revista FOTÓGRAPHOS | Retratos em P&B

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Ensaio

RETRATOS EM PRETO-E-BRANCO

Retratos em

preto-e-branco texto de Eduardo Oliveira • fotos de Juan Esteves

O

fotojornalismo é matéria-prima para muitos trabalhos. Seja como simples inspiração seja como passaporte para ensaios. No setor dos retratos em P&B, marca posição o recém-lançado livro Presença. O trabalho que retrata a alma de importantes artistas brasileiros, ou “abrasileirados”, começou como simples pautas de cultura para noticiários impressos. Mas, com o passar dos anos, rendeu ao fotógrafo uma

coleção significativa de fotografias sobre um tema jamais exposto no país. O projeto tem a autoria de Juan Esteves, um profissional que já atuou como fotógrafo em diversos veículos de comunicação, desde o início da carreira no jornal Tribuna de Santos até a atuação na Folha de S.Paulo, onde veio a se tornar editor algum tempo depois. Trata-se de uma escolha pessoal, que reúne 138 artistas dentre os mais expres-

sivos nomes das gravuras, artes plásticas e arquitetônicas. As celebridades fotográficas também não escapam às lentes de Juan. Ele clicou ídolos como Sebastião Salgado, Cristiano Mascaro, Otto Stupakoff, German Lorca, Cassio Vasconselos e Arnaldo Pappalardo. Algumas imagens se fixaram como heranças históricas após a morte de seus modelos. Isso aconteceu com os retratos de Aldemir Martins, Pierre Verger, Amilcar de Castro e outros. Desde a foto mais antiga do livro, passaram-se mais de 20 anos de produção. As peças-chave foram fotografadas mais de uma vez, com longos intervalos de tempo, sob outros momentos artísticos e com idades diferentes, o que rendeu ao profissional presenças distintas das mesmas pessoas. Juan investiu tempo, concentrou-se no que qualifica como “o retrato pelo retrato”. A arte fotográfica, em seu livro, nutre-se da criação artística com o propósito de capturar gestos, olhares, histórias de vida e expressões. Enfim, registrar a presença física e mortal de cada artista, por mais imortal que seu nome possa soar. Nas próximas linhas, truques e dicas de um profissional que, ao fotografar artistas, produz e enriquece a sua própria obra de arte.

t Franz Krajcberg posou para o fotógrafo no quintal da casa do artista Ricardo Ribemboin, em Pinheiros (SP). Registro feito com uma HasselBlad 501 C (6 x 6 cm), objetiva Sonnar 150 mm e filme Kodak T-Max de ISO 100. FOTÓGRAPHOS • 44


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p Iberê Camargo foi fotografado com a esposa durante uma mostra, meses antes da morte dele. Leica M6 com objetiva 50 mm e filme Neopan 400. u Francisco Stockinger no miniateliê que tem em sua casa, à beira do Rio Guaíba, Porto Alegre (RS). Pequeno quando comparado com suas obras. A maioria foi produzida em uma fundição, localizada perto da residêndia do artista. q Aldemir Martins, famoso por conquistar a elite com quadros de gatos, fez pose para o fotógrafo em 1999, alguns anos antes de seu falecimento.

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t A iluminação no ateliê do artista Arcângelo Ianelli foi feita com um flash de 400 watts e apoio na luz ambiente que invadia o local.

Boneco Já na Folha de S.Paulo, Juan testemunhou um período de revolução no jornal. A empresa estabeleceu várias mudanças, a principal encaminhava os profissionais para as áreas que eles mostravam mais afinidade. Como a disputa pelas melhores pautas era acirrada, o fotógrafo preferiu investir em uma área de que gostava, mas sofria certo preconceito. Os retratos ou “bonecos”, como chamavam em tom depreciativo até pouco tempo, eram renegados. Eles inibiam a criatividade do profissional, limitavam-se ao clichê do enquadramento da cintura para cima. Contudo, aos poucos a atividade foi evoluindo e se desfazendo das imagens predefinidas. “O jornalismo ainda era rançoso, significava fotografia de guerra, ação, tragédias. Eu já gostava de retratos. Enquanto muitos faziam com desprezo, eu adorava e mostro o mesmo sentimento até hoje”, relata.

Em campo

P&B para retratos “Gosto da luz que o P&B capta, as fotos saem dramáticas, totalmente irreais.” Juan continua: “Embora existam pessoas [como os daltônicos, por exemplo] que enxerguem a vida sem cores, a imagem em P&B foge totalmente da realidade. Tem mais a ver com o que penso. Para mim, fotografia é isto: uma interpretação da realidade.” As cores, o fotógrafo deixa apenas para as reportagens jornalísticas. Quando o objetivo é fazer um registro autoral, não há dúvidas quanto ao tipo de película que ele vai encaixar em sua câmera. A preferência pelo P&B lhe rendia ainda mais trabalho na hora de aproveitar uma pauta. Afinal, pensar uma fotografia em P&B é diferente de se preparar para fazer uma imagem colorida. “Muda a luz, a composição, tudo. O P&B trabalha com contrastes fortes, impactos com cinza. O filme colorido se expressa com temperatura e saturação, é outra história”, define Juan. Muitas das imagens que compõem o livro Presença foram capturadas com uma HasselBlad de médio formato (6 x 6 cm). Entretanto, nas imagens em 35 mm, a

escolha do profissional foi por uma Leica M6 Rangefinder (com o visor paralelo).

Dèjá-vu A primeira pauta de arte, aproveitada na edição do livro, tinha como alvo a arquiteta Lina Bo Bardi. Isso em 1985 e com a cidade de Santos como pano de fundo. Naquela época, Juan ainda trabalhava só para o jornal. Quando entrou na Folha, passou a fotografar duplamente, em uma espécie de “dèjá-vu” fotográfico. Fazia a foto para a publicação e, no tempo que sobrava, tirava da mochila sua câmera com filme P&B. “Da década de 90 para frente, fotografava duas vezes. O que me interessava, fazia para mim também. Aos poucos, fui abrindo um arquivo pessoal com retratos”, comenta. Várias fotos que compõem o livro surgiram assim, de uma atividade paralela, ainda sem fins definidos. Mas o sistema de trabalho dava ares para brincadeiras. Juan lembra-se de que, por onde andava, os editores sempre perguntavam: “Aquele retrato do fulano é seu ou do jornal? Você pode emprestar para a gente publicar?” FOTÓGRAPHOS • 46

Juan traz os retratos de outros trabalhos. Em 1999, lançou o livro 55 Portraits. E, ainda aproveitando as portas que a Folha abria, ele fez exposições no Japão com fotografias de músicos clicados durante o Free Jazz e o Carlton Dance Festival. Nas exposições, as pautas apontavam para a cobertura dos shows e fotos da coletiva de imprensa. Mas o fotógrafo sempre arranjava um jeitinho de se desdobrar. Ele armava um pequeno estúdio em algum ponto e, assim que aparecia uma brecha, puxava o artista de lado e fazia a foto. Juan se esforçava para tirar toda a informação das imagens autorais. Semanas depois do Free Jazz, qualquer detalhe que lembrasse o show deixaria a imagem presa naquele episódio. A pessoa deixa de ser o foco das atenções, e a imagem fica parecendo notícia antiga. Juan sempre procura imagens que se desvinculem do acontecimento e foquem o personagem: “Buscava uma foto que pudesse ser atemporal. Que pudesse atravessar anos. Toda vez que o fotógrafo data uma fotografia, ele limita muito seu trabalho.”


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Lina Bo Bardi na famosa Casa de Vidro, em S茫o Paulo. O registro foi feito em 1992, sete anos ap贸s a primeira foto da arquiteta. Registro gravado com uma Leica M6, objetiva 50 mm e Fuji Neopan ISO 400.


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O avesso da pose

p Luís Paulo Baravelli aparece desenhando, ao lado da lareira de sua casa. O artista – que é desenhista, pintor, gravador e escultor – construiu seu ateliê em uma antiga fábrica da região. Foto feita com uma câmera Leica e objetiva 50 mm.

Na opinião de Juan, quanto menos informações exteriores, mais tempo a imagem durará. Se o fotógrafo coloca um objeto antigo no fundo, a obsolescência aumenta, o que não significa deixar tudo de lado. Alguns elementos extras podem ser usados, mas sempre com a consciência do perecível. Muitos objetos, cenários, trajes ou outros ornamentos ajudam a definir a personalidade ou narrar um pouco da vida de cada personagem. Nessa coleção de retratos, Juan aproveita de tudo. Fotografa dentro de hotéis, e de casas, grandes museus e bagunçados ateliês. O importante é não se deslumbrar demais com o ambiente e esquecer o real motivo da fotografia. Quando o cenário não interessa ou mostra potencial para desviar a atenção do espectador, ele puxa seu próprio pano de fundo, um tecido de algodão tingido só para esconder algumas informações e ressaltar a fisionomia do artista. Nas fotografias registradas com a câmera de 35 mm, Juan serve-se da iluminação ambiente como pincel e faz de tudo para aproveitar as luzes que invadem pela janela. No entanto, quando tinha em mãos a Hassel de 6 x 6 cm, o olhar ia para o outro lado. Nas imagens de médio formato, gosta de abusar da sensibilidade do filme, registrar a textura da pele, o lacrimejo. Enfim, entrar na alma do artista retratado e tentar trazer para a foto um ponto interessante de sua biografia. FOTÓGRAPHOS • 48

Se atrás de cada foto há uma história, imagine o que não há para contar de retratos com grandes nomes da arte brasileira. Em alguns casos, o excêntrico toma conta. Mas a maioria desses artistas anda pelas ruas, fantasiada de simples mortais, sem sofrer nenhuma interferência. A maior surpresa ocorreu no encontro com o artista plástico Abraham Palatinik. Juan não teve problema nenhum para agendar a sessão de fotos, porém, assim que Palatinik se viu na função de fotografado, logo se cansou e disse que não queria mais. Foram seis fotogramas coloridos e outros seis em P&B, todos registrados em apenas cinco minutos. Por sorte, a luz estava boa e a imagem entrou na seleção do livro. Já na foto de José Moraes, o drama foi outro. Juan teve trabalho para agendar uma visita. O pintor adiava, cancelava. Voltava a combinar outro dia, mas sempre fugia às vésperas. Com uma ajuda do crítico de arte Olívio Tavares de Araújo, que tinha um contato maior com o artista, o fotógrafo conseguiu fazer as fotos. No dia da sessão de fotos, Juan entendeu o motivo de tantos empecilhos. José Moraes sofria por rebote ao ver sua esposa muito doente. O artista morreu poucos anos após o registro, mas, assim que viu a fotografia, falou: “Você conseguiu pegar o que é a minha vida.” Para tudo dar certo, Juan pesquisava antes de fazer contato. Para ele, é essencial que o fotógrafo conheça o trabalho do modelo. Se o artista suspeitar que não há respeito do outro lado da câmera, a foto não sai. E a dica serve para todos os tipos de trabalho, modelos e fotógrafos têm de jogar juntos, no mesmo time.

A publicação O livro Presença foi lançado no início de novembro e traz 153 fotografias de 138 artistas. Alguns dos principais personagens voltam a aparecer em épocas e momentos diferentes. Esse é o caso de Lina Bo Bardi, Tomie Ohtake, Antônio Henrique Amaral, Frans Weissmann, entre outros artistas. O trabalho tem o patrocínio da Fundação Stickel e pode ser encontrado nas melhores livrarias, ou adquirido através do site: www.terceironome.com.br.


Retrato do pintor e desenhista José de Moraes no seu ateliê, com destaque para a aliança do artista, fazendo referência ao drama da esposa, que sofria de Alzeimer. Câmera HasselBlad 501 C com lente de 150 mm e filme T-MAX 100.


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