Em Busca do Rei # 2

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EM BUSCA DO

REI THIAGO DE BARROS FONTOURA



CAP 2

A Triste Miss達o do Embaixador Laffayete Hermeto Alegre



O

primeiro semestre tinha acabado. Pelo menos para Dora que sempre fora uma aluna estudiosa e esforçada, não por exigência da mãe, tampouco por genética ou coisa do tipo. Era assim e pronto. Sempre fora chegada a uma competição e, como era de se esperar de alguém que esteve sempre preparada a vencer, caía em lamentações quando porventura aparecia em seu boletim uma nota 9,5. Não era o caso daquele ano: 10 de cabo a rabo na caderneta. Com o amigo Estevão era um pouco diferente. Traçava consigo um esquema que acreditava ser infalível e mais prático, para um ano mais tranquilo, sem muitos esforços e com um final que agradasse a todos. Nas matérias de que não gostava, Estevão usava de um esforço insignificante, que lhe rendia quase sempre nota um ou dois pontos abaixo da média. Preferia ficar para as provas de recuperação. A grande sacada de seu plano, deveras audacioso, estava no esquema que a própria escola montara para aquelas provas. Bastava que um aluno com as notas de Estevão tirasse nota quatro nos exames para que, somado com as notas anteriores e dividido novamente, conseguisse a média e a certeza de que conseguiria mais uma metade de ano a empurrar com a barriga. Para maior comodidade, as provas da recuperação começavam no dia seguinte ao término das aulas. Para a cabeça de Estevão, que se alimentava de momentos reflexivos como aquele – ver a escola vazia, habitada apenas pelos maus alunos de sempre, daquela vez preocupados com as notas, com as pendências, com o purgatório ou com coisa que o valesse – era puro êxtase. Nos três primeiros dias da recuperação, comparecera pontualmente. Para nenhuma das provas Estevão lera uma linha sequer. Passou com nota 5 em todas. Estava mais preocupado com o depois da aula. Ficou combinado com Dora que Estevão deveria dizer aos pais que sairia de viagem com sua amiga, sem dizer ao certo aonde iria, uma fazenda talvez, já que em Pragadasa as paisagens eram bucólicas o suficiente para se passarem por fazenda, para o



caso de se comprovar o destino da viagem, com fotos e vídeos. Os detalhes da mentira pós-viagem seriam planejados depois. Assim o fez Estevão. Notificou os pais, sem maiores voltas, da viagem. Ao pai só coube dizer ao filho quando se daria o namoro dos dois. — Deixa de besteira, meu velho, por Dora não sinto nada nesse sentido, tenho-a como irmã, você bem me conhece. — Conheço, mas não reconheço, nunca foi de maricagens, e vez ou outra se enrabichava com uma menina por aí. — Mas com Dora é diferente, meu velho. Nunca faria nada que a prejudicasse, inclusive galanteá-la. Primeiro, porque eu sei que ela sente o mesmo por mim, como disse, temos um ao outro como irmãos. E segundo, se isso acontecesse, seria o fim de nossa relação. Não fique aí preocupado comigo, que já não estou em idade de causar preocupação em vocês. — Está certo, querido — disse a mãe de Estevão, agora totalmente recuperada da súbita crise de consciência que teve meses atrás — Eu e seu pai aproveitaremos o tempo, para quem sabe uma viagem só nossa. Seria ótimo não seria, meu bem? O pai de Estevão concordou sorrindo e parabenizou a esposa com um beijo discreto em seus lábios. — Pra quando é a viagem? — A qualquer momento, pai, tenho que ser rápido para arrumar as malas. Aquele mesmo dia que para Estevão começara bem cedo, já que deveria estar logo no primeiro horário, como era costume falar, rodeado por aqueles tipos de garotos que sempre detestara, fazendo a mesma prova de exame, para Dora começara um pouco mais tarde. Certo é que, se dependesse unicamente de sua vontade, o correto seria dizer “muito mais tarde” com uma grande ênfase no termo “muito”. Porém, como é de costume dos seres humanos, principalmente dos adolescentes não terem o controle pleno das reações do corpo, Dora acordou apenas uma hora mais tarde que a usual,


a aflição e a ansiedade já a fizeram abrir os olhos e apenas o cansaço e a preguiça conseguiram segurá-la na cama, fazendo-a rolar de um lado ao outro, já sabendo que preguiça nada tinha a ver com sono. O motivo de tanta ansiedade era a visita já esperada de seu pai. O Rei gostava de vir pessoalmente pegar a filha para juntos embarcarem para as viagens para Pragadasa. A essa ansiedade, Dora já estava habituada, todo ano era a mesma coisa, a visita nunca era e tampouco seria algum dia datada. A surpresa era o grande trunfo que o rei carregava nas mangas, além é claro de algum presente bacana. A novidade naquele ano, porém, estava na aflição. O motivo era um só: seria o dia em que Dora apresentaria seu estimado amigo Estevão ao Rei. “O que ele vai achar? O que vai dizer? Oh! Deus, espero que não faça nenhuma daquelas piadas de hippie ou coisa parecida.” Levantou. Tentou não parecer ansiosa para a mãe, enquanto cruzava o corredor em busca de uma toalha para o seu banho. No máximo, respondeu sorridente como sempre, porém o mais breve que conseguira, ao bom dia entusiasmado que Diadora pronunciara no mesmo instante. No banho começou a pensar nas coisas de que poderia partilhar com seu amigo estando os dois em Pragadasa. E o medo de apresentar ao seu pai pareceu um pouco distante, e bobo ao mesmo tempo, mas como não controlamos nossos próprios pensamentos, assim que Dora se lembrara da aflição que sentira ainda há pouco tão fortemente que fora capaz de tirá-la da cama, e o quanto estaria ela segura ali, naquele momento íntimo pensando em coisas agradáveis, a bendita sensação voltara, como que para refrescar a memória da princesa. Alguma coisa estaria errada naquilo tudo, apresentar o amigo ao pai seria um motivo de festa, todos em Pragadasa iriam adorar as brincadeiras de Estevão e, principalmente, iriam rir muito à sua custa, já que o rapaz ainda não fazia ideia do que o aguardava. Ao pensar naquela hipótese, Dora sorriu novamente, não apenas sorriu, bem


na verdade riu demasiadamente no chuveiro, uma risada gostosa e prolongada, repleta de felicidade tentando afastar por completo as más energias que a tomaram de assalto. No café da manhã, com a sua mãe e o sapo Virgílio, Dora, trajando uma camisetinha branca e uma bermuda xadrez, sabendo exatamente que o xadrez estava de volta na moda, reutilizado de uma maneira totalmente adversa da moda grunge que invadira os guarda-roupas na época em que nascera, comeu pouco: uma maçã, metade de um pão mandi e uma xícara de chá. Não quis fazer perguntas sobre o pai, pois sabia que de nada adiantaria, sabia, no entanto, que ele estaria a chegar, no mais tardar em um ou dois dias. O sapo Virgílio estava a ler o jornal. Pura pose, já que as notícias dos homens pouco lhe eram familiares, desistira de tentar entender como sucediam as coisas nas abas de cá da vida, já que o mundo dos sapos, em tudo, era muito mais simples que o dos homens: desde os bens materiais, os hiatos, os termos cognatos, os jogos de poder, as diferenças sociais, o amor. Diadora usava seu roupão azul marinho e degustava a boa e velha torrada com manteiga acompanhada do café com leite, tão inseparáveis como sua filha e o amiguinho, que não tardaria a bater à porta. A cozinha não era grande, mas de longe era um dos ambientes favoritos da casa para os três moradores. Geralmente era ali naquela mesa de seis lugares cuidadosamente fabricada em madeira e tingida de um azul brega, provavelmente datada dos anos de 1970, que aconteciam todas as refeições do dia com exceção de um lanche ou outro que era comum acontecer fora de horário. Tratavam dos mais variados assuntos, políticas, esportes, fofocas de Pragadasa, histórias da família de Diadora quando criança, amores e aventuras de Virgílio. Particularmente, naquele dia, a mesa estava em silêncio. Talvez pelos três


estarem preocupados demais em parecer despreocupados pelas mais diversas razões. O sapo, por exemplo, fora treinado para nunca demonstrar emoções de caráter feminino, como a ansiedade além, é claro, de ter que estar sempre preparado para qualquer situação. Diadora obviamente nutria ainda fortes sentimentos pelo pai de Dora e disfarçava de maneira mais amadora a tensão e os fortes batimentos em seu peito. Dora parecia ser a única a perceber o que se sucedia e não pode deixar de lhe escapar um sorriso, o nervosismo dos dois era a prova de que ela precisava para saber que a visita do pai estava mais próxima do que esperava, talvez ainda naquele mesmo dia poderia dar de cara com o Rei pelos corredores da casa. Terminado o café da manhã, Dora tratou de procurar o que fazer. Para dizer a verdade, era exatamente aquilo o que mais lhe incomodava: saber que teria o dia todo pela frente, sem sinal de seu amigo e muito menos de seu pai. Começar a ler um livro seria uma boa maneira de fazer o tempo passar. Seria, caso não fosse a cabeça de Dora estar em tantos lugares diferentes ao mesmo tempo apenas deixando desabitadas as linhas, tão cuidadosamente escritas por algum autor, repletas de palavras e sentidos que pouco prendiam a atenção da princesa naquele momento. “Ler, não” pensou Dora, procurou por algo mais agradável aos olhos, uma revista de moda, daquelas bem espessas, longas, a qual conseguiria passar horas a folhear, sem ter que pensar em demasia. Dito e feito, pelo menos nos primeiros dez minutos. Percebeu, depois disso, que faltavam muitas páginas ainda e desistiu de continuar a tarefa, muito antes de chegar à metade da encadernação. “Internet!” pensou em voz alta e animada. Entrar em blogs de fofoca, procurar por vídeos interessantes, atualizar algumas fotos em seu profile, a



intenção era nobre, e ainda contava com um dom nato de se perder por horas na rede mundial de computadores. Para o mais profundo infortúnio, a rede estava muito lerda, os dowloads demoravam uma eternidade, a paciência foi-se esvaindo assim como sua inspiração. Remédio foi assistir à TV, qualquer banalidade que lhe adormecesse o cérebro seria bem-vinda. Dedilhou os vários botões do controle remoto, e descansou no sofá vendo a programação de videoclipes e alguns seriados de comédias americanas, que tanto fazem sucesso nas TVs por assinatura. A campainha tocou. Somente assim Dora foi capaz de perceber que dormira em frente à TV. Olhara as horas no antigo relógio de ponteiro, pendurado na parede da sala: já era quase hora do almoço. Dora sorriu ao perceber que conseguira, enfim, fazer o tempo andar mais rápido. Correu em direção à porta, tentava, sem muito sucesso, desamassar a blusa e arrumar o cabelo levemente bagunçado ao mesmo tempo em que procurava não parecer tão aflita. Naquele momento, por mais que fosse permitido, jamais conseguiríamos imaginar o tamanho da felicidade de Dora ao abrir a porta e a desilusão que desmanchara em frangalhos seu insustentável sorriso, ao perceber que o homem que ali estava defronte seus olhos não era seu pai, tampouco o estimado amigo Estevão. Era sim um estimado amigo, mas da família Real. O embaixador de Pragadasa, ilustríssimo senhor Lafayette Hermeto Alegre. Era alto e magricela, trajava um terno amarelo de corte que mais parecia datar da década de 1920, adornado com um chapeuzinho estilo coco, que fazia por chamar a atenção das madeixas brancas já queimadas pela ação do tempo e dos maus-tratos. Dora já o conhecia de outras datas, mas fazia muito tempo que o embaixa-


dor não dava com as caras em sua casa. Em seu semblante, carregava um sorriso amarelo, bem aberto com os dentes a serrar uns aos outros, tamanho o esforço de tentar fazer jus ao sobrenome. A testa se contorcia junto com as sobrancelhas loiras e peludas, parecia não saber onde eram suas devidas posições. Demais tudo isso, era o olhar que denunciava fortemente que aquela não seria uma visita agradável, nem para ele, nem para a princesa. — Bom-dia — disse, um pouco desconcertado, o embaixador — Ora, ora, vejam só se não é a pequena Dora. Há quanto tempo! — Bom-dia, senhor Hermeto — respondeu educadamente a princesa, não conseguindo esconder certo desânimo. — Que sucede, Majestade? Está com uma carinha triste. — Nada de mais, senhor embaixador. Estava a esperar por uma pessoa. Gostaria de entrar? O embaixador aceitou conformado o convite, jamais entraria sem ser convidado. Tratou logo de perguntar pela mãe de Dora, dissera que daquela vez a visita era oficial. Adentraram os dois pelo já famoso corredor da casa de Dora. Dora ia à frente sem muito falar, o embaixador a seguia. A expressão que, estando ele na frente da princesa, parecia se contorcer para demonstrar um pouco mais de simpatia, naquele momento, pelas costas, se desprendia de qualquer obrigação e logo o olhar triste era acompanhado pela boca sem sorriso e as sobrancelhas caídas. Parara só um instante quando reconheceu a si próprio em um dos quadros do corredor, tinha os olhos esbugalhados, óculos vermelhos, redondos e pequenos, os cabelos longos e loiros, um terno azul repleto de medalhas, na mão direita, um bandolim. Com a esquerda fazia um sinal de paz e amor, tão bem firmado na cultura pelos hippies dos anos de 1960. A imagem fizera-o lembrar-se de quem ele era, e por que fora nomeado embai-


xador de Pragadasa. Ninguém em sua terra era mais capacitado para a missão, tanto em inteligência e preparo quanto em espírito. Festivo por natureza, o embaixador Lafayette Hermeto Alegre sempre promovera grandes festas para entreter visitantes e amigos próximos ao Rei. Sabia como ninguém, cativar as pessoas, ora com uma boa conversa, ora com uma apresentação de seus dotes, era ótimo instrumentista e sempre levava consigo o inseparável bandolim. Em simpatia, talvez perdesse apenas para o próprio Rei, amigo de infância, com quem tinha uma música ou outra composta. Sorriu discreto em frente à imagem na parede, sabia que aqueles eram outros tempos e que naquele momento o inseparável instrumento não carregava consigo, tampouco carregava a alegria que lhe era natural. Dora anunciou a ilustre visita à sua mãe que estava sentada na sala, aproveitando os poucos minutos que sobravam do dia para relaxar, mas a presença do embaixador já a fizera perceber que tão cedo o tão aguardado momento de descanso não chegaria. — Bom-dia, Majestade. Vejo que vim atrapalhar a tão preciosa hora do almoço — disse o embaixador, tirando o chapéu da cabeça. — Imagina, embaixador — levantou-se a mãe de Dora, dirigindo-se ao estimado amigo — Não sabe o senhor que o almoço aqui, nessas épocas de férias, tarda a chegar? Gostaria de ficar e sentar-se à mesa conosco? — Lamento não ter o tempo necessário para tanto, Majestade. A visita dessa vez é oficial. No momento em que a conversa seguia, a campainha tocou novamente. Por um breve momento, Dora havia esquecido que estava esperando pelo pai. A palpitação, o nervosismo e a alegria voltaram a bater contra o peito. Correu até a porta e abriu rapidamente para acabar de vez com a angústia da espera, viesse o que viesse, certamente estaria a princesa pronta para



qualquer tipo de surpresa desagradável. Não fora tão desagradável assim. Era o amigo Estevão, esperando já com uma mochila grande o suficiente, para guardar seu modesto guarda-roupa. Usava a mesma calça jeans de sempre, o velho All Star, companheiro de todas as horas, uma camiseta amarela com qualquer estampa que lhe parecesse interessante, asas e guitarras sempre ficavam bem juntas em sua imaginação. — Cheguei muito tarde? Tentei vir o mais rápido que pude — disse o garoto. — Chegou em tempo, querido. — Dora fizera questão de tranquilizar o amigo, que parecia mais aflito que ela. Ver, naquela altura do campeonato, que havia uma pessoa mais aflita que ela, já era por si só um tipo de remédio para os nervos. — Nem sinal do meu pai ainda. Mas, no entanto, apareceu por aqui outra figura muita bacana que você merecia conhecer: O nobre embaixador de Pragadasa, Sr. Lafayette Hermeto Alegre. — Uau! Que nome. Deve ser uma cara de bem com a vida... — proferiu Estevão, já adentrando na casa da amiga e tratando de deixar em algum lugar prático a sua mochila. — Na verdade, particularmente hoje, ele está um tanto quanto cabisbaixo. Não sei ao certo o que está acontecendo. Enquanto os dois se aproximavam da sala, a mãe de Dora gentilmente encostou-se à porta que dava para o corredor e pediu a sua filha que chamasse o sapo Virgílio, o embaixador estava solicitando também a sua presença. Não foi preciso sequer uma virada com a cabeça. O sapo de longe ouvira o chamado e com apenas dois longos pulos alcançou a sala de estar da casa. Ficou evidente que o embaixador e a mãe de Dora haviam dado uma pausa


na conversa, para que o que fosse dito chegasse aos ouvidos de todos. — Senhor Hermeto, esse é Estevão, um grande amigo meu — apresentou Dora o amigo ao embaixador que, sem perceber, por um breve instante, voltara a sorrir automaticamente e com entusiasmada alegria. — Já conhecia o senhor Estevão de nome, princesa. A união de vocês dois é muito bem quista em Pragadasa. É um enorme prazer conhecê-lo, senhor. — O Prazer é meu, senhor Hermeto — respondeu educadamente Estevão. Virgílio aproximou-se dos pés do embaixador, e deu três tapinhas em seu joelho, já que não alcançaria as costas do amigo. — Há quanto tempo não o vejo, velho amigo? — resmungou o sapo. Educadamente, para não enfatizar a diferença de tamanho e estrutura física entre um humano e um sapo, o embaixador abaixou e se sustentou em seus joelhos. E cumprimentou o amigo pela mão, como deve ser o cumprimento entre dois companheiros de longa data. — Eu que o diga meu querido, como vai a vida na aba de cá do mundo? — Não me preocupo com isso, embaixador, todo dia me lembro da missão que tenho que cumprir. E isso me mantém bem e feliz. — Será que o senhor pode dizer agora a que veio, embaixador? — perguntou a mãe de Dora, tratando que quebrar o clima saudosista. Já sabia ela que algo de muito errado estaria naquela visita tão inesperada. — Bem se vê que Vossa Majestade é uma mulher prática, de poucas voltas e de muita ação. Sem mais devaneios, vou o mais direto que puder ao propósito de minha vinda. — Levantou-se o embaixador, e limpou os joelhos com o chapéu. — Gostariam de sentarem-se todos? Ficara mais tranquilo se assim o fizessem. Todos obedeceram a tão educado apelo. O embaixador tratou de começar a falar, parecia meio sem jeito, ficou


alguns segundos quieto, buscando as melhores palavras, que encaixadas umas diante das outras formariam as sentenças exatas que transmitiram as informações necessárias sem causar demasiada dor. — Queria eu ser o último a trazer tal notícia, mas só é cabida a mim tal missão. ­— Do que está falando, embaixador? — já perguntou Dora, em seu peito o coração estava disparado, pedindo loucamente para sair, pela boca que fosse. —Deixe-me pelo menos tentar começar Princesa — respondeu o embaixador, tentando acalmar o que era inevitável, quase como um copo d’água uma gigantesca labareda de fogo. — O que venho dizer é que estamos passando por um momento deveras complicado no Reino de Pragadasa. Algo como uma crise, que permanecera oculta até o momento, mas que já começa mostrar as caras do que está por vir. — Agora quem não está entendo sou eu, embaixador — disse a mãe de Dora. — Todos os dias, praticamente, recebemos visitas, e com elas as notícias de Pragadasa, e todas me pareceram as mesmas de costume. — Acredito que sim, Majestade — retomou a palavra o embaixador — Mas o que venho falar é quase confidencial, e estamos tentando deixar essa notícia o mais longe possível da imprensa e da população. — O que de tão grave está acontecendo a nossa terra, embaixador? — bravejou o sapo. Estevão olhava toda a cena e nem ousava a abrir a boca. Só lhe coube segurar a mão da amiga, que já deixava evidente a tremedeira. — O que de mais grave poderia suceder, meu querido amigo. Foi bom ter encontrado justamente os quatro em casa, visto que tal notícia seria incapaz de sair duas vezes de minha boca. O que venho tentando, inutilmente, dizer sem floreios — deu uma pausa, respirou profundamente e proferiu — É que o Rei de Pragadasa desapareceu. A notícia caiu como uma bomba. A aflição que Dora sentira de manhã ti-


nha enfim uma explicação. Era um pressentimento que algo terrível estaria por vir, e viera. As lágrimas começaram a sair desesperadamente de seus olhos, mas o corpo demorou a reagir, permaneceu inerte, apenas as mãos se movimentaram e foram ao encontro das mãos do amigo que, naquele momento, tentara apresentar o mínimo de conforto. Mas a razão falou mais alto, clamou por uma explicação mais exata do que realmente estaria acontecendo. — Foi sequestrado? Foi morto? Querem dinheiro? Tem bilhete? Telefonema? Qualquer coisa? — as palavras não obedeciam exatamente a uma ordem lógica, típico momento em que pensamento e coordenação vocal não se casavam perfeitamente. — Na verdade, princesa, é a esperança que me dá forças para vir até aqui e esclarecer todos os fatos. — E quais são os fatos? — perguntou Diadora. — A grande verdade é que, ao que parece, o Rei abdicou de suas funções — respondeu duramente o embaixador. Ninguém sabia ao certo o que era mais absurdo, o fato de o rei ter sumido, ou a hipótese de um dia o Pai de Dora abdicar de suas funções e tarefas reais. As bocas começaram a se abrir em revolta, os tons começaram a se tornar mais esbravejantes, e a conversa começou a se tornar uma discussão. — Como pode o Rei ter abdicado? Isso é loucura, senhor Hermeto — disse Dora. — O homem que conheci jamais seria capaz de abandonar seu povo, embaixador. — retrucou o sapo Virgílio, já levantando e apontando o dedo em direção às fuças do amigo. — Entendo perfeitamente a aflição de vocês, e fico de certa maneira reconfortado em saber que vocês partilham da mesma opinião que a minha. Mas o fato é que a última vez que o Rei foi visto foi em seu jardim logo


pela manhã uns dias depois da páscoa. Dispensou a guarda real e saiu para passear sozinho. Um dos guardas disse claramente que o Rei ordenou que não esperassem por ele. E, desde então, nunca mais fora visto. — E vocês? — perguntou indignado o sapo, já tomado pela autoridade que lhe era cabido. — Não fizeram nada? Não estranharam? — Em verdade talvez esse fosse o nosso maior erro — Encolheu a cabeça por vergonha, o embaixador — Sempre fomos acostumados às coisas boas da vida e a confiar em demasia no Rei. Nunca passou em nossas cabeças que o Rei correria perigo, já que é praticamente impossível acreditar que alguém queira fazer mal a ele. Afinal ainda dizem em Pragadasa que só existem dois tipos de pessoas: os que são amigos do Rei e os que ainda não tiveram o prazer de conhecê-lo. — Eu não conheço o Rei — disse Estevão, querendo em vão quebrar a tese um tanto quanto ingênua do embaixador. — Mas o Rei conhece você, querido Estevão – respondeu com um sorriso o senhor Alegre – e guarda por você grande estima. — Presumo que vocês estão até hoje esperando o Rei voltar — concluiu o sapo, com uma cara desapontada. — Na verdade não, Capitão — tomou a palavra mais uma vez o embaixador. — Confesso que demoramos a tomar alguma providência, já que o Rei já fizera isso algumas vezes, mas nunca demorara mais de um mês em suas viagens. — Estou curiosa para saber quais foram as providências, senhor embaixador ­— ironizou Dora, que agora estava vendo o quão frágil era a estrutura de seu governo. O embaixador tratou de tentar confortá-la, não haveria remédio melhor para uma princesa que sofre com a possível perda do pai do que a verdade. — Na verdade, princesa, as providências emergenciais estão sendo toma-


das no sentido de evitar um sentimento de desespero na população. Organizamos um grupo de busca com nossos melhores soldados. Mas somos sempre esbarrados por questões diplomáticas e burocratas para avançarmos com as investigações. A própria tarefa de manter essa triste notícia longe dos jornalistas e do povo gera certas limitações na maneira como levamos esse trabalho. — Entendo sua cautela, embaixador — disse Dora — Mas há de concordar comigo que vocês não conseguirão manter por muito tempo os jornalistas afastados dessa verdade, que dirá o povo de Pragadasa. — Não só sabemos como é justamente esse pensamento que nos leva a outra providência — virou-se de costas o senhor Hermeto, deu alguns passos em direção à janela e a abriu. Olhou por um breve momento a paisagem da vida que andava devagar do lado de fora da rua, e voltou sua atenção novamente para a sala e os problemas em Pragadasa. — Ao passo que já faz três meses do desaparecimento do Rei, e ainda nenhuma pista foi sequer levantada. As poucas pessoas que sabem do ocorrido, incluindo os ministros e a guarda Real, formaram o que estamos chamando de Regência Provisória, constituída por pelos atuais ministros para tomarem as medidas mais urgentes, enquanto o Rei não aparece. Não vamos nos esquecer de que inclui em nossos pensamentos a hipótese de que a qualquer momento o Rei possa cruzar aquela porta e dar com o sorriso de sempre bem aqui nesta sala. — Regência? — soou indignada a voz de Diadora, acompanha de sua filha e do sapo Virgílio estupefato pela sucessão dos fatos absurdos. — Sei que a sequência das notícias está dando forma a uma situação que parece à primeira vista monstruosa, Majestade. Mas insisto em continuar a narrar os fatos assim como eles estão dispostos. — O pedido do embaixador foi atendido mais uma vez, e todos tentaram se acalmar ou guardar energia para reagir com mais força e veemência à próxima notícia esd-


rúxula. — Essa medida foi concedida de forma não oficial ainda, Majestade, afinal ela divide a opinião dos ministros. — Como assim “divide opiniões”? — estranhou Dora, percebendo que, a cada palavra, o embaixador se aproximava cada vez mais dela. Estevão já começava a apertar a mão da amiga, tamanha a vontade de poder ajudar e incapacitado pelo tamanho do problema que se desenhava em sua frente. — Dividem-se opiniões, Majestade, pois metade dos ministros apoia a ideia de uma Regência Trina, já a outra metade... — Que tem a outra metade, oras bolas? — gritou impaciente o sapo. — Bem, a outra metade é a favor da emancipação da Princesa Dora, para que ela venha a se tornar Rainha de Pragadasa, já que ela é a única herdeira do trono. O embaixador fechou os olhos, esperou o pior, um tapa, um xingamento qualquer, uma chuva de granizos, mas o que ouviu foi um profundo silêncio. — Eu? Rainha? Isso é loucura — exclamou Dora. — Nem tanto, Princesa, com o treinamento adequado, certamente você se adapta às devidas funções — disse o embaixador, apertando e rodopiando o chapéu freneticamente contra seu peito. — Está louco, senhor Lafayette? — Dora chegara à conclusão de que estava ouvindo besteiras demais. — nem esperaram esfriar o corpo, ou pior, nem prova, nem sinal de vestígio de meu pai vocês tem, e já saem por aí a tramar uma revolução, a clamar por novos governantes ou a colocar o Reino de Pragadasa nas mãos de uma adolescente que há muito tempo já não vive por lá. Jamais poderei aceitar tal ideia. Sequer tenho a rede de amigos que meu pai possui. — Pelo menos começaste bem, Princesa — disse o embaixador rumando seus olhos para o amigo Estevão. — Na escolha dos amigos, ao menos você está mostrando que saiu como seu pai. Não pede nada em troca, e



fica visível que esse jovem rapaz jamais seria capaz de qualquer coisa em nome dessa relação. — Tenho certeza disso, embaixador — disse Dora olhando também para o menino Estevão, que respondia unicamente com um sorriso leve no rosto — mas a grande verdade é que não estou preparada para governar. Estou mesmo é preparada para voltar para Pragadasa e começar uma busca mais séria por meu pai. O povo de lá precisa saber que seu Rei sumiu, e que mais cedo ou mais tarde vamos encontrá-lo. — Não poderia aguardar outra resposta que não essa, Majestade — sorriu feliz o embaixador, colocou de volta o chapéu em sua cabeça — Logo se vê que já tem a coroa em mãos. Se me é permitido aconselhar, peço-lhe para que a ponha na cabeça, Princesa, antes que alguém o faça. Está certa quando diz que o momento não seja esse, mas já vejo uma grande rainha em você. — Agradeço os votos de confiança, embaixador — Levantou a princesa e caminhou em direção à porta que dava para o corredor. — Mas insisto para que ponha encerrada aqui essa especulação. Tratemos logo de fazer nossas malas, pois temos uma longa viagem pela frente. — Pois não, Majestade — fez uma reverência aos que estavam na sala e se desculpou mais uma vez o nobre embaixador — Peço desculpas mais uma vez por atrasar o almoço de vocês com tão triste notícia, acredito que depois dessa, a fome de todos deva ter se perdido dentro das voltas em suas cabeças. — Não se preocupe, embaixador — disse a mãe de Dora — como eu disse anteriormente, nessas épocas, o almoço aqui em casa tarda em chegar. Todos acompanharam o embaixador até a porta. Nada foi dito, preferiram o silêncio. Se nos fosse permitido, olhar de uma angulação diferente, distante, observaríamos, essas cinco silhuetas, arrastando-se passo a passo ao longo do corredor com a luz do sol a contrastar em forma e sentido com a


tristeza da cena descrita, acharíamos tudo muito belo, nada mais longe da cruel realidade. Afinal o que se encontra de fato é a filha que perdera o pai, o embaixador que perdera o amigo, a mulher apaixonada que perdera o exmarido, o sapo que perdera o patrão e o garoto que perdera a oportunidade de saber o que significava perder o Rei de Pragadasa. O senhor Lafayette Hermeto Alegre seguiu da porta para a rua, caminhando tristonho, coube a ele quebrar mais uma vez o silêncio com palavras desagradáveis, não pela sua essência ou significado, mas sim por fazer lembrar a todos o que não poderia ser esquecido tão cedo. — Até breve a todos. Sei que não posso, depois de todo disparato de minha infeliz visita, desejar um feliz dia, ou que passem bem. Mas peço encarecidamente que ao menos tentem, já que estamos todos dispostos a resolver esse enigma. — Fique com Deus, senhor Hermeto — disse Diadora. Foi a única que reuniu mais forças para tal — Amanhã cedo nos veremos. Fizeram o possível para levar a outra metade do dia que se arrastava como uma tartaruga manca. Dora, no primeiro canto mais aconchegante, sentou e desabou em lágrimas, soluçava, ofegava e engasgava. Foi acudida pelo inseparável amigo. — Não chore dessa maneira, Dora, parte o meu coração vê-la assim. — Como espera que eu reaja, Estevão? — encostou a cabeça no ombro amigo — Meu pai desapareceu. Não faço ideia do que fazer. — Você não sabe, mas existe quem saiba, Princesa — chegou o sapo Virgílio com a segurança e firmeza que se exige de um general — Sua dor não é só sua, esse peso você não carregará sozinha, serei o primeiro na linha de busca, tenho certeza de que seu pai está vivo e bem. Estou nesse ramo desde que nasci e posso afirmar que as notícias ruins são as primeiras que chegam. Se não há notícia é sinal de que não há com o que se temer. — Nisso, Virgílio está certo, meu amor. — Diadora sentou-se no braço do


sofá que dava lugar para apenas duas pessoas, mas que, nessas horas difíceis, se pode muito bem servir para três e mais um sapo. — O embaixador é um grande homem, e devemos confiar em suas palavras quando diz que é a esperança que o mantém na linha; é a esperança que está segurando o Reino neste momento, e é a esperança que vais nos guiar daqui até Pragadasa e nos fazer encontrar seu pai. Dora sentiu-se mais calma, os pensamentos começaram a se ordenar dentro da cabeça, ela pôde então sentir na pele o que a mãe estava tentando justificar. Dora sentiu a esperança inundar seu peito, sabia que o que estava acontecendo era por algum motivo. Olhou para o lado e viu o amigo Estevão. Naquele momento, ela soube que aquele seria um amigo para a vida toda, sabia que, sempre que olhasse para o lado, lá ele estaria. Não importa a época, não importa a idade, não importam as rugas. O que importa é o sentimento, e nada mais nobre, nada mais sublime pode superar a amizade sincera desses dois, um querer bem e um sentimento de proteção e conforto que iria além das razões do Ser e de suas relações com o espaço. — Estou feliz que esteja aqui comigo, Estevão — disse carinhosamente a amiga, com os olhos ainda cobertos pelas lágrimas, mas agora substituídas por lágrimas de felicidade. — E daqui não sairei, pequena. Embarco nessa aventura com você, e vou acompanhá-la até o inferno se preciso, mas prometo que vamos encontrar seu pai. Permaneceram unidos até bem mais tarde, a conversa aos poucos rumou para boas lembranças e causos do Rei. Todos riram e gargalharam. Dora recuperou o apetite e tratou de preparar as malas, enquanto continuava a se alimentar de boas lembranças e retratá-las ao amigo. Jantaram reunidos na cozinha, os restos do almoço que Diadora fizera questão de esquentar, ela própria, no fogão de quatro bocas que ali naquele canto permanecera durante anos.


O dia chegou ao fim com um belo luar, o céu estava limpo de nuvens, e era possível contar estrelas, quem fosse disso é claro. O sapo encostou-se à janela e se pôs a contemplar o céu, na verdade, estava a pensar no dia seguinte e em seu íntimo poderíamos ouvir uma prece, para que tudo se resolvesse logo, sem dor e sem sangue. Desligou as luzes remanescentes da casa e pôde aproveitar os últimos momentos de silêncio, já que àquela hora se encontravam todos em suas respectivas camas. Estevão foi bem acomodado no tapete do quarto da amiga, repleto de pôsteres de astros do rock e do pop internacional. Ficou observando a imagem de Kurt Cobain que insistia em fitá-lo com os olhos. Não tardou muito e adormeceu. Dora dormira com a mãe no quarto maior. As duas se abraçaram e reafirmaram ali, naquele momento, o laço sagrado que unia suas almas em um único sentido de existência. As duas eram uma só, sofrendo com a dor da perda e sonhando com a promessa do reencontro com o Rei.





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