Sensorial do corpo

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Sensorial do corpo


Universidade Federal Fluminense REITOR Sidney Luiz de Matos Mello VICE-REITOR Antonio Claudio Lucas da Nóbrega

Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense CONSELHO EDITORIAL Aníbal Francisco Alves Bragança (presidente) Antônio Amaral Serra Carlos Walter Porto-Gonçalves Charles Freitas Pessanha Guilherme Pereira das Neves João Luiz Vieira Laura Cavalcante Padilha Luiz de Gonzaga Gawryszewski Marlice Nazareth Soares de Azevedo Nanci Gonçalves da Nóbrega Roberto Kant de Lima Túlio Batista Franco DIRETOR Aníbal Francisco Alves Bragança


Ruth Silva Torralba Ribeiro

Sensorial do corpo via rĂŠgia ao inconsciente


Copyright © 2014 Ruth Silva Torralba Ribeiro Copyright © 2016 Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense

Série: Coleção Biblioteca, 69

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Direitos desta edição cedidos à Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense Rua Miguel de Frias, 9, anexo/sobreloja - Icaraí - Niterói - RJ CEP 24220-008 - Brasil Tel.: +55 21 2629-5287 www.eduff.uff.br - faleconosco@eduff.uff.br Impresso no Brasil, 2016 Foi feito o depósito legal.


Ao meu querido filho Pedro, por ter feito de meu corpo sua casa. À Mestra Angel Vianna, que me emprestou sua casa para que eu criasse um novo corpo. Ao Maurício pelo amor e pela poesia.



Agradecimentos À minha orientadora de mestrado, profa. dra. Cristina Rauter (UFF), pela gentileza do gesto sempre afetuoso que me possibilitou expandir o pensamento e a vida. À Elisabeth Pacheco, Hélia Borges (FAV), Maria Theresa Feitosa (FAV), grandes musas inspiradoras na busca de aliar a arte à clínica. Ao prof. dr. Eduardo Passos (UFF) pela escuta atenciosa capaz de captar o invisível e pelo incentivo a criar na borda. Ao prof. dr. André Martins (UFRJ) pelas gentis e indispensáveis contribuições. À profa. dra. Suely Rolnik (PUC-SP) por ter aceitado o insistente convite para este mergulho. Aos amigos que me acompanharam ao longo deste incansável percurso, em especial, à Catarina Resende, Cristiane Knijnik, Patrícia Caetano, Aline Blajman, André Grabois e Iazana Guizzo. À Alicia pela sutil força da luz das flores. Ao Maurício pela cumplicidade e pela beleza. Aos meus pais e ao meu querido irmão Eduardo pelo incansável respeito e incentivo ao longo do trajeto.


À Maria José, Aguinaldo, Pedrina e Rodrigo que me disponibilizaram um pouso novo, necessário ao início deste mergulho. Aos meus clientes e alunos pelas marcas que deixaram em meu corpo, que se expressaram como desejo de compor com palavras o que restou de nossos encontros. À CAPES, que financiou por dois anos esta pesquisa.


[...] – Vede este corpo, que salta como a chama sucede à chama, vede como pisa e esmaga o que é verdadeiro! Como destrói furiosamente, alegremente, o próprio lugar onde está, e como se embriaga do excesso das mudanças! [...] E o corpo, que é o que é, eis que não pode mais se conter na extensão! – Onde ficar? – Onde mudar? [...] sendo coisa explode em acontecimentos! Exalta-se! – E como o pensamento excitado toca toda sua substância, vibra entre os tempos e os instantes, atravessa todas as diferenças; e como em nosso espírito se formam simetricamente as hipóteses, e como os possíveis se ordenam e se enumeram – esse corpo exercita-se em todas as suas partes, e se combina consigo mesmo, e dá forma depois de forma, e sai sem cessar de si. Paul Valéry, A alma e a dança



Sumário Agradecimentos | 7 A prudência do cuidado | 13 Iniciando um mergulho: o sensorial do corpo | 19 Por uma micropolítica do aspecto sensorial do corpo | 31 Corpo e biopoder | 31 Da vida nua a uma vida | 47

Contato intensivo: misturas e devires do corpo | 55 Desconhecido corpo: abertura à sensorialidade | 55 O contato em eutonia | 64 Pele: tecido-limiar | 87

Relações corpo-consciência-inconsciente | 107 Fantasmática do corpo de Lygia Clark: objetos relacionais, objetos de contato | 107 Consciência do corpo: zona de interface | 122

Conclusão | 133 Finalizando um percurso infinito | 133 Da “zona de conforto” para o tecer da pele como interface com o mundo | 135 A possibilidade de tecer uma película protetora-criadora | 138 Finalizando... | 140

Referências | 145



A prudência do cuidado Eduardo Passos

Sensorial do corpo: via régia ao inconsciente é um texto que expressa o agenciamento entre o Programa de Pósgraduação em Psicologia da UFF, a Escola e Faculdade Angel Vianna e o Instituto Gerda Alexander de Eutonia. Algo se passa por entre essas instituições de formação que entrelaça corpo, arte e clínica. O fio de ligação é menos um tema ou referencial teórico do que uma atitude de cuidado. Este livro se tece com o fio dessa ligação. Ruth Torralba mostra a habilidade de quem escreve como se navegasse. Na conclusão do livro, a figura do barco é evocada como imagem tanto do pensamento quanto da performance em dança. Embarcar não é uma metáfora, mas uma gíria, um modo menor de dizer, um modo de acionar a experiência da escrita, da performance, mas também a da clínica. O objeto barco atravessa os três domínios. A performance e o texto nos conduzem a um modo diferenciado de estar no barco: estar nele sem a certeza do controle da navegação – modo feminino de estar que ressoa certa condição da experiência clínica. Estar no barco é, para Ruth, a condição sensorial do corpo que, no seu limite, na pele que o envolve, vive o paradoxo de estar dentro e fora de si. No limite de nós mesmos, estamos dentro ou fora de si? No ponto extremo dos sentidos, o corpo encontra o mundo, se envolve nele e se faz mundo – afirmação sensível do paradoxo da experiência de ser um corpo: um corpo paradoxal, para retomarmos a indicação de José Gil que orienta a argumentação deste livro.


Qual o estatuto dessa experiência? De quem é a expe­ riência do corpo? Essa experiência não é propriamente do corpo, nem é do espírito. Tampouco é uma experiência de primeira pessoa. Sou eu que experimento meu corpo? Eu quem? O corpo se experimenta ou é o espírito que experimenta o corpo? Essas perguntas nos convocam a reformular o problema da experiência do corpo, saindo dos domínios da identidade, da propriedade, do privado. Entendemos que essa experiência do corpo está aquém e além do indivíduo, na dimensão impessoal que não é menos paradoxal – subjetividade fora do sujeito ou entre-lugar da experiência do corpo que, na pele, entre o dentro e o fora, nesta zona-limite, nos força a pensar. Entre o dentro e o fora, assim como entre a clínica e a dança, a clínica e a política, entre a clínica e a filosofia, Ruth teve de escrever com a pele. Neste estranho lugar da fronteira – que distingue, mas não separa os domínios –, algo se passa que leva a clínica à aventura transdisciplinar. Daí estas duas afirmações que podem nos orientar como um farol em alto-mar: o pensamento da clínica é transdisciplinar e a análise clínica envolve, inelutavelmente, um corpo. Não adianta lutar contra o corpo. Não adianta forçar-nos ao especialismo disciplinar. Sendo assim, precisamos dizer de que corpo se trata. Que corpo é este que sempre se apresenta, que insiste em expressar-se e para o qual a clínica deve se inclinar? Transversalizando os planos da clínica, da política, da arte e da filosofia, Deleuze e Guattari no Anti-Édipo definiram a prática clínica correlata à filosofia da Diferença como uma psiquiatria materialista. Há uma evidente referência ao pensamento de Marx e à sua análise dos modos de produção da realidade (“Na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade”, noção de um inconsciente produtivo e social 14


que Marx apresenta em 1859, na Contribuição à Crítica da Economia Política). Se a produção é, para Marx, eminentemente social, pois produção social da existência, e se ela é material porque econômica, Deleuze e Guattari tomam esta tese forçando seus limites para pensar o processo de produção sem qualquer transcendência por relação ao seu produto. Não há um domínio material das causas separado de um domínio espiritual dos efeitos (infra e superestrutura). A produção social é ela mesma a produção desejante. A análise da produção, em Marx, permanecia, ainda, numa lógica de oposição, distinguindo e separando o que seria do domínio dos produtos (a existência individual e os grupos, a superestrutura ideológica, espiritual) e o que seria do domínio da produção (forças produtivas e relações de produção, que comporiam a infraestrutura material). Deleuze e Guattari, recusando a dialética, afirmam a produção como processo e a inseparabilidade imanente entre produto e sua produção. A rea­ lidade é produção porque funciona como máquinas desejantes ou máquinas autopoiéticas. O processo de produção ou a produção como processo tem como princípio o desejo e como primado a produção de produção, mais do que produção de produto. Todo movimento desejante é produção da realidade e toda a realidade comporta esta maquinação autopoiética de produção de si e do mundo. Tal máquina compõe corpos organizados (organismos), mas nesta composição (de um produto) o corpo sofre por estar assim organizado. Este corpo que sofre (corpo individual ou coletivo) é a dimensão não organizada, não estratificada, dimensão-massa ou não engendrada do corpo. A relação produção-produto cria, portanto, um terceiro termo que não permite que o processo se estabilize, se conclua, se acalme: volta-se sempre ao primado da produção. O corpo sem organização, amorfo, testemunha sua auto-produção. 15


O sentido de amorfo, aqui, não pode ser confundido com um indiferenciado, pois é próprio dele ser a superfície onde pululam as diferenças. Amorfo quer dizer sem forma, sem organização e não sem órgãos. O corpo sem organização possui órgãos já que é povoado por diferenças ou intensidades livres que resistem à tendência estratificadora da realidade. É povoado por sensações ainda sem significações, por afecções ainda sem um correlato nos sentimentos pessoais. Tal corpo é a abertura do produzir no produto ou o seu “vazio criador”, como preferiu dizer o pintor soviético Kazimir Maliévitch. Com a força propulsiva do desejo, a experiência paradoxal do corpo – entre mim e o que não sou, entre o dentro e o fora de si, entre sua forma organizada e seu fundo amorfo – não cessa de nos desarranjar, nos levando a um dispêndio sem reserva de nós mesmos, já que a produção se enxerta no produto, fazendo com que os órgãos do corpo sejam seu combustível, se consumindo na própria experiência de si: o olho, a boca, o ouvido são peles do corpo tomadas como superfície de saturação e combustão da máquina do mundo descrita por Drummond (Claro Enigma, 1951). Deleuze e Guattari designam este fundo sem fundo do corpo, este inorganizável dos órgãos, de CsO (corpo sem órgãos), tomando de A. Artaud a indicação ético-estético-política. O tema do CsO atravessa os dois volumes do Capitalismo e esquizofrenia, tendo uma formulação na década de 1970 e outra na década de 1980. Na passagem do Anti-Édipo para o Mil Platôs, observamos um tratamento experimental do CsO: trata-se, como eles dizem, de “Criar para si um CsO”. Daí duas atitudes contrastantes ante o corpo: interpretá-lo versus experimentá-lo. Na verdade, essa oposição só se mantém se tomamos a interpretação como desvelamento dos sentidos do corpo e não como sua produção. Na interpretação/ experimentação do corpo, acompanhamos o que nele circula. Produzi-lo é já fazer algo circular nele, é tê-lo como plano de 16


passagem de fluxos sensíveis e desejantes. O corpo é, como o mar, feito do que nele circula, de tal maneira que o barco não preexiste ao movimento em que ele flui: o barco é uma nervura do mar, uma deriva da onda. O corpo paradoxal se produz e se revela quando (e onde) se atinge sua dimensão sem organização, lugar de intensidades em circulação. É o domínio não estratificado dos fluxos sensíveis e do desejo. Se o problema do socius sempre foi o de codificar os fluxos sensíveis e do desejo, inscrevê-los, registrá-los, fazer com que nenhum fluxo escorra, o corpo paradoxal é o último resíduo, o limite do socius, sua tangente de desterritorialização. Plenamente nua, essa experiência do corpo está no limite, no fim e não na origem. É por isso que Deleuze e Guattari afirmaram que o CsO é algo a ser criado, sendo esta a tarefa do desejo e – Ruth nos faz entender – do sensível. Criar um CsO é produzir um plano de engendramentos de desejo, em que os corpos se fusionam (juntam-se e liquefazem-se). Por isso, Deleuze e Guattari afirmaram que o CsO só se dá em um “ponto de fusão” que moleculariza a realidade. Produz-se e habita-se este plano de intensidades pré-individuais (nem eu, nem outro; nem interno, nem externo; nem individual, nem social) em circulação e fusão. Permanece, no entanto, um problema eminentemente clínico: se o corpo paradoxal não está na origem, pode-se supô-lo no fim tal como uma meta ou ponto de chegada? Alcançamos esta experiência corporal para nela habitarmos finalmente? Há um fim do processo (da análise, da produção de si e do mundo, da criação)? Colocar o corpo em análise ou pensar o sentido da experiência paradoxal é poder acompanhar um processo em suas voltas e desvios, em seus fracassos e êxitos locais. A construção do CsO não tem fim, porque ele é um limite a que não se chega, havendo “sempre um estrato engastado em 17


outro”. Passamos por um CsO quando vamos de um estrato a outro, quando desterritorializamos uma organização para encontrarmos outra. O CsO, portanto, não é o contrário dos órgãos. Ele se põe contrário ao organismo, à organização dos órgãos em uma totalidade. Daí, a formulação inicial de o problema do CsO aparecer na exortação de Artaud Para pôr fim ao juízo de Deus. Deus, aqui, é o sistema teológico ou operação de organização Daquele (sempre maiúsculo, maior) que não suporta uma outra criação, sobretudo esta: acéfala, sem criador. Combater este Deus organizador não se pode fazer sem prudência, “pois é necessário guardar o suficiente do organismo”. A desestratificação grosseira corre o risco de precipitar o corpo paradoxal em uma rota de catástrofe, em um buraco negro. Criar o CsO não é abolir os estratos, mas instalar-se neles experimentando, atento para as suas fibrilações, variações, suas linhas de fuga. A delicadeza do texto de Ruth nos aponta para essa direção do tratamento. A clínica é uma espécie de aventura marítima que não se faz sem que nos lancemos na experiência do corpo. Embora paradoxal, esta experiência tem a concretude do sensível. Por isso, a importância da sensibilidade como destreza com as sensações, como habilidade da presença atenta do corpo, como manejo na sintonia afetiva. O sensível é a bússola sem norte do tratamento. O sensorial do corpo nos dá uma direção e um sentido para a clínica. Tratar, colocar em análise dada realidade, acompanhar os desvios de um processo, tudo isso não se faz sem a prudência do cuidado.

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