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3.1. O MOVIMENTO
Partindo do trabalho (Re) Existir Eletrônico, da arquiteta Julia Casadei (2018), analisa-se a história do techno como movimento, assim como uma transgressão sociocultural dentro da cidade, isso pode ser observado desde o início dessa produção até os dias de hoje em diversos locais.
Detroit, nos Estados Unidos da América, é considerada popularmente como a capital do “techno”, durante os anos 1970, um extenso declínio econômico atingiu a cidade, primordialmente industrial, assim nasce esse estilo musical de um sentimento de necessidade da música pela música, tendendo a uma desvinculação do mercado formal, intrinsicamente elitista, proveniente de um entusiasmo da alma, música para dançar, no intuito de representar as verdadeiras entranhas das dinâmicas urbano-sociais da cidade.
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O som da música em si, refletia o declínio da cidade, através de uma estética maquinaria, familiarmente industrial, criando sons incomuns que se definiriam como “o motor da cidade”, reproduzindo os ruídos robóticos das fabricas de automóveis. Apesar do declínio constante e prolongado da cidade, o rádio local e uma cena ativa de clubes conseguiram conectar comunidades, especialmente a comunidade negra, criando assim a plataforma para o surgimento do Techno de Detroit.
O resultado de 1967 construída uma mentalidade separatista, com o Movimento dos Direitos Civis ainda por surgir, foi uma cidade majoritariamente negra e com poucos recursos 3.1. o movimento
Placa em Detroit, se auto intitulando, “A Cidade do Techno” Fonte: Google Imagens gerando desconforto na população e provocando fortes sentimentos agressivos, motivando ações de repressão do governo.
Na mesma época em que a revolução industrial estimula o desemprego, pairando a desesperança. - “As pessoas não tinham dinheiro para comprar comida, roupa, ou qualquer outro luxo e esse sentimento aparece na nossa música”, (THOMPSOM, Derrik para HIGH TECH SOUL, parte 1,2006)
Após a Segunda Guerra Mundial, o governo norte-americano incentivou a mudança da população do centro para o subúrbio, repercutindo no esvaziamento dos centros urbanos, restando no local, apenas aqueles que não tinham condições para realizar o sonho vendido do luxo suburbano.
Estes foram os lugares conhecidos como as sobras de espaço, que o Techno, caminhando em sentido contrário à migração suburbana vigente na época, se inseriu, se expandiu e fez o seu espaço, por sua vez ressignificando por um dado instante algum lugar, que talvez para muitos seria impossível encontrar um uso.
A Música eletrônica, como advento novo, caminhou em constante busca de território para acontecer, encontrando-se em lugares esquecidos e ociosos. Nasceu com a intenção de resistir a algo que estava acontecendo, com peso social, histórico e geográfico, produzido inicialmente por pessoas que se encontravam a mercê da sociedade, como aconteceu em Nova York no Hip Hop, ou em Chicago com o House, também produzido pela comunidade negra.
Frequentadores do Park Avenue Club, em Detroit, nos anos 1980 Foto: Todd Johnson Dessa forma, começa surgir o conceito estético, social e político atrelado ao Techno, sendo adotada uma nova maneira de se apropriar daqueles espaços na cidade, que devido ao contexto histórico vigente, a crise automobilística e a segregação social, se encontravam em desuso, para existirem uma nova forma, a partir da experimentação.
São nesses outros lugares, que de certa forma deixaram de funcionar como espaço de exploração e manifestação, que segundo Solá-Morales se transformaram locais do circuito da cidade, bordas carentes de uma incorporação ineficaz, lugares que por um tempo foram povoados e depois encontraram-se esquecidos.
Mais tarde no fim dos anos 80, surge em Detroit, um coletivo musical, fundado pelo DJ produtor Jeff Mills e seu amigo Mike Banks, também Dj e Produtor, chamado Underground Resistence, que exploravam a fusão do estilo musical com críticas políticas, intimamente ligadas ao sistema de ocupação da cidade.
A primeira onda do Techno de Detroit atingiu o pico em 1988-89, com a popularidade de artistas como Derrick May, Kevin Saunderson, Blake Baxter e Chez Damier, além de clubes como St. Andrews Hall, Majestic Theatre,The Shelter e Music Institute.
Ao mesmo tempo, enquanto a grande massa norte americana não abraçava o som, o “Techno” chamou atenção do Reino Unido e em meados de 1988 foi lançada uma compilação que ficou conhecida como Techno! The New Dance Sound of
Detroit ”. A explosão do interesse pela dance music nos anos 80, concretizou o Techno como gênero musical.
Underground Resistence é considerado um movimento forte e importante para o cenário da música eletrônica e seu desenvolvimento virou um símbolo, não só nos Estados Unidos, mas também na Europa. A cena nasceu na camada carente da população que em parte encontrou na música uma maneira de resistência e ocupação. “Música é uma das únicas coisas que eu sinto que os humanos têm, que transcende tudo, língua, cultura, qualquer coisa, especialmente quando é instrumental, qualquer um pode entender” (Fala anônima para documentário HIGH-TECH SOUL – parte 9), sobre o sentimento da necessidade de união, de grito, de força, tolerância e acessibilidade, bandeiras já levantadas no início do advento.
São diferentes pessoas, com diferentes vivencias e perspectivas, se unindo como iguais em um amplo espaço, onde silenciosamente gritavam pelo mesmo motivo, pela liberação das amarras, pela sensação da não opressão, pela vivência em um espaço de expressão.
Na Alemanha, com a queda do muro de Berlim, o fim da Guerra Fria e a decadência do socialismo, pairava um sentimento de amistosidade e tolerância no início dos anos 90, contrapondo o pessimismo vivido nos anos 80. Neste período histórico, sobraram diversos lugares inusitados, como comércios, casas, galpões, em detrimento da movimentação de pessoas, principalmente do oriente para o ocidente, onde buscavam novas
População derruba o Muro de Berlim a marretadas, em 1989. Foto: David Brauchli
Festa techno em uma igreja abandonada, na Alemanha Oriental, em abril de 1988 Fonte: SUBstitut Archive
oportunidades e encontros. Também restaram espaços que ficaram inabitados ao longo da divisa, onde o muro foi construído. Diferente de pessoas o construído não migra, torna-se espaço esquecido.
O aspecto de ruina e abandono era curioso, como se esperassem para ser explorados e apropriados, eram perfeitos para a ocupação do movimento eletrônico que surgia na Alemanha, o aspecto sempre era bem minimalista, segundo Dj Doobros, em entrevista para o documentário Techno Scene, Berlim.
Antes mesmo da reunificação, os dois lados do muro, coincidentemente, se apropriavam destas ruinas próximas a divisa para se manifestar e ocupar musicalmente, os clubes surgiam nos lugares mais inusitados como uma antiga agencia de viagem, uma estação de transformação de energia ou uma fábrica de sabão desativada, os edifícios as vezes, até mais do que os djs, atuavam como os grandes protagonistas na cena.
Como em Detroit, no início do movimento, as festas não possuíam uma locação fixa, elas itineravam pelas mais diferentes locações, principalmente em Berlim Oriental, onde os produtores enxergavam uma potência estética, caracterizado pelo visual antigo, antiquado, que para eles remetia ao diferente e ao ato de resistir, aglomeravam-se multidões diversificadas, dessa forma firmando-se o seu caráter errante.
Em Berlim surgiu a necessidade de luta por tolerância, sendo fácil de entender esse sentimento, provindo
Punks em Berlim, Alemanha, nos anos 1980 Foto: Hatje Cantz
de uma sociedade que acabou de se reunificar e que viveu muitos momentos de tensão. Uma vez que esse sentimento de luta existiu, entende-se que se vive em uma sociedade intolerante e pouco inclusiva para alguns.
Ainda que subjetivamente, o jovem encontrou seu espaço para resistir na música e na arte produzida. “Eu acredito que o Techno expressa a emoção da atualidade da melhor maneira possível, basicamente o vazio da sociedade” Fala para o documentário WE CALL IT, TECHNO, dirigido por Maren Sextro e Holger Wick. O Acid House, foi responsável por estigmatizar a música eletrônica dentro dos clubes noturnos até os dias atuais.
No entanto, o Techno de Berlim, de Detroit e posteriormente em São Paulo, tem um caráter artístico, de apropriação de lugares neutros, ou de espaços públicos, porém têm a consciência da espetacularização e estetização e por sua vez se manifestam erraticamente. Resistem no espaço espetacularizado, existindo de maneira outra, apresentando uma estética contraria àquela do consumo. Existe a arte como forma de resistência.
O corpo físico e o corpo urbano caminham em constante relação. O cenário criado pela cidade espetáculo e o corpo se divergem. O corpo que experimenta a alteridade na cidade, ao se deparar com o cenário perde seu sentido. O corpo é capaz de ler e gravar a cidade pela simples experiência urbana, segundo Paola Bereinstein, em sua teoria sobre a corpografia urbana.
Festa Mamba Negra, em São Paulo, 2019. Fonte: Instagram (@mamba.n)
Festa Mamba Negra, em São Paulo, 2019. Fonte: Instagram (@mamba.n) Paola também entende que a arte na modernidade serve como ferramenta cultural de espetacularização, para garantir a cidade, o certificado de “verdadeira cidade”, para ela esse fenômeno dá a falsa sensação aos habitantes de apropriação da cidade.
Isso quando o movimento é vertical, quando por exemplo o governo propõe iniciativas culturais de entretenimento para a população, que não participa do processo criativo, apenas recebe e usufrui, pulando a parte do processo crítico e criativo.
As festas aqui discutidas, propõe uma horizontalidade, usufruem do entretenimento para demonstrar como a arte pode também ter um poder crítico. O participacionismo é fundamental como ferramenta contra os cenários. Não estão interessadas em servir as imagens, propõe outras sensações corporais e intelectuais no excesso de reprodução cenográfica do espaço urbano.
É possível perceber, que nesse tipo de festa, o ambiente é despretensioso, no entanto, paradoxalmente pensado em íntimos detalhes, para criar uma ambiência que conforte seus frequentadores, seja em uma locação subutilizada, seja em um clube, seja no espaço público.
As luzes, o som, as pessoas, os encontros, a inclusão, de repente fazem sentido e dentro daquele momento é possível ser quem quiser, a expressão é permissiva à libertação das angustias, meio a uma sociedade opressora, com olhares julgadores e veloz, encontra-se entre fumaça e altos
BPMs (batidas por minuto) o momento de respiro, de pausa e autoconhecimento.
O caráter politico-social de resistência, é afirmado como a cultura desses ambientes, uma forte importância dada a questões como respeito, inclusão e diversidade. Em Detroit a cena era completamente negra, dado o contexto geográfico, em Chicago a cena era LGBT+, em Berlim a cena pregava a diversidade e tolerância dado a vivência de um período histórico segregacionista.
A festa tem um caráter marginal e vive às bordas da sociedade, social e geograficamente, são falsas utopias, que demonstram uma sociedade distópica. Servem de ponto de encontro para aqueles que sentem a mesma necessidade de levantar alguma bandeira, com a tranquilidade do saber que irá ser respeitado. Forma-se então uma multidão diversa, heterogenia, que não necessariamente querem se tornar unidade.
Esse tipo de expressão social através de festas nunca foi novidade, ao analisar a história, as bacanais eram celebrações de caráter cívico-religioso, ou seja, conciliavam aspetos da política e da identidade das pólis gregas e posteriormente do Império Romano, servindo como fator de agregação da sociedade. Nestas festas as pessoas eram tomadas pelo êxtase dionisíaco em danças e tanto mulheres quanto escravos gozavam de maiores liberdades durante a festa, o que reafirma o fator agregador das festas em si, este momento representava uma transgressão para com diversas separações sociais, muito si-
Bacchanalia, de Auguste Levêque, representando uma bacanal romana
Neste ambiente errante marcado pela pluralidade que coexiste, as mais diversas pessoas encontram seu refúgio e além de segurança encontram uma liberdade, no sentido de se expressar artisticamente, tocando, dançando, performando, projetando, falando, existindo e resistindo. “O resultado acaba sendo um espaço utópico [perfeito] e distópico [assustador por evidenciar uma realidade opressiva]” fala de Laura Dias, fundadora da Mamba Negra, para entrevista no documentário MAMBA NEGRA: The Sound and The Fury of São Paulo.
Segundo Paola Berenstein, é na multidão que o flâneur encontra seu anonimato, mesmo cercado de milhares de pessoas, ali ninguém está de fato interessado em saber quem ele é, de onde ele veio, ou para onde ele vai. A multidão é um fenômeno que ganha força na sociedade contemporânea, ela constituiu a própria noção de espaço público metropolitano. As festas são constituídas, principalmente pela multidão, com esse caráter são compostas por diversas pessoas anônimas, que profundamente não estão interessadas nas intimidades umas das outras.
De certa forma, o conceito é um paradoxo, um ambiente que o indivíduo pode frequentar sozinho e interessantemente vai estar sozinho junto com outras milhares de pessoas, também sozinhas, com o mesmo interesse.
A cidade é heterogenia, as multidões são heterogenias, dentro do mesmo território coexistem homens, mulheres, transexuais, travestis, gays, lésbicas, ricos, pobres, brancos, negros, asiáticos, enfim, rótulos a parte, são infinitas as possibilidades, compreender esse meio heterogêneo possibilita o reconhecimento da cidade, a partir de suas particularidades, pois embora formem-se tribos, os encontros são inevitáveis.
O ambiente proposto pelas festas independentes então em São Paulo, que tentam retomar as raízes estéticas e culturais do movimento, apresentando o caráter político atual, atuam de forma a serem heteroge-
O público das festas de techno em São Paulo tende a ser plural e marginalizado, pessoas trans e pretas marcam presença Fonte: Instagram (@mamba.n)