Como fomos envergonhados enquanto crianças 1. Uma criança pode experienciar a vergonha quando os pais ou outros adultos lhe dizem, por palavras ou atitudes, que ela não é desejada. Esta mensagem pode ser transmitida desde uma tenra idade, pela forma como os adultos pegam na criança ao colo, por exemplo. 2. Quando uma criança é humilhada em público, a resposta à vergonha é intensificada na criança. Quando um pai, por exemplo, diz aos amigos que o filho não sabe jogar à bola, à sua frente. 3. Quando se reprova o comportamento da criança tendo em conta a totalidade que ela é, em vez do comportamento em si. Por exemplo: “Pedro, és muito mau!” em vez de: “Pedro, bater na tua irmã é feio. Podes estar zangado com ela, mas bater-‐lhe não resolve nada.” 4. Quando uma criança tem que esconder uma parte de quem é por forma a ser aceite, cria dentro de si sentimentos de vergonha. Quando tem que esconder os seus medos, alegrias, erros, sucessos e falhanços. 5. Quando as fronteiras emocionais ou físicas da criança são violadas. Isto acontece quando há violência física ou abuso sexual, ou mesmo um abuso psicológico. A vergonha irá surgir na criança. Uma criança não pode nunca criar fronteiras saudáveis e uma identificação de quem é a menos que estas fronteiras sejam claras nas relações com os progenitores. O abuso físico ou sexual de uma criança leva-‐a a criar sentimentos que lhe dizem que não é amada ou aceite. Aprende que só é amada ou aceite quando fisicamente abusada. A criança irá ainda crescer num mundo de segredos, sentindo que tem que se esconder constantemente dos outros para não sofrer uma vergonha adicional. 6. Quando a criança sente que não tem qualquer privacidade, nenhum lugar para se esconder, irá crescer com um sentimento de invasão do espaço pessoal e acreditará que tem que ser mesmo má para não poder ter esse espaço. Por exemplo, os pais que vasculham os pertences dos seus filhos, ouvem as conversas que têm com amigos, abrem as suas cartas ou lêem os seus diários, o que dizem à criança é algo como “eu sei o que andas a fazer... se me amasses contavas-‐me tudo.” 7. Quando os adultos tratam com indiferença eventos ou presentes que são importantes para a criança, esta sente automaticamente vergonha. Uma criança pode passar todo o dia a fazer um desenho para a mãe e quando lhe mostra o desenho esta não lhe dá valor, ou coloca-‐o encima de um monte de papeis, para ver mais tarde. Ou então responde qualquer coisa como “É bonito... O que queres que faça com isto?”. Quando os pais consecutivamente ignoram as atitudes da criança que lhe são importantes, como um jogo ou um desenho, um jantar com outros adultos, a criança irá desenvolver sentimentos que lhe indicam haver algo de errado com ela, que não é importante. 8. Quando a criança sente, por comparação, que os pais não são tão importantes como outros adultos que fazem parte do seu mundo, pode começar a desenvolver um sentimento de vergonha em relação aos progenitores, à família e, eventualmente, em relação a si mesma. Este sentimento de diferenças nos estatutos ou importância do agregado familiar conduz a criança a criar duas personalidades distintas: uma para lidar com a família e outra para lidar com o mundo exterior à família. Isto, por seu turno, leva a criança a esconder e envergonhar-‐se de uma parte de si. Por exemplo, os filhos de pais imigrantes, cuja linguagem e costumes diferem dos que observa na escola. Crianças de etnias diferentes e minoritárias, crianças cujos pais tenham poucos recursos económicos. www.emidiocarvalho.com -‐ Educação Emocional, 2010
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9. Quando uma criança sente que os pais são, de uma maneira ou outra, defeituosos ou imperfeitos, quando comparados com outros adultos, desenvolve sentimentos de vergonha. Por exemplo uma família onde o pai é alcoólico ou toxicodependente e tem um comportamento menos apropriado em sociedade. Crianças com um progenitor que tenha problemas físicos, uma deficiência, e esse problema nunca é discutido em família, levará a criança a sentir-‐se inicialmente embaraçada e mais tarde envergonhada. 10. Quando a confiança depositada num adulto é destruída através de inconsistência de comportamentos ou negligência, irá levar a criança a experiências de “onde é que eu encaixo neste mundo?”. Este sentimento de estar desconectado, onde não há um sentimento de ligação, conduz a um aumento da vergonha e ao isolamento. 11. Quando a criança cresce à volta de adultos que vivem eles próprios em vergonha e se sentem sem qualquer poder para lidar com os desafios da vida. A vergonha é contagiosa e a criança irá também desenvolver um sentimento de vergonha. 12. Quando, através de palavras ou gestos, os progenitores, ou outros adultos que tenham significado, fazem saber à criança que não é desejada, não é amada ou não tem qualquer valor provoca um sentimento profundo de vergonha. Por exemplo, as crianças que têm dificuldades a ler e não é detectado qualquer dificuldade na aprendizagem e, através de palavras ou atitudes, lhes é dito que são preguiçosas ou estúpidas. Crianças que são negligenciadas em casa e vão para a escola vestidas de uma maneira considerada inapropriada ou com aspecto pouco higiénico, são depois postas de parte pelos colegas de escola, ou vistas com desdém ou ainda gozadas. Por vezes surge um adulto que trata estas crianças com um falso carinho, que nada mais é que pena mal disfarçada, e que irá apenas aumentar o sentimento de vergonha e falta de auto-‐estima. 13. Quando uma criança é constantemente culpada pelas acções e estados emocionais dos adultos à sua volta e se torna impossível para a criança compreender o que é esperado dela, quanto mais preencher as expectativas destes adultos, desenvolve um sentimento profundo de culpa e vergonha. A criança sente que “se apenas fosse mais esperta, forte, amável, então os meus pais iriam beber menos, seriam mais felizes e iriam tratar-‐me melhor.” 14. Quando a criança não consegue atingir as expectativas criadas pelos progenitores porque estas expectativas são irrealistas ou inconsistentes com a idade e desenvolvimento da criança, a criança irá sentir-‐se como um animal amputado: sem valor, um peso, um erro, sem merecer amor. E mais uma vez a vergonha debilitante é criada e alimentada. 15. Quando os progenitores utilizam o silêncio como forma de disciplinar o comportamento da criança, ela irá apreender que todo o seu ser é mau. Quando a rejeição silenciosa é usada como forma de castigo, a criança não tem qualquer possibilidade de reparar qualquer dano que tenha causado ou de fortalecer a relação com o adulto. A criança é assim abandonada com uma culpa irreparável pelo comportamento que teve e uma vergonha debilitante por ser apontada como má. Por exemplo, a criança que leva para casa uma nota da escola a informar os pais que se envolveu numa luta durante o recreio. Depois de jantar a criança mostra a nota aos pais. Eles lêem a nota e fitam a criança com desdém, suspiram, deixam cair a nota sobre a mesa, e afastam-‐se sem dizer uma palavra, deixando a criança só. A infracção na escola nunca chega a ser discutida. A criança não tem qualquer oportunidade de se explicar. E o assunto fica eternamente por encerrar. www.emidiocarvalho.com -‐ Educação Emocional, 2010
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Devido a estas vergonhas cada um de nós irá criar uma máscara que será útil para esconder aquilo que percepcionamos como um defeito em nós. Esta máscara será do tipo predador ou presa. É impossível saber qual a máscara que irá utilizar como adulto. Os eventos dolorosos dos primeiros anos irão ditar qual a que mais lhe será útil. Quanto mais a criança se esforçar por esconder os seus sentimentos de vergonha mais forte será esta máscara. Como adulto não será capaz de reconhecer que não é quem pensa ser. Com tempo esquece-‐se que quem pensa ser é apenas uma máscara que lhe foi útil nos primeiros anos de vida. Só com coragem e vontade de honrar quem é poderá descartar a máscara. Este processo pode levar algum tempo. A pessoa que consegue tirar a sua máscara muda radicalmente. Sem máscaras sentimo-‐nos em paz independentemente dos eventos ou das pessoas à nossa volta. Sem a máscara conseguimos ver as máscaras que os outros utilizam, poderemos ajudar a tirar a máscara que outros utilizam, mas não é importante fazê-‐lo. A aceitação torna-‐se uma das características principais da pessoa sem máscara. A imperturbabilidade e a vulnerabilidade são outros atributos da pessoa sem máscara. De que maneira fomos envergonhados? Esta é a questão que dá início ao desbloqueio dos aspectos da sombra mais sombrios. Os aspectos onde é perigoso avançar, feitos de ratoeiras e areia movediça. São perigosos porque podemos confundir a auto-‐estima com a arrogância. Podemos misturar o egoísmo com amor-‐próprio. Quando é que é uma ou outra qualidade? Como discernir as qualidades positivas das negativas? Se prestarmos atenção aos nossos sentimentos teremos algumas pistas. Em caso de dúvida a resposta correcta será aquela que se faz sentir mais subtilmente. Sem se justificar. É Aquilo Que É. Podemos ainda perguntar-‐nos: o que me irrita nos outros? O que vale a pena lutar? Onde é que ainda sinto necessidade de ter razão? Onde é que ainda penso que preciso de ter algo para ser feliz e completo?
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