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2.2 A LUZ E A CIÊNCIA EM CENA

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3. o techno

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Com o fim da Idade Média, no século XV, se deu o inicio do Renascimento, novas ideias surgiram e se afloraram, e a Ciência se levantava das cinzas e confrontava a “verdade”, até então irrefutável, da Igreja Católica, o termo, Renascimento, faz referência ao ressurgimento do interesse pelos tesouros intelectuais e artísticos da Grécia e Roma Antiga. A redescoberta do mundo clássico alterou severamente as artes e a arquitetura do período, devido a uma observação meticulosa da forma humana e da natureza, assim como técnicas como a perspectiva e o chiaroescuro.

Essa última, traduzido como “luz e sombra”, é uma das estratégias inovadoras da pintura renascentista do século XV, junto ao sfumato, cangiante e unione. O chiaroscuro se define pelo contraste entre luz e sombra na representação de um objeto, porém com número menor de nuances tonais, nas transições, se comparado com o sfumato. A técnica exige conhecimentos de perspectiva, dos efeitos físicos que a luz provoca nas diversas superfícies, dos brilhos, das tintas que estão sendo utilizadas e de sua matização. O chiaroscuro define os objetos representados sem usar linhas de contorno em todo o perímetro, mas principalmente pelo contraste entre as tonalidades do objeto e do fundo; faz parte de uma idealização que inclui a experiência da pintura, contrariando, de certo modo, a linearidade que caracteriza a pintura do Renascimento, exemplificando, os personagens de Leonardo existem em um espaço primariamente definido pela luz, em oposição a uma estrutura definida a partir da perspectiva 2.2. A LUZ E a ciência em cena

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Na arquitetura, as coisas eram um pouco diferentes, enquanto a pintura ressaltava a luz através do contraste, nas edificações o uso da luz era mais pragmático, diferente do gótico onde seu uso era necessário para passar uma mensagem, no Renascimento as mensagens estavam pintadas em afrescos, trompe l’oeil, nas paredes e abóbadas das catedrais, palácios e palacetes, ou seja, a ideia da luz agora era iluminar bem as imagens, de representação inteiramente figurativa, para serem melhores compreendidas pelo observador, já que em muitos casos essas imagens tinham o intuito de educar de maneira visual passagens bíblicas, mitológicas e da literatura ou até representar fielmente a aparência de pessoas reais, vivas ou mortas, então precisavam ter uma maior legibilidade.

Mas isso não durou por muito tempo, esse uso de luz mais pragmático perdeu força no barroco, ainda haviam pinturas e imagens para serem visualizadas, mas esse não era o foco central, a luz voltou a ser vista como experiência. Depois de anos usando da teatralidade do chiaroescuro na pintura os arquitetos da época conseguiram a traduzir para seus ambientes projetados, John Summerson, autor do livro A Linguagem Clássica da Arquitetura, nomeia o capítulo onde trata sobre o movimento como “ A Retórica do Barroco”, isso porque, segundo ele, o barroco é quase sempre retórico, no sentido de ser uma oratória grandiosa, planejada e persuasiva que frequentemente se contradiz, há nele o uso da racionalidade clássica,

Efeito de chiaroescuro na pintura Dama com Arminho (1489-1490) de Leonardo da Vinci

Janelas altas iluminando os afrescos da Capela Sistina, no Vaticano Foto: Sonia Cunha, Cultura Genial

Teatralidade e opulência do interior da Igreja de São Francisco em Porto, Portugal Foto: Paulo Chaves

Pintura representando o Teatro Farnese, do século XV,por Giulio Ghirardi

pragmática, que foi tratada quando se falou em renascimento, mas ao mesmo tempo um desvio dessa linguagem da Antiguidade , em direção a um rumo mais criativo, cenográfico, a uma concepção da fachada e seus interiores com luz e sombra, mais como um jogo de significados do que, realmente, afirmações. O autor trata a monumentalidade da arquitetura barroca e seu caráter teatral como um rompimento do frio pedantismo dos ressurgimentos clássicos vistos antes, com um caráter próprio, usa como adjetivo a expressão “invenção dramática, quase melodramática”, isso demonstra o que quis dizer ao usar a palavra “retórica”, nos edifícios do período, a linguagem clássica, a luz e a ausência dela são empregadas com força e drama para vencer nossas resistências e nos persuadir do que elas têm a comunicar.

Passado a iluminação teatral do barroco, deve-se analisar a iluminação teatral daquilo que originou a palavra, o teatro. Até o século XVI as peças teatrais eram realizadas ao ar livre, iluminadas pela luz solar, mas quando os espetáculos passaram a ser realizados e locais fechados, criou-se uma necessidade da iluminação cênica e dessa necessidade surgiu um universo de novas possibilidades. De uma maneira geral, a luz era pensada como parte integrante da cenografia e seus movimentos, Sebastiano Sérlio, por exemplo, é bastante preciso em seu Libro Secondo di Perspettiva da Architettura, ao separar a função da luz geral que ilumina o cenário e os atores e os “efeitos especiais”, “truques” que transformam a luz da cena e podem interferir na

Performance romântica no Teatro Sadler’s Wells, pintura por Thomas Rowlandson (1810) ação dramática. Mas como o próprio nome já diz, por enquanto são chamados efeitos “especiais”.

A evolução das técnicas de iluminação no teatro são retratadas eximiamente por Cibele Simões (2015) em sua publicação À Luz da Linguagem – Um olhar histórico sobre as funções da iluminação cênica, na Revista Sala Preta, a autora diz que os cenógrafos-iluminadores da época renascentista desenvolveram as bases geométricas do desenho técnico de luz que usamos até hoje, diversificando a posição das fontes de luz e estudando os ângulos de incidência, com objetivo de criar volume e aumentar a noção de profundidade, onde o ângulo de 45º para iluminar de forma harmoniosa, as luzes laterais para aumentar a noção de perspectiva, a luz de um lado só para desenhar o volume e a contraluz para destacar a figura do fundo. A racionalidade genial dos artistas da técnica, suas regras e procedimentos, baseadas na pujança da pintura renascentista, foi responsável pela composição do desenho de luz, da relação entre a iluminação e a pintura, incluindo a criação de atmosferas luminosas e o uso de cores, se instaurou no teatro graças as inovações trazidas pelo Renascimento e sua filosofia totalizante e naturalista.

Séculos depois, o Romantismo, que acompanha a chegada do gás, as atmosferas emocionais invadem os palcos, a possibilidade de controle das intensidades permite seguir os conselhos de Leone de’Sommi , movimentando a luz, respirando com o drama da peça para levar à plateia a emoção do espetáculo, do sombrio ao brilhante, do soturno ao júbilo,

da infelicidade para a felicidade, nos dramas e nas tragédias, os climas são a tônica dominante da luz romântica. No entanto, sem arroubos bruscos ou incoerentes, como uma noite de luar, um belo amanhecer, uma floresta escura ou uma festa brilhante, a luz é um adjetivo ou uma linda música de acompanhamento para fazer rir ou chorar. Das mais sofisticadas atmosferas luminosas nos palcos ao mais óbvio melodrama televisivo, para não falar na maestria técnica das óperas e musicais, os climas luminosos sempre tiveram uma influência do Romantismo.

Em 1879, a invenção da lâmpada incandescente possibilitou a generalização do uso da eletricidade na iluminação, permitindo uma grande intensidade de luz, com um custo possível e uma segurança bem maior do que a luz do fogo.

A partir de 1880 os teatros começaram trocar seus sistemas de iluminação a gás por sistemas elétricos, resultando numa rapidez inacreditável. Essa descoberta foi considerada a grande revolução da iluminação cênica, a ponto de muitos historiadores pensarem nessa data como o início da história da iluminação ou mesmo da encenação moderna. Com a descoberta da lâmpada incandescente e com a criação dos dimmers, a eletricidade permitiu à iluminação cênica o controle central de todas as fontes de luz do teatro, mais do que já havia sido conquistado, em parte com o gás, onde possibilitou o blecaute.

A grande novidade da iluminação elétrica, portanto, não é apenas a qualidade da luz e sim a possibilidade da “não luz”, que ofuscada pela lâmpada acesa demorará décadas para ser percebida, pois além de dar visibilidade, a iluminação cênica ganhou o poder de esconder. Em um piscar de olhos faz aparecer e desaparecer a cena ou parte dela. Através do movimento entre a luz, as trevas e suas miríades de combinações, o teatro acessa além do visível, o invisível e através dele a sugestão, a comunicação possível daquilo que é indizível.

A iluminação finalmente liberta das amarras da reprodução da realidade, transpõe o visível para criar novas formas, por meio de uma reorganização dos elementos visuais: linhas, formas, volumes e cores ganham flexibilidade através do movimento da luz em sua relação com a matéria e os olhos. A luz deixa de copiar o sol, a lareira e o abajur das casas de família e passa a escrever no espaço e no tempo, como uma linguagem explícita da cena. Além de dar visibilidade, volume, beleza, localização espacial e atmosfera apropriada a cada peça, a luz passa a ter por função a edição do visível no espaço e no tempo, se transformando em elemento estrutural e estruturante na construção do espetáculo.

Essa revolução não é só estética, não é só técnica, a iluminação cênica é ao mesmo tempo arte e técnica. A evolução da luz elétrica possibilitou os meios técnicos para essa mudança conceitual no teatro, assim como possibilitou a criação de novas formas de arte: as artes da tecnologia.

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