revista FOTÓGRAPHOS | A vida sem fronteiras

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A vida

sem

fronteiras

texto de Eduardo Oliveira • fotos de Luiz Moretti

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ue será que vem antes: o tema da foto ou a foto do tema? O estudo do destino ou o destino do estudo? O retrato do lugar ou o lugar do retrato? O projeto de exposição ou a exposição do projeto? Enfim, o ovo ou a galinha? O último desses enigmas não passa de uma discussão filosófica insolúvel e, no caso, apenas ilustrativa. Todos os anterio-

res, porém, são desvendados nesta matéria por um viajante apaixonado pela atividade fotográfica praticamente informal. O profissional Luiz Moretti, fotógrafo de publicidade da agência paulistana Lew’Lara, faz expedições como hobby, sem pretensões, mas o compromisso com a fotografia é coisa séria. Para ele, não dá para restringir fotos de viagens ao exótico, ao

programado, ou à prisão de um roteiro turístico preconcebido. Elas têm de mostrar um algo mais, sair da pauta para contar a história. Bons registros, para ele, são aqueles que emocionam, despertam a curiosidade e falam a língua do espectador. Para viajar com as lentes do fotógrafo, basta pegar carona nos depoimentos que, aos poucos, se vão revelando. Confira!

p A dissonância de cores entre os trajes das mulheres e a escrita vermelha na rústica porta azul foi registrada em um mercado indiano. As duas faziam compras pelo único vão do estabelecimento quando perceberam a presença do fotógrafo. O olhar da modelo apareceu para realçar a composição da cena. FOTÓGRAPHOS • 54


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p Lhasa (Tibete) dentro de um colossal templo budista. O ambiente possui diversas salas com imagens do Buda em várias encarnações. Os recipientes, com pavis acesos, possuem colheradas de manteiga e são preparados como oferendas pelos seguidores.

trou em uma cidade e disse: “Isto aqui não é Brasil.” Cada região tem seus costumes e originalidades, alguns jamais pensados pelo fotógrafo, porém conservam certa identidade.

Estudando a viagem

Algumas Pegadas Moretti tem uma lista grande de destinos por onde já deixou suas pegadas. A aventura começou na Chapada Diamantina, pela Bahia, quando o fotógrafo tinha 22 anos de idade. O segundo destino foi Bonito (MS). Dali para frente, a atividade voou alto e com escala por vários pontos, entre eles: Serra do Cipó (MG), Ibitipoca (MG), Ilhéus (BA), Recife (PE), Natal (RN), Lençóis Maranhenses (MA), Manaus (AM), Rio Solimões/Coari (AM), Pantanal (MS), Parque das Emas (GO), Araguaia (MT), Jalapão (TO), Florianópolis (SC) e Apiaí

(SP), um complexo de cavernas e grutas. A lista não se limitou às fronteiras nacionais. No exterior, já passou por Chile, Bolívia, Peru e Cuba e outras nações da Ásia, como Índia, Nepal e Tibete. Mesmo surpreendido com as peculiaridades culturais de outras nações, o Brasil ainda desperta um fascínio especial. “Não tem um lugar que chamou mais a minha atenção. Cada um tem seu encanto, sua magia, sua história. O bom do Brasil é que este é um país grande. Mesmo que passasse minha vida inteira viajando, não conseguiria conhecer tudo.” No entanto, Moretti nunca enFOTÓGRAPHOS • 56

A compra da passagem é só um detalhe. A viagem começa bem antes, nas primeiras pesquisas sobre o lugar. Esse estudo prepara o fotógrafo não apenas para o que ele vai ver, mas também para o que vai passar pelo caminho. Para saber onde procurar fotos, buscar o seu foco, a pesquisa deve abranger lugares e seus dados históricos. Uma investigação detalhada de costumes, características geográficas, culturais. “Quanto mais organizado, quanto mais você souber o que quer tirar do seu trabalho, melhor será o resultado”, diz Moretti. A pesquisa do fotógrafo tem seus limites. As informações que colhe nunca agem como pautas fixas, elas se adaptam, se transformam. Servem apenas como diretrizes para a hora da ação. Até porque, quando segura a máquina, o fotógrafo prefere ser o mais descontraído possível. “Não pego de um tema e vou atrás. Vou clicando e depois vejo o que aquele lugar me ofereceu. Com isso, fico despreocupado para sair fotografando.” Moretti continua: “Parto dos retratos, passo por stills do lugar, de algum objeto que me chamou a atenção e vou para a arquitetura em geral. O fotógrafo deve buscar fotos interessantes que possam retratar o lugar. Ou, em outra linguagem, podemse criar imagens como arte visual, uma coisa mais gráfica.”


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p Fim de tarde e um contraluz original em Malecón (Havana). Sentado no meio-fio, o fotógrafo achou a fotometria de uma silhueta, que trouxe um pouco de informação, e esperou o carro mais característico passar.


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Crianças Com crianças, toda preparação cai por terra. Vem uma cena nova, totalmente imprevisível a cada aproximação. Para obter fotos interessantes, nessa mira, é preciso conquistá-las de cara. Abrir alguns sorrisos, mostrar o equipamento para um deles, pegar o mais interessado como assistente por alguns minutos. Na língua que estiver, o importante é nunca deixar as fotos perderem o tom de brincadeira. Moretti volta para a escola junto com eles, mas, antes de falar seu nome e responder à chamada, faz alguns disparos de longe. Trabalha sempre com cromo e câmera 35 mm, equipamento que é a decepção de qualquer garoto, como confessa: “Eles querem ver a foto. Quando mostro que não é uma câmera digital, a maioria se decepciona”. Mesmo assim, a qualidade do cromo desperta mais a sua atenção e mostra-se como um equipamento obrigatório para o profissional.

peso da Máquina Basicamente, antes de fazer as malas, Moretti recomenda ao fotógrafo decidir entre fazer uma viagem fotográfica, com o objetivo de registrar um projeto autoral, ou um passeio com a namorada, a esposa ou os amigos. Segundo o fotógrafo, não dá para administrar as duas coisas ao mesmo tempo, os horários e as atividades não se cruzam e ocorrem frustrações, atritos dos dois lados.

Se a fotografia estiver em primeiro plano, a dica do viajante desta reportagem é simples: “Aconselho levar pouco equipamento. Porque chegar a um lugar com mochila, tripés, duas câmeras e cinco lentes chama mais atenção do que fotografar realmente. Reduza o equipamento a coisas básicas, como uma lente grande-angular, uma normal e uma teleobjetiva.” Quanto mais leve se sentir, melhor. Afinal, Moretti acredita que é o olhar que faz o estilo de um fotógrafo, e não o tamanho de sua bagagem. “Dá para fazer uma viagem assim até mesmo com

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uma câmera automática digital. Depende muito do que a pessoa quer contar. É muito mais o olhar do que o equipamento. A máquina, nesse caso, não tem peso nenhum”, comenta.

Palpites populares Se o objetivo é contar histórias diferentes das que ecoam por aí, o rumo nas expedições deve ser traçado entre uma foto e outra. Moretti anda muito, faz o seu caminho e pauta suas fotos na rua. Para ele: “Basta perguntar em voz alta: ‘Aqui perto tem alguma coisa interessante?’, que alguém logo se habilita a responder: ‘Tem uma vila, uma escola.’ Assim você vai de lugar a lugar, conhecendo e desbravando.” O cuidado na hora de analisar as informações e seguir viagem cai no receio de deparar com o convencional. “Entro em vilarejos, me dirijo ao interior dos Estados atrás de coisas que os turistas não conseguem fazer nos grandes centros. A sensação é outra”, diz. Fora do perímetro das grandes atrações turísticas, as pessoas olham para uma câmera de outra forma. Não há aquelas poses baratas, que sempre vêm acompanhadas de um singelo pedido de dinheiro em troca da foto. Ninguém está acostumado a servir de modelo, os instantes são mais naturais. Trata-se de pessoas que olham para a lente sem fingir de conta ou se esquecer de quem são.


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Portas abertas Durante suas expedições, o fotógrafo tem uma quedinha por portas abertas. Pode ser de uma escola ou de uma casa simples distante da cidade, mas as frestas sempre soam como um convite. “Gosto de entrar até o limite. Adoro escola. Se vejo uma porta aberta, entro até que apareça algum professor, diretor ou as crianças comecem a ficar em volta para descobrir o que estou fazendo ali. Sigo até o momento que acho que não dá mais. Tem que ter tato, apresentar-se sempre de forma educada, atenciosa e com respeito. Falar ‘licença’, ‘por favor’, ‘obrigado’ é indispensável”, expõe Moretti. Boas maneiras e simpatia ajudam também e podem se mostrar como o melhor cartão de visita que um fotógrafo exibe em suas expedições fotográficas. Nesse quesito, o brasileiro marca ponto, pois tem uma flexibilidade de comunicação que, mesmo desconhecendo a língua, sempre arranja um jeitinho de gesticular, mostrar-se de outra maneira e ganhar a foto de presente.

“Tem que ser um pouco cara-de-pau, porque, para conseguir a foto daquela pessoa, é preciso chegar perto, conversar com ela. Ir até o limite atrás de uma imagem e tentar isso da melhor forma possível, sem perder o respeito ou passar por cima de nada”, declara.

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q A escola estava com o portão aberto. O fotógrafo entrou, passou por algumas salas e chegou à diretoria. Fez a fotometria, enquadrou e, ainda olhando através da máquina, viu uma menina aparecer com pressa e começar a procurar algo. Após alguns segundos, ela sentiu que havia mais alguém, virou-se e clique.


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Sentir o lugar Moretti gosta quando o espectador gasta um bom tempo olhando para uma imagem. Quando, mesmo sem conhecer nada de fotografia, ele começa a reparar em detalhes, dissecar os vazios, analisar os objetos. Para ele, a receita de uma foto que provoque essa paquera é básica: “Tem que sentir um pouco mais o lugar, e não apenas clicar e sair andando. Com paciência, sempre dá para tirar alguma coisa a mais.”

A maioria dos fotógrafos busca ângulos apenas na linha da visão. Fica preso a costumes ou mesmo não tem o hábito de agachar, deslocar o corpo um pouco mais para o lado atrás de um enquadramento mais interessante. “É isto que acho importante: fazer primeiro um clique instintivo, mas também fazer o segundo disparo para pegar essa malícia”, relata. Grande parte das fotos não exige nenhum contorcionismo, basta apenas nutrir-se de algumas doses de paciência e esperar por uma nova cena, uma pessoa saindo de uma porta, ou uma criança aprontar uma daquelas, das boas. Nos retratos, é importante ficar muito atento aos modelos. O fotógrafo também não pode piscar, deixar de pensar em como a imagem vai sair. Um dos grandes problemas dessa modalidade da fotografia é o vício que atinge fotógrafos de todos os portes. Independentemente da área ou da prática, muitos profissionais fotografam seus modelos com um mesmo posicionamento. Usam a mesma profundidade de campo (abertura de diafragma), enquadram como se tentassem recriar uma imagem já registrada. E o foco não é por aí. Ele define: “As situações são diferentes, alguns retratos ficam legais com a pessoa te olhando. Outros, melhores de forma mais informal, espontânea. Depende de cada caso.”

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desembarque As expedições fotográficas de Moretti são por conta. Em alguns projetos, dá para conseguir apoio, mas é um processo demorado e cansativo. Como grande parte do dia ele passa no estúdio, “Não sobra tempo de ir atrás. Então, acabo pagando. Adoro fotografia, é minha profissão e também meu hobby”, declara. No seu último trabalho, realizado em uma viagem pela Índia, aproveitou para testar algumas lentes. “É uma viagem de férias, onde eu tento estudar e resolver alguns problemas que aparecem no meio das fotos.” E continua: “Vou experimentando. Às vezes, acerto; em outras, erro. E isso vai acrescentando, a linguagem melhora a cada viagem.” De volta ao Brasil, selecionou o material e exibiu para os amigos. Um dos sócios da Lew’Lara, agência de publicidade onde trabalha, também viu e imediatamente deu a idéia de fazer uma exposição. Luiz Moretti nunca embarca em alguma viagem com pretensões de abrir mostras ou editar um livro com o seu trabalho, embora já tenha recebido algumas propostas. É uma busca por satisfação pessoal. A realização é conseqüência de um trabalho que deu certo e serve de inspiração para novos rumos. Afinal, a dúvida que surge com a revelação das fotos, no fim de um período longe de casa, é sempre a mesma: “Qual será a próxima viagem?” <


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