sujeito da enunciação que representam também aquelas de seu ouvinte. Essa natureza comum do diálogo que os interlocutores assumem no diálogo com eles mesmos e no diálogo com os outros constitui a própria hermenêutica filosófica. A linguagem responde a uma utilização comunicacional, na medida em que aumenta a verdade como fenomenologia da comunicação e que representa a conversa livre, a qual é a projeção da força transcendental do diálogo no mundo e na vida social. Esta força transcendental é aquela que Kant esperava da demonstração filosófica. A sabedoria pragmática de Richard Rorty instituiu uma antropologia da comunicação como lugar de solidariedade para estabelecer que a verdade que emerge do debate livre representa tanto a solidariedade quanto a norma imanente à prática social da comunicação. A filosofia deve, assim, abandonar o mito da verdade que emerge do confronto de duas esferas do conhecimento – a ordem do discurso e a ordem dos fatos – para alcançar uma concepção interdiscursiva e dialógica (POULAIN e MEDOUX, 2012). Se o personagem dialógico pós-moderno não é solipsista, sua lógica não é a da dialética, mas aquela da multiplicidade, porque a pluralidade pronominalizada do personagem contemporâneo é aquela de um pensamento que dialoga consigo mesmo (CANY, 2008, p. 8). Logrando talvez inspirar uma reflexão crítica sobre o Brasil atual, Medoux (2011) reflete sobre o ressurgimento do pensamento crítico na África pósmoderna, com destaque para as questões de gênero entre homens e mulheres, em que tudo se passa como se os sintomas de falibilidade do modernismo que afetam a África deveriam ser lidos como um abandono da razão. Na verdade, a diferenciação entre as tradições africanas e o fracasso de sua adaptação à modernidade, denominada modernização, foi inspirada pelas ciências humanas neoliberais que pregaram uma paridade civil e cívica de gênero e acabaram por estabelecer um processo de diáspora interna que pode ser lido como uma nova apartheid entre homens e mulheres na África. Os problemas de corrupção de seus líderes, o combate e a proliferação do etnocídio, a fome e a AIDS tribal são paralelos à especulação financeira que a Europa enfrenta, do mesmo modo que a América do Norte e a América do Sul acabam produzindo pobres e excluídos nos chamados países ricos. Esta divisão entre as elites e as massas acompanha os efeitos da globalização econômica, a qual é conduzida como um experimento neoliberal contemporâneo do ser humano (POULAIN, 1998). Como Lyotard sugeriu, o homem pós-moderno deveria ter um novo vocabulário para recontar, em termos históricos, a história do mundo, abandonando uma perspectiva narrativa pragmática que legitimou uma história universal e que acabou por aniquilar as diferenças culturais, promovendo em seu lugar um sujeito moderno cínico. Inspirando-se em Lyotard, pode-se falar de pequenas histórias de afrobrasileiros e americanos nativos no Brasil e refletir sobre a África como um modelo político colonial semelhante e um espelho social contemporâneo. Na África, como no Brasil, os grupos locais são negados pelos modos de legitimação das culturas particulares que pretendem conduzir as comunidades “selvagens” a se transformarem em uma sociedade de cidadãos. O indígena surge, então, como o nãosujeito da era colonial que designa o “autóctone” como qualquer coisa que possa ser aceita na sociedade africana (MBEMBE, 1988). O princípio autoritário impresso hoje pelo Estado em sua empresa de modernização da sociedade africana gera ações e formas de conhecimento, a fim de se fazer representar como titular do monopólio da verdade (FOGOU, 2011). A resposta adequada da África pós-moderna reside em estabelecer um diálogo crítico com as comunidades não africanas compostas por europeus, americanos ou habitantes do Oriente Médio e do Extremo Oriente. É através da experiência da cegueira, da instrumentalização e da manipulação do alegado consenso democrático que os colonos partilham sobre a modernidade que sua própria objetividade será garantida. Neste diálogo crítico, resta aos universitários analisar as comunidades da diáspora na América do Norte e na América do Sul sem cair na impotência e em certa consciência trágica de sua decadência, nem se sentirem incapazes de nada nelas poder alterar. Tanto no Brasil quanto na África pode-se, finalmente,abandonar, em 22


uma perspectiva contemporânea, formas obsoletas de pensar a democracia e o progresso como uma falha do destino (MEDOUX, 2011). Cultura da forma e estéticas de percepção da imagem e do ser A experimentação transcultural se dá através da relação entre a imagem e o ser enquanto estrutura social no espaço-tempo, definindo diferentes práticas artísticas como arquitetura, artes visuais, pintura, escultura, literatura, música, dança e teatro/performance. Dinah Guimaraens trata da especificidade da arquitetura baseada na imagética, devendo-se conceituar suas formulações teóricas (apresentações orais) em termos de suas configurações espaciais (expressões plásticas ou visuais) para pensar o objeto da arquitetura como um todo e sua apreciação na dimensão artística. A concepção do projeto arquitetônico se refere a uma atividade na qual a notação gráfica aparece como um modo de discurso, ou seja, o discurso de um estilo poético que simboliza um dos quatro níveis de precisão propostos por Aristóteles: poética, retórica, dialética e analítica. Caracteriza-se tal discurso poético como sendo parte da imagem em que o gosto de hábitos convencionais se afirma como forma de ser que deve ser aceita como verdadeira temporariamente, ocasionando desta maneira a suspensão da descrença sobre a realidade imagética. A arquitetura de um Museu Vivo implantada como protótipo bioclimático no campus da Praia Vermelha/UFF em novembro/dezembro de 2014 é, então, experimentada em sua dimensão estética e construída em sua dimensão funcional e tecnológica. Vista como um todo, a arquitetura é um ambiente no qual as relações sociais se tornam possíveis e se espacializam e o pensamento visual adota ali conceitos de uma imaginação interativa e de uma concepção figural para reiterar sua rejeição a qualquer dicotomia entre a concepção do projeto e a gravação da imagem figurativa. Em outras palavras, a notação gráfica empregada para desenhar diagramas e croquis é entendida como sendo fundamental para a concepção do projeto (ARNHEIM, 1995). O projeto do Museu Vivo almeja alcançar uma lógica dialógica ao mesclar técnicas construtivas tradicionais artesanais e conceitos projetuais digitais, estabelecendo uma prática colaborativa entre indígenas Guarani, do Alto Xingu (Kamayurá, Aweti e Yawalapiti) e da Aldeia Maracanã/RJ com o corpo docente, técnico e discente da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense. Da mesma forma, uma maloca em estilo indígena tradicional, contando com as devidas adaptações para o aperfeiçoamento do ensino médio, abriga hoje a Escola Transcultural SHAKO MAI no Alto Javari, Amazonas. Tendo sido construída entre 2013 e 2015, em um local de fácil acesso às treze comunidades Marubo do Rio Ituí, na Aldeia de Vida Nova, que dispõe também de uma pequena pista de pouso, esta escola foi proposta por Guilherme Werlang visando fortalecer o conhecimento cultural indígena, de forma a permitir-lhe vigorar em contextos urbanos. Tendo como intenção capacitar os povos indígenas a representarem a si mesmos, mesmo após deixarem a floresta, o projeto assume que a possibilidade de prosseguir nos estudos e o acesso à universidade representam um apoio eficiente para a autossustentabilidade indígena, pois assim representantes dos seus interesses receberão formação educacional adequada. Presume-se que a transculturalidade estética inclua desde propostas de experimentações universitárias como estas até um diálogo entre os campos artísticos. Jacques Poulain fala sobre a existência de uma cultura da forma nas artes visuais e estéticas de percepção, ao interpretar a famosa frase de Leonardo da Vinci: “Nós não pintamos com a mão, mas com a cabeça” (POULAIN, 2002, p. 7), no prefácio do livro de Adolf Hildebrand. Hildebrand é um teórico de arte e escultor alemão que ilustra a teoria filosófica de Poulain (2001) sobre a dinâmica da comunicação e a harmonização do som, com base na ideia do nascimento da psicologia da forma e do renascimento da antropologia herderiana da linguagem. A antropobiologia de 23 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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A. Gehlen e F. Kainz mostra que a dinâmica da recusa em se deixar falar estabelece as formas denominadas de impressionistas, as quais são criticadas por Hildebrand. Será que tais formas impressionistas poderiam chegar, em caso extremo, a destruir a faculdade estética da percepção e, desta forma, toda faculdade criadora das artes plásticas no século XX, em um “horizonte de neutralização generalizada da psique, como gênese da neutralização da criatividade pictórica e estética”? (POULAIN, 2002, p. 21). A transição do mundo real, nas artes visuais, decorre do papel fundamental desempenhado pela atividade criadora do olho como órgão que estabelece um espaço comum para a arquitetura, a escultura e a pintura artística. O essencial entre as três artes da arquitetura, escultura e pintura encontra-se no elemento que Hildebrand chama de impressões “arquitetônicas” e que representa a confluência da verticalidade, da horizontalidade e da profundidade como lei geral que constitui o espaço de composição. Sobre a percepção visual, logra-se estabelecer uma conexão com o mundo para responder à pergunta: o que é (re)apresentado pela imagem (real ou imaginária)? (CANY, 2008, p. 47-48). A resposta clássica é que o plano da consciência gráfica é que formaliza e a resposta tradicional afirma que é o plano do inconsciente que se materializa (BACHELARD, 1979), enquanto a resposta filosófica diz que é o nível de consciência abstrata que conceitua. A conclusão de Cany é que é a visão que pensa, ou o pensamento que vê e pode, assim, enxergar para além da presença do visível. A imagem poética é a palavra como imagem do assombro invisível (CANY, in op. cit., p. 49). Se o cinema iniciou uma revolução antropológica e civilizacional, a imagem poética tem a vantagem de não estar presa na esfera técnica. Atualmente nos encontramos em uma inevitável encruzilhada, na qual a máquina é tratada como um anátema a uma situação de desumanidade e de ruptura com qualquer tipo de projeto ético. A reação à idade maquínica de maneira a recomeçar novamente, não apenas a partir de uma territorialidade primitiva ou de um modo de pensamento “animista”, somente torna-se posível se consideramos que a interface maquínica não existe enquanto eliminação da alma (anima), humana ou animal, mas sob uma ordem de protossubjetividade que permite que se imprima uma função de coerência na máquina, tanto em relação a ela mesma quanto em uma relação de alteridade com o ser humano (GUATTARI, 1993). Se nosso horizonte ético-político não é outro que a crítica da sociedade do espetáculo, do todo comunicativo e consumista (CANY, 2012) pode-se, então, detectar um viés ético e político na representação do espaço-cinema e das artes visuais, em que as imagens neossequenciais assumem tanto a forma de imagens estáticas como a de imagens em movimento (desenhos, fotografias, stills de filmes, pinturas de pop arte, hiperrealismo de um lado, e imagens em movimento e televisão de outro). A questão aqui é: “há tantos estatutos de imagem quanto proliferam as imagens no mercado?” Daí a dificuldade do discurso crítico se basear apenas em obras-primas da arte, com seus valores universais que podem representar uma espécie de evolucionismo pictórico (SCHNEITER, 1981, p. 3). Arquitetura incomensurável e neoecletismo pós-moderno A arquitetura moderna de Oscar Niemeyer incorpora posturas barrocas ao funcionalismo de Le Corbusier. A presença de uma corrente de influência barroca lusobrasileira na obra de Niemeyer é caracterizada pelo uso de elementos de linhas curvas e de forma livre (UNDERWOOD, 1992), tal como ocorre com a colunata do Palácio da Alvorada (1956-1958), em Brasília. Estas colunas foram inspiradas em redes estendidas, ou em velas de barcos, e se tornaram ícones do poder político federal, tendo seus elementos construtivos caído no gosto popular e sido copiados em fôrmas de gesso, dispostos maciçamente como decoração nas fachadas das casas das classes trabalhadoras em todo o país. 24


Outros elementos absorvidos das obras estéticas e funcionais de Le Corbusier por Niemeyer foram o telhado plano e o telhado “borboleta” (teto em “v”, com uma calha central, onde a água da chuva é drenada), derivadas da estética das máquinas-de-morar modernistas (GUIMARAENS & CAVALCANTI, 2006). O pós-modernismo foi definido como uma continuidade / ruptura com a modernidade (Jameson, 2004). Baudelaire (2010) fala da transitoriedade do mundo moderno com foco no papel de espectador, enquanto Marshall Berman (1986) define o ser moderno como pertencendo a um ambiente de aventura, poder, crescimento, alegria, autotransformação e transformação das coisas ao redor, mas que ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos e tudo o que somos. O arquiteto pós-moderno voltou a viver um novo ecletismo típico do século XIX, com as correntes de retorno ao historicismo que revivem o passado e olham para trás para zombar da alta tecnologia. Este é o esteticismo extremo da desconstrução como tentativa de dar autonomia ao repertório moderno, com a desmaterialização da arquitetura formal. Tal neoecletismo pode ser um prenúncio de um novo discurso que inclui a arquitetura em toda a sua complexidade, liberando seu apego estético e representando, então, outra grande narrativa, como aquela do movimento moderno. Constituiria então o moderno – e, portanto, também o pós-moderno –, uma ruptura com todos os elementos estéticos acima apontados? A consciência contemporânea pode se juntar à grande aventura da nova tradição moderna, apagando as barreiras entre os últimos motivos estéticos e não estéticos. A questão aqui é se a produção artística pode voltar sua transmissão para uma atividade estética desinteressada, ao contrário da vanguarda modernista inventada pelos surrealistas, a qual acarretou tal distância da arte que acabou conduzindo à deterioração artística e manter a política dos intelectuais. Este retorno às concepções clássicas de beleza representa uma volta à estética modernista, tal como foi definido por Baudelaire em O Pintor da Vida Moderna (2010:1863). A operação crítica aqui descrita representa, então, a separação entre o novo e o presente, indicando o primeiro verdadeiro momento de modernidade para Baudelaire. O poeta-crítico descreve a arte moderna real que combina a realidade fugaz do momento histórico com certo grau de compromisso com o mundo eterno e imutável de forma, assumindo assim o poder de extrair a transição eterna. Com a delineação desta desconexão entre o presente e o novo, se podem demarcar os estágios de decomposição de um modernismo inautêntico, não comprometido com o moderno clássico, enquanto a modernidade de Baudelaire é uma realização de certa presença do antes dentro do mundo e de um futuro que quer reinstalar o valor desacreditado do progresso burguês na estética. Baudelaire (2010) conceitua o pensamento moderno baseado na imagética ao afirmar que é o pensamento abstrato que se desenvolve filosoficamente. Já a metáfora surrealista indica uma maneira diferente de pensar, contendo um retrovisor, um pensamento e uma visão da metáfora como imagem do pensamento abstrato (CANY, 2012). O encontrado (trouvé) na obra do arquiteto contemporâneo surrealista norte-americano Frank O. Gehry revela um novo método de projeto em arquitetura, inspirado no método crítico-paranoico de Salvador Dalí, que pode trazer à tona aspectos irracionais através de um procedimento técnico e criativo razoável. A maioria das obras de Gehry começa com uma escrita automática dos croquis para realizar esboços rápidos e livres, obtidos através da intuição e modelados em modelos formais. Os conceitos formais e espaciais da arquitetura pós-moderna, inspirados pelo surrealismo, pelo high-tech e pelo desconstrutivismo, ilustram uma correspondência expressiva alegórica ou simbólica, deixando-nos com o sabor de uma espécie de nova natureza dessas formas não específicas de caráter antinatural corbuseanas (de Le Corbusier). Os edifícios projetados com essas premissas conduzem, espacial e esteticamente, a uma espécie de metamorfose das categorias do modelo modernista formal, através da incorporação da dualidade do seu interior e do seu exterior. A forma dessa arquitetura “incomensurável”, incorporada ao sentido formal pelo pro25 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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saico de sua forma incomum, nega os grandes projetos de Le Corbusier sobre a relação expressiva da plástica obtida entre as linhas de paredes interiores e exteriores, abandonando sua rigidez e flexibilidade para suportar novas funções que combinam, esteticamente, as realidades do plano aberto a partir do interior dos edifícios. Tal incomensurabilidade ocorre, por exemplo, na Biblioteca da França, em Paris, projetada pelo arquiteto Rem Koolhaus e pelo OMA-Office for Metropolitan Architecture (JAMESON, in op. cit., p. 201-202). Conclusão: paisagens urbanas de Giogio de Chirico As paisagens urbanas foram desenhadas por obras arquitetônicas que representam o teatro desde os tempos antigos. Vitruvius descreve três cenários correspondentes a cenas de teatro urbano: o trágico, o cômico e o satírico. Estes ambientes são modelos paradigmáticos da Renascença, nos quais dramas foram organizados diariamente em áreas urbanas e rurais. Os espaços urbanos projetados por Alberti estabelecem ligações com um teatro imaginário, em que foram realizadas cenas cômicas nas ruas, em curvas sinuosas, enquanto as cenas trágicas foram feitas em cidades nobres de plano normal, contando com a limpeza de ruas pavimentadas com fachadas de altura idêntica e constante (SCHULZ, 2008, p. 79-81). O teatro-enunciação de Beckett e o teatro-absoluto de Artaud, nos quais a história se torna teatro e o mito se torna história (GUATTARI, 2012, p. 183), falam sobre uma nova territorialidade enquanto código de produção final da territorialidade e da vontade de poder, possibilitada pela produção de sinais de efeito de reincidência no sentido linearizado, em que o signo linguístico recuperou o inapropriado. O audiovisual é, assim, a normalização e a consumação do fantasmático. Ao contrário da fantasmática dos meios de comunicação audiovisuais, a pintura metafísica (1909-1919) de Giorgio de Chirico é contemporânea à pintura pura de Paul Klee, pintor-músico que explora os limites da metáfora musical para finalmente recusá-la. De Chirico afirma que a crítica antropológica do estilo musical de pensar é o que desenvolve o seu próprio modelo de visualidade. A pintura metafísica constrói imagens de um ritmo além do visível e uma lógica de vida universal, incorporando um retorno ao classicismo mesclado ao modernismo surrealista. De Chirico lança um novo pensamento crítico ao modelo antropológico visual da modernidade, com a busca de um modelo semiótico no qual ocorre a solução simbólica para o seu imaginário poético e metafísico. Constrói ele esta imagética pela negação da unidade do tempo, superando a velha antinomia da pintura moderna com a pintura de cidades metafísicas da Itália e das arcadas reminiscentes da arquitetura clássica (CHALUMEAU, 2009). Pela revelação da pintura metafísica, de Chirico descobre a essência da arte pura inspirada pelo uso da faculdade transcendental da sensibilidade, onde o exercício do puro poder de sentir é desfrutado a partir desse privilégio da fruição estética, como descreveu Kant (BOURDIEU, 2007, p. 89-90). Tal fruição estética resulta de dois elementos: o primeiro refere-se à autonomia do campo artístico, livre de restrições econômicas e políticas, a qual é guiada pelos padrões da arte pela arte; e o segundo trata da ocupação do espectador no mundo social, no qual as posições em que o fornecimento de disposição pura é capaz de dar livre curso ao puro prazer (ou a estética) são estabelecidas principalmente pela família e pela educação escolástica. Então, para transpor sua percepção metafísica na composição de um espaço visual, o pintor vai tentar combinar o classicismo da arquitetura antiga com a audaciosa modernidade futurista dos primeiros anos do século XX. A ideia da obra de arte como enigma impossível de ser resolvido está presente no projeto de arte metafísica de Chirico. A inquietante luz da noite é propícia para a revelação das paisagens de aspecto metafísico que de repente as coisas podem assumir enquanto os personagens humanos assumem a forma de modelos e de assemblagens cubistas (CHALUMEAU, in op. cit.). Se a vanguarda modernista pode ser representada pela 26


inspiração surrealista e metafísica do pintor de Chirico, que combina elementos clássicos e modernos para criar uma nova estética, pode-se considerar aqui o caso da universidade no seio de um diálogo transcultural. O Rio de Janeiro denomina de escolas de samba suas instituições de carnaval. Assim, será possível que as academias de ensino possam aprender algo de novo com as escolas de samba cariocas? Valorizando sua identidade social e trabalhando com novas audiências, a fim de estabelecer uma compreensão madura entre seus participantes e para se renovar esteticamente, as escolas de samba no Brasil expressam a criatividade que parece estar faltando na educação universitária tradicional (PINTO & SILVA, 1997). O Parangolé (composto por vestidos, tops, banners ou bandeiras) foi criado por Hélio Oiticica para ser usado pelos dançarinos da favela da Mangueira. Constitui, portanto, uma forma de antiarte que visa iniciar uma nova visão de como os seres humanos e a arte podem ser integrados, causando a morte do espectador e o nascimento do participante. No Parangolé, o samba é o motor e a ação da necessidade ontológica, no qual a roupagem está em contraste com o relógio que fala do tempo da máquina e da produção. Como, então, a universidade pode escapar da postura aristocrática de um conhecimento hegemônico e acadêmico e desfrutar de um dialogismo transcultural entre os diferentes níveis socioculturais de funcionários e alunos, e entre diferentes grupos étnicos e de gênero? Em resposta a esta questão, Cany (2012) sugere que se: “Pense a poesia como parte de uma antropologia filosófica e um propósito ético-político”. Se o pensamento poético pode nos permitir superar uma caricatura universal menos ocidentalizada que estrutura o conhecimento escolástico de modelo europeu, a universidade deve estar aberta para a alteridade, abandonando uma ótica civilizacional (Nietzsche) em favor de uma ótica transcultural (Artaud). Assim, a resposta para a universidade, bem como para a arte, é o pensamento visual, através da etnopoesia, enquanto universal antropológico.

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Educação e cultura na formação da cidadania

Carlos Alberto Ribeiro de Xavier Consultor da UNESCO para educação e cultura, assessor de Educação Integral da SEB/MEC

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relação entre educação e cultura é estreita nas ações de formação da cidadania. A partir destas é possível integrar as manifestações intelectuais e artísticas nas práticas pedagógicas de ensino formal e informal. Neste contexto, a correção da fratura entre as formulações e o planejamento das políticas relacionadas às duas áreas deve ser o foco de ações articuladoras das diversas instâncias e esferas da administração pública. O autor pretende oferecer subsídios para o entendimento das condições atuais para o processo de planejamento de ações culturais relacionadas aos programas voltados para a Educação Básica e para a formação de professores nas universidades. Pretende delinear também como pode Brasília ser considerada uma cidade educadora, nos termos da declaração da UNESCO; procura mostrar como Lucio Costa já pensava uma cidade capaz de abrigar a capital da República e ao mesmo tempo educar a nova população composta de cidadãos vindos de todas as regiões do país e do exterior; e ainda inspirar a ocupação ordenada e o desenvolvimento do Norte e do Centro oeste do Brasil, até então com baixa densidade populacional. Antecedentes Para o melhor entendimento de Brasília como cidade educadora, podemos imaginar três itinerários educativos destinados à orientação de turistas, professores e alunos ou outros visitantes. Os programas Mais Educação e de Educação Integral do Ministério da Educação já incluem três desses itinerários educativos para os professores que participam de Seminários que vêm se realizando na Capital Federal, em Brasília, com a colaboração do GDF, da UnB e do Ministério da Cultura, visando à compreensão do Plano de Lúcio Costa, do projeto educacional de Anísio Teixeira e da nova Universidade imaginada por Darcy Ribeiro. São eles: a) Anísio Teixeira e os caminhos da Escola Classe/Escola Parque; b) Lucio Costa: a escala monumental e a escala gregária do Plano Piloto; c) Darcy Ribeiro e o inovador projeto da Universidade de Brasília.

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Antes de falar mais detidamente de Brasília, é preciso, porém, alinhar algumas considerações sobre a educação no Brasil. Nos três primeiros séculos da colonização


não há muito que dizer sobre escola pública, uma vez que tivemos apenas as escolas dos jesuítas destinadas à catequese dos índios e à educação de poucos, especialmente a preparação para a vida religiosa. Claro que é muito importante a pedagogia dos jesuítas, grandes figuras a destacar, especialmente Padre Manoel da Nóbrega, Padre José de Anchieta e Padre Antônio Vieira. Mas não existia a escola pública como já era conhecida em outros países. No período do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, inaugurado com a chegada de D. Maria I, D. João VI, toda a família real e parte da corte portuguesa, que aportaram no Brasil em 1808, começaram as mudanças e as fundações do que o Brasil passaria a ser. No campo educacional, alguma coisa pode ser anotada. Em uma parada na Bahia em fevereiro de 1808, D. João VI criou uma Escola de Medicina, hoje incorporada à UFBA; no Rio criou uma Escola de Cirurgia. Mais tarde, recebeu a Missão Artística Francesa que trouxe nomes importantes no campo das artes; em 1827 foram criadas as faculdades de direito de Olinda, em Pernambuco, e a do Largo de S.Francisco, em São Paulo. Em 1834, surgiu o pioneiro Atheneu Norte-Rio-grandense, em Natal; a 2 de dezembro de 1837, no período da Regência, portanto, em homenagem ao Imperador, na data de seu aniversário surgiu o Colégio Pedro II, permanente referência do ensino. Essas são as principais escolas surgidas no Brasil no período, mas ainda não se podia falar de escola pública em âmbito nacional. Durante o Segundo Reinado, a educação flutuava entre o modelo tradicional e secular do ensino católico e o ensino leigo sob a influência do ecletismo, do liberalismo e, finalmente, do positivismo. Perdeu-se muito tempo que foi mais aplicado na experimentação do que no estabelecimento de um sistema público de ensino. A República surgiu em meio às ideias positivistas e eram muitas as promessas sobre a educação, mas até 1930 este assunto permaneceu no Ministério da Justiça e Negócios Interiores, em um setor denominado Departamento de Instrução Pública, Correios e Telégrafos. Esta situação, por si só, explica como a educação foi relegada durante a República Velha, na qual as oligarquias do acordo café com leite, entre Minas Gerais e São Paulo, se revezavam no poder. Ao povo se oferecia apenas a instrução pública das primeiras letras. Precisamos viver uma revolução, a de 1930, para que o Governo Provisório de Getúlio Vargas pudesse criar nos primeiros dias de sua instalação, finalmente, o Ministério da Educação e da Saúde Pública. Note-se, temos um ministério a cuidar da educação e da saúde pública dos brasileiros há apenas 82 anos. Vários países latino-americanos estavam mais avançados e nestes já funcionavam universidades. O Brasil só veio a criá-las em 1934, em São Paulo, e em 1935, no Rio de Janeiro. Estas primeira universidades reuniram as faculdades preexistentes. Nos primeiros 30 anos de funcionamento do ministério, no Rio de Janeiro, é digno de nota o período de 12 anos de gestão de Gustavo Capanema, aquele que mais tempo permaneceu ministro. Como seu legado deixou um sistema nacional centralizado de ensino de boa qualidade, um plano de vanguarda e liberal para a área da Cultura e, como símbolo de uma época, o Palácio que construiu para a sede do MEC, um marco da arquitetura modernista no mundo. Na verdade, Capanema fez existir a UNESCO antes mesmo de esse organismo ser criado no pós-guerra, pois comandava os programas nacionais da saúde, da educação, da ciência e da cultura em um mesmo ministério, já em 1937. Brasília surge em 1960 como cidade educadora, como a renovação da esperança para os brasileiros, especialmente para a educação e a cultura. A cidade foi construída a partir do Plano Piloto de Lúcio Costa, tombada em nível nacional pelo IPHAN e reconhecida mundialmente pela UNESCO como patrimônio da humanidade. Presidente do INEP, em 1957, Anísio Teixeira convidou Darcy Ribeiro para promover pesquisas sociológicas na educação e criou, a pedido do Ministro Clóvis Salgado, “o planejamento do sistema escola pública de Brasília”, inaugurado em 1960. Era uma evolução do sistema baiano, criado por ele, das Escolas Classe/Escolas Parque. Anisio Teixeira foi influenciado pela nova maneira de morar, das superqua31 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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dras de Lúcio Costa, pela arquitetura de Oscar Niemeyer e pelo paisagismo de Burle Marx, que organizaram a escala residencial e bucólica no Plano de Lúcio, para conceber o sistema educacional, a vida dentro da cidade e as escolas nas superquadras. Esse sistema escolar fez com que a população das unidades de vizinhança (o conjunto de cada quatro superquadras) tivesse à sua disposição um Jardim de Infância e uma Escola Classe em cada quadra e uma Escola Parque em cada unidade do conjunto. Em um mesmo espaço livre, para o ir e vir a pé, das crianças, dos pais e dos professores, que podiam circular à vontade entre as unidades escolares, a Biblioteca Demonstrativa, o Posto de Saúde, o clube de vizinhança, os espaços de lazer e recreação das quadras, e ainda, a Igrejinha de Fátima, também a primeira construída. Esse modelo criado para uma população de cerca de até 20.000 habitantes foi implantado como modelo do Plano Piloto, a ser repetido em cada unidade de vizinhança, o que não ocorreu. Darcy Ribeiro, em um texto que publicou como segunda carta de Pero Vaz de Caminha, em 21 de abril de 1960, disse o seguinte sobre o projeto de Anísio Teixeira: Os burocratas infantes, com menos de sete anos, terão dentro das quadras arremedos de escolinhas para brincar com o tio Augusto Rodrigues. Os mais crescidinhos, a um passo da casa, quatro horas estudarão e mais quatro folgarão, atravessada uma alameda, numa escola-oficina-gandaia inventada por Anísio Teixeira para fabricar gente que melhor suporte e sustente o progresso do Brasil. Aos mais taludos, capazes de atravessar a rua dos loucos, prometem uma escola-escada, pela qual cada um há de subir segundo o peso de seu talento. “Devo dizer, Senhor, que a meu pesar, tudo isto, como o mais, são augúrios de homens de muita fé”, acrescenta Darcy Ribeiro. Para os itinerários educativos de Brasília, inicialmente descrevemos os caminhos da Escola Classe/ Escola Parque de Anísio Teixeira dentro da escala residencial e bucólica; depois, voltamos a comentar a proposta de itinerários educativos de Brasília, desta vez para apresentar outras duas dimensões do Plano Piloto de Lucio Costa: a escala gregária e a escala monumental. Apresentar e compreender o Plano Piloto da capital federal é uma necessidade não só para os professores, alunos, pais e servidores da educação de Brasília, como também um elemento indispensável para todos os brasileiros. Brasília entrou para o imaginário do brasileiro nos anos 1950 e não saiu mais. Portanto, é preciso relembrar Lucio Costa. Relembrar Lucio Costa é também deixar falar duas grandes personalidades que embarcaram no trem da utopia do projeto de JK-Lucio Costa: um entrou em 1957, junto, portanto, com a execução do Plano Piloto; e um outro entrou em 1960, logo depois de inaugurada a cidade. O primeiro foi Anísio Teixeira, convocado em 1957 pelo ministro Clóvis Salgado para desenhar o Plano de Educação e Cultura para a nova capital. Não demorou muito, como presidente do INEP, Anísio pode rever o seu próprio projeto de Salvador e orientar o experimento da Escola Julia Kubitschek, cujos professores foram preparados na Escola Classe-Escola Parque da Bahia para começarem o trabalho em Brasília. A Escola Júlia Kubitschek foi o lugar onde cresceu o embrião da Escola Classe-Escola Parque de Brasília na superquadra 308, o lugar onde se aproveitou o desenho da cidade para rever os conceitos e colocar em prática o Plano Humano de Brasília, projeto utópico de uma sociedade nova, universalista que disporia de uma escola pública de qualidade e de uma universidade que produzisse o novo homem brasileiro. De Anísio Teixeira lembro duas reflexões sobre a educação: 1. O que chamamos de educação é o esforço para compreender o presente. Sem compreendê-lo não podemos viver. Há presentes incendiados de fermento intelectual e presentes inertes. É que nos primeiros 32


o passado está vivo no presente e nos entreabre o futuro. Nos outros, depreciamos o presente e quedamos inertes na adoração do passado. Toda verdadeira crise de compreensão é uma crise de compreensão do presente, neste sentido de ponto de interseção entre o passado vivo e o futuro que vai nascer. Num desses momentos é que nos encontramos. 2. De mim eu só reconheço um crédito aos que me precederam: Eles sofreram mais do que nós e, por isso, tudo lhes deve ser perdoado. O segundo personagem foi Agostinho da Silva, português exilado desde os anos 1950, que já tinha produzido intenso movimento intelectual no Rio, São Paulo, Paraíba e Santa Catarina. Estava naquela altura dirigindo, na Universidade Federal da Bahia, o Centro de Estudos Afroorientais, fundado por ele. Veio ajudar Darcy e Anísio na organização da Universidade de Brasília. Para demonstrar a perfeita sintonia de Agostinho com a utopia de Lucio Costa em Brasília, retiro algumas frases de seu livro Reflexões, Aforismos e Paradoxos: 1. Consiste o progresso no regresso às origens: com a plena memória da viagem. 2. Não há liberdade minha se os outros a não têm. 3. A nossa mente olha o vazio e o faz Espaço. 4. Passo a vida fabricando o real. Muito antes da consagração do conceito de cidade patrimonial modernista pela UNESCO, Brasília já nascia uma cidade educadora. A Escola Parque na superquadra 308 sul em Brasília O conjunto representado pelas superquadras 107/307, 108/308, 109/309, 110/310 (tanto os blocos residenciais quanto os destinados ao comércio local, que Lucio chamou de “varejo de bairro” nas entrequadras) forma uma unidade de vizinhança e cada uma delas conta com um Clube de Vizinhança, neste caso, o de nº. 1 de Brasília. Completa-se o conjunto com o Posto de Saúde, a Biblioteca Demonstrativa de Brasília e a Igrejinha de Fátima. Agregou-se, recentemente, ao conjunto, a Estação do Metrô da 108 Sul. Concebido o plano arquitetônico e urbanístico que poderíamos chamar de hardware, faltava criar o plano humano para Brasília. Como se organizaria o sistema educacional para formar o novo homem brasileiro? Qual o programa, o software? O encarregado de tal plano foi Anísio Teixeira, que coordenou uma comissão para a criação da UnB e para a concepção do sistema educacional na nova capital, da educação básica à universidade. Ele era também o presidente do INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, naquela altura. A comissão que coordenou contava com Darcy Ribeiro, Cyro dos Anjos, Augusto Rodrigues e outras personalidades entre o que havia de melhor entre os pensadores da educação e da cultura no Brasil. Vivia-se um ambiente de liberdade política e desenvolvimento econômico acelerado. O projeto de Escola Classe/Escola Parque de Brasília é uma evolução daquela que Anísio criara em Salvador, nos anos 1940, quando ele foi o seu secretário de Educação da Bahia. Anísio levou professores da pioneira Escola Júlia Kubistcheck, que funcionava na cidade até então, para conhecer a Escola Classe Escola Parque de Salvador, preparando-os para trabalharem na escola do futuro em Brasília. O que podemos ver deste modelo: cada quadra conta com uma Escola Classe, Jardim de Infância e vários espaços de lazer. Os alunos de toda a unidade vizinhança (conjunto de quatro superquadras) frequentam a Escola Classe mais próxima e, caminhando, vão à Escola Parque da 308 em horários alternados. Implantada a escola padrão, era natural que esta se transformasse no principal espaço cultural de Brasília, onde o teatro da Escola Parque e o Cine Cultura tornaram-se por mais de 20 anos, o principal polo cultural Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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da jovem capital. Aí foram montadas as grandes peças de teatro, musicais e outros espetáculos que passaram pela cidade, e aí, também, se realizaram as grandes reuniões e manifestações políticas, como quando a cidade recebeu em reunião de desagravo, o sindicalista Lula que saíra da prisão em 1981; Lele veio de São Paulo acompanhado do jornalista Audáulio Dantas, que também havia sido preso, sendo recebidos a noite, no auditório da Escola Parque, por um grande público. É desse modelo que derivam os CIEP – Centros Integrados de Educação Pública (Brizola/Darcy Ribeiro); os CIAC – Centros Integrados de Atenção à Criança (Collor); os CAIC – Centros de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente (Itamar/Hingel); os CEUs – Centros de Educação Unificada (Marta Suplicy) e, desde abril de 2007, o PDE –Plano de Desenvolvimento da Educação, com o programa Mais Educação, que aliado ao Mais Cultura, Saúde na Escola e vários outros projetos afins, tem por objetivo a universalização gradativa da educação integral. Antecedentes do Programa Mais Educação e Mais Cultura Em agosto de 2006, o grande artista e intelectual brasileiro Augusto Boal compareceu a uma reunião com o ministro da Cultura, Gilberto Gil, e do ministro da Educação, Fernando Haddad, realizada no Rio de Janeiro no Palácio Capanema, quando anunciaram a assinatura de mais um Protocolo de Intenções para cooperação entre os dois ministérios, visando ao desenvolvimento de programas conjuntos de arte e cultura nas escolas. Desde a criação do Ministério da Cultura, em 1985, assistimos a vários eventos semelhantes em que a retórica tentava disfarçar a realidade do ensino público no Brasil, marcada pelo empobrecimento do calendário escolar, desde os anos 1970, com o abandono crescente e cotidiano da disciplina obrigatória de Educação Artística. Na reunião mencionada, Augusto Boal pediu para falar em meio ao tumulto de uma solenidade que enchia de público o Salão Portinari, do majestoso e tradicional edifício-sede do Ministério da Educação e Saúde Pública, inaugurado nos anos 1940. A plateia do artista, desta vez, era composta de artistas, políticos, funcionários públicos, professores e outros trabalhadores da educação. Anos atrás, existia o MEC, Ministério da Educação e Cultura, que sucedeu ao mais antigo Ministério da Saúde, Cultura e Educação, onde só faltavam Caça e Pesca, Esportes e Turismo, tudo no mesmo saco. Juntos, amalgamados, Educação e Cultura, ao invés de provocarem sinergia, eram comprimidos numa coisa só. Veio a divisão multiplicadora, criaram-se dois Ministérios ao invés de um, mas cada qual trabalhou pelo seu lado, sem olhar ao lado. Hoje, nossos dois Ministros arquitetam um projeto unificador respeitando a diversidade de cada um, e nós nos vemos diante de uma nova concepção da Cultura e da Educação. Por que é nova, e por que é importante essa interatividade? Educar vem do latim Educare, que significa conduzir. Educar significa a transmissão de conhecimentos inquestionáveis ou inquestionados. Significa ensinar o que existe, e que é dado como certo e necessário. Pedagogia vem do grego paidagógós, que era o escravo que caminhava com o aluno e o ajudava a encontrar a escola e o saber. Educação significa a transmissão do saber existente; Pedagogia, a busca de novos saberes. Essas duas palavras não podem ser dissociadas, porque não podemos aceitar um saber paralítico, imóvel, nem descobriremos jamais novos saberes sem conhecer os antigos. Educação e Pedagogia são duas irmãs que são, ao mesmo tempo, mães e filhas da Cultura. Filhas, porque a Cultura existe e se manifesta através do saber que ensina, e do saber que busca. Mães, porque através delas nasce uma nova Cultura, sempre em trânsito. 34


Trânsito para que futuro? Surgem então os conceitos de Ética e Moral. Esta vem do latim mores, que significa costumes. Qualquer costume, mesmo os mais bárbaros e odiosos, podem fazer parte da Moral de um lugar e de uma época. A escravidão já foi Moral no Brasil, e os escravos que lutavam por sua liberdade eram chamados de fujões e rebeldes – hoje, sabemos que foram heróis e eram sábios. Nenhuma Moral social deve ser aceita só porque faz parte dos costumes de um infeliz momento. Não podemos aceitar o latifúndio e a corrupção, nem a fartura vizinha da fome – males da pátria contra os quais temos que lutar. Moral refere-se ao passado que sobrevive no presente. Ética, ao presente que se projeta no futuro: não queremos o Brasil como foi nem como é, mas... como queremos que seja? Qual a ética que nos guia e justifica nossas vidas? Queremos um Brasil em que todos os brasileiros sejam plenos cidadãos, e não se pode ser pleno sem os fundamentos da Educação basilar, sem as audácias da Cultura livre, e sem o diálogo entre as duas. A fala de Augusto Boal vinha ao encontro do que se pretendia com o acordo de cooperação que se anunciava naquele dia, conforme consta da portaria que criou uma Comissão Interministerial encarregada de tratar da indispensável colaboração entre as duas pastas, para o desenvolvimento de programas de arte e cultura nas escolas. Passaram-se dias e meses, sem se ver, pelo menos, reunida tal comissão uma única vez: a preocupação do MinC com sua própria clientela de artistas, intelectuais, escritores, cineastas, animadores culturais, interessados no financiamento de seus próprios projetos e do MEC em ampliar o tempo e os espaços educativos nas escolas, bem como discutir com a sociedade seus novos programas, não permitiu que a cooperação se concretizasse em ações efetivas, apesar das boas e sinceras intenções de ambos os lados. No MinC, surgiram diversas ações, como a implementação dos Pontos de Cultura e outras atividades que buscavam ampliar a cidadania cultural e, no MEC, ampliaram-se os horizontes com o desenvolvimento do programa Mais Educação. Entretanto, ainda não se materializavam as atividades educativas nas escolas, um pouco porque estas não abriam seus portões para a entrada do novo; em parte, também, porque os animadores culturais não estavam acostumados a saírem de seus espaços ou mesmo não estavam preparados para atividades educativas. Entretanto, o principal entrave para a ampliação dos espaços educativos continuava a ser o tempo de permanência dos estudantes nas escolas. Com um turno apenas, de três ou quatro horas diárias, não é mesmo possível exigir muito mais do que era feito. Foi necessário esperar outro momento, o do lançamento do PDE-Plano de Desenvolvimento da Educação para se conseguir avançar. O representante japonês que compareceu à Rio + 20 foi apresentado como o ministro da Educação, Cultura, Ciência e Tecnologia, Meio Ambiente e Esportes, integração que já havia feito o ministro Gustavo Capanema nos seus tempos. Ele praticamente inventou a UNESCO antes de a UNESCO existir, juntando em uma só pasta a Educação, a Ciência e a Cultura, com anos de antecedência; sem nos esquecermos de que o seu ministério incluía também a Saúde. Partiu de um diagnóstico e indicava equações para os grandes, e ainda atuais, problemas nacionais, prioridades nacionais e solução nacional: a Educação e a Saúde Pública. Mais tarde, em um momento feliz: Brasília. Darcy Ribeiro, por um lado, e Anísio Teixeira, por outro, deram ao Presidente JK e seus utópicos Oscar Niemeyer, Lucio Costa e Roberto Burle Marx o que poderíamos chamar de plano humano. Era um plano ambicioso para a educação básica e superior; estavam a inventar o Brasil, como eles mesmos disseram. Brasília: nasce uma cidade educadora As afinidades eletivas de Lucio Costa e de Juscelino Kubitscheck quanto a Brasília ficam evidentes, pois o reconhecido arquiteto urbanista não queria apenas apresentar um projeto para a nova capital, queria 35 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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mesmo era ajudar Juscelino a realizar seu sonho e sua promessa, o projeto utópico de uma nova civilização nascida da Capital da Esperança, a NOVACAP, que influenciou a música, o cinema e a cultura nacional, pois também estava na cabeça de todos os brasileiros. Maria Elisa Costa afirma que seu pai, Lucio, não apresentou o projeto no concurso da nova capital para provar alguma teoria ou demonstrar algum novo aspecto da arquitetura moderna, que ele também inventou no Brasil. Não precisava disto. Ele queria muito mais do que apresentar um projeto: Lúcio era sócio da utopia JK. Há algum tempo, em um seminário sobre o patrimônio histórico, participei de um debate sobre as cidades históricas mineiras, cujas construções estão em permanente ameaça em tempo de chuvas. Ali reforcei o argumento de que todas as cidades são históricas, pois todas têm a própria história para contar. Assim também são as cidades educadoras, qualquer cidade pode tornar-se educadora. Em toda e qualquer cidade, pequena ou média, ou mesmo nos bairros ou periferias das grandes cidades, e mesmo das megalópoles que já temos no Brasil, poderemos reconhecer o território em que se insere a escola ou as escolas de determinada localidade, de forma a aproveitar ao máximo todas as possibilidades educativas sem perda de qualidade. Podemos sempre agir localmente, sem deixar de ter uma consciência global dos problemas da modernidade. As crises da modernidade nos atingem a todos, sejam as questões ecológicas, climáticas, econômicas, sejam as novas problemáticas de mudança da escola e do processo de aprendizagem e ensino. Para mudar a escola, temos de mudar também a maneira como vemos a cidade, a família, a comunidade e a organização social onde aquela se insere. No caso de Brasília, temos um caso exemplar, pois essa é a verdadeira intenção de se chamar o plano urbanístico de Plano Piloto; de se chamar a concepção da primeira superquadra como Superquadra Modelo e de se considerar modelar o Planejamento do Sistema Escolar Público de Brasília escrito por Anísio Teixeira, em 1957, e implantado em 1960, ao mesmo tempo que se concluía a construção das primeiras unidades residenciais do Plano Piloto de Lúcio Costa. Note-se que, ao mesmo tempo que Oscar Niemeyer absorvia em seus projetos arquitetônicos as ideias de Lucio Costa, também Burle Marx e artistas como Volpi e Athos Bulcão colaboravam com o paisagismo e as obras de arte para desenharem as escalas residenciais e bucólicas do mesmo Plano Piloto. Estabelecidos esses parâmetros, Anísio Teixeira tratou de aproveitar a genial concepção dos arquitetos para imaginar o sistema educacional, tomando por base a unidade de vizinhança, ou seja, o conjunto de cada quatro superquadras.

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