Carta da Jamaica, Simón Bolívar

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Coordinación de la colección Comisión Presidencial para la Conmemoración del Bicentenario de la Carta de Jamaica Coordinación editorial Simón Andrés Sánchez Diseño de la colección Javier J. Véliz. Diseño de portada Javier J. Véliz / Gabriel Serrano Diagramación Gabriel Serrano / Javier J. Véliz Transcripción Amílcar Varela Revisión y cotejo Gradielys Urbano Corrección Miguel Raúl Gómez Colaboración para esta edición Juan Antonio Calzadilla Carta de Jamaica, 1815 - 2015 Primera edición, 2015 Publicação da Embaixada da Republica Bolivariana da Venezuela no Brasil SES Av. das Naçoes Qd. 803 Lote 13 Brasilia - DF, CEP 70451-900 - Teléfonos: +58-61-21011010 Fax: .58-61-32265633 embve.brasil@mppre.gob.ve, Web: http://brasil.embajada.gob.ve Revisão e Edição de textos para o Português Carlos Alberto Almeida Designer Gráfico Vinícius M. Luz Impresso na República Federativa do Brasil Gráfica Tallento Setembro de 2015

APRESENTAÇÃO Comemorando os 200 anos de sua escrita, a Comissão Presidencial para a Comemoração do Bicentenário da “Carta da Jamaica” tem o prazer de oferecer às leitoras e leitores do século XXI a presente versão integral de um documento fundamental no pensamento do Libertador Simón Bolívar. Redigida em Kingston em 06 de setembro de 1815, ao seu secretário Pedro Briceño Méndez, não se conhecia até a atualidade o original manuscrito da epístola, e a posteridade tinha sido forçado a dar fé a uma transcrição publicada em 1833 que sempre deixou lugar às dúvidas. Graças ao investigador equatoriano Amilcar Verela Jara, quem pôde dar à luz pública, em 2014, o documento encontrado no Fundo Jacinto Guijón, do Arquivo Histórico do Banco Central do Equador, em Quito, disponibilizamos hoje do manuscrito original tomado da voz de Bolívar, cuja autenticidade foi corrobada por uma equipe de especialistas qualificados. O Governo Bolivariano tem a honra de colocar em mãos do público e do povo, na ocasião deste importante rito do Ciclo do Bicentenário, a transcrição do texto recuperado e autenticado do Libertador, onde pela primeira vez surge e prediz o destino libertário e unitário do nosso continente, através de observações que a tradução qualificou de “proféticas”, pela lucidez e certeza de sua previsão política. A presente versão inclui o enigmático parágrafo que faltava na divulgada transcrição espanhola v- ainda que conhecido nas traduções inglesas da época - , com o que preenchem todas as lacunas que podiam existir em torno deste precioso texto componente do legado intelectual de Simón Bolívar.



CARTA DA JAMAICA

CONTESTAÇÃO DE UM AMERICANO MERIDIONAL A UM CAVALEIRO DESTA ILHA Meu Caro Senhor, Apresso-me a responder à carta de 29 do mês passado que o senhor me deu a honra de enviar, a qual recebi com a maior satisfação. Sensível como devo ser, face ao interesse que o senhor manifestou pela sorte da minha pátria, angustiando-se com ela pelos tormentos que padece, - desde seu descobrimento até estes últimos períodos, por parte de seus destruidores, os Espanhóis - não considero de menor importância a iniciativa - em que me apresentam as solícitas demandas que o senhor me faz, sobre os objetivos mais importantes da política americana. Assim, me encontro em um conflito entre o desejo de corresponder à confiança com que o senhor me distingue e o impedimento de satisfazê-la, tanto pela falta de documentos e de livros, quanto pelos limitados conhecimentos que tenho de um país tão imenso, variado e desconhecido como o novo mundo. Em minha opinião, é impossível responder às perguntas // página 2// com que o senhor me honrou. O mesmo Barão de Humboldt, com sua universalidade de conhecimentos teóricos e práticos, apenas o faria com exatidão; isso porque embora uma parte da Estatística e Revolução da América é conhecida, me atrevo a assegurar que a maior está obscura, e por consequência, só podem oferecer suposições mais ou menos aproximadas, sobre tudo, em relação à sorte futura e aos verdadeiros projetos dos Americanos; pois quantas combinações fornecem a História das Nações, de outras tantas é suscetível a nossa, por suas posições físicas, pelo infortúnio da guerra, e pelos cálculos da Política. Como me vejo obrigado a prestar atenção à apreciável carta do senhor, não menos que aos olhares filantrópicos, me animo a dirigir-lhe estas linhas, nas quais, certamente, o senhor não encontrará as ideias luminosas que deseja, mas sim as ingênuas expressões dos meus pensamentos. 9


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“Há três séculos”, diz o senhor, “que começaram as barbaridades que os espanhóis cometeram no grande Hemisfério de Colombo.” Barbaridades que a presente época recusou como fabulosas, por que parecem superiores à perversidade humana; e jamais seriam críveis pelos críticos modernos se constantes e repetidos documentos não atestassem estas infelizes verdades. O filantropo Bispo de Chiapa, o Apóstolo da América As Casas, deixou à posteridade uma breve relação delas, extraídas das sumárias que seguiram [quebra] Sevilla aos Conquistadores, com //página 3// o testemunho de quantas pessoas respeitáveis havia então no novo mundo, e com os mesmos processos que os tiranos fizeram entre si: como constam pelos mais célebres historiadores daquele tempo. Todos os imparciais fizeram justiça ao zelo verdade e virtudes daquele amigo da humanidade, que, com tanto fervor e firmeza, denunciou ante seu governo e seus contemporâneos os atos mais horrorosos de um frenesi sanguinário. Com quanta emoção de gratidão, leio a passagem da carta do senhor que me diz “que espera que os sucessos que então seguiram às armas espanholas, acompanhem agora às de seus opositores, os bem oprimidos americanos meridionais” Eu tomo esta esperança por uma predição, se a justiça decide as contendas dos homens. –O sucesso coroará nossos esforços; porque o destino da América se fixou irrevogavelmente; o laço que a unia à Espanha está cortado; a opinião era toda sua força; por ela se estreitavam mutuamente as partes daquela imensa Monarquia. O que antes as entrelaçava já as divide; o ódio que nos inspirou a península é maior que o mar que dela nos separa; menos difícil é unir dois continentes que reconciliar os espíritos de ambos os países. O hábito à obediência; um comércio de interesses, de luzes, de religião, uma recíproca benevolência, uma terna solicitação pela causa e a glória de nossos pais; enfim, tudo o que formava nossa esperança vinha da Espanha. Daqui nascia um princípio de adequação que parecia //página 4// eterno, ainda que a má conduta de nossos dominadores reduzisse essa simpatia, ou, melhor dizendo, este apego forçado pelo império da dominação. 10

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No presente acontece o contrário: : a morte, a desonra, tudo quanto é nocivo nos ameaça e tememos, tudo sofremos por causa desta desnaturada Madrasta. O véu se rasgou: já vimos a luz, e querem nos levar de volta às trevas, Romperam-se as as correntes, já somos livres e nossos inimigos querem nos escravizar novamente. Portanto, a América combate com desespero; e rara vez o desespero não arrastou atrás de si a vitória. Não devemos desconfiar da sorte em razão dos acontecimento terem sido parciais e alternados. Em certas partes triunfam os Independentes, mas, em diferentes lugares, os tiranos , obtêm suas vantagens: E qual é o resultado final? Não está o Novo Mundo inteiro comovido e armado para sua defesa? Observemos e constataremos uma luta simultânea na imensa extensão deste hemisfério. O belicoso estado das províncias do Rio da Prata purgou seu território e conduziu suas armas vencedoras ao Alto Peru; comovendo Arequipa e inquietando aos realistas de Lima. Cerca de um milhão de habitantes disfrutam ali de sua liberdade. O Reino do Chile, povoado de oitocentas mil almas, está lutando contra os inimigos //página 5// que pretendem dominá-lo, mas é em vão, porque os que antes puseram um término às suas conquistas,, os indômitos e livres araucanos, são seus vizinhos e compatriotas. e seu exemplo sublime é suficiente para provar que o povo que ama sua Independência, por fim, a consegue. O Vice-reinado do Peru, cuja população ascende a um milhão e meio de habitantes, é sem dúvida o mais submisso, e o que mais teve sacrifícios arrancados para a causa do Rei; e embora sejam vãs as relações concernentes àquela formosa porção da América, é índubitável que nem está tranquila, nem é capaz de opor-se à torrente que ameaça a maioria de suas outras províncias. A Nova Granada, que é, por assim dizer, o coração da América, obedece ao governo geral excetuando o reino de Quito, que, com a maior dificuldade, contém seus inimigos, por ser fortemente ligado à causa de sua pátria: e as províncias do Panamá e Santa Marta que 11


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sofrem, não sem dor, a tirania de seus senhores. Dois milhões e meio de habitantes estão distribuídos naquele território que atualmente defendem contra o Exército Espanhol comandado pelo General Morillo, que é possível sucumba diante da inexpugnável Praça de Cartagena. Mas se a tomar será a custo de grandes perdas; e logo carecerá de forças para subjugar aos morigerados e moradores do interior. Quanto à heroica e infeliz Venezuela, seus acontecimentos foram tão rápidos e tão devastadores que quase a reduziram a uma absoluta indigência e a uma solidão espantosa: não obstante seja um dos mais belos países de quantos faziam o orgulho da América. Seus tiranos governam //página 6// um deserto e só oprimem a tristes restos, que fugidos da morte, alimentam uma precária existência: algumas mulheres, crianças e idosos são os que ficam. A maioria dos homens pereceu por não ser escrava, e os que vivem combatem com fervor nos campos e nos povoados internos até morrer ou conseguir lançar ao mar aos que, insaciáveis por sangue e crimes, rivalizavam com os primeiros monstros que fizeram desaparecer da América a sua raça primitiva. Cerca de um milhão de habitantes contava-se na Venezuela; e, sem exagero, pode-se assegurar que uma quarta parte foi sacrificada pela terra, a espada, a fome, a peste, as peregrinações, com exceção do terremoto, todos resultados da guerra. Na Nova Espanha havia em 1808, segundo o Barão Humboldt, sete milhões oitocentas mil almas, incluindo a Guatemala. Desde aquela época, a insurreição que agitou quase todas as províncias, fez diminuir consideravelmente aquele cômputo, que parecia exato; pois mais de um milhão de homens pereceu, como o senhor poderá ver na exposição do Sr. Walton, que descreve com fidelidade os sanguinários crimes cometidos naquele opulento Império. Ali a luta se mantém na base de sacrifícios humanos de todo tipo , pois os espanhóis nada poupam, desde que consigam submeter aos que tiveram a desgraça de nascer neste solo, que parece destinado a se encharcar com o sangue de seus filhos. Apesar de tudo, os mexicanos serão livres porque abraçaram //página 7// o partido da pátria, com a re12

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solução de vingar a seus antepassados ou segui-los até o túmulo Já eles dizem com Reynal: chegou o tempo, finalmente, de pagar aos espanhóis suplícios com suplícios e de afogar a essa raça de exterminadores em seu sangue ou no mar. As Ilhas de Porto Rico e Cuba, que entre ambas podem formar uma população de setecentas ou oitocentas mil almas, são as que mais tranquilamente possuem os espanhóis, porque estão fora do contato com os Independentes. Mas, estes insulares não são americanos? Não são humilhados? Não desejam seu bem-estar? Este quadro representa uma escala militar de dois mil léguas de longitude e novecentas de latitude em sua maior extensão, em que dezesseis milhões de Americanos defendem seus direitos ou estão oprimidos pela nação Espanhola, que ainda que tenha sido ,em algum tempo, o mais vasto Império do Mundo, seus restos são agora impotentes para dominar ao novo hemisfério, e até para se manter no antigo. E a Europa civilizada, comerciante e amante da Liberdade, permite que uma velha serpente, só por satisfazer sua sanha envenenada, devore a mais bela parte do nosso globo? O Que! Esta a Europa surda ao clamor de seu próprio interesse? Já não tem olhos para ver a justiça? Tanto endureceu para ser assim insensível? Quanto mais medito sobre estas questões, mais me confundo: chego a pensar que se aspira o desaparecimento da América, mas isto é impossível porque toda a Europa não é a Espanha. Que demência da nossa inimiga pretender reconquistar a América sem Marinha, sem tesouros e quase sem soldados! Pois, os que têm apenas são suficientes apenas para reter a seu próprio povo em uma violenta obediência //página 8// e se defender de seus vizinhos. Por outra parte, pode esta nação fazer o comércio exclusivo da metade do mundo sem manufaturas, sem produções territoriais, sem Artes, sem Ciências, sem política? Mesmo que conseguisse esse louco empreendimento e, supondo que conseguisse a pacificação , os filhos dos atuais americanos, unidos com os dos europeus reconquistadores, não voltariam a formar dentro de vinte anos os mesmos patrióticos desígnios que agora estão sendo combatidos? 13


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A Europa faria um bem à Espanha em dissuadi-la de sua obstinada temeridade, porque ao menos a economizaria os gastos que expande e o sangue que derrama, a fim de que, fixando sua atenção em seus próprios recursos, fundaria sua prosperidade e poder sobre bases mais sólidas que as de incertas conquistas, um comércio precário e exações violentas em povos remotos, inimigos e poderosos. A Europa mesma mirando uma sã política, deveria ter preparado e executado o projeto da Independência Americana, não só porque o equilíbrio do mundo assim o exige, mas porque este é o meio legítimo e seguro de adquirir estabelecimentos ultramarinos de comércio. A Europa, que não se encontra agitada pelas violentas paixões de vingança, ambição e cobiça como a Espanha, parece que estava autorizada por todas as leis da equidade a ilustrar sobre seus bem entendidos interesses. Quantos escritores trataram da //página 9// matéria lembraram-se desta parte. Em consequência, nós esperávamos, com razão, que todas as nações cultas se apressassem a auxiliar-nos para que adquiríssemos um bem cujas vantagens são recíprocas a ambos os hemisférios. Entretanto, que frustradas esperanças! Não só os europeus, mas até nossos irmãos do norte se mantiveram como imóveis espectadores desta contenda, que por sua essência é a mais justa e por seus resultados a mais bela e importante de quantas suscitaram nos séculos antigos e modernos! Por que até onde se pode calcular a transcendência da liberdade do hemisfério de Colombo? “A perfídia com que Bonaparte”, diz o senhor, “prendeu Carlos IV e Fernando VII, reis desta nação, que há três séculos aprisionou com traição a dois monarcas da América Meridional, é um ato manifesto da retribuição divida e ao mesmo tempo, uma prova de que Deus mantém a justa causa dos Americanos e lhes concederá sua Independência. ” Parece que o senhor quer aludir ao monarca do México Montezuma, preso por Cortês e morto segundo Herrerra, por ele mesmo, ainda que Solis diz que pelo povo, e a Atahualpa, inca do Peru, des14

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truído por Francisco Pizarro e Diego Almagro. Existe tal diferença entre a sorte dos reis espanhóis e a dos reis americanos , que não admite comparação: os primeiros são tratados com dignidade, conservados e finalmente recobram sua liberdade trono, enquanto que os últimos sofrem tormentos inauditos e vilipêndios mais vergonhosos. Se Guatimozin, sucessor de Montezuma, foi tratado como Imperador e lhe colocaram coroa, foi por irrisão e não por respeito, para que experimentasse este escárnio antes das torturas. //página 10// Iguais à sorte deste monarca foram as do rei de Michoacan, Catzontzin, o Zipa de Bogotá e quantos Toquis, Incas, Zipas, Ulmenes, Caciques e demaisdignidades indígenas sucumbiram ao poder espanhol. O episódio de Fernando VII é mais semelhante ao do ulmén de Copiapó, ocorrido no Chile em 1535, quando reinava naquela comarca. O espanhol Almagro pretextou como Bonaparte para tomar partido pela causa do legítimo soberano e em consequência, chama ao usurpador, como Fernando o era em Espanha: aparenta restituir seus estados ao legítimo e termina por acorrentar e lançar às chamas o infeliz ulmén do Chile, terminando com sua vida de modo atroz, sem sequer ouvir sua defesa. “Depois de alguns meses”, acrescenta o senhor, “fiz muitas reflexões sobre a situação dos americanos e suas esperanças futuras; tenho grande interesse pelos seus acontecimentos , mas me faltam muitas informações relativas a seu estado atual e ao que eles aspiram. Desejo infinitamente saber a política de cada província, como também sua população; se desejam República ou monarquias . Toda notícia desta espécie que o senhor possa me dar ou me indicar as fontes a devo recorrer , a estimarei como um favor muito particular.” Sempre as almas generosas se interessam pela sorte de um povoado que se esforça por recobrar //página 11//os direitos com que o Criador e a natureza o dotaram, e é necessário estar bem fascinado pelo erro ou pelas paixões para não abrigar esta nobre sensação: o senhor pensou no meu país e se interessa por ele: este ato de benevolência me inspira o mais vivo reconhecimento. 15


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Mencionei a população que é calculada por dados mais ou menos exatos, dados esses que se tornam falhos por mil circunstâncias difíceis de remediar dado que a maioria dos moradores têm habitações campestres e muitas vezes errantes, sendo lavradores, pastores, nômades, perdidos em meio de espessos e imensos bosques, planícies solitárias e isoladas entre lagos e rios caudalosos. Quem será capaz de formar uma estatística completa de semelhantes comarcas? Além do mais, os tributos que pagam os indígenas, as penalidades dos escravos, as primícias, dízimos e direitos que pesam sobre os lavradores e outros desastres, afastam os pobres americanos de seus lares. Isto é sem mencionar o extermínio da guerra que já cegou cerca de um oitavo da população e afugentou outra grande parte, pois, então, as dificuldades são insuperáveis e o padrão viria a reduzir-se à metade do verdadeiro censo. Entretanto, ainda é muito difícil prever a sorte futura do novo mundo, estabelecer princípios sobre sua política e quase profetizar a natureza do governo que chegará a adotar. Toda ideia relativa ao porvir deste país me parece aventurada. Pode-se prever quando o gênero humano se achava em sua infância, rodeado de tantas incertezas, ignorância e erros, qual seria o regime que abraçaria para // página 12//sua conservação? Quem teria se atrevido a dizer: tal Nação será República ou Monarquia, esta será pequena, aquela grande? No meu conceito, esta é a imagem de nossa situação. Nós somos um pequeno gênero humano, possuímos um mundo aparte, cercado por dilatados mares, novos em quase todas as Artes e Ciências, ainda que de certo modo, já velhos nos usos da sociedade civil. Eu considero o estado atual da América tal qual aquele quando desabou Império Romano e cada desmembramento formou um sistema político, conforme seus interesses e situação, ou seguindo a ambição particular de alguns chefes, famílias ou corporações. Mas, com esta notável diferença: que aqueles membros dispersos voltavam a reestabelecer suas antigas nações, com as alterações que exigiam as coisas ou os acontecimentos. Mas nós, que apenas conservamos ves16

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tígios daquilo que em outro tempo foi, e que por outra parte não somos índios nem europeus, senão uma espécie intermediária entre os legítimos proprietários do país e os usurpadores espanhóis; em resumo, sendo americanos por nascimento e nossos direitos os da Europa, temos que disputar estes aos do país e nos manter nele contra a opinião dos invasores; assim nos encontramos no caso mais extraordinário e complicado. Apesar de ser uma espécie de adivinhação indicar qual será a evolução política da América, me atrevo a apontar algumas conjecturas, que desde logo, caracterizo de arbitrárias, ditadas por um desejo racional e não por um raciocínio provável. A posição dos //página 13// moradores do hemisfério Americano tem sido por séculos puramente passiva: sua existência política era nula. Nós estávamos em um grau ainda mais baixo da servidão, e, por isso mesmo, com mais dificuldades para elevarmos ao gozo da liberdade. Permita-me senhor estas considerações para aclarar a questão. Os Estados são escravos pela natureza de sua constituição ou pelo abuso dela: assim um povo é escravo quando o governo por sua essência ou por seus vícios esmaga e usurpa os direitos do cidadão ou súdito. Aplicando estes princípios, veremos que a América, não somente estava privada de sua liberdade, mas também da tirania ativa ou dominante. Explicar-me-ei. Nas administrações absolutas não se reconhecem limites no exercício de suas faculdades governamentais: a vontade do grande sultão, cã, bei e demais soberanos despóticos, é a lei suprema e esta é quase arbitrariamente executada pelos baxás, cãs e sátrapas subalternos da Turquia e Pérsia, que têm organizada uma opressão da que participam os súditos em razão da autoridade que lhes é confiada. A eles está encarregada a administração civil, militar, política, de rendas e a religião. Mas, ao final, são persas os chefes de Isfahan, são turcos os Vizires do grande Senhor, e são tártaros os sultões da Tartária. A China não busca mandatários, militares e letrados ao país de Gengis Kan que a conquistou, apesar de que os atuais chineses são descendentes diretos dos subjugados pelos ascendentes dos presentes tártaros. 17


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Quão diferente era entre nós! Éramos humilhados com uma conduta que, além de nos privar dos direitos que nos correspondiam, nos deixava em uma espécie de infância permanente, com relação às negócios públicas. Se pelo menos tivéssemos conduzido nossos //página 14// assuntos domésticos em nossa administração interior, conheceríamos o curso dos negócios públicos e seu mecanismo e usufruiríamos também da consideração pessoal de que certo respeito maquinal impõe aos olhos do povo, o que é tão necessário conservar nas revoluções. Eis aqui a explicação porque que disse que estávamos privados até da tirania ativa, pois não nos era permitido exercer suas funções. Os americanos, no sistema espanhol que está em vigor, e talvez com maior força que nunca, não ocupam outro lugar na sociedade que o de servos próprios para o trabalho e, quando mais, o de simples consumidores, e ainda assim esta parte limitada com chocantes restrições, tais são as proibições de cultivo dos frutos da Europa, o estancamento das produções que o rei monopoliza o impedimento das fábricas que a mesma Península não possui, os privilégios exclusivos do comércio, até de objetos de primeira necessidade, os obstáculos entre províncias e províncias americanas para que não tenham relações entre si, não se entendam, nem negociem. Enfim, quer o senhor saber qual era nosso destino? Os campos para cultivar o pau-brasil, a grana, o trigo, o café, a cana, o cacau e o algodão, as planícies solitárias para criar gados, os desertos para caçar animais ferozes, as entranhas da terra para cavar o ouro que não pode saciar a essa nação avarenta. Tão negativo era nosso estado que não o encontro semelhança com nenhuma outra associação civilizada, por mais que recorra a série de épocas e da política de todas as nações. Pretender que um país tão felizmente constituído, extenso, rico //página 15// e populoso seja meramente passivo não é um ultraje e uma violação dos direitos da humanidade? Estávamos como acabo de expor, abstraídos e digamos assim, ausentes do universo com relação à ciência de governo e adminis18

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tração de Estado. Jamais éramos vice-reis nem governadores, senão em casos muito extraordinários; arcebispos e bispos poucas vezes, diplomáticos nunca, militares somente na qualidade de subalternos, nobres, sem privilégios reais; enfim, não éramos nem magistrados, nem financistas e quase nunca comerciantes: tudo em contravenção direta às nossas instituições. O imperador Carlos V formou um pacto com os descobridores, conquistadores e população da América, que como diz Guerra, é nosso contrato social. Os reis da Espanha concordaram solenemente com eles para que fosse executado por sua conta e risco, proibindo-os de fazê-lo ao custo da economia real, e por esta razão lhes era concedido que fossem senhores da terra: que organizassem a administração e exercesse o direito judicial de apelação, assim como muitas outras isenções e privilégios que seriam prolixos detalhar. O Rei se comprometeu a não alienar jamais as províncias americanas, como que a ele não tocava outra jurisdição que a do alto domínio, sendo uma espécie de propriedade feudal a que ali teriam os conquistadores para si e seus descendentes. Ao mesmo tempo, existem leis expressas que favorecem quase exclusivamente aos naturais do país, originários da Espanha, quanto a empregos civis, eclesiásticos e de rendas. De tal maneira que, com uma violação //página 16// manifesta das leis e dos pactos subsistentes, aqueles naturais se viram despojados da autoridade constitucional que lhes dava seu código. De tudo quanto a que me referi, será fácil deduzir que a América não estava preparada para se desprender da Metrópole, como subitamente ocorreu, por efeito das ilegítimas cessões de Bayona e pela inócua guerra que a Regência nos declarou, sem direito algum para isso, não somente pela falta de justiça, mas também de legitimidade. Sobre a natureza dos governos espanhóis, seus decretos cominatórios e hostis e o curso inteiro de sua desesperada conduta, há escritos de maior mérito no jornal El Español, cujo autor é o senhor Blanco, estando ali muito bem tratada essa parte de nossa história, pelo o que me limito a indicá-la. 19


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Os americanos ascenderam repentinamente e sem os conhecimentos previstos, e o mais importante, sem a prática dos negócios públicos, a reapresentar na cena do mundo as eminentes dignidades de legisladores, magistrados, administradores de erário, diplomáticos, generais e quantas autoridades supremas e subalternas formam a hierarquia de um Estado organizado com regularidade. Quando as águias francesas só respeitaram os mouros da Cidade de Cádiz e com seu voo levaram aos frágeis governos da Península, então ficamos órfãos. Anteriormente, já havíamos sido entregues à mercê de um usurpador estrangeiro. Depois, agraciados com a justiça que nos era devida e com esperanças promissoras, sempre burladas; //página 17// por último, incertos sobre nosso destino futuro e ameaçados pela anarquia por causa da falta de um governo legítimo, justo e liberal, nos precipitamos no caos da revolução. No primeiro momento, só cuidamos de prover segurança interior contra os inimigos que se encontravam entre nós. Depois se estendeu à segurança exterior: estabeleceram-se autoridades que substituímos pelas que acabamos de depor, encarregadas de dirigir o curso de nossa revolução e de aproveitar a feliz conjectura em que nos foi possível fundar um governo constitucional, digno do presente século e adequado à nossa situação. Todos os novos governos marcaram seus primeiros passos com o estabelecimento de juntas populares. Em seguida, estas formaram regulamentos para a convocação de congressos que produziram alterações importantes. Venezuela exigiu um Governo democrático e federal, declarando previamente os direitos do homem, mantendo o equilíbrio dos poderes e instituindo leis gerais a favor da liberdade Civil, de imprensa e outras. Finalmente, se constituiu um governo independente. A Nova Granada seguiu com uniformidade os estabelecimentos políticos e todas as reformas feitas pela Venezuela, colocando como base fundamental de sua Constituição o sistema federal mais exagerado que jamais existiu. Recentemente, houve melhoras com relação ao poder executivo geral, que obteve inúmeras atribui20

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ções lhe correspondem. Segundo entendo Buenos //página 18// Aires e Chile seguiram essa mesma linha de operações, mas como nos encontramos a tão grande distância, os documentos são tão raros e as notícias tão inexatas que não me atrevo nem mesmo a esboçar um quadro de suas transações. Os acontecimentos do México foram variados, complicados, rápidos e desgraçados para que possam seguir o curso de sua revolução. Além disso, carecemos de documentos bastante instrutivos que nos façam capazes de julgá-los. Os independentes do México, pelo que sabemos, deram princípio à sua insurreição em setembro de 1810, e um ano depois, já tinham centralizado seu governo em Zitácuaro, instalando ali uma junta nacional, sob os auspícios de Fernando VII, em cujo nome se exerciam as funções governamentais. Em razão da evolução da guerra, esta junta se transferiu a diferentes lugares, e é comprovado que se conservou até os últimos momentos, com as modificações exigidas pelas fatos Dizem que criou um generalíssimo ou ditador, e que é o ilustre General Morelos, outras falam do célebre General Rayon, o certo é que um destes dois grandes homens ou ambos, separadamente, exercem a autoridade suprema naquele país e ,recentemente, apareceu uma constituição para o regime do Estado. Em março de 1812, o governo residente em Zultepec apresentou um plano de paz e guerra ao vice-rei do México, concebido com a mais profunda sabedoria. Nele reclamou-se o direito das pessoas, estabelecendo princípios de uma //página 19// exatidão incontestável. Esta Junta propôs que a guerra se fizesse como se feita entre irmãos e cidadãos, pois não deveria ser mais cruel que entre nações estrangeiras. Propôs ainda que os direitos de pessoas e de guerra, considerados invioláveis até mesmo para os infiéis e bárbaros, deveriam ser mais para os cristãos, por estarem sujeitos a um soberano e às mesmas leis. Foi proposto ainda que os prisioneiros não fossem tratados como réus de lesa-majestade, nem se degolassem os prisioneiros que se rendessem, mas que fossem mantidos como reféns para serem trocados; que não se entrasse com sangue e fogo nos povoados pacíficos, que não os dizimassem nem 21


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os sacrificassem, e , como conclusão propôs que em caso de rejeição deste plano, as represálias seriam rigorosamente observadas. Esta negociação foi tratada com o mais alto desprezo, não houve nenhuma resposta à Junta Nacional, as comunicações originais foram queimadas publicamente na Praça do México pela mão de Verdugo, e a guerra de extermínio continuou por parte dos espanhóis com seu furor costumeiro, tratamento que os mexicanos e as outras nações americanas não dispensavam aos prisioneiros de guerra, nem à beira da morte,, mesmo que fossem espanhóis. Aqui se observa que, por razões de conveniência, foi conservada a aparência de submissão ao rei, mesmo à constituição da monarquia. Parece que a Junta Nacional é absoluta no exército das funções legislativa, executiva e judiciária, e muito limitada no número de seus membros. Os acontecimentos da Terra Firme nos provaram que as instituições perfeitamente representadas não são adequadas ao nosso caráter //página 20// costumes e luzes atuais. Em Caracas, o espírito de partido tomou sua origem nas sociedades, assembleias e eleições populares, e estes partidos nos levaram à escravidão. E assim como Venezuela foi a república americana que mais se adiantou em suas instituições políticas, também foi o mais claro exemplo da ineficácia da forma democrata e federal para nossos nascentes estados. Em Nova Granada, as excessivas faculdades dos governos provinciais e a falta de centralização no geral, conduziram aquele precioso país ao estado a que se vê reduzido atualmente. Por esta razão seus frágeis inimigos foram preservados contra todas as probabilidades. Enquanto nossos compatriotas não adquirem os talentos e as virtudes políticas que distinguem nossos irmãos do norte, os sistemas inteiramente populares, longe de nos ser favoráveis, temo muito que venham a ser nossa ruína. Desgraçadamente estas qualidades parecem estar muito distantes de nós no grau que se requer, e pelo contrário, estamos dominados dos vícios que se contraem sob a direção de uma nação como a espanhola, que só se destacou por ferocidade, ambição, vingança e cobiça. 22

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“É mais difícil”, disse Montesquieu, “tirar um povo da servidão que subjugar a um livre”. Esta verdade está comprovada pelos anais de todos os tempos, que nos mostram a maioria das nações livres submetidas ao jugo e muito pouco de nações escravas que recobraram sua liberdade. Apesar desta convicção, os meridionais deste continente //página 21// manifestaram o propósito de conseguir instituições liberais e ainda perfeitas, sem dúvida por efeito do instinto que possuem todos os homens de aspirar a sua maior felicidade possível: aquela que se alcança, infalivelmente, nas sociedades civis, quando elas estão fundadas sobre as bases da justiça, da liberdade e da igualdade. Mas, seremos capazes de manter no seu verdadeiro equilíbrio a difícil carga de uma República? Pode-se conceber que um povo recentemente livre das correntes se lance na esfera da liberdade sem que, como ocorreu a Ícaro, suas asas sejam desfeitas e caia no abismo? Tal prodígio é inconcebível, nunca visto. Consequentemente, não há um raciocínio lógico que nos apague essa esperança. Eu desejo, mais que qualquer outro, ver formar na América a maior nação do mundo, menos por sua extensão e riquezas que por sua liberdade e glória. Apesar de que aspiro a perfeição do governo da minha pátria, não posso me convencer que o Novo Mundo seja, no momento, regido por uma grande república. Como é impossível, não me atrevo a desejá-lo, e menos ainda desejo uma monarquia universal da América, porque este projeto, sem ser útil, é também impossível. Os abusos atualmente existentes não seriam corrigidos e nossa renovação seria infrutífera. Os estados americanos têm necessidades de governos paternais que curem as pragas e as feridas do despotismo e da guerra. A metrópole, por exemplo, seria México, que é a única que pode ser por seu poder intrínseco, sem o qual no há metrópole. Suponhamos que o istmo Panamá fosse o ponto central para todos os extremos deste vasto continente: não continuariam estes na passividade e os outros na desordem atual? Para que um só governo dê vida //página 22// anime, ponha em ação todas as engrenagens da prosperidade pública, corrija, ilustre e aperfeiçoe ao novo 23


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mundo, seria necessário que tivesse as faculdades de um Deus e, pelo menos, as luzes e virtudes do todos os homens. O espírito de partido que no momento agita a nossos estados, se ascenderia então com maior exasperação, estando ausente a única fonte de poder que pode reprimi-la. Além disso, os magnatas das capitais não sofreriam a predominância dos metropolitanos, a quem considerariam como a outros tantos tiranos: seus ciúmes chegariam ao ponto de compará-los com os odiosos espanhóis. Enfim, uma monarquia semelhante seria um colosso disforme que seu próprio peso desabaria frente à menor convulsão. Mister de Pradt dividiu sabiamente a América em quinze ou dezessete Estados, independentes entre si, governados por tantos outros monarcas. Estou de acordo em quanto ao primeiro, pois a América comporta a criação de dezessete nações, enquanto ao segundo, ainda que seja mais fácil de conseguir, é menos útil, e assim, não sou da opinião das monarquias americanas. Eis aqui minhas razões: bem entendido, o interesse de uma República se circunscreve na esfera de sua conservação, prosperidade de glória. O império, desde que não exerça a liberdade com o sentido imperialista, porque é precisamente o seu oposto, nenhum estímulo provocaria aos republicanos para que entendam os termos de sua nação, em detrimento de seus próprios meios, com o único objetivo de fazer participar seus vizinhos de uma constituição liberal. Nenhum direito adquire, nenhuma vantagem tiram vencendo-os, a menos que os reduzam a colônias, conquistas ou aliados seguindo o exemplo de Roma. Tais máximas e exemplos estão em oposição direta aos princípios de justiça dos sistemas republicanos; e, ainda direi mais, em oposição manifesta aos interesses de seus cidadãos, porque um estado muito extenso em si mesmo ou por suas dependências, ao final entra em decadência e converte sua forma liberal em outra tirania, relaxa os princípios que devem preservá-la e, por último, ocorre o despotismo. O diferencial das pequenas repúblicas é a permanência, o das grandes é variado, mas sempre se inclina ao Império. Quase todas as primeiras tive24

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ram uma longa duração: das segundas, só Roma se manteve alguns séculos, mas foi porque a capital era república e não o resto de seus domínios que eram governados por leis e instituições diferentes. Contrária é a política de um rei cuja inclinação constante se dirige ao aumento de suas posses, riquezas e faculdades, com razão porque sua autoridade cresce com estas aquisições, tanto com respeito a seus vizinhos, como a seus próprios vassalos, que nele reconhecem um poder tão formidável quanto seu império que se conserva por meio da guerra e das conquistas. Por estas razões, penso que os americanos ansiosos de paz, ciências, artes, comércio e agricultura prefeririam as repúblicas aos reinos, e me parece que estes desejos estão em conformidade com as visões da Europa. Não concordo com o sistema federal entre os //página 24// populares representativos por ser muito perfeito e exigir virtudes e talentos políticos superiores aos nossos. Pela mesma razão, recuso a monarquia mista de aristocracia e democracia que tanta fortuna e esplendor trouxe à Inglaterra. Não nos sendo possível obter entre as repúblicas e monarquias o mais perfeito e acabado, evitemos cair em anarquias demagógicas ou em tiranias autocratas. Busquemos um meio termo entre extremos opostos que nos conduziriam aos mesmos obstáculos, à infelicidade e à desonra. Vou arriscar o resultado das minhas reflexões sobre o destino futuro da América: não a melhor, mas aquela que seja mais viável. Pela natureza dos lugares, riquezas, população e caráter dos mexicanos, imagino que tentarão, ao princípio, estabelecer uma república representativa na qual o poder executivo tenha grandes atribuições, concentrando-o em um indivíduo que caso desempenhe suas funções com correção e justiça, quase naturalmente virá a conservar uma autoridade vitalícia. Se sua incapacidade ou violenta administração escrita uma comoção popular que triunfe, este mesmo poder executivo talvez venha a ser disseminado em uma assembleia. Se o partido preponderante for militar ou aristocrático, exigirá, provavelmente, uma monarquia, que a princípio será limitada e constitucio25


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nal, e depois, inevitavelmente, //página 25// declinará em absoluto, pois devemos convir em que não há nada mais difícil na ordem política que a conservação de uma monarquia mista. Além do que, é preciso considerar que somente um povo tão patriota como o inglês, é capaz de conter a autoridade de um rei e de sustentar o espírito de liberdade sob um cetro e uma coroa. Os Estados do Istmo do Panamá até a Guatemala formariam, talvez, uma associação. Esta magnífica posição entre os dois grandes mares poderá ser, com o tempo, o empório do universo. Seus canais encurtarão as distâncias do mundo: estreitariam os laços comerciais da Europa, América e Ásia, poderão trazer à tão feliz região os tributos das quatro partes do globo. Por acaso ali poderá fixar-se, algum dia, a Capital da Terra, como Constantino [sic] pretendeu que fosse Bizâncio do antigo hemisfério. A Nova Granada se unirá com Venezuela, caso cheguem a estar de acordo em formar uma república central, cuja capital seja Maracaibo ou uma nova cidade que, com o nome de Las Casas (em honra deste herói da filantropia) e que fosse fundada entre os confins de ambos países, no soberbo porto de Bahia-Honda. Esta posição, embora desconhecida, é mais vantajosa, por todos os aspectos. Seu acesso é fácil e sua localização é tão adequada que pode tornar-se inexpugnável. Possui um clima puro e saudável, um território próprio tanto para a agricultura como para a criação de gado e uma grande abundância de madeiras de construção. Os selvagens que //página 26// a habitam seriam civilizados e nossas posses aumentariam com a aquisição da Goagira. Esta nação se chamaria Colômbia, como um tributo de justiça e gratidão ao criador de nosso hemisfério. Seu governo poderá imitar ao inglês, com a diferença de que em lugar de um rei, haverá um poder executivo eleito, no máximo vitalício mas jamais hereditário, caso se queira realmente uma república; uma câmara ou senado legislativo hereditário que, nas tempestades políticas se interponha entre as ondas populares e os raios do governo e um corpo legislativo, eleito livremente, sem estar submetido a outras restrições 26

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que as da câmara baixa da Inglaterra. Esta Constituição participaria de todas as formas e eu desejo que não participe do todos os vícios. Como esta é minha pátria tenho um direito incontestável para desejar a ela o que, em minha opinião, é melhor. É possível que a Nova Granada não esteja de acordo com o reconhecimento de um governo central, porque é em extremo adepta da Federação; neste caso, formará por si mesma um Estado que, se subsistir, poderá ser muito feliz em razão de seus grandes recursos de todos os gêneros. Pouco sabemos das opiniões que prevalecem em Buenos Aires, Chile e Peru, mas julgando pelo que transparece e pelas aparências, em Buenos Aires, haverá governo central em que os militares terão a primazia //página 27// em consequência de suas divisões internas e guerras externas. Esta constituição degenerará, necessariamente, em uma oligarquia ou uma autocracia com mais ou menos restrições e cuja denominação ninguém pode adivinhar. Seria doloroso que tal coisa sucedesse porque aqueles habitantes são credores das mais esplêndidas glórias. O reino do Chile está convocado pela natureza de sua situação, pelos costumes inocentes e virtudes de seus moradores, por exemplo de seus vizinhos - os bravos republicanos de Arauco - a gozar das bençãos que derramam as justas e doces leis de uma república. Se alguma permanecerá longo tempo na América, me inclino a pensar que será a chilena. Ali jamais se extinguiu o espírito de liberdade; os vícios da Europa e da Ásia chegarão tarde ou nunca chegarão para corromper os costumes daquele extremo do universo. Seu território é limitado, estará sempre fora do contato infeccionado do resto dos homens, não alterará suas leis, usos e práticas, preservará sua uniformidade em opiniões políticas e religiosas. Em uma palavra: o Chile pode ser livre. O Peru, pelo contrário, fecha dois elementos inimigos de todo regime justo e liberal: ouro e escravos. O primeiro, a tudo corrompe: o segundo, está corrompido por si mesmo. A alma de um servo raramente alcançará a sã liberdade: se enfurece nos tumultos ou se humilha sob correntes. 27


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Apesar de que estas regras sejam aplicáveis à toda a //página 28// América, acredito que com mais justiça as merece Lima, seja pelos conceitos que expus e, também, pela cooperação que prestou a seus senhores contra seus próprios irmãos, os ilustres filhos de Quito, Chile e Buenos Aires. ´Certamente, em Lima os ricos não tolerarão a democracia, nem a libertação os escravos e pardos frente a aristocracia. Os primeiros preferirão a tirania de um só para não padecer de perseguições tumultuosas e também por estabelecer uma ordem que seja pelo menos pacífica. Muito se fará si consegue recobrar sua independência. Face a tudo o que foi exposto, podemos deduzir estas consequências: as províncias americanas lutam por emancipar-se e no final obterão sucesso. Algumas se constituirão de um modo regular em repúblicas federativas e centrais. Monarquias serão fundadas quase inevitavelmente nas grandes seções, e, algumas serão tão infelizes que devorarão seus elementos, seja na atual, seja nas futuras revoluções, que uma grande monarquia não será fácil de consolidar, uma república, impossível. É uma ideia grandiosa pretender formar o Novo Mundo como uma só nação, com um só vínculo que unifique suas partes entre si e com o todo. Já que tem uma origem, uma língua, uns costumes e uma religião, deveria, por conseguinte, ter um só governo que confederasse os diferentes estados que haverão de ser formados, Entretanto, isto não é possível porque climas remotos //página 29// situações diversas, interesses opostos, caraterísticas desiguais dividem a América. Que lindo seria se o Istmo do Panamá fosse para nós o que o de Corinto é para os Gregos! Tomara que algum dia tenhamos a sorte de instalar ali um venerável congresso dos representantes das repúblicas, reinos e impérios para discutir sobre os altos interesses da paz e da guerra com as nações das outras três partes do mundo! Esta espécie de corporação poderá ter lugar em alguma época feliz de nossa geração; qualquer outra esperança é infundada, semelhante à do abade Saint Pierre, que concebeu 28

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o louvável delírio de reunir um congresso europeu para decidir a sorte e os interesses daquelas nações. “Mutações importantes e felizes”, continua o senhor, “podem ser frequentemente produzidas por efeitos individuais. Os americanos meridionais têm uma tradição que diz que quando Quetzalcoatl, o Hermes ou Buda da América do Sul renunciou à sua administração e os abandonou, lhes prometeu que voltaria depois que os séculos das desigualdades tivessem passado, e que ele restabeleceria seu governo e renovaria sua felicidade. Será que esta tradição não influencia e excita uma convicção de que ele deveria voltar logo? O senhor pode calcular qual seria o efeito que produziria se um indivíduo aparecendo entre eles portasse as características de Quetzalcoatl o Buda do bosque ou Mercúrio do qual falaram tanto as outras nações? Não acredita o senhor que isto influenciaria todas as partes? Não é a união de todos o que se necessita para colocá-los em condições de expulsar aos espanhóis, //página 30// suas tropas e aos partidários da corrompida Espanha, para torná-los capazes de estabelecer um Império poderoso, com um governo livre e leis benévolas? ” Penso como o senhor que causas individuais podem produzir resultados gerais, sobretudo nas revoluções. Mas não é o herói, grande profeta ou Deus do Abahuac, Quetzacoatl o que é capaz de operar os prodigiosos benefícios que o senhor propõe. Este personagem é conhecido apenas pelo povo mexicano e não de uma maneira vantajosa, porque tal é a sorte dos vencidos, ainda que sejam Deuses. Só os historiadores e literatos se ocuparam cuidadosamente em investigar sua origem verdadeira ou falsa missão, suas profecias e o término de sua carreira. Disputa-se se foi um apóstolo de Cristo ou melhor, pagão; uns supõe que seu nome quer dizer Santo Tomas, outros, que significa serpente emplumada e outros dizem que ele é o famoso Profeta de Yucatán, Chilan-Cambal. Em uma palavra,a maioria dos autores mexicanos mais polêmicos e historiadores profanos trataram com mais ou menos extensão a questão o verdadeiro caráter de Quetzalcoalt. O fato, segundo diz Acosta, é que ele estabeleceu uma 29


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religião cujos ritos, dogmas e mistérios têm uma admirável afinidade com a de Jesus e que talvez é a mais semelhante a ela. Não obstante isto, muitos escritores católicos procuraram afastar a ideia de que este profeta fosse verdadeiro, sem querer reconhecer nele um Santo Tomas como o afirmavam outros célebres autores. A opinião geral é que Quetzalcoatl é um legislador divino entre os povos pagãos de // página 31// Anahuac, do qual era lugar-tenente o grande Motezuma, derivando dele a sua autoridade. Daqui se infere que nossos mexicanos, não seguiriam ao gentil Quetzacoatl ainda que aparecesse sob as formas mais idênticas e favoráveis, pois professam uma religião mais intolerante e exclusiva que outras. Felizmente os diretores da independência do México se aproveitaram do fanatismo com grande acerto, proclamando à famosa Virgem de Guadalupe como rainha dos patriotas, invocando-a em todos os casos árduos e levando-a em suas bandeiras. Com isto, o entusiasmo político formou uma mistura com a religião que produziu um fervor veemente pela sagrada causa da liberdade. A veneração desta imagem no México é superior à mais exaltada que pudesse inspirar o mais sagaz profeta. Por outra parte, o tempo das aparições passou e ainda que fossem os americanos mais supersticiosos do que são, não emprestariam sua fé às superstições de um impostor, que seria tido por um carismático ou pelo anti-Cristo anunciado em nossa religião1 Seguramente, a união é o que nos falta para completar a obra de nossa geração. Mas, nossa divisão não é estranha porque tal é o distintivo das guerras civis formadas geralmente entre dois partidos: conservadores e reformadores. Os primeiros são, pelo comum, mais numerosos porque o império do costume produz efeito da obediência aos poderes pré-estabelecidos; os últimos são sempre menos numerosos, ainda que mais veementes e ilustrados. Desse modo a // página 32// massa física se equilibra com a força moral e a contenda 1

Este parágrafo se encontra no manuscrito original, encontrado no Equador, o mesmo não aparecia nas versões em español conhecidas até a data.

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se prolonga, sendo seus resultados muito incertos. Por sorte, no nosso caso a massa seguiu a inteligência. Eu direi ao senhor o que pode nos colocar em condição de expulsar aos espanhóis e a fundar um governo livre: é “a união”, certamente, mas esta união não nos virá por prodígios divinos, senão por efeitos sensíveis e esforços bem dirigidos. A América defronta-se consigo mesma, porque foi abandonada por todas as nações, ilhada no meio do universo, sem relações diplomáticas nem auxílios militares, e combatida por Espanha, que possui mais elementos para guerra que nós possamos furtivamente adquirir. Quando os acontecimentos não estão garantidos, quando o Estado é frágil e quando as empresas são remotas, todos os homens vacilam, as opiniões se dividem, as paixões se agitam e os inimigos as animam para triunfar por este meio fácil. Assim que formos fortes, sob os auspícios de uma nação liberal que nos preste sua proteção, seremos vistos em consonância com a cultura das virtudes e dos talentos que conduzem à glória. A partir de então, seguiremos a marcha majestosa até as grandes prosperidades a que está destinada a América Meridional, E assim, as ciências e as artes, que nasceram no Oriente e ilustraram a Europa, virão para Colômbia livre, que as convidará como para um asilo. Tais são, senhor, as observações e pensamentos que tenho a honra de submeter ao senhor para que os ratifique ou reprove, segundo seu mérito. Suplico-lhe que compreenda que me atrevi a expô-los, mais para não ser descortês, do que por me acreditar capaz de ilustrá-lo nesta matéria2. Sou do Senhor. Kingston, 06 de setembro de 1815. 2

Segunda sinaliza o pesquisador Amílcar Varela, neste ponto finaliza o manuscrito original da Carta de Jamaica, encontrado no Equador. A frase seguinte destacada em negrito que incluímos nesta edição, corresponde à primeira versão da Carta da Jamaica em espanhol que foi publicada na obra de Cristóbal Mendonza e Francisco Javier Yanes: Coleção de documentos relativos à vida pública do Libertador da Colombia e do Peru. Simón Bolívar, para servir à História da Independência de Sul- América. Caracas, Inprenta Damiroy, 1833. Volume XXI apêndice, pp. 207 – 229.

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Esta edição do extraordinário documento Contestación de un americano meridional a un caballero de esta isla, escrito por Simón Bolívar é considerado o texto fundamental na história emancipatória Nossamericana, é de singular importância para a história do país e do continente. A “Carta de Jamaica”, que o governo Bolivariano da Venezuela tem a honra de apresentar aos leitores, contém um parágrafo até agora inédito, pertencente ao manuscrito original em castelhano, encontrado em 2014, no Fundo Jacinto Gijón, do Arquivo Histórico do Banco Central do Equador, em Quito.

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