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1. luz: “matéria” mutável

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REFERÊNCIAS

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“No princípio, Deus criou os céus e a terra. A terra estava informe e vazia; as trevas cobriam o abismo (...) E Deus disse: “Faça-se a luz!” E a luz foi feita.” Gênesis 1:3

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Não há dúvidas, nem para os espiritualistas, nem para os versados nas ciências, da essencialidade da luz, não só para a existência e sustento de vida na Terra, mas também para a compreensão visual da própria realidade material, sem luz há apenas o breu, a matéria pode estar lá mas sem a luz refletindo sobre ela e chegando aos nossos olhos não temos a possibilidade de vê-la. Introduzida essa ideia, nesse capítulo serão tratados os conceitos de luz e o sentido da visão a partir da fenomenologia, que de acordo com o filósofo Husserl , é o estudo dos fenômenos, como o sujeito os entende, sem interferências externas, permitindo uma maior abstração da realidade, tal visão é explorada por Maurice Marleau-Ponty (1962) em seu livro Fenomenologia da Percepção em que a descreve como uma filosofia que tenta compreender os fatos do mundo, em um contato ingênuo, quase que primitivo, ou seja, a informação que é observada, ou sentida, é a absorvida.

“Essa mancha vermelha que vejo no tapete, ela só é vermelha levando em conta uma sombra que a perpassa, sua qualidade só aparece em relação com os jogos da luz e, portanto, como elemento de uma configuração espacial. Aliás a cor só é determinada se se estende em uma superfície; uma superfície muito pequena seria inqualificável. Enfim, este vermelho não seria literalmente o mesmo se não fosse o “vermelho lanoso” de um tapete.” (MARLEAU-PONTY, 1962) Room for one colour, 1997 – Museum of Modern Art of New York Foto: Christopher Burke

Room for one colour, 1997 – Museum of Modern Art of New York Foto: Christopher Burke

A teoria das cores tem forte importância ao se tratar da fenomenologia da luz nos espaços, como dito antes, só vemos um objeto e sua determinada cor, pelo reflexo da luz que chega aos olhos, ou seja, uma rosa só é vermelha porque reflete a luz vermelha presente na luz branca, já que o branco ao se tratar de luz é a junção de todas as cores.

Se incidirmos a luz branca sobre um objeto opaco, parte da luz é absorvida e outra parte será refletida. A cor de um objeto resulta da cor da luz que este consegue refletir. Então, se uma luz não é branca, não tem todas as cores para refletir a cor “real” de um objeto, de acordo com a fenomenologia, ele não tem essa cor.

The Weather Project, 2009 Foto: Tate Photography

The Weather Project, 2009 Foto: Olafur Eliasson

Um exemplo ideal de como diferentes cores de luz pode criar diferentes realidades, poderá ser observado nas obras do artista dinamarquês-islandês Olafur Eliasson, na obra Room for one colour (1997). Ele preenche uma sala com luzes amarelas monocromáticas, que não são capazes de refletir cor nenhuma, então ao entrar na sala, tudo, inclusive os próprios visitantes, ficam em preto e branco, distorcendo pelo tempo que está na sala, a realidade que estamos acostumados de um mundo a cores.

Essa ideia foi apurada na instalação The Wheather Project (2003) realizada no Tate Modern, em Londres, onde as mesmas luzes foram usadas em um painel semi-circular colado rente a um teto de espelhos no átrio do museu, criando um universo paralelo, uma ilusão de que o próprio sol

The blind passenger, 2010 Foto: Anders Sune Berg

Aparelho cinecromático Fontre: Coleção MAM SP

estava flutuando ali, já em Your Blind Passenger (2010), não só as luzes monocromáticas foram usadas, removendo as cores da equação, mas um túnel foi preenchido de névoa, fazendo com que o visitante usasse de seus outros sentidos para se locomover, o tato e audição, obrigando-o a confiar nos estímulos sensoriais, Eliasson descreve o que tenta fazer com sua arte no documentário Abstract (2019), ele diz, “ o que consideramos verdade depende do ponto de vista, nós criamos a realidade conforme passamos pelos lugares.”

No Brasil, o artista plástico Abraham Palatnik, mistura cores com luz em seus Aparelhos Cinecromáticos (1969/86), que são nada mais que caixas com lâmpadas no seu interior, cobertas por telas coloridas que se movimentam por motores. Os primeiros, Azul e roxo em primeiro movimento, foram tão inovadores para a época, que, quando expostos na I Bienal de São Paulo , em 1951, a comissão internacional não sabia como qualifica-los, pois não se enquadravam em nenhuma das categorias da bienal, mas por chamarem tanto a atenção, a solução foi lhes dar uma menção honrosa, para garantir o reconhecimento por um trabalho tão original e instigante.

Mas não só com cor que a luz pode criar sensações, a quantidade de luz num ambiente também pode alterar a percepção dele, o arquiteto Peter Zumthor explora isso eximiamente no edifício Thermal Baths de Vals, as termas são metade incrustadas na montanha, criando uma noção de simbiose e fusão com o entorno, ao mesmo tempo que suas duras e grandes paredes de quartzo contrastam com a neve ao redor, seu interior é escuro, com poucas frestas, na tentativa de exaltar a grandeza das paredes, a luz natural vinda dessas aberturas ilumina indiretamente o espaço, criando um ar sombrio, efêmero, quase que divino, ressaltando a força e os materiais escolhidos pelo arquiteto. A mistura de sensações, o claro e escuro, o calor das termas ao lado da paisagem de neve, naturalmente associada ao frio, cria uma ambiguidade de sensações única aos visitantes.

Um fenômeno parecido pode ser observado na sala Holocaust Tower, no Museu Judaico de Berlim, projetado por Daniel Libeskind, onde uma sala vazia, de concreto, com um pé direito de doze metros é iluminada apenas por uma abertura estreita no teto, Libeskind narra em seu livro The Space of Encounter (1996) que o intuito era causar a sensação de opressão, fazer as pessoas sentirem um pouco do que os milhões de judeus presos nos campos de concentração durante o holocausto sentiram, o que realmente é algo denso e poderoso, e impressionante ao mesmo tempo dele praticamente só ter usado da luz para alcançar seu objetivo.

Thermal Baths em Vals, Suiça Foto: Fernando Guerra

Holocaus Tower Foto: kw

Juhani Pallasmaa (1997), arquiteto finlandês, trata das investigações filosóficas acerca da fenomenologia de Marleau-Ponty do ponto de vista arquitetônico no livro Os Olhos da Pele, a importância dos cinco sentidos para uma experiência prazerosa na arquitetura, o uso de textura, materiais e luzes são de extrema importância. Ele decorre que toda experiência comovente na arquitetura tem de ser sensorial, pois as características do espaço são medidas, igualmente, pelos olhos, ouvidos, nariz, pele, língua e músculos.

Há uma certa crítica nessa obra da valorização da visão em detrimento dos outros sentidos, mas, sem dúvida nenhuma, até o autor reconhece, que a visão é tão importante que se torna uma extensão dos demais, de acordo com ele, os olhos definem a interface entre o tato, a pele e o a ambiente, o citando: “Até mesmo os olhos tocam”. A visão revela o que o tato já sabe, Pallasmaa considera o tato como o inconsciente da visão. Os olhos acariciam superfícies e criam imagens, é essa sensação tátil do olhar que determina se algo é prazeroso ou desagradável, para corroborar essa ideia, ele cita Marleau-Ponty:

“Vemos a profundidade, a suavidade, a maciez, a dureza dos objetos; Cézanne chegou a afirmar que via seus odores. Se o pintor deseja expressar o mundo, o arranjo de suas cores deve portar consigo esse todo indivisível, caso contrário seu quadro apenas conseguirá sugerir as coisas e não lhes dará a unidade imperativa, a presença, a plenitude insuperável que para nós é a própria definição daquilo que é real.” (MARLEAU-PONTY, 1962)

Paisagem diurna do Monte Santa Vitória, por Paul Cézanne (c. 1904-6). Fonte: Coleção Sra. Carrol S. Tyson

Indo para um contexto mais urbano, Robert Venturi (1972) analisa a cidade de Las Vegas como um exemplo de como a luz pode ser usada para passar mensagens especificas, os anúncios luminosos, presentes por toda cidade, existem em diversos meios (palavras, imagens, esculturas, etc) com intuito de informar e também persuadir. Eles existem para chamar a atenção, seduzir os pedestres ou quem passa de carro, para induzir esses observadores a fazer o que os letreiros sugerem. Tal força é dessa luz.

Outro uso para a luz nessa cidade é o a da ilusão, o labirinto de salas e pátios sob o teto dos cassinos, hotéis e shoppings centers jamais se liga com a iluminação externa, ou com o espaço externo. Isso desorienta o visitante no espaço e tempo, o faz perder a noção de onde está ou de que horas são, trazendo uma realidade onde o tempo é ilimitado, já que a iluminação é a mesma dia e noite. Por mais perverso que pareça, mexer diretamente no ritmo circadiano dos visitantes, isso é uma estratégia genial pra que esses espaços continuem vendendo e rodando dinheiro, que é, no final das contas, o principal intuito desses lugares.

Não só em Las Vegas o contexto urbano se deleita com a luz, todas as grandes metrópoles da atualidade vêm mudando de puramente organizações funcionais para espetáculos de cor, luz, movimento e sons. São cidades que parecem oriundas do que acreditamos ser filmes utópicos de ficção cientifica, mas são inteiramente reais. Atuamos nas cidades como palcos elaborados com textos, adereços, música e vestimentas estranhas

Letreiros de Las Vegas Fonte: Wikimédia

Cassino Bellagio Fonte: Wikimédia

Peter Weibel (2015) diz em seu texto para o livro SuperLux que apreciar a cor em seu todo, como uma forma de energia, tornou fácil para os artistas do passado substituir a luz pela cor artificial, a tinta, nesse sentido, cor se tornou uma representação da luz, já hoje, com as possibilidades tecnológicas quase infinitas que existem, a luz é o conceito central, independente, é o material, é o fim e o meio para produzir uma arte real com energia, uma quase “matéria” versátil cujo limite é a própria imaginação humana.

De maneira possivelmente subversiva, o que Weibel prevê como futuro próximo para a arte e a arquitetura, será uma produção com intenção de substituir uma definição modernista da arquitetura, composições de sólidos e vazios “sob a luz” com uma proposta ousada de arquitetura como luz.

Instalação “77 Million Paintings” por Brian Eno, na fachada da Opera House em Sydney Foto: Acervo Getty

Projeção de conotação política em fachada de prédio em São Paulo Fonte: Instagram

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