ANTON IO FRANCISCO LISBOA
{ALEIJADINHO
PAULO FILGUEIRAS/EM/D.A PRESS
200anos sem
ESPECIAL
ESCULTOR, ARQUITETO, ENTALHADOR, PERITO, GÊNIO. NAS HOMENAGENS PELO BICENTENÁRIO DE MORTE DO MESTRE DO BARROCO, TÍTULOS CONTINUAM INSUFICIENTES PARA DEFINIR AS MIL FACES DO ARTISTA QUE DEU VIDA AO SAGRADO NOS TEMPLOS DE MINAS E CUJA FEIÇÃO, PARADOXALMENTE, AINDA É UM MISTÉRIO GUSTAVO WERNECK As mãos lapidadas em cedro se abrem, se elevam ou giram no espaço, como se fizessem parte de um balé sem sons. Um anjo parece alcançar o céu – e flutua entre luz e sombra, num voo estático que traduz o sentimento de amargura. Mais adiante, há olhares de espanto acompanhando a crucificação, cena permeada pelo horror da história e recriada pelo talento do artista. As 64 imagens que compõem as capelas dos Passos da Paixão, em Congonhas, na Região Central de Minas, transmitem beleza superlativa e emoção na medida certa, para levar à reflexão e reverenciar a memória de Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1737-1814), cujo bicentenário de morte será lembrado terça-feira. Impossível não imaginar que há vida em cada uma das figuras, tal a dramaticidade dos gestos, movimento das vestes e o divino sopro da arte que domina o ambiente. Na capital e no interior do estado, está em curso uma
extensa programação, com palestras, exposições, lançamento de livros, concertos de orquestra, atividades de educação patrimonial, distribuição de cartilhas e outras ações para destacar o trabalho do arquiteto, entalhador, escultor, marceneiro e perito nascido em Ouro Preto e aclamado como patrono das artes no Brasil. Momento oportuno, portanto, para enaltecer a cultura nacional e descobrir tesouros guardados nas cidades coloniais. Conhecer a obra de Aleijadinho é desvendar um universo barroco permeado de sensibilidade. E há muito para ser visto. Nas Gerais, moradores e visitantes se encantam com monumentos bem conhecidos, como os profetas do adro da basílica do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, ou se surpreendem com os espetaculares atlantes da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, em Sabará. Mesmo com as limitações provocadas por uma doença que continua misteriosa, da qual se originou o apelido, o DOMI NGO, 16 DE NOVEMB RO DE 2014
ESTADO DE MINAS
gênio mineiro trabalhou intensamente com pedra-sabão e madeira e fez até móveis, além de manter uma produtiva obra em altares, santos e profetas. Quem chega ávido por nutrir os olhos das artes do mestre do barroco perceberá que a conservação das peças sacras nem sempre se revela a ideal. Mas há boas referências, entre elas a recém-restaurada imagem da padroeira de Minas, Nossa Senhora da Piedade, acolhida no alto da Serra da Piedade, em Caeté. Esta é apenas uma das estações desta viagem pela vida e obra de Aleijadinho, na qual o leitor embarca a partir de agora pelas páginas deste caderno especial do Estado de Minas: um passeio pelo talento do homem de sangue europeu e tropical, filho do mestre-arquiteto português Manuel Francisco Lisboa e da sua escrava Isabel. Dessa união de raças brotou a criatividade do gênio que, dois séculos depois de morto, não para de maravilhar o mundo.
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2 ESTADO DE MINAS Domingo, 16 de novembro de 2014
ALEIJADINHO
/UM ENIGMA
RAMON LISBOA/EM/D.A PRESS - 24/10/13
A VIDA
Profetas na basílica de Congonhas: obra-prima de um artista sem igual
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TALENTO QUE SOBREVIVE AOS SÉCULOS, ALEIJADINHO É CELEBRADO PELO REPICAR DOS SINOS DE IGREJAS QUE IMORTALIZOU. PORÉM, A TAREFA DE REVELAR O HOMEM POR TRÁS DO MITO CONTINUA DESAFIANDO ESTUDIOSOS
O
s sinos das igrejas coloniais vão repicar ao meio-dia de terça-feira. O motivo não poderia ser mais justo e especial: há 200 anos, exatamente em 18 de novembro de 1814, morria em Ouro Preto o entalhador, escultor, arquiteto, marceneiro e perito – na época chamado de “louvado” – Antonio Francisco Lisboa. Patrono das artes nacionais, ele entrou para a história com o apelido de Aleijadinho e deixou sua arte registrada em monumentos que enchem de orgulho os brasileiros, deslumbram visitantes do mundo inteiro e renascem, a cada dia, como símbolos da cultura de Minas. Merecidamente, como forma de homenagem, 2014 ganhou o título de Ano do Barroco. Tesouros com a marca do gênio estão ao ar livre ou em igrejas, capelas e museus de muitas cidades mineiras. A começar pela terra natal, Ouro Preto, antiga Vila Rica, os rastros inigualáveis de Aleijadinho seguem por Mariana, Congonhas, Caeté, Sabará, Barão de Cocais, São João del-Rei, Tiradentes, Nova Lima e Felixlândia. Nestas duas últimas, o acervo sacro provém da antiga Igreja de Nossa Senhora da Conceição, da Fazenda da Jaguara, em Matozinhos, da qual só restaram ruínas. Mas há também peças, principalmente imagens de santos esculpidas em cedro, espalhadas Brasil e mundo afora, resultado de furtos ou do comércio ilegal de bens culturais. Sem contar as adulteradas, que reivindicam a magia do mestre. Diante de uma escultura de grande beleza, a exemplo da Santana Mestra do Museu do Ouro, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em Sabará, vem a pergunta: Quem, na verdade, foi esse homem extraordinário?. Como eram as feições do seu rosto, qual seu modo de viver e trabalhar, seus sonhos, afetos? Segundo especialistas, ainda há muito para estudar – e descobrir – sobre Aleijadinho, cujos restos mortais repousam na Igreja de Nossa Senhora da Conceição, no Bairro de Antônio Dias, Centro Histórico de Ouro Preto. Pesquisadora do tema, a professora de história da arte Adalgisa Arantes Campos, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em barroco, enaltece a figura do artista: “A obra de Aleijadinho é expressionista, deforma conscientemente para causar emoção”. Sempre atenta às descobertas, a autora do livro Arte sacra no Brasil Colonial afirma não haver dúvidas de que Antonio Francisco Lisboa era mesmo conhecido pelo apelido. A prova está no livro de registro de reuniões da mesa administrativa da Venerável Ordem Terceira do Carmo de Sabará, um volume que clama por restauro, tal a situação lastimável de suas páginas. A citação ao artista se refere à cotação para fazer o altar-mor da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, que acabou entregue ao português Francisco Vieira Servas (1720-1811).
SENTIDOS AGUÇADOS Para entender a trajetória de Aleijadinho, é preciso viajar pelo tempo e mergu-
A MISTERIOSA IMAGEM DO SENHOR DAS IMAGENS Louvado pelas imagens que brotaram de suas mãos, o gênio do barroco paradoxalmente tem na própria fisionomia um mistério. Nos séculos 18 e 19, muitos desenhistas e pintores fizeram o “retrato falado” de Aleijadinho, um assunto ainda bastante polêmico. O chamado retrato oficial, que faz parte das homenagens no bicentenário de morte, está exposto no Museu Mineiro, na Avenida João Pinheiro, em Belo Horizonte. Trata-se de óleo sobre pergaminho, feito no século 19 por Euclásio Penna Ventura. O quadro, na verdade um exvoto, medindo 20cm por 30cm, pertenceu à Casa dos Milagres de Congonhas e mostra um homem mulato bem vestido. Foi vendido em 1916 a um comerciante de Congonhas, identificado como Senhor Baerlein, proprietário da Relojoaria da Bolsa do Rio de Janeiro. A alegação de que se tratava do rosto do mestre do barroco baseou-se na imagem representada ao fundo da pintura, em segundo plano, que parece idêntica a uma obra de autoria do artista.
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lhar, de sentidos aguçados, na sua arte. E, claro, se debruçar sobre documentos. O promotor de Justiça Marcos Paulo de Souza Miranda fez esse exercício e jogou luz sobre a história, com descobertas surpreendentes. No seu livro Aleijadinho revelado – Estudo histórico sobre Antonio Francisco Lisboa, ele esclarece que o artista não nasceu em 1730 ou 1738, como até então acreditavam especialistas envolvidos nas pesquisas, mas em 1737. Na Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em Ouro Preto, Marcos Paulo localizou o registro de nascimento de Antonio Francisco Lisboa, filho da negra forra Isabel. “Os estudiosos certamente procuravam o registro apenas pelo nome do pai, o artífice português Manuel Francisco Lisboa. A questão é que, naquela época, pelo direito canônico, era proibido que constassem dos registros os nomes dos pais quando o casal não fosse formalmente casado. Daí só haver o nome da mãe no documento. Além disso, o costume era levar a criança à pia batismal logo após o nascimento.” A única data que se conhecia era a da morte, 18 de novembro, conforme consta do atestado de óbito. É curioso notar, no túmulo do artista, que uma placa traz o sinal de interrogação ao lado do ano de 1738, que seria o do nascimento. O autor do livro conta que a primeira biografia foi escrita em 1858, por Rodrigo José Ferreira Bretas, expromotor de Justiça de Ouro Preto. “O trabalho foi publicado no jornal Correio de Minas 44 anos depois da morte de Aleijadinho. Bretas conversou com dona Joana Lopes, parteira, que foi casada com o filho do artista, Manuel Francisco Lisboa, batizado com o mesmo nome do avô.”
FAMÍLIA O pai de Aleijadinho, Manuel Francisco Lisboa, nasceu em São José de Odivelas, antes pertencente a Lisboa, Portugal, hoje município autônomo. “O nome de família não é propriamente ‘de Lisboa’, apenas indica a procedência. O pioneiro João Francisco e seus três filhos vieram da capital portuguesa atraídos, no auge da mineração do ouro nas Gerais, pela efervescência de construção de igrejas. Era uma família de artífices. Os tios de Aleijadinho, Antonio Francisco Pombal e Francisco Antonio Lisboa, foram exímios entalhadores e atuaram, respectivamente, nas matrizes do Pilar e de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias”, diz o promotor Marcos Paulo. Aleijadinho foi aprendiz, oficial e tornou-se mestre, aprendendo a trabalhar com a própria família, pois todos eram do ramo. Em 1760, aos 23 anos, ele deu início à sua própria oficina, embora não fosse um espaço físico, mas um serviço itinerante. “Ele se deslocava para o lugar onde houvesse serviço, tanto que morou em Rio Espera, na Zona da Mata, e em Sabará. A equipe dormia geralmente nas casas paroquiais. Outra atividade importante, a exemplo da desempenhada pelo pai, foi a de perito ou ‘louvado’. Um dos irmãos de Aleijadinho, o padre Félix, seguiu a mesma trilha e se tornou talentoso escultor de peças sacras”, acrescenta o estudioso.
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ALEIJADINHO
/PEDRA-SABÃO
FOTOS: PAULO FILGUEIRAS/EM/D.A PRESS
A OBRA
São Miguel Arcanjo sobre almas entre labaredas: joia de Ouro Preto
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NAS FACHADAS DE TEMPLOS COLONIAIS, MUITAS VEZES DESPERCEBIDO,
ESTÁ UM DOS GRANDES LEGADOS DO ALQUIMISTA QUE SE ESPECIALIZOU EM TRANSFORMAR PEDRA BRUTA EM TESOUROS DO BARROCO
O
olhar dos viajantes sempre se lança ao interior das igrejas e capelas coloniais. É raro, seja entre brasileiros, seja entre estrangeiros, que turistas reservem minutos de uma visita para contemplar as fachadas dos templos e seus ornamentos. Não sabem o que estão perdendo. Nesta viagem pela obra do mestre Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, não há como não admirar os trabalhos do século 18 sobre as portas principais e ornamentos (portadas) em pedra-sabão nas cidades de Congonhas, Ouro Preto, Sabará, São João del-Rei e Barão de Cocais. A marca registrada do gênio é a tríade de querubins (três anjos), mas há também as coroas dedicadas a Nossa Senhora e cenas bíblicas detalhadas com esmero. “As portadas são monumentais, fazem parte da arquitetura dos templos”, analisa a arquiteta Selma Melo Miranda, professora e especialista em arte colonial (barroco e rococó). Ela ressalta que Aleijadinho foi o primeiro artista nascido em Minas a ser reconhecido pelo trabalho na sua própria época. “Não que fosse o único artista, mas ele tinha muito serviço e recebia encomendas das irmandades religiosas, que estavam à frente das igrejas e comandavam essas construções”, explica a professora. Pelo conjunto da obra em madeira e pedra-sabão, Aleijadinho ganhou destaque internacional e suas peças em Minas estão em áreas reconhecidas como patrimônio mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). Congonhas, a Cidade dos Profetas, distante 89 quilômetros de Belo Horizonte, mantém as 12 esculturas em pedra-sabão, feitas entre 1800 e 1805, no adro da basílica do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos. Entre os principais documentos referentes ao conjunto e às capelas dos Passos da Paixão há recibos de pagamento a Aleijadinho. Já na Matriz de Nossa Senhora da Conceição, que completa 280 anos em 2014 e também fica no Centro Histórico, encontra-se a portada que é considerada obra-prima pelos especialistas. Lá estão a arca de Noé, os símbolos da eucaristia, três anjos barrocos e a coroa de Nossa Senhora. Joias de um esmero capaz de transformar em pecado capital não admirar com calma, fazer muitas fotos e guardar na memória esse recorte primoroso do barroco. Em Barão de Cocais, a 93 quilômetros da capital, está aquele que é considerado o primeiro trabalho do “jovem” Antonio Francisco Lisboa. Trata-se da portada do Santuário de São João Batista, erguida quando o município ainda se chamava São João do Presídio do Morro Grande. A imagem do padroeiro, no seu nicho entre duas janelas, chama logo a atenção e convida à entrada em um universo de religiosidade e encantamento. Na cidade, conhecida como Portal do Caraça pela proximidade com o antigo colégio e hoje santuário, os moradores se orgulham do templo, que ostenta a tarja do arco-cruzeiro de pedra.
SETE MARAVILHAS Percorrendo o “caminho das pedras” talhado por Aleijadinho, a chegada a Ouro Pre-
Matriz de Nossa Senhora da Conceição: perfeição no entalhe dá as boas-vindas aos visitantes
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Na Igreja de São Francisco de Assis, cheia de turistas a qualquer momento, a pedra passou pelas mãos do alquimista do barroco, que a transformou em joias, lapidadas sob a forma da fachada, de dois púlpitos (tribunas para as pregações dos padres) e do esplêndido lavabo existente na sacristia, executado entre 1777 e 1779. Neste último, gravada na superfície está a frase: “Este é o caminho que conduz ao céu”, escrita em latim. Pelo serviço específico dos púlpitos, a Ordem Terceira de São Francisco pagou, em 1771, 20.400 contos de réis ao artista. Masaassinaturadogênio,naformadeseustraçoscaracterísticos, está espalhada por outros pontos da antiga Vila Rica. Na Praça Tiradentes, no Centro de Ouro Preto, a Igreja de Nossa Senhora do Carmo dá as boas-vindas aos visitantes trazendo a marca de Aleijadinho na portada, com dois anjos e a coroa, e no lavabo da sacristia. Na Igreja do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, da Irmandade do Senhor Bom Jesus, São Miguel e Almas, vê-se uma das cenas mais espetaculares esculpidas na pedra: a imagem de São Miguel Arcanjo salvando as almas do purgatório. O templo, no entanto, não faz jus à qualidade dos ornamentos, pois mostra acelerados sinais da degradação. Há um projeto aprovado pelo Iphan para execução das obras. Conforme se disseminava a fama do artista colonial, ficavam também espalhadas suas marcas indeléveis na pedra-sabão. Foi assim também em São João del-Rei, onde o traço de Aleijadinho marca a portada das igrejas de Nossa Senhora do Carmo e de São Francisco de Assis.
MEMÓRIA APAGADA Mas nem só de pedra se constitui
As portadas são monumentais, fazem parte da arquitetura dos templos” ■ Selma Melo Miranda, arquiteta, professora e especialista em arte colonial
to, a 95 quilômetros de BH, emociona e instiga o desejo de conhecer mais sobre o mestre. Afinal, é na primeira cidade brasileira reconhecida pela Unesco como Patrimônio da Humanidade (1980) que está a Igreja de São Francisco de Assis, eleita em votação popular, em 2011, uma das sete maravilhas de origem portuguesa no mundo. Esse tipo de reconhecimento é o que leva especialistas como o presidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), Angelo Oswaldo de Araújo Santos, a lembrar que a obra de Antonio Francisco Lisboa constitui o acervo artístico mais importante do Brasil. “Ouro Preto foi reconhecida pela Unesco devido ao legado de Aleijadinho”, afirma.
a memória do patrono das artes brasileiras. Em Sabará, Região Metropolitana de Belo Horizonte, a modesta casa de número 153 da Rua do Carmo, no Centro Histórico, abriga parte da história do mestre. Conforme pesquisas, foi ali que ele viveu entre 1770 e 1783, durante seu trabalho em monumentos da cidade, entre eles a Igreja de Nossa Senhora do Carmo. No entanto, é de dar dó a situação da construção, onde moram Maria das Dores Alves Borges da Silva, de 76 anos, e a nora Ruth Preciosa Gomes. Há goteiras por todos os cantos e o piso de madeira está quebrado, oferecendo risco, sem contar as paredes estouradas e o cheiro de mofo. Com dificuldades para andar, dona Maria das Dores conta que vive no imóvel há 54 anos e que sempre soube da importância da casa e de seu ocupante mais ilustre. “Chega muito turista à minha porta, gente de todo canto. Pedemparaentrar,eéimpressionante:unsficampassando as mãos pelas paredes, com carinho, alguns até choram”, diz a simpática senhora. Ela, no entanto, não tem condiçõesdeconservaraCasadeAleijadinho.Edesabafa: “Quem ganha salário mínimo vai fazer isso como?”. Em 2008, a propriedade particular foi restaurada com recursos da prefeitura. Na porta do imóvel, desde então, há uma placa indicando ser o local onde viveu o artista. Porém, agora, mesmo com a degradação, a prefeitura informa que não há verba para recuperar a moradia.
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4/5 ESTADO DE MINAS Domingo, 16 de novembro de 2014
ALEIJADINHO
CONGONHAS
SÃO JOÃO DEL-REI
(REGIÃO CENTRAL)
(REGIÃO DO CAMPO DAS VERTENTES)
● Doze profetas, esculpidos em pedra-sabão, no adro do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos (1800 a 1805)
● Portada da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, em pedra-sabão
● 64esculturasemcedro,emtamanhonatural,nascapelasdos PassosdaPaixãodeCristo(1796a1799)
● Portada, em pedra-sabão, e altares laterais, em madeira, da Igreja de São Francisco de Assis
● Coroa de Nossa Senhora sobre a arca de Noé, guirlanda com três anjos e símbolos da eucaristia, na porta principal (portada) da Matriz de Nossa Senhora da Conceição
❚ PASSOS DA PAIXÃO CONHEÇA A HISTÓRIA DAS SEIS CAPELAS DE CONGONHAS QUE RETRATAM A PAIXÃO DE CRISTO. TRAZENDO NA FACHADA CITAÇÕES BÍBLICAS, ELAS ABRIGAM ALGUMAS DAS MAIS BELAS OBRAS DE ALEIJADINHO
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4) 5) 6)
Horto das Oliveiras
Cristo suando sangue, o Anjo da Amargura com o cálice e os apóstolos Pedro, Tiago e João são as imagens de Aleijadinho que compõem o cenário pintado pelo Mestre Ataíde. Foi construída entre 1813 e 1818. Citação de São Lucas: “Tendo caído em agonia, orava com mais insistência”.
1)
2)
(REGIÃO CENTRAL)
(REGIÃO DO CAMPO DAS VERTENTES)
● Anjo tocheiro, em madeira, que fica na sala dedicada a Aleijadinho no Museu da Inconfidência. A peça pertenceu à capela-mor da Igreja de Nossa Senhora do Carmo
● Desenho da fachada da Matriz de Santo Antônio
● Lavabo da sacristia e portada, em pedra-sabão, da Igreja de Nossa Senhora do Carmo
SABARÁ
(REGIÃO METROPOLITANA DE BH)
● Portada da Igreja do Senhor Bom Jesus do Matosinhos (São Miguel e Almas), em pedra-sabão, no Bairro Cabeças
● Imagem de Santana Mestra (1770), no Museu do Ouro/Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Peça procedente da Capela de Nossa Senhora do Pilar do Hospício da Terra Santa de Sabará
● Desenho da capela-mor da Igreja de Nossa Senhora das Mercês e Perdões
● Dois atlantes, em madeira, e fachada, em pedra-sabão, da Igreja de Nossa Senhora do Carmo ● Imagens de São Simão Stock e São João da Cruz, em madeira, da Igreja de Nossa Senhora do Carmo
● Desenho da capela-mor da Igreja de São Francisco de Paula ● Quatro leões de essa (usados originalmente em cerimônias fúnebres) e imagem de São Francisco de Paula, no Museu Aleijadinho, todos em madeira ● Fachada e púlpitos, em pedra-sabão, da Igreja de São Francisco de Assis, e lavabo da sacristia no mesmo material; talha da capela-mor, em madeira (abaixo)
● Imagem de Nossa Senhora da Piedade, no santuário da Serra da Piedade (acima) ● Imagens de Nossa Senhora do Carmo e de Santa Luzia, em madeira, na Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso
NOVA LIMA
Prisão
O cenário pintado por Ataíde recria o Monte das Oliveiras, com colunas e rocalhas, arcos e vegetação para valorizar o conjunto de peças – Cristo, Judas, São Pedro e soldados. Citação de São Marcos: “Como se fosse um ladrão, com espadas e varapaus, vieste prender-me?”.
(REGIÃO METROPOLITANA DE BH) ● Altares em madeira, sem policromia, que pertenceram à igreja da Fazenda da Jaguara, em Matozinhos, construída em 1786. No início do século 20, as talhas foram transferidas para a Matriz de Nossa Senhora do Pilar, no Centro de Nova Lima
3)
Flagelação e coroação de espinhos
Da construção das primeiras capelas às três próximas passaram-se quase cinco décadas, sendo a obra feita de 1864 a 1875. Este passo, um dos mais visitados, mostra duas cenas separadas por uma barra. Do lado esquerdo está Cristo atado à coluna, enquanto um soldado o esbofeteia; do direito, a imagem também conhecida como Senhor da Pedra Fria ou Cristo da Cana Verde. Citação de São João: “Eis o homem”. A policromia das imagens desta capela, da Cruz às costas e da Crucificação, são de autoria de Francisco Xavier Carneiro, contemporâneo do Mestre Ataíde.
CAETÉ
(REGIÃO METROPOLITANA DE BH)
DANIEL SILVA/DIVULGAÇÃO
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Construída entre 1799 e 1808, é a maior das capelas. Tem 10 metros de altura e área de 36 metros quadrados. Traz os 12 apóstolos, Cristo e dois servos esculpidos por Aleijadinho, que teria, também, sido o responsável pelo desenho da edificação. Conforme pesquisas, foi a única que o mestre do barroco viu concluída. As pinturas das paredes são de Manuel da Costa Ataíde (1762-1830), o Mestre Ataíde. A citação em latim, sobre a porta, é de São Mateus: “Enquanto ceavam, Ele tomou o pão e disse: Eis o meu corpo”.
leijadinho domou a força da pedra e deu asas à imaginação ao talhar o cedro, transformando a matéria-prima em anjos, santos, altares e outras peças que fascinam ao primeiro olhar. Em Minas, deixou marcas de seu talento em Ouro Preto, onde nasceu, Congonhas, que exibe os 12 profetas e os Passos da Paixão de Cristo, além de Mariana, Sabará, Caeté, Barão de Cocais, Tiradentes e São João del-Rei. Igrejas de Nova Lima e Felixlândia também guardam relíquias esculpidas por Antonio Francisco Lisboa, embora com caminhos e tempos bem distintos. Confira o mapa do tesouro deixado pelo gênio.
DANIEL SILVA/DIVULGAÇÃO
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Santa Ceia
TIRADENTES
OURO PRETO
A
FOTOS: PAULO FILGUEIRAS/EM/D.A PRESS
FELIXLÂNDIA
(REGIÃO CENTRAL)
● Imagem de Nossa Senhora da Piedade, na Igreja de Nossa Senhora da Piedade. A peça em madeira pertenceu à antiga igreja da Fazenda da Jaguara, em Matozinhos, construída em 1786
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BARÃO DE COCAIS
(REGIÃO CENTRAL)
Cruz às costas
Capela construída entre 1864 e 1875. As imagens esculpidas por Aleijadinho mostram Cristo ao lado de duas mulheres, dos guardas romanos, o mascote da guarda e de um arauto que anuncia o cortejo pelas ruas de Jerusalém. As pinturas nas paredes são de autor desconhecido. Citação de São João: “Tomando sobre si a cruz”.
● Portada do Santuário de São João Batista, em pedra-sabão
em.com.br CONHEÇA A OBRA DE ALEIJADINHO EM UM
5)
ROTEIRO TURÍSTICO DE FIM DE SEMANA
MARIANA
Crucificação
(REGIÃO CENTRAL)
As peças mostram Maria Madalena aos pés da cruz, soldados disputando as vestes de Cristo, o centurião romano São Longuinho, o bom ladrão, Dimas, e o mau ladrão, Gestas. A citação é de São João: “Num lugar chamado Gólgota, O crucificaram. Com Ele, outros dois, um de cada lado”. A capela recebeu tom amarelado. Fonte: Luciomar Sebastião de Jesus, escultor e pesquisador de Congonhas
● Bustos-relicários de Santo Hilário e Santo Athanásio, em madeira, que pertenceram ao Santuário do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, de Congonhas, e hoje estão no Museu Arquidiocesano de Arte Sacra (ao lado) ● Imagens de São João Nepomuceno e São Joaquim, em madeira, que pertenceram ao Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, de Congonhas, e hoje estão no Museu Arquidiocesano de Arte Sacra
6)
❚ LINHA DO TEMPO 1720 Chegam a Ouro Preto, vindos de Portugal, João Francisco e três filhos, sendo um deles Manuel Francisco Lisboa
1737
1750
Em 26 de junho, Antonio Francisco Lisboa, que se tornaria imortalizado sob o apelido Aleijadinho, é batizado na Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias, em Ouro Preto. Ele é filho de Manuel Francisco Lisboa com a negra forra Isabel. Alguns estudiosos apontam 1730 ou 1738 como o ano do nascimento
O menino Antonio frequenta o internato do Seminário dos Franciscanos Donatos do Hospício da Terra Santa, em Ouro Preto, onde aprende gramática, latim, matemática e religião
1755 Nasce Félix Antonio Lisboa, irmão de Aleijadinho. Foi padre e escultor talentoso
1763 O artista faz sua primeira intervenção com características arquitetônicas: frontispício e torres sineiras da Matriz de São João Batista, em Barão de Cocais (foto), e ainda a imagem de São João Batista
1766
Em Ouro Preto, o artista executa o projeto da Igreja de São Francisco de Assis, as imagens do frontispício e a fonte-lavabo da sacristia (foto)
1768
1774
1777
1780
1784/1786
1790
1790/1794
1796/1799
Antonio se alista no Regimento da Infantaria dos Homens Pardos de Ouro Preto e, durante três anos, presta serviço militar, o qual conjuga com uma intensa atividade profissional
Recebe a encomenda do projeto da Igreja de São Francisco de Assis, de São João del- Rei, e executa o projeto da Igreja de São José, de Ouro Preto. Em Sabará, faz trabalhos para a Igreja do Carmo
Nasce o filho do escultor, que recebe o mesmo nome do avô – Manuel Francisco Lisboa. O menino é batizado em 23 de janeiro, na catedral do Rio de Janeiro. É detectada uma grave doença degenerativa, que deforma corpo e membros do artista
Antonio Francisco Lisboa é contratado para execução da balaustrada, púlpito e coro da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, em Sabará
O artista esculpe o conjunto em madeira da Fazenda da Jaguara, em Matozinhos. No início do século 20, o acervo é transferido para a Matriz do Pilar, em Nova Lima, na Grande BH (foto)
Recebe o apelido de Aleijadinho. Tem obra elogiada no levantamento de fatos notáveis, ordenado pela Coroa Portuguesa em 1782 e feito pelo vereador da Câmara de Mariana capitão Joaquim José da Silva
Aleijadinho se ocupa do retábulo da capela-mor da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, com grande equipe de oficiais de talha. A obra é a coroação da atividade de escultor e entalhador
Nas capelas que recriam a via-crúcis, em Congonhas, Aleijadinho esculpe 64 figuras em madeira (na foto, a Santa Ceia). Nas paredes, estão as pinturas bíblicas de Manuel da Costa Ataíde (1762-1830)
1800/1805 No Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, Aleijadinho esculpe os 12 profetas, que receberam reconhecimento da Unesco como Patrimônio Mundial
1812/1813 O estado de saúde de Aleijadinho se agrava. Passa a viver em uma casa perto da Igreja do Carmo, em Ouro Preto, para supervisionar as obras que lá estavam em andamento
1814
Aleijadinho morre em 18 de novembro, segundo certidão de óbito arquivada na Paróquia de Nossa Senhora da Conceição. Está sepultado sob o altar de Nossa Senhora da Boa Morte (acima)
1858
Publicada a primeira biografia do mestre do barroco, escrita pelo promotor de Justiça Rodrigo José Ferreira Bretas
1930
1947
Feita a primeira exumação dos restos mortais de Aleijadinho para lembrar o bicentenário do artista, que, segundo nova pesquisa, nasceu em 1737 e não em 1730 ou 1738, como se considerava anteriormente
Feita a segunda exumação, de forma clandestina. Pedaços de ossos são levados para exames na Inglaterra. Outras duas ocorreriam em 1970 e em 2003
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6 ESTADO DE MINAS Domingo, 16 de novembro de 2014
ALEIJADINHO
/MADEIRA
FOTOS: PAULO FILGUEIRAS/EM/D.A PRESS
A OBRA
Riqueza e perfeição em cada detalhe: obra feita para a Fazenda da Jaguara tem a marca registrada do mestre
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MATÉRIA-PRIMA NOBRE ERA UMA DAS PREFERIDAS DO GÊNIO DO BARROCO, CUJO TALENTO FICOU GRAVADO EM PEÇAS PRECIOSAS, COMO NO ACERVO RESGATADO DE IGREJA EM RUÍNAS DE MATOZINHOS
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á cidades em Minas que surpreendem pelo esplendor das obras de Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, embora não estejam no tradicional circuito colonial. Em Nova Lima, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, um dos maiores conjuntos em madeira de autoria do mestre do barroco integra a Matriz de Nossa Senhora do Pilar, no Centro da cidade. Restaurado com capricho em 2009, o acervo inclui quatro altares de cedro – o altar-mor tem 15 metros de altura por 8m de largura –, dois púlpitos e uma tarja do arco-cruzeiro, a única que ainda apresenta policromia, além das imagens da Santíssima Trindade, anjos e outros ícones da arte sacra produzidos entre 1784 e 1786. À primeira vista, causa impacto ver os retábulos, sem cores, fora de uma igreja colonial. Mas, a partir do momento em que se conhece a história, vem o alívio pelo fato de esse patrimônio estar salvo da degradação. Tudo começou em meados do século 18, quando o rico proprietário de terras e minerador português Antonio de Abreu Guimarães decidiu substituir a capela existente na Fazenda da Jaguara, da qual era dono, por uma igreja dedicada a Nossa Senhora da Conceição. O motivo era purgar seus pecados, pois, retornando a Portugal, confessou a um padre que conquistara seus bens com sonegação de impostos. Perdoado, cumpriu a promessa e contratou Aleijadinho para executar o serviço. No século seguinte, os herdeiros venderam a fazenda para Francisca dos Santos Dumont, mãe de Alberto Santos Dumont (18731932), o Pai da Aviação. Por volta de 1910, a propriedade foi adquirida pelo diretor da Mina de Morro Velho, de Nova Lima, o inglês George Chalmers. Foi quando começou a decadência da Igreja da Jaguara, hoje em ruínas, no município de Matozinhos. Como era presbiteriano, Chalmers doou parte do acervo à Igreja de Nossa Senhora do Pilar. Conforme pesquisas, durante 20 anos as peças ficaram ao relento e perderam a policromia. O tombamento federal se deu em 1950. Outras localidades receberam a “herança” da Jaguara: a imagem de Nossa Senhora da Piedade seguiu para a Capela do Bugre, hoje igreja matriz de Felixlândia, na Região Central. Estudos mostram que cantarias, obras de talha, móveis, ferragens, imagens, entre outros objetos, foram parar nas mãos de antiquários e colecionadores – “em transações nebulosas e juridicamente ilícitas, que são objeto de investigação”, diz o coordenador das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico (CPPC/Ministério Público de Minas Gerais), Marcos Paulo de Souza Miranda.
JOIAS Quem pretende conhecer a obra do mestre do barroco deve visitar Mariana – primeira vila, cidade e diocese de Minas. É fundamental conhecer o Museu Arquidiocesano de Arte Sacra, na Rua Frei Durão, 49, no Centro Histórico. Lá, entre as joias atribuídas a Aleijadinho, há os bustos-relicários de Santo Hilário, Santo Athanásio e São João Nepomuceno, do século 18, e a imagem de São Joaquim, procedente do San-
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O enigma da deficiência
MORTE NA POBREZA
Apaixonado pela obra do patrono das artes, o promotor de Justiça e pesquisador Marcos Paulo de Souza Miranda ressalta que Aleijadinho, apesar do talento que produziu obras preciosas, como a Santana Mestra (foto), foi um dos maiores exemplos de simplicidade, humildade e sofrimento. “Morreu pobre, aos 77 anos, morando de favor na casa da nora. Não tinha bens, não deixou testamento nem inventário.”
tuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas. Não é à toa que os visitantes se empolgam diante da vitrine do museu, sensação que experimentaram José Roberto e Angelita Zacchi de Campos Miranda, acompanhados do filho Felipe, de 13 anos, de Fartura (SP). “Aleijadinho era um artista completo para o tempo em que viveu”, disse José Roberto, enquanto a mulher enalteceu a criatividade do mineiro. Ao lado, a irmã de Angelita, Joanita Zacchi de Campos, arrematou: “Era mesmo o mestre da arte sacra”. Na vizinha cidade de Ouro Preto, o Museu da Inconfidência,naPraçaTiradentes,dispõedesalaexclusivapara a obra do gênio, com destaque para o Anjo Tocheiro, que pertenceu à capela-mor da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, e outras obras atribuídas ao mestre do barroco. Já no Museu Aleijadinho, no Bairro Antonio Dias, vinculado à Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, ficam quatro leões de essa (peças usados originalmente em cerimônias fúnebres) e a imagem de São Francisco de Paula, feita em cedro, a madeira mais usada pelo artista.
Depois de 20 anos de pesquisas para escrever o livro Aleijadinho revelado, o promotor de Justiça Marcos Paulo de Souza Miranda, integrante do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais (IHGMG), afirma que Aleijadinho é o “maior caso clínico não desvendado no Brasil”. O autor não encontrou a resposta para uma pergunta crucial: que doença acometeu o gênio do barroco? “Ele desempenhou seu ofício com ferramentas presas às mãos e essa deficiência pode ter sido causada por fratura ou lepra.” Um enigma que pode estar por trás das quatro exumações feitas no que seriam os restos mortais do escultor, em 1930, 1947, 1970 e 2003 – a segunda, inclusive, feita de forma clandestina. “Felizmente, os pedaços de osso levados para a Inglaterra retornaram ao Brasil”, diz Marcos Paulo. Se não há consenso entre muitos especialistas sobre o mal que deformou o gênio, o dermatologista Geraldo Barroso de Carvalho não tem dúvidas: “Aleijadinho tinha lepra”. O médico é autor de Doenças e mistérios do Aleijadinho e um dos nove especialistas coautores da obra Aleijadinho 200 anos, a ser lançada amanhã, na abertura da 37ª Semana de Aleijadinho, no Centro Cultural da Federação das Indústrias de Minas Gerais (Fiemg), em Ouro Preto. “Não tenho dúvidas de que Aleijadinho tinha hanseníase, que atacou a face, mãos e pés. Ele perdeu dedos das mãos, como os indicadores e polegares. O trabalho com a pedra-sabão pode ter machucado muito a pele, mas não causaria doenças”, afirma o dermatologista, que pesquisa o assunto há mais de 40 anos. A enfermidade tinha predominância de lesões dos nervos. “Na época dele, essa forma não era reconhecida como lepra. Ele tinha mãos e pés mutilados e paralisia nas faces”, diagnostica o médico.
DESAFIO À DOENÇA Exatamente na fase em que foi
acometido pela deformidade que lhe valeu a alcunha, Aleijadinho se tornou mais produtivo, conta a professora Myriam Andrade Ribeiro Oliveira, mestre e doutora emarqueologiaehistóriadaartepelaUniversidadeCatólicadeLouvain,naBélgica,epós-doutorapelaUniversidade de Londres. Para ela, “é o artista de maior importância do período colonial brasileiro e também o de maior qualidade”.Paraquemachaimpossívelqueumhomempudessetrabalhartanto,aprofessoraexplicaque,comoera comum naqueles tempos, o mestre tinha uma oficina em Ouro Preto e, com ele, atuavam cerca de 20 pessoas. “Aleijadinho trabalhou em fases distintas: na juventude, na maturidade – quando esculpiu a peça que acho mais bonita, a Santana, do Museu do Ouro de Sabará –, e na terceira, depois que ficou doente”, afirma Myriam, autora da obra de referência O Aleijadinho e sua oficina – Catálogo das esculturas devocionais, editada em 2002 e escrita em parceria com os especialistas do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) Olinto Rodrigues dos Santos Filho e Antônio Fernando Santos. A estimativa é de que o artista tenha produzido mais de 200 peças sacras.
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200 anos sem
8 ESTADO DE MINAS Domingo, 16 de novembro de 2014
ALEIJADINHO
ETERNIDADE
PAULO FILGUEIRAS/EM/D.A PRESS
A OBRA
A Crucificação: peças em tamanho natural integram conjunto considerado por especialistas a obra definitiva de Aleijadinho
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LINHAS ANATÔMICAS CRITERIOSAMENTE ESCULPIDAS E TRAÇOS LAPIDADOS AO LONGO DA CARREIRA DE SUCESSO CONSTITUEM CARACTERÍSTICAS INDELÉVEIS DO LEGADO GRAVADO EM MINAS PELO MESTRE DO BARROCO
s atlantes são figuras monumentais e de destaque na Igreja de Nossa Senhora do Carmo, no Centro Histórico de Sabará, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Há dois deles, hercúleos, dispostos sob o coro, como se sustentassem as colunas dessa parte do templo tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A base da peça localizada à direita de quem entra na igreja está quebrada, mas isso não impede que se admire a escultura com seu físico definido, abdômen perfeito e veias dos braços totalmente perceptíveis, conforme destaca a professora de história da arte Adalgisa Arantes Campos, especialista em barroco da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Na mesma igreja, há mais duas esculturas de Aleijadinho: do lado direito, de frente para o altar, vê-se São João da Cruz, e do esquerdo, São Simão Stock. Diante dessa imagem, a professora mostra os traços característicos do mestre (veja quadro). Com a lição, fica mais fácil vislumbrar detalhes das imagens esculpidas por Aleijadinho. Na Igreja de Nossa Senhora do Bom Sucesso, em Caeté, estão Santa Luzia e Nossa Senhora do Carmo, recuperadas no ano passado na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. Mas, mesmo conservadas, elas não ficaram longe das ameaças. Tanto que, devido a uma goteira sobre o altar, a imagem de Santa Luzia precisou ser trocada de lugar. Para recuperar o telhado, a paróquia faz campanha para arrecadar R$ 600 mil e dar fim aos problemas. Ainda em Caeté, é fundamental visitar o Santuário Estadual de Nossa Senhora da Piedade, onde fica a padroeira de Minas, que acaba de ser restaurada e voltará ao altar no próximo fim de semana. Pela tradição oral, Caeté e a Serra da Piedade, com quase 250 anos de peregrinação, são pontos marcantes na biografia de Antonio Francisco Lisboa, já que o seu pai, Manuel, o levava sempre quando trabalhava na ermida do alto do maciço e na Igreja de Nossa Senhora do Bom Sucesso. “Aleijadinho fez, principalmente, esculturas devocionais”, explica a professora Myriam Andrade Ribeiro Oliveira, mestre e doutora em arqueologia e história da arte, lembrando que o artista aprendeu muito do seu ofício com portugueses que trabalharam na Capitania de Minas, entre eles Francisco Xavier de Brito, em Ouro Preto, e José Coelho de Noronha, em São João del-Rei e Caeté. “Aleijadinho surgiu em um momento de apogeu das artes e estava cercado de artistas. Minas era um dos lugares mais ricos do império português, era o auge da mineração do ouro e diamantes e
❚ MARCAS DO ARTISTA 1) Sobrancelha bastante alta, em linha contínua com o nariz, formando um “V” 2) Olhos amendoados 3) Cabelos estriados e revoltos, com mechas terminando em volutas (forma de caracol) 4) Rosto largo, com traços bem definidos, mostrando uma constituição óssea bastante acentuada 5) Nariz fino, saliente, com ponta arrebitada 6) Queixo pontudo e bipartido
8) Boca entreaberta com lábios ligeiramente carnudos 9) Braços curtos e rígidos 10) Panejamento (vestes) fortemente anguloso, aparentando dobras movimentadas 11) Anatomia vigorosa dos braços e pernas, estrutura robusta e musculatura atlética 12) Pés em ângulo próximo de 90 graus
7) Barba longa e estriada. O bigode se origina diretamente nas narinas
JAIR AMARAL/EM/D.A PRESS
13) O polegar é mal implantado nas mãos; os dedos são alongados
Fonte: Catálogo O tratamento anatômico do “Estilo Aleijadinho”/Congresso do barroco no Brasil, realizado em Ouro Preto (1981) – Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha-MG)
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havia aqui condições excepcionais de trabalho. Portugal mandou para cá o que havia de melhor. Muitos artistas vieram e outros se formaram em Minas”, diz a professora Myriam.
A OBRA-PRIMA Uma viagem pela obra de Aleijadinho deve começar ou terminar em Congonhas, na Região Central, a 89 quilômetros de BH. No Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, no Centro Histórico, estão os 12 profetas do Velho Testamento (Jonas, Joel, Daniel, Ezequiel, Oséas, Amós, Abdias, Habacuc, Nahum, Isaías, Jeremias e Baruc) esculpidos em pedra-sabão e, formando o conjunto reconhecido como Patrimônio Mundial pela Unesco, as seis capelas com 64 esculturas em cedro representando os Passos da Paixão de Cristo. “Congonhas é a obra-prima de Aleijadinho, que trabalhou ali com seus oficiais. É trabalho completo, no qual ele atuou também como cenógrafo, olhando com muito cuidado a posição de cada escultura”, afirma o restaurador Antonio Fernando Santos, professor da Universidade Fumec . Nas capelas – que ganharam iluminação especial interna de LED, recriando cada momento da Paixão – aumenta o deslumbramento ao se olhar para o rosto de Jesus na cena da crucificação, ou para o Anjo da Amargura, no Horto das Oliveiras – tudo esculpido em cedro, madeira muito usada à época, por ser resistente aos insetos, macia e compacta. Na capela da Santa Ceia, com 15 esculturas, estão os apóstolos, Cristo e os servos. Uma curiosidade é que há peças inteiras e outras apenas de meio corpo, com a parte de trás oca, para evitar rachaduras. “Aleijadinho é a grande influência na nossa cultura, tinha conhecimento amplo e criou uma escola”, diz Antônio Fernando. As capelas ficam fechadas e os turistas podem admirar apenas pela grade protetora, o que não impede que se emocionem. Aproveitando um raro momento em que os oratórios foram abertos, a visitante gaúcha Helena Victória Sagebin lembrou que os Passos transcendem a religiosidade, por transmitir “espiritualidade e sensibilidade”. TRIBUTO TARDIO O último trabalho de Aleijadi-
nho ocorreu em 1812, com o desenho das torres da MatrizdeSantoAntônio,emTiradentes,noCampo das Vertentes. Porém, só mais de 100 anos depois, em 1922, após a célebre Semana de Arte Moderna, em São Paulo, o mestre se tornou símbolo da arte colonial. Foi quando escritores, poetas e artistas plásticos rumaram para Ouro Preto, dando início à valorização do patrimônio dos séculos 18 e 19 e ao reinado do inigualável gênio do barroco.
EXPEDIENTE ● Edição: Roney Garcia ● Edição de artes: Álvaro Duarte ● Pesquisa e textos: Gustavo Werneck ● Fotos: Paulo Filgueiras e Jair Amaral ● Ilustrações: Marcelo Lelis ● Consultoria histórica: Adalgisa Arantes Campos, professora de história da arte da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e Leandro Gonçalves de Rezende, mestrando do curso de pós-graduação em história da UFMG. ● Agradecimentos: Arquidioceses de BH e de Mariana; Diocese de São João del-Rei; paróquias, santuários e irmandades religiosas; museus do Ouro/Iphan (Sabará), Arquidiocesano de Arte Sacra (Mariana), da Inconfidência/Ibram e Aleijadinho – Paróquia de Nossa Senhora da Conceição (Ouro Preto); Fundação Municipal de Cultura, Lazer e Turismo de Congonhas; Secretaria Municipal de Turismo, Cultura e Patrimônio de Caeté; e Coordenadoria das Promotorias de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais/Ministério Público de Minas Gerais.