O Eremita

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com

O Eremita Themer Bastos

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Revisão: Daniel Bastos Celso Aquino Tradução livre: O autor

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O Eremita Themer Bastos

Apresentação (Por André E. Netto)

O Viajante Algumas coisas passam despercebidas. Simplesmente acontecem e nunca ficamos sabendo de nada. Por outro lado, existem outras coisas que não são por acaso. Acontecem para nos preparar para outra ocasião, experiência ou situação. São sinais do que está por vir, do mesmo modo como um professor passa dicas do que estudar ao aluno, preparando-o para uma prova. Este fenômeno se repete com tudo e com todos e não poderia deixar de incluir os velhos seres humanos. Indivíduos nascem e morrem todos os dias. Vêm em todos os tipos e formas. Com tamanhos e cores diferentes. Uns mais caros que outros, exatamente como em um supermercado. Assim como temos aqueles produtos que logo nos chamam a atenção, há aqueles que nunca percebemos. Não fazem a menor diferença em nossas vidas. Acontece o mesmo conosco. Alguns nascem, vivem suas vidinhas insignificantes e morrem sem fazer a menor diferença no mundo, como aquelas mosquinhas que vivem apenas 24 horas. É puro desperdício. Outros preferem sobreviver às custas de inocentes, pobres coitados que não sabem distinguir o que lhes faz mal. Vampiros modernos que deixariam Nosferatu com água na boca. Ou melhor, sangue. No entanto, a vida nos reserva algumas surpresas. Pequenos milagres que fazem tudo valer a pena, pois representam toda a diferença em nossa curta passagem por este mundo. Um professor, um irmão, um amigo, uma luz que brilha infinitamente e ajuda a nos guiar por entre as armadilhas da vida. Um viajante em busca de novas jornadas. Um aventureiro que procura descobrir e conhecer novos mundos, atravessar novas fronteiras e desvendar o mistério do autoconhecimento. Agradeço a oportunidade de ter conhecido alguém assim. Alguém que tenha viajado pelas Américas e pela Europa atrás de seus sonhos. Alguém que não tenha medo de parar para se auto-avaliar, conhecer-se mais, transformar-se em uma pessoa melhor. Um amigo que não tem medo de nos dizer quando estamos errados. Um irmão que respeita o nosso silêncio. Um professor que nos faz sempre crescer. Um companheiro que não hesita em dividir seu queijo. 3


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com De tradutor, escritor, professor, a músico e compositor, este irmão é um destes pequenos milagres que poucas pessoas têm a chance de presenciar. Generosidade, humildade e genialidade caminhando lado a lado nesta estrada perigosamente sinuosa chamada vida. Tenho a honra de ter sua presença em minha complicada existência. Themer, obrigado por ser quem você é. Este livro mostra como Themer Bastos tem crescido em sua jornada como escritor. Para quem leu O Vôo da Coruja, ou Árvore do Cerrado, ou se emocionou com Conexões, será fácil notar a maturidade do autor, a facilidade como se abre com seus leitores. Themer nos provoca e nos desafia a parar para pensarmos em nossas vidas. Já fizemos tudo o que queríamos? Esta obra é uma aula de autoconhecimento. Uma incrível troca de energia entre o autor e seus leitores. Um questionamento ao nosso monótono dia-a-dia. Uma viagem pelo mundo e pelas entranhas da mente humana. Parabéns, Coruja. Obrigado por mais esta aula.

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Parte 1 “What can you do when your dreams come true and it’s not like that you dreamt?” “O que fazer quando seus sonhos se realizam e não são exatamente como você os sonhou?” em “After the Thrill is Gone” – Don Henley & Glen Frey (Eagles).

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Capítulo 1 É incrível o poder que certas notícias têm em nossas vidas. Tudo está bem, estamos sentados em um píer, escutando apenas o som do mar e das gaivotas; embriagados pela simplicidade do agora. Do nada, vem a bomba, o barco veloz e barulhento que passa e destrói a harmonia de um momento de paz na vida. O mar não some, nem as gaivotas. Tudo continua, mas perde a graça, uma certa magia que vinha da comunhão entre as criaturas. Então, tudo que nos resta é voltar ao mundo de nosso dia-a-dia; tudo que temos é o mundo real, tangível, para nos trazer de volta a paz. Foi em busca deste equilíbrio – também chamado paz – que saí. Saí de casa para caminhar. Para variar, a cabeça estava girando a mil por hora e ficar em casa não era o que o corpo pedia. Era preciso sentir o vento no rosto, o marcar dos passos nas calçadas, o olhar perdido e ao mesmo tempo se achando. Sim, reconhecendo meu novo terreno. Detalhes de prédios que conhecia apenas pelo canto do olhar apressado do homem a caminho de seu trabalho. Atrás do bloco marrom e sem vida que vejo ao lado da avenida, existe um outro bloco azul. E no bloco marrom há vida. É, vida. Gente que recebe conhecidos ou amigos nas varandas; outros que escovam os dentes em frente à janela; por trás das invisíveis cortinas da distância, da pressa e do anonimato que os habitantes desta metrópole tecem, assim como em tantas outras. Cruzei novas ruas para as solas de meus tênis, que haviam sido sentidas apenas pelos pneus de meu carro. Andei por calçadas irregulares e cheias de falhas, que julgava serem contínuas e perfeitas, quando as via da janela, à espera do sinal abrir. Caminhei pela contramão e vi a curva que diariamente faço de uma perspectiva nova. Nos olhos cansados dos que andavam nos ônibus e vans pelos quais passei, consegui ver humanidade por átimos de segundo. Depois, perdemo-nos na grande teia de hipocrisia e mediocridade que nos sufoca e nos acalma dizendo que somos normais. Tomei um caminho nunca antes caminhado. Uma pequena trilha que me levaria para o Parque da Cidade. Lá, poderia encontrar alguém, perdido como eu, na multidão; mas sempre disposto a ouvir, falar, conversar sobre as paredes do labirinto, sobre como os novelos de cordão devem ser bem segurados, para que não nos percamos nos momentos mais difíceis, nas esquinas menos iluminadas da existência.

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Era uma das poucas certezas que carregava em meu caminhar: se ele estivesse lá, seria uma ótima oportunidade para colocarmos a conversa em dia; para contar-lhe o que tem se passado comigo e saber como tem levado sua vida. Há muito não nos víamos, mas sabia que poderia encontrá-lo ao lado do lago dos pedalinhos. Não no lugar em que as pessoas se acumulam, alimentando os peixes e patos. Não, ele preferia assistir a esse espetáculo a uma distância salutar, de um ponto mais alto, onde tinha como companheiro inseparável um livro, não importando seu conteúdo. Sentava-se ao sol, com seus longos cabelos quase brancos de tão louros, e lia. Como lia! Sentia o suor se acumular em minhas têmporas, quando pude ver sua silhueta brilhar à distância. Estava lá. Que bom poder vê-lo novamente! O restante da trilha que me levava a seu local favorito foi facilmente cumprido, com um sorriso que transformava meu rosto na face de uma criança feliz simplesmente por ver seus pais à sua espera ao final de mais um dia de aula. Minha doce ilusão foi achar que poderia pegá-lo de surpresa. A poucos metros, vi seus olhos saírem das páginas do livro e se fixarem em mim, à medida que um sorriso marcava seu rosto bronzeado pelo sol do cerrado central do Brasil. As rugas de expressão deixavam à mostra os quarenta e cinco anos de vida, vivida por tantos caminhos. Algumas vezes esses caminhos coincidiram com o meu, e sou extremamente grato a Deus pelas lições que me ensinou, cada conselho que me deu, cada sorriso de paciência ou pura felicidade por uma conquista compartilhada. Por isso e por muitas outras coisas, estava ali. E estávamos felizes. Estendeu-me sua mão e nos saudamos.

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Capítulo 2 E aí, Mike, quanto tempo? Themer, Themer, Themer... Muito tempo mesmo! Como vai? A que devo tão nobre visita? Deixa disso, rapaz. O prazer é todo meu. Estava caminhando por aí para colocar a cabeça no lugar e me lembrei de você. Resolvi arriscar e ver se estava aqui em seu local cativo. Estou sempre aqui. Sempre que posso, pelo menos. Qual é o problema: trabalho, amor, vida? Na verdade, não. Nem sei se há um problema exatamente. É que este ano tem sido tão cheio de realizações na minha vida, que tenho olhado muito para trás. Tenho amadurecido tanto que me assusto às vezes. Quando me vejo, no começo deste ano, estava lá, sentado, tomando meu café, esperando por mais uma aula. De repente, bum, e as coisas foram acontecendo, encaixando-se em um ritmo que custo a acreditar. Como assim? Agora sou eu que estou confuso. O que aconteceu? Sabe aquele exame, o Cambrigde Proficiency? Sei. Pois é. Quando eu estava ainda na UnB, meu professor Mark Ridd me disse que era muito difícil para mim e que não adiantava fazê-lo sem estudar por pelo menos seis meses. Segundo ele, era perda de tempo e dinheiro. No entanto, ano passado, botei na cabeça que estava na hora de tentar. Seria um desafio para mim, pois me sentia meio estagnado. Acho que até já conversamos sobre isso, não é verdade? É, estou lembrando de uma vez que você me deu uma carona e ficamos conversando no seu carro. Senti você meio indeciso. Estava feliz de voltar ao seu velho local de trabalho, mas faltava um algo mais. Era isso, então? Naquela época nem eu sabia o que era. Isto acontece muito quando não se sabe para onde se vai. Qualquer coisa pode tirá-lo de seu caminho ou colocá-lo de volta nele.

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Espera aí. Ou você começa a dizer coisa com coisa ou é melhor a gente partir para outro assunto. Volte ao exame. Você fez o teste ou não? Fiz. Só que decidi que não iria me matricular em curso nenhum. Faria a prova usando minha experiência e alguns livros preparatórios, nos quais investi uma grana legal; mas a recompensa veio à altura. Fiz o teste em dezembro do ano passado, e a nota só chegou em março deste ano. Passei; e, para minha surpresa, com nota máxima. Parabéns! E aí? O que isso tem a ver com a revolução que você disse que aconteceu em sua vida? É que, quando me dei conta, estava muito acomodado profissionalmente. Era um cara que tinha tirado nota máxima em um dos testes mais importantes para o currículo de um professor de inglês, no entanto isso não me servia no meu local de trabalho. Não tínhamos plano de carreira, não é mesmo? Isso, e ter ou não ter aquele certificado não fazia diferença lá. Nunca me sentira incomodado, afinal, você sabe o tanto que amo o que faço e o tanto que lutei para chegar onde estava. Só que, um dia, conversando com minha irmã e meu cunhado, mencionei minhas dúvidas e ele me disse que conhecia alguém que poderia me ajudar. Liguei para esta pessoa, fiz um teste, e isto desencadeou uma seqüência inimaginável de eventos positivos para minha carreira. Isso quer dizer que você saiu daquele lugar onde trabalhamos juntos? Saí, mas tenho grandes amigos lá. De vez em quando estou indo tomar um café com eles. Aliás, estavam me perguntando sobre você outro dia. É mesmo? Também tenho boas recordações daquela escola... Mas não foi lá que a gente se conheceu. Quanto tempo faz mesmo? Foi em 1985, naquela outra escola lá na Asa Norte. Outro dia achei uma foto daquela época. Comecei a rir sozinho. Quantos anos você tinha naquela época? Era bem novo, éramos todos mais jovens, não é? Verdade... Tinha 19 anos. Larguei um emprego de office boy em uma agência de câmbio para ganhar um quarto do meu salário e fazer o que sonhava: ser professor de inglês. 9


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Sei – por alto – de sua história com o inglês. Essa sua loucura por ser professor – afinal de contas, já trabalhamos juntos em três escolas – mas, o que o fez estudar inglês? Eu sou gringo mesmo, já nasci falando isso que é sua paixão. E você? De onde é que vem toda essa determinação em aprender minha língua? O que o dia 8 de dezembro significa para você? Bem, dia 8... Assim, não consigo me lembrar de nada em especial, por quê? Na noite de 8 de dezembro de 1980, Mark Chapman assassinou John Lennon com cinco tiros a queima roupa, quando John retornava de uma gravação. Sua esposa foi testemunha ocular do fato e da frustrada tentativa de socorro. Lennon tinha então quarenta anos de vida, e eu, apenas quatorze. Nossa, é mesmo! Como o tempo voa! E daí? No domingo seguinte, assistindo ao “Fantástico”, vi o ator Carlos Vereza interpretar a letra de “Imagine”. Naquele momento, senti que precisava conhecer mais sobre Lennon, sobre sua música e sobre as letras que escrevia. Para isso, precisaria aprender a língua na qual se expressara. Após pedir emprestado o LP, gravei-o em uma fita cassete e comecei a repeti-la, sem entender muito daquilo que cantava. No entanto, com uma força a qual não compreendia. Comecei a gravar outros LPs do John e - com ajuda de algumas revistas publicadas na época - ter acesso a suas letras. Lembro-me de uma edição especial com todas as letras em inglês e português que foi para mim como um mapa do tesouro que tanto buscava. Que legal! Quer dizer que a morte do John Lennon fez nascer um novo Themer Bastos? Hoje, olhando para aquele momento, posso dizer que não há exagero em se dizer isso. Eu estudava no Colégio Militar de Brasília, cursava a oitava série do primeiro grau, mas o inglês da escola não me atraía de maneira alguma. Minto, havia a professora, cujo nome esqueci, e que nos encantava com suas formas. Num colégio tão rígido, cheio de adolescentes com hormônios bombardeando as paredes do cérebro... Imagino muito bem as conseqüências! Sem contar as hilariantes artimanhas para se colar nas provas finais, já que apenas o Siqueira tinha os tais conhecimentos da língua. Nunca gostei do Colégio Militar, mas fui para lá por livre escolha. Na época, passei para o 10


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Polivalente, que era uma excelente escola pública, mas era o ano inicial do CM e minha opção foi clara. Com uma semana de ordem-unida já sabia que odiaria a parte militar do colégio. Foi tão ruim assim? Não sobrou nada de bom? Afinal, quantos anos você estudou lá? Na verdade, sobrou muito de bom. Estudei lá durante três anos e posso resumir o que aprendi em duas coisas: meu senso de disciplina e o fortalecimento da idéia de amizade que hoje tento passar adiante. Foi lá no CM que comecei a driblar as dificuldades com uma pequena ajuda de meus amigos. Taí o Ringo Starr que não me deixa mentir! Essa sua mania de misturar letras de música àquilo que fala! Cuidado, nem todo o mundo conhece as músicas que você cita. Essa é conhecida. Mas, espere um pouco. Foi nessa época que começou a estudar inglês, certo? Isso. Havíamos trocado um apartamento de um quarto na SQN 216 por um de dois quartos na SQS 411. Meu pai tinha um conhecido que se mostrara interessado em alugá-lo. Moraria com um colega de farda. Fomos apresentados aos sargentos Bohn e Magno, nossos inquilinos. Já começara uma campanha junto aos meus pais para que me pagassem um curso de inglês, contudo, minhas tentativas resultaram infrutíferas. Um belo dia, meu pai me disse que o Magno era professor de inglês e que me daria aulas em troca de um abatimento no aluguel. Foi uma beleza! Saía de bicicleta da 214 Sul até a Escola Adventista, na L2, onde ele conseguira uma sala de aula à noite, para ensinar fraseologia de controle de tráfego aéreo a uma turma de pilotos. Após as primeiras aulas de alfa, bravo, charlie, delta, over, roger, clear to take off, cheguei para o Magno e informei-lhe de que não era bem aquilo que queria, mas algo mais voltado para conversação. Ele então me contou que estava esperando que eu tomasse essa decisão, já que isso implicaria em termos aula em separado, no caso, no apartamento alugado de meus pais. O da 411? É. Com o devido consentimento, iniciamos a nova etapa de aprendizado, usando um método de inglês que ele usara na Escola de Especialistas da Aeronáutica. Com esse método, dei meus primeiros passos, até que um dia ele me disse que precisávamos procurar um curso, pois sua escala de serviço não lhe possibilitava continuar a ensinar-me de maneira satisfatória. Combinamos ir ao curso que julgava ser o melhor da cidade; fiz um teste de classificação e, de 11


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com posse dos valores, partimos para uma conversa com meus pais. Ele explicou porque não mais poderia continuar com nossas aulas particulares e disse que eu tinha um bom potencial para o inglês. Meus pais ficaram um pouco assustados com o preço do curso e prometeram pensar na proposta. Depois, fiquei sabendo que foi a intervenção de minha irmã Lúcia que lhes fez apostar algumas fichas nessa mania de inglês que o menino estava vivendo. Até onde iria essa? E isso foi quando o curso ainda funcionava no Conic, certo? Exatamente. Entrei no básico, é claro. E o local não era muito apropriado para o funcionamento de um curso de inglês. Inúmeras vezes, ao sair de minhas aulas, cruzava com os travestis que chegavam para as diversas boates espalhadas pelo lugar. Pouco tempo depois, o curso se mudou para o Setor Bancário Sul. Com o inglês fazendo cada vez mais parte de minha vida - após um teste vocacional, resolvo fazer vestibular para comunicação, relações internacionais e tradução. Em 1984, passo de primeira, mas para minha última opção. Resolvo começar o curso, fazer as obrigatórias para depois transferir para comunicação. E você já tinha pensado em ser tradutor? Que nada! Acontece que o curso de tradução da Universidade de Brasília não era reconhecido pelo Ministério da Educação e Cultura. Houve, então, uma mobilização dos estudantes, liderados por alguns apaixonados professores, que logrou a regulamentação do curso. Dentre esses professores, lembro-me bem da Dinorah Mendes e do Mark Ridd. Ela há tempos que não vejo, mas ele virou uma espécie de “mentor profissional”. Outro dia, assisti a uma palestra dele sobre São Jerônimo, o sujeito que traduziu a Vulgata e os Salmos. Deve ter sido interessante. Mas, sua vida nessa época era estudar, não era? Era. Estava quase me formando no curso de inglês. Cada vez mais envolvido em minha nova vida de universitário, saía de casa para a universidade de manhã; de lá, direto para o curso. Chegava tão cedo, que comecei a me enturmar com os professores, conversar com eles e me sentia em casa quando lá estava. Voltava para casa por volta das 22 horas, dependendo da carona que conseguia. Eram tantos bons exemplos de amor à lida de ensinar, que acabei me infectando com esse vírus de dar aulas de inglês. Só que, na época, meu sonho era dar aula lá, no curso onde me formaria em breve. Em conversa com o David – de quem você se lembra muito bem – ele deixou tudo bem claro: “Para dar aula aqui vai precisar mais que o diploma do curso. Tem que passar pelo menos uns dois meses fora, em um país de língua inglesa.” 12


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com “Pajé”! David... Por onde anda esse cara? Você não vai acreditar, mas encontrei com ele no lançamento do livro de um amigo em comum, Ewandro Jr. Continua o mesmo enrolado... Mas a dura sentença do David foi, na verdade, a melhor coisa que poderia ter acontecido para mim. Tinha uma realidade na qual me basear; ou seja, preciso conseguir viver fora para dar aula lá; no entanto, meus pais não têm dinheiro para a viagem; assim sendo, vou ter que me virar por aqui, mas como? Essa parte eu já sei. Foi onde a gente se conheceu. Exato. Era a chance que tinha de ir ganhando experiência por aqui, enquanto não encontrava uma maneira de passar uns tempos nas terras do Tio Sam. Além de você, conheci pessoas maravilhosas: Luiz Montoro, Vinícius, Carla, Nilza e a Elisabeth, que foi nossa coordenadora. Tem visto esse pessoal? O Luiz, como você sabe, está em Londres. Ainda? Tocando ou fazendo outras coisas? A última vez em que a gente se falou, foi pela internet. Está trabalhando para uma empresa que desenha sites. Só de música não dá pra sobreviver, não. A vida é muito cara. E o resto da galera? A Beth trabalha comigo; encontrei com o Vinícius outro dia e batemos um bom papo; a Carla é a atual dona da franquia da escola; e a Nilza, nunca mais a vi. Acho que eu saí dessa escola antes de você. Ficamos um bom tempo sem nos encontrar... É verdade. Fiquei lá até meados do primeiro semestre de 1987. Continuava meu curso na UnB e dava aulas de inglês, mas ainda não estava satisfeito. A sentença do David ecoava em minha memória, desafiadora. Tentei conversar com ele e nada consegui a não ser a repetição do que já ouvira. Ciente de minhas intenções, minha mãe viajou com meu pai para o Rio de Janeiro, para um evento do trabalho dela. Lá, encontram meu tio Oberon, que trabalhara muito tempo na extinta Pan-Am Airlines. Quando retornaram, 13


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com disseram-me que meu tio prometera que – caso arrumasse um local para ficar nos Estados Unidos – ele me conseguiria as passagens de graça. Ah, então foi esse seu tio que lhe arranjou as passagens? É, mas e agora? Onde ficar? Como encontrar alguém? Acho que essa parte você nunca me contou... Durante a Copa do Mundo de 1986, um amigo da família, Ribeiro Neto, estava com uma perna engessada, morando no cassino da Base Aérea. Costumava visitá-lo freqüentemente para dar-lhe apoio moral. Lembro-me de ir buscá-lo para assistir aos jogos conosco. Como teve que passar muito tempo engessado, uma amiga sua veio de Fortaleza para ficar com ele. Seu nome era Valeska e, um dia, conversando com ela, contei-lhe a história do sonho que tinha de ir para os Estados Unidos. Ela então mencionou que mantinha correspondência com um americano que conhecera. Perguntou-me se não queria seu endereço para escrever-lhe uma carta e pedir mais informações sobre os custos de uma estada de dois meses. Como assim? Por mais louca que possa parecer a idéia, peguei o endereço do gringo e envieilhe uma carta indagando-lhe sobre a possibilidade de permanência nos Estados Unidos por dois meses, quanto gastaria com acomodação, comida, e da possibilidade de se conseguir um emprego. Eis que um dia, ao abrir minha caixa de correio, deparo-me com um envelope com bordas vermelho e azul. Ainda incrédulo, leio o nome do remetente. No canto do envelope está escrito Thomas W. Woodward. Subo as escadas em silêncio, com a garganta seca e o coração quase saindo pela boca. Entro em casa, sento-me e abro o bendito envelope. Ele se mostra feliz em ouvir notícias de sua amiga Valeska, e diz que, se sou amigo dela a ponto de ter me passado seu endereço, é porque poderia me considerar seu amigo também. Faz algumas considerações vagas sobre chances de emprego, mas diz que 500 dólares seriam suficientes para me sustentar por dois meses. Finalmente, diz que acomodação onde ele mora era meio problemático de se conseguir, contudo, já que morava sozinho em uma enorme casa com quatro quartos, não via problema nenhum em me receber durante minha estada. Tem quem acredite nessa história?

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Cara, às vezes aparecem uns meio incrédulos. Enfim, fazer o quê? Não tenho como descrever meus sentimentos naqueles dias. Tudo que pedira a Deus estava acontecendo. Havia um tio que me prometera as passagens. Agora, aparece esse americano a quem nunca vira e me oferece sua casa para eu ficar. Tudo muito bonito para ser verdade, certo? Parece coisa de ficção! É, foi difícil acreditar e, pior, convencer meus pais... Resolvo escrever-lhe uma nova carta confirmando se o que entendi era o que ele queria dizer e acrescentando que estava considerando seriamente a hipótese de aceitar seu convite. Ele me respondeu da maneira mais direta possível. Venha! Sim, e os quinhentos dólares? Na época, meu pai me presenteara com um Fiat 147 vermelho. Olhei para ele como uma criança olha para o cofrinho de moedas. Meu então cunhado, João Alber, pagou pelo “bólido” e consegui a grana necessária para o embarque. As passagens estariam em minhas mãos no Galeão. Resolvo ligar para meu benfeitor americano pela primeira vez. “Olha que eu vou, hein?” “Pode vir, mas me avisa antes, tá?” “Tá.” Desse jeito? Tudo bem, mas e a universidade? Você estava estudando também, não estava? Como o “Rapaz lá em Cima” estava muito a fim de me ajudar, coincidiu de haver uma daquelas famosas greves estudantis. Cancelei o semestre e, quando voltasse, restaria tempo para cursar o segundo semestre tranqüilamente. Próximo detalhe tão pequeno de nós dois? Fala, Roberto Carlos... O visto. Lógico... O velho drama de sempre! Vou à Embaixada Americana. Deram-me uma lista de documentos. Semanas depois, ligaram da embaixada para que buscasse o passaporte. Resultado? “Não será possível conceder visto de turista ao senhor porque não temos evidência suficiente de que o senhor deixará os Estados Unidos no tempo estipulado”. Pensei: “Não será isso que me impedirá de ir”. Tomei a palavra e perguntei à pessoa encarregada de me atender. “Escuta aqui, vocês me pediram uma pilha de documentos, consegui todos eles, e a única coisa que consideram como uma 15


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com razão para não ficar nos Estados Unidos é um contra-cheque gordo aqui no Brasil? Será que vocês não viram que meu contra-cheque é de professor de inglês e que estou estudando tradução? Quero conseguir, sim, um emprego melhor, numa escola melhor, mas a única maneira que tenho de fazê-lo é passando esse tempo lá. Caso contrário, estou em um ciclo vicioso: nunca terei salário, nem visto, nem emprego, nem viagem…” A mulher olhou para mim e perguntou se falava inglês. Confirmei e ela pediu que repetisse tudo que havia dito, só que em inglês. Neguei-me. Disse que, para ser funcionária do Consulado, deveria ter entendido meu português muito bem, mas estava disposto a continuar a conversa em inglês. Pediu que contasse o que planejava fazer lá. Contei-lhe toda a história. Ela então pediu que aguardasse e voltou com meu passaporte e um “boa viagem” que só não me fez mais feliz porque ainda estava sob o impacto da negação do visto. Visto é sempre um problema. Mas, quer dizer que tudo isso começou com o John mandando você imaginar que o paraíso não existe? Mas ele dizia ser um sonhador e que não estava sozinho. Além disso, nesse período, outras bandas e cantores apareceram na minha vida: os Beatles, Eagles, Simon & Garfunkel e o antológico show do Central Park, e outros que meus amigos foram trazendo. Posso dizer que foi uma combinação de ação e música que me preparou para o embarque. Antes, havia algo a fazer: ligar para o Thomas e confirmar o que fora combinado. Ou seja: chegaria em Nova Iorque, onde pegaria um ônibus até Richmond, capital da Virgínia. De lá, entraria em contato telefônico com ele e, finalmente, ele me buscaria na rodoviária. Themer, Themer, Themer... Seus pais acreditaram nisso? Hoje sei o quanto foi difícil para eles, mas era tudo ou nada para mim. Aproveitando o preço promocional, liguei para o gringo no domingo, dizendo que estava tudo confirmado e dando a hora do vôo etc. Despedi-me com um “até breve”. Como foi deixar a família a sair nessa viagem tão sem pé nem cabeça? Para você que chora fácil, foi duro se despedir do pessoal? Foi. Detesto despedida, mas essa era inevitável. A família foi toda, além da Valeska, responsável por ter encontrado o Thomas, e meu primeiro professor de inglês e amigo irmão desde então, Carlos Magno de Azevedo. Naquela época, ele era controlador de vôo no Cindacta. Depois de uma correria para despistar o nó na garganta, passei o portão que dava acesso ao salão de embarque. Agora, éramos só o Magno, eu e o silêncio. Ele me disse que estava de folga, mas iria trabalhar à noite. Controlaria meu vôo até que deixássemos a área de cobertura 16


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com radar. Agradeci-lhe por isso, com palavras curtas, tentando disfarçar o choro que as lágrimas expunham. Caminhamos em silêncio até a escada dos fundos de um 727 da Cruzeiro. Após os acenos finais aos familiares no terraço do aeroporto, abracei meu amigo e embarquei rumo ao Rio de Janeiro. O peso de uma despedida havia sumido de meus ombros. As lágrimas agora eram de felicidade também. Imagino... Ao desembarcar no Galeão, meu tio Oberon já me aguardava. Abracei-o longamente e disse-lhe que não havia como explicar o que sentia pelo que ele estava me proporcionando. Ele, com seu jeito cativante de ser, foi logo me desarmando e saímos a conversar pelos corredores do Galeão, do qual ele fora Relações Públicas. Conhecia o aeroporto como a palma de sua mão. Tomamos café e falei com minha tia Jurema pelo telefone. Quando a noite se aproximou, precisou ir embora, mas deixou-me na companhia de um amigo que trabalhava lá, seu nome era Ian. Gringo? Nada. Carioca típico. Para começar, perguntei se podia beber em serviço. Ele respondeu que estava ali para me acompanhar, se decidisse beber, beberia comigo… E mais para lá do que para cá, embarquei, às 21 horas do dia 3 de junho, no vôo 202 da Pan-Am com destino a Nova Iorque. A velha Pan-Am... Como foi o vôo? Apesar da dosagem alcoólica, a ansiedade não me deixou dormir à noite. Era um frio absurdo e meu nariz estava todo seco. Coisas de marinheiro de primeira viagem. Ao amanhecer, foi-nos servido o breakfast. Quando olhei para a cor do café, achei que fosse chá. Tá querendo o quê? É café de americano! Pois é, mas eu não sabia disso ainda. E, ao provar, vi que nem chá era. Era água quente, com aroma e uma vaga lembrança de café. Empurrei uns bolinhos para dentro, já que estava sem fome. Engoli tudo com suco de laranja e a “água suja”. Quando o comandante anunciou o início do procedimento de pouso no aeroporto John Kennedy, levantei-me em tempo de desfazer-me de meu breakfast no primeiro lavatório desocupado que encontrei. Essa é boa!

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Voltei à poltrona a tempo de ver a asa esquerda do Jumbo 747 se desmembrando em flaps para nosso pouso em Nova Iorque, num dia chuvoso. Desembarque, quase uma hora na Imigração e tudo de acordo com o que o Ian me falara. A alfândega foi tranqüila também. Não pararam você? Nem revistaram? Eu acho que tenho um “pare-me, por favor” tatuado na testa! É claro que me pararam. Quando o oficial pediu que abrisse minha mochila, deixei cair um exemplar da revista Mad. Ele riu, apanhou a revista e me perguntou se era aquela a imagem que tínhamos da sociedade americana. “Não senhor, não, senhor…” Apressei-me em desmentir. Senhor é uma palavra mágica em certas circunstâncias. Esta é uma delas. Sim, mas o aeroporto fica longe do centro. Como você conseguiu chegar à ilha? Metrô? Não. Eu não sabia do metrô. Só tinham me falado do shuttle service. Mas consegui, ainda no avião, conversar com um executivo brasileiro que estava indo para Manhattan. Ele disse que poderia pegar o ônibus com ele e descer na 42, que era caminho para onde precisava ir. Pela hora que saiu daqui, você deve ter chegado lá bem cedo e pegou o rush... Ih, demora uma eternidade para chegar! Exato. Embarcamos no ônibus, que seguiu a uma velocidade de cortejo fúnebre. Ao chegarmos à 42, ele me convidou para tomar um café decente. Entramos num Howard Johnson’s e, aí, eu comi bastante. Afinal, estava com um visto de permanência válido por seis meses. Caso conseguisse, poderia permanecer legalmente por até seis meses na América. Terminado o café da manhã, saímos, e ele me apontou a direção. Siga reto aqui até o cruzamento com a 8ª Avenida. A estação estará à sua esquerda. Só esqueceu de me avisar para me preparar psicologicamente para a caminhada. Caminhar pela 42 até a 8ª? Que chegada triunfante! Não, imagine só: caminhar ao longo da 42, com todos aqueles estabelecimentos suspeitos, bem como seus não menos suspeitos leões-de-chácara! Sem falar nos que entravam na minha frente perguntando se eu não queria dar uma entradinha para ver o show das meninas… E eu carregando uma sacola de mão e uma mochila, com todos os documentos e minha fortuna preciosa de 500 dólares. 18


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Lembro-me que, em um destes cruzamentos, passou por mim um cara com um cocar. Sim, um cocar de índio americano igualzinho àquele do sujeito do Village People! Acho que foi ali, naquele momento, que me senti na América. Uns dois quarteirões depois, cheguei à estação. Algumas perguntas e o guichê da Greyhound me disse que estava no caminho certo. E você estava indo para Virgínia, certo? Richmond, a capital. Passagem comprada para um ônibus que sairia em vinte minutos! Oba! Descemos para o embarque imediato. Coloquei minha preciosa bagagem no chão pela primeira vez. Olhei em volta para me certificar que estava tudo bem. Eis que vem chegando um cidadão que se coloca próximo de mim. Sujeito meio esquisito, se fosse em filme, estaria mais para bandido que para mocinho. Assim sendo, é melhor tomar cuidado. Mochila e sacola nas mãos, e o ônibus não abria para que entrássemos. E o cara lá. E eu começando a querer ficar com medo. Ué, se não pode vencê-los... Foi isso que fiz. Resolvi agir. Virei-me e perguntei para onde iria. “Geórgia”, respondeu. Disse-lhe qual era meu destino. Perguntei o que fazia para viver e ele me disse que era professor substituto de geografia. E o gringo era colega? Pois não é que era. Mas, já viu, todo professor tem essa cara suspeita! A porta foi aberta e ele entrou antes, pois não tinha que despachar bagagem. Quando esperava para entregar a sacola, ele abriu a janela e disse que tinha reservado um lugar para mim. Pediu que passasse a mochila para ele e eu o fiz. Você o quê? Tá bom; hoje, olhando para trás… Bem, nada aconteceu e conversamos bastante até o sono me nocautear… Olha que eu briguei! Queria ver tudo… Comecei a cochilar e ele me disse que o melhor a fazer era descansar. Sábias palavras! Aí você acordou e seu colega professor tinha desembarcado com sua mochila. Afinal, coitado, quem poderia resistir a uma tentação daquelas: um turista que vai passar dois meses nos States não pode deixar de ter dinheiro em sua bagagem...

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Boa, mas não foi isso que aconteceu. No fim da tarde, passamos por Washington, DC. Quando retornou do banheiro da estação, ele me disse que talvez a “storm” nos atrasasse. Pensei: Storm é tempestade. Droga, mas logo hoje! Porque tudo de uma vez? No dia que chego, já vou presenciar uma tempestade!? Na verdade, storm para vocês é qualquer chuva forte, não é? Isso. E você achou que era o que, um tornado? Mais ou menos, quer dizer, meu inglês é que ainda estava precisando melhorar muito. Normal... Pois é. Com isso, a storm em nada atrasou nossa chegada a Richmond, às 18h30. Despedi-me do companheiro de viagem, que me desejou boa sorte. Agradeci e desci do ônibus direto para o primeiro telefone público. Telefonista, quero uma ligação para o senhor Thomas Woodward, no número tal, em Gladstone, Virgínia. Meu nome é Themer Bastos. Em alguns segundos, recebi a resposta: Ninguém responde, senhor. Quer ligar para algum outro número? Não. Foi o começo de uma noite que pareceu durar uma semana.

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com

Capítulo 3 O cara tinha saído? Não era só isso. A coisa era um pouquinho mais complicada, como sempre o é na vida real. Estava tudo caminhando como nos contos de fadas, e chegava a hora de seu amigo aqui colocar os dois pés bem firmes no chão. Afinal de contas, lá estava eu, sentado na estação de Richmond, com minha bagagem entre as pernas, abraçado à minha mochila, que tinha tudo de mais valioso para mim naquele momento: meu dinheiro, meu passaporte e minha passagem de volta. Acho que o mais valioso era a passagem... E tem razão. Sem ela, o que é que eu ia fazer? Mas, e o cara, apareceu? As ligações se sucederam; todas, invariavelmente, com a mesmíssima resposta. Os ponteiros do relógio moviam-se e resolvi perguntar no guichê se alguém conhecia a cidade para a qual eu estava indo: Gladstone. Nunca ouviram falar. Não estava no mapa. Não havia ônibus para lá. Liguei mais uma vez, passava da meia-noite. Caramba, nem no mapa a cidade estava! E isso não era o pior de tudo. Se levarmos em consideração que a noite anterior ao embarque em Brasília foi de um sono não mais que razoável, estava entrando em minha terceira noite de tensão. Uma, por conta da viagem, a segunda, por conta da excitação de estar a caminho dos Estados Unidos, e, agora, porque não conseguia contato com o americano que me prometeu estada, que mora numa cidade que ninguém conhece e não atende às ligações que faço. Foi quando tive que encarar o medo em sua face mais cruel. Qualquer um ficaria inseguro numa situação dessas. Mas, cá pra nós, ainda parece coisa de ficção. Só se for do Stephen King! Coisas que só da cabeça dele poderiam sair. Todo o terror psicológico pelo qual passei! Temia que alguém roubasse minha bagagem, por isso, providenciei um guarda-volumes. Temia que o Sr. Woodward tivesse com algum problema que inviabilizaria minha estada com 21


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com ele. Temia que meu sonho se transformasse num pesadelo. Mas, o maior de todos os temores foi pensar que meus pais estavam há cerca de quarenta horas sem notícias minhas. Desde a tarde, anterior ao embarque no Rio. Conhecendoos, sabia que minha mãe chorava em desespero e cobrava alguma atitude de meu pai; que, por sua vez, tinha que esconder sua preocupação e seu medo, para dar força a minha mãe. E eu, sentado na estação, não podia fazer nada, absolutamente nada. Por que você não ligou para casa e disse que tinha chegado bem? Ligar pra casa? E dizer o quê? Que havia chegado bem e que a viagem de ônibus tinha sido legal e que chegara em Richmond, mas o Thomas não respondia as chamadas e que estava passando minha primeira noite nos States numa estação rodoviária? Quando - eu pergunto a você - quando é que passaria pela cabeça dos meus pais a qualidade da estação em que eu estava? Você sabe, mas eles não. O que viria à sua mente seriam as pestilentas rodoviárias que conhecemos, nunca imaginariam como funciona uma estação particular como a da Greyhound, por exemplo. Ligar pra casa nem pensar! Ligar para o Thomas, sim… E a resposta era sempre a mesma… E tudo isso por causa do Pajé? Desculpe-me, mas tenho que rir! Tudo bem. É até engraçado para mim hoje. Mas na hora foi horrível. As pessoas passavam e ficavam olhando aquele rapaz de pele escura chorando. E isso me fazendo sentir ainda pior. Lavei o rosto das lágrimas e tentei dormir abraçado à minha mochila. Acordava com os anúncios dos ônibus que saíam de madrugada. A cada vez que acordava, ligava de novo. Até as cinco da manhã. Com os primeiros ruídos do café da estação abrindo, resolvi escovar os dentes e lavar o rosto amarrotado, cheio de marcas das costuras da mochila. Vi-me um trapo humano ao espelho. Quando me sentei no café, com um baita omelete, torradas, bacon, café quentinho e leite, dei-me conta que passara o dia anterior com o café da manhã do Howard Johnson’s. Bem, se precisasse, depois daquele café reforçado, passaria mais um dia em branco. No entanto, à medida que a comida e o café foram fazendo efeito, pensei: Ninguém conhece Gladstone aqui dentro. Então, tenho que sair daqui. E foi isso que fiz. Assim que terminei o café, abri as portas da estação pela primeira vez. Era um belo dia de primavera e havia um enorme estádio de basebol na minha frente, com uma gigantesca estátua de um índio.

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Porque você não procurou um lugar pra dormir? Sei lá, já que o gringo não estava em casa, de que adiantava ficar na estação, ligando de um telefone público, chorando, passando fome? Cai fora e vai procurar um lugar, pelo menos, é assim que penso. Michael, você não entende. Eu não cheguei nem perto da porta de saída. Eu estava em pânico, e, nesse estado, a razão dá um tapinha nas suas costas e sentase, esperando que resolva voltar a usá-la. Justamente depois que tomei café da manhã é que a razão deu sinal de vida; ou conseguiu ser ouvida por trás do pandemônio que era minha cabeça. Quando estava imaginando o que fazer, eis que um táxi chega. Está livre. Meio sem jeito, e extremamente envergonhado das condições de minha cara e minhas roupas, aproximo-me do motorista. “Ele deve saber onde fica Gladstone”, penso. Ao perguntar-lhe sobre a cidade, vi que me olhou nos olhos e disse algo que não entendi direito, mas tinha a ver com minha cara. Depois, tirou uns mapas de dentro do porta-luvas e, após alguns minutos, disse que eram mapas ruins. Os bons estavam em sua casa. Convidou-me para ir até lá e aceitei. Carreguei comigo só a mochila. Ao chegarmos lá, pediu-me que esperasse no carro. Ele trouxe mapas grandes e abriu-os sobre o capô do carro. Percorreu com o dedo o índice alfabético de cidades até soltar um “a-há, Gladstone!” E você chama isso de usar a razão? Um motorista de táxi chama pra você ver supostos “mapas certos” em sua casa e você acredita? Tem que agradecer muito por não ter sido assaltado! É, não foi a mais prudente das ações; mas, diante das circunstâncias... De acordo com ele, a cidade era muito pequena, por isso não constava dos mapas da estação, e não havia linhas de ônibus para lá. Ficava a 70 milhas, ou 112 quilômetros da capital. Se fosse fazer essa viagem de táxi, teria que pagar um dólar por milha. Mas, segundo ele, havia uma linha que ia até Lynchburg, que estava a 32 quilômetros de Gladstone. A passagem deveria sair em torno de 30 dólares, o que me economizaria 20 dólares. Achei razoável, e ele me levou de volta para a estação. Tive que pagar a corrida. Cinco dólares. Quer dizer que o assalto foi só o preço da viagem? Achei justo, afinal, agora as coisas estavam começando a engatinhar. Já sabia que a cidade era pequena e ficava longe. Restava-me saber a que horas sairia o próximo Greyhound para Lynchburg. Resposta: meio-dia. Que horas eram mesmo?

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Quase oito da manhã. Liguei mais uma vez e ninguém atendeu. Fui até o balcão e comprei a passagem para o meio-dia. Quando estava voltando para o banco que adotara como minha casa, eis que surge o taxista de novo. O cara voltou? Sim, senhor. Pode acreditar. Queria saber a que horas o ônibus sairia e quanto era a passagem. Mas voltara por uma outra razão também. Como assim? É que, quando liguei para o Thomas, ainda em Brasília, para confirmar minha ida, ele falou algo que não compreendi, mas que tinha as palavras sick e hospital. Isso era uma coisa que ficava martelando na minha cabeça o tempo todo. Eu deveria ter pedido para ele repetir, pois não tinha entendido. Agora, era tarde demais. O que fez o cara voltar foi a curiosidade de saber se havia algum hospital em Gladstone. Para minha surpresa, ele me chamou e tirou do próprio bolso os trocados para ligar para a telefonista. Perguntou se tinha o número do hospital da cidade. A demorada resposta veio como uma sentença: se ele ficou doente, foi para algum outro lugar, pois não há hospitais em Gladstone. Desapontados, despedimo-nos novamente, não sem antes ele me perguntar a que horas saía o ônibus. Tá achando isso tudo muito esquisito, não é? Nah, que é isso? Todo americano é bonzinho!!! Para minha surpresa ainda maior, o cara voltou. Eu olhei para ele com cara de “o que que é isso?” Aí, ele me perguntou se já havia comprado a passagem. Eu perguntei se ele me levaria até Gladstone por 70 dólares e ele aceitou. Tá maluco??? 70 dólares??? Viajar de táxi??? Calma! Ainda tinha a passagem, lembra? Fui lá e devolvi. Pedi meu dinheiro de volta e recebi sem nem precisar brigar. Brigar? É seu direito receber o dinheiro de volta se não for utilizar a passagem! Sim, mas eu não sabia. Abri o guarda-volumes e peguei minha bagagem de mão. Tudo no táxi e rumo a Gladstone, terra do Sr. Woodward que eu nunca vira antes… Você viaja pra casa de um cara que nunca viu? Quem é esse motorista de táxi, afinal? Ele tem nome, ou vocês não tiveram tempo para apresentações?

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Brother Jim, ministro de uma igreja episcopal. Agora sim, está tudo bem... O nome dele é Brother Jim e é ministro da igreja episcopal! Hum... E você viajando no táxi do cara? Themer, Themer, Themer... Mal saímos da área da estação - a propósito, o dia estava esplendoroso – ele me pediu que achasse, no banco de trás do seu carro, uma “Seleções Reader’s Digest”. Havia um artigo que ele gostaria de ler, mas não tinha tempo. Procurei em meio à bagunça de jornais e revistas velhas e achei uma “Seleções”. Não era a que ele queria. Voltei a procurar e, finalmente, achei a bendita. Abri na página que ele me indicou e perguntou se me importaria de ir lendo o artigo para ele. Perguntei se poderia corrigir minha pronúncia e ele concordou. Assim, comecei a ler o artigo que falava de relações entre pais e filhos. Ocasionalmente, me interrompia - muitas vezes para corrigir minha pronúncia, outras para perguntar sobre meus pais, minha vida em Brasília, o que tinha deixado para trás, como é que meus pais haviam encarado minha viagem e meus objetivos na terra do Tio Sam. E você? O que dizia? Um belo dia, muito tempo depois, o relé colou. O que ele estava fazendo era tentar saber se eu estava fugindo de casa. Como não estava, deve ter sentido pela maneira com que lhe contei detalhes de minha vida. Continuamos na estrada. Você conta sua vida pra ele, mas dele você só sabe que se chama Jim e é pastor. Eis um típico americano! Nós latinos temos essa mania de sair falando e contando tudo. Vocês já são mais reservados. Às vezes até demais. Mas, voltando aqui à viagem, o interior da Virgínia é maravilhoso! Entre Richmond e Gladstone a gente passa pelos Apalaches. A estrada é muito cheia de curvas, mas isso não me assusta. Conversamos muito e eu mantinha meu olho no taxímetro e nas placas. Uma hora, não agüentei e disse para ele: “Escuta, se é um dólar por milha, estamos com quase setenta dólares no taxímetro e ainda faltam treze milhas para chegar a Gladstone.” Ele olhou para mim e disse que o preço seria aquele com o qual concordamos, e o taxímetro era dispensável. Por isso, desligou-o. Pensei, “é… fazer o quê? Tudo é novo pra mim…” Ao nos aproximarmos de Gladstone, começou a aparecer um nome nas placas que chamava minha atenção: Bent Creek. Falei para ele e decidimos parar no posto seguinte e perguntar sobre o Thomas Woodward, já que não deveria ter

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com posto em Gladstone, poderia ser que o pessoal do posto na estrada o conhecesse. Paramos, saímos do carro, entramos na pequena loja de conveniência que mais parecia um minimercado. Percorremos as gôndolas em busca de algo para comer. Ao pagar, Brother Jim tomou a iniciativa de perguntar ao dono do estabelecimento sobre o Thomas. O homem olhou de forma suspeita para nós, parecia aqueles filmes do Charles Bronson. O que é que você queria? Com tudo isso que está me contando, não acha que está esperando demais de um caipira americano? Vi a hora de o pau comer, mas meu recém-conquistado brother explicou quem eu era e o que estava fazendo ali. De repente, o homem detrás da registradora olhou pra mim e perguntou se o que o taxista dizia era verdade. Eu confirmei e ele disse: “O Tom mora naquela curva. É só descer a escada.” Como assim? Que curva? Que escada? Não... Isso já foi longe demais... O que é que você está esperando para colocar isso em livro? Não tem Paulo Coelho que invente história melhor! É… o que dizer? Nada. Partimos, eu e Brother Jim, para a casa. Ao chegarmos à curva da estrada, vimos uma casa de madeira de dois andares. Reconheci aquela como sendo a casa de verão que vira numa foto enviada para a Valeska. Então, ele disse: “Vamos!” E eu, assustado, perguntei: “Aonde?” “Entrar, ora… Se ninguém responder, a gente abre a porta e entra. Afinal, vocês são amigos, certo?” “Sim, mas, e a casa está aberta?” “Bem-vindo à América. Aqui no interior, não se tranca tudo. Isto aqui não é Nova Iorque! Estamos no meio do nada, venha…” E foi entrando, e berrando o nome do Thomas… Foi direto para a cozinha e abriu a geladeira. Isso é verdade! Mas depende do lugar também. Imagino que sim. Havia um galão de leite e umas duas garrafas de vodka. “Pronto”, disse, “seu amigo não foi longe, deve estar voltando logo. Quero saber o que você pretende fazer agora. Vai ficar e esperar por ele?” Como não respondia, ele repetiu a pergunta e eu disse que ficaria, mas preferia esperar por ele no posto. Por quê? Ah, não me sentia bem ali, sem ele estar lá. Se tivesse que dormir lá, seria esquisito, mas teria que ser assim. Dito isso, ele partiu, entrei e me sentei no 26


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com canto da loja de conveniência. Todos que entravam olhavam para o forasteiro, era assim que me sentia. Eu – usando o restinho de meu bom humor – abria um sorriso amarelo. Lá fiquei até cerca de três da tarde, quando peguei duas Budweiser e desci para a casa. Havia uma varanda agradabilíssima, com uma bela vista para um riacho e um bosque denso com um rio largo ao fundo. Pensei em ligar pra casa, agora que estava em casa. Mas ainda faltava algo: o dono da casa, ou notícias dele. Fui assaltado por outra crise de medo e choro. Lembreime da letra do Eagles: “O que você faz quando seu sonho se realiza e não é exatamente como o sonhou?” Recuperei a calma e decidi: era uma quinta-feira, se ele não aparecesse até domingo, daria um jeito de ir para Washington, onde o seu Moreira estava servindo. Mas precisava de seu telefone para entrar em contato. Como conseguir? Ligando para casa. Voltei ao posto e busquei mais coragem em lata. Tomei umas e subi. O telefone ficava no quarto que supunha ser o dele, já que o resto da casa era uma zona só. Respirei fundo e, quando me preparava para ligar, o telefone tocou. Escutei a voz da minha mãe e senti o quanto estava desesperada. Também pudera, tanto tempo sem notícias! E o pior é que as que eu tinha para dar não eram de todo tranqüilizantes. No entanto, ouvir a voz dos meus pais foi confortante naquele momento. Combinamos que eu voltaria a ligar no dia seguinte e meu pai acharia o telefone de que precisava para me comunicar com o seu Moreira. Lembro-me que eram seis e meia da tarde. Pedi que me deixassem dormir, pois estava precisando. Desligamos o telefone e tomei mais uma ou duas latas de Bud na varanda, antes de tentar tomar um banho. Só tinha água gelada saindo das torneiras. Decidi cair na cama da maneira que estava. Mais um dia com café da manhã e chips com cerveja. Dormindo na casa de alguém que não me conhece… Surreal, mas aconteceu. Põe surreal nisso! No entanto, para alguém em pânico, como você disse estar, suas decisões tiveram uma boa dose de sorte e coragem. Sem estes dois ingredientes, acho que nem teria saído de seu país e estaria até hoje se lamentando pelos sonhos não vividos. Mesmo que não sejam exatamente como sonhamos – como está na letra da música –, a mera saída de seu ambiente, onde se tem abrigo e conforto, para um outro até certo ponto hostil e desconhecido já justifica a empreitada toda. Posso garantir a você que muito do que é hoje se deve a ter arriscado tudo nessa aventura. Pelo menos o clima, na época que você foi, não é tão diferente do daqui. Bem, era primavera, isso é verdade. Capotei na primeira cama que vi e, no meio da noite, acordei tremendo de frio… Lembrei que vira cobertores em cima de uma das camas. Mas, como chegar até lá, se não achei os interruptores de luz? “Já sei, a luzinha do meu relógio de pulso”. Velho Texas Instruments que até hoje vive no pulso do meu pai. Com ela, iluminei meu caminho entre os bagulhos 27


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com que se espalhavam e cheguei até as sonhadas cobertas. Voltei para cama e, segundos depois, já dormia como um bebê. A luz do relógio? A própria! Acordei com o sol já brilhando em mais um belo dia. Mas o que me despertou foi o telefone. Tocava escandalosamente. O que fazer? Atender? E se fosse algum amigo do Thomas? Até eu explicar que focinho de porco não é tomada… E se fosse o próprio? Como esclarecer que estava dormindo em sua casa sem seu conhecimento… E se fossem meus pais? Sim, atendi. Eram eles. Mais precisamente, minha mãe, querendo saber se o Thomas chegara. E acrescentando que meu pai já havia mobilizado a Aeronáutica para achar o telefone do seu Moreira. Pedi que me desse um tempo, pois precisava sair para o café da manhã. Nunca pensei que esta refeição pudesse ser tão importante… Tão fundamental… Seus pais têm coração forte, rapaz! Principalmente meu pai! Minha mãe quase o pôs louco. E ainda tinha que fingir que estava calmo. Eu, pelo menos, tinha que fazer as coisas acontecerem, enquanto eles estavam meio que à mercê dos acontecimentos. Exceção feita à busca do telefone do seu Moreira. Bem, e o seu breakfast? Fui até o posto e perguntei ao moço da registradora onde poderia conseguir um café da manhã decente. Gladstone foi a resposta. Qual era a distância? Três milhas. Uns seis quilômetros não iam me matar. Mas, espere um pouco. Vi um caminhão de minério daqueles enormes. Dentro do mercadinho havia um cara meio sujo de preto… Logicamente, o motorista, certo? Certo. Carona até Gladstone? Beleza! Subir no caminhão? Rapaz, foi difícil, mas consegui. Ele riu um pouco por conta da minha dificuldade e isso serviu de quebra-gelo para que conversássemos um pouco. Ele quis saber como chegara até ali… Não deu tempo de explicar. Parou o caminhão e disse: “Eu dobro aqui, aquilo ali é Gladstone. Adeus!” Confesso que o “desembarque” do caminhão foi mais fácil. A gravidade estava ao meu lado. Pulei, escutei a porta se fechar e o gigante se afastar. O que meus olhos viram me fizeram parar por uns segundos. Sabe aqueles momentos em que algo que não consegue entender, de repente, faz sentido? Pois é. A inexistência de Gladstone em qualquer mapa ficou patente para mim naquele momento, quando tudo que vi foi uma estação de trem, cerca de 30 casas, uma igreja batista e meia dúzia de outros tipos de construções. Antes que me 28


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com esqueça, havia apenas uma rua. Provavelmente, a chamada rua principal, pomposa Main Street. Aqui, por força das circunstâncias, principal e única, que podia ser cruzada em toda sua extensão em cinco minutos de caminhada. Só me resta rir... Estou falando sério, Mike. A fome desperta certos neurônios preguiçosos, você deve saber bem disso. Deve ter sido um desses que me tirou da pasmaceira de ficar olhando aquele vilarejo. Lembrei-me que o Thomas tinha uma caixa postal, já que o endereço que tinha dele era de uma postal box em Gladstone. As coisas iam se encaixando. Então, o cara morava lá no meio do mundo e ia buscar a correspondência lá? Isso. Não seria difícil encontrar o escritório dos correios. Lá, muito provavelmente, alguém deve conhecer o Sr. Woodward. E assim o fiz. Caminhei até o centro; de lá, dava para ver todos os monumentos e principais atrações turísticas da megalópole, inclusive os correios. Entrei e me apresentei a uma jovem funcionária que, a cada detalhe de minha história, ia arregalando os olhos. Temi que fosse testemunhar o desorbitar de seus olhos azuis. Não a culpo! Ela pediu que esperasse um pouco. Houve um pequeno rebuliço dentro do escritório. Da parte de trás, saíram – além dela – mais dois funcionários. Cumprimentei-os, e ela me perguntou se estava com fome. Disse-lhes que essa era a razão que me trazia a Gladstone. Enquanto me levaram até a YMCA, onde havia uma cafeteria muito boa, uma delas me falou algo que entendi se referir ao Thomas. Pedi que repetisse, e o rapaz me disse que, enquanto tomasse café, tentariam entrar em contato com ele. Devidamente apresentado como o “amigo do Thomas que veio do Brasil”, meu pedido de omelete com presunto, queijo e bacon, café, leite e suco de laranja veio caprichado. Deduzi que o homem devia ter uma boa reputação na área. Degustei cada garfada, cada gole, com o vigor dos esfomeados e sedentos. (Recapitulando: a julgar pelo que acontecera nos dias anteriores, e a distância que separa Bent Creek de Gladstone, resolvi me prevenir e fazer “a” refeição do dia em bom estilo.) Agradeci e, quando estava saindo, a jovem que me atendeu nos correios retornou e me disse que não conseguiram falar com ele, mas (parecia) que estava voltando para Bent Creek. Ela me perguntou como voltaria para casa. Achei que fosse me oferecer uma carona, mas ela era dali mesmo.

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Não estava querendo que fosse levá-lo em casa! Sonhe!!! Se bem que, depois de tanto, que custava acontecer mais uma maravilha nessa história? Por um segundo achei que fosse escapar da caminhada. Disse, então, que voltaria a pé. Precisava respirar o ar puro. Além disso, seria mais fácil fazer a digestão, e o caminho me parecera bem agradável, pelo menos o que pude ver lá de cima do gigante de carregar minério. Agradeci pela força e comecei minha caminhada de volta. Certas horas caminhar faz muito bem... É. A despeito da minha situação, a volta para Creek foi uma bênção. Belas paisagens, animais silvestres, uma casa com uma enorme antena parabólica e um cachorro maior ainda, sem muros ou cercas entre nós. Ainda bem que o bicho era obediente. O dono chamou, e o cão voltou para junto dele. Rosnou um pouco, mas com outro comando calou-se de vez. Agradeci com um movimento de cabeça e um sorriso discreto. O homem me olhou um pouco e voltou aos seus afazeres. Cruzei a ponte sobre o rio largo que vira da varanda no dia anterior. Parado, debruçado sobre a ponte, lembrei-me da situação em que estava. Chegando até o posto, perguntei se havia notícias do Thomas, e o homem disse que não. Perguntou se o café havia sido bom. Contei-lhe dos funcionários dos correios e como tinham sido prestativos. Ao mesmo tempo, abri a geladeira e peguei um six-pack de cerveja. Paguei e disse que iria esperá-lo em casa. Passava das dez da manhã, quando sentei na cadeira de diretor meio torta que achara naquilo que julguei ser a sala da casa. À minha frente, o Bent Creek, ao lado um bosque, ao fundo o rio sobre o qual passara. Sabia que a qualquer momento o telefone poderia tocar novamente. Que poderia ser minha mãe para me falar o endereço do seu Moreira em Washington, mas ainda me restava um problema: caso tenha que me dirigir a Washington, como vou fazê-lo? Chegara de táxi e se tivesse que pagar outra quantia semelhante, para chegar à capital, praticamente um quarto de minha pequena fortuna teria sido empregada em transporte. De repente, ouvi um carro. Deveria estar entrando na estrada que passava acima da casa. O ruído diminuiu e escutei o motor parar. Vi um carro escuro, parado bem em frente à escada de acesso à casa. Levantei-me com o coração a mil. Será que entrei em encrenca de vez? Cheguei até a varanda da frente ao mesmo tempo em que o ocupante do carro chegou ao topo da escada. Quando começou a descer, reconheci o homem que vira apenas em pequenas fotos. Ele

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com parou e me olhou assustado. Perguntei: “Thomas Woodward?” Incrédulo, respondeu-me com outra pergunta: “My friend from Brazil?” Eu não sou lá muito normal nas minhas viagens, mas tenho que admitir que essa sua chegou a um limiar perigoso. Contada por você, aqui na minha frente, eu sei que nada de mal aconteceu. Contudo, imagino o quão duro foi para você e para seus pais e familiares – embora nós, americanos, pensemos diferente com relação aos laços de parentesco. Minha longa permanência no Brasil me permitiu conhecer a maneira de vocês conceberem a família e, acredite, é bem diferente da gente. Juro que, na hora, não entendi a maneira como ele chegou perto de mim e, sem sequer se apresentar, saiu logo dizendo que eu deveria estar com fome, já que estava na hora do almoço. Foi pedindo para eu entrar no carro, pois iríamos a Gladstone comer algo. Expliquei que tomara café da manhã lá e ele quis saber como voltara. A pé, ora, como mais poderia ter voltado? O que conversamos, o que comemos, isso tudo não tem muito sentido hoje. Nem me lembro bem, para ser sincero, pois tudo que queria era ligar para casa e dizer que ele chegara. E foi o que fizemos, voltamos para casa. Mal entramos, o telefone toca e ele atende e fala um português meio atrapalhado. Era minha mãe. “Chegou!” – pude finalmente dizer essa simples palavra. Meu pai também conseguira o telefone e o endereço de que precisava. Bom, pelo menos agora, as coisas estavam começando a se acalmar. Telefonema acabado, foi a hora de decidir onde queria ficar. Antes que pudesse escolher um quarto, ele me chamou: Venha, vou ensinar-lhe algo, mas preciso de sua ajuda para colocar umas cadeiras na varanda. Colocamos duas cadeiras de bambu na varanda. Havia umas almofadas bem confortáveis, e a tarde avançava, agradável. “Agora vem a parte prática: “Eu preparo os dois primeiros drinques, e você aprende. A segunda rodada será sua” – disse ele. Agora, sim, havia um motivo para se comemorar! Concordo plenamente. Fomos para a cozinha. Ele pegou a garrafa de vodka e preparou um drinque bem refrescante com soda. Saímos e, confortavelmente instalados, comecei a contar-lhe como chegara até aquele lugar. Não me lembro quantas rodadas bebemos, acho que preparei três. De vez em quando, ele me pedia que repetisse o que dissera. Uma hora perguntei se meu inglês era tão ruim assim. Ele disse que o problema não era o inglês, a história é que era fantástica de mais. “Como é que você achou este lugar no meio do nada?” “Ora, Thomas, não sei. Fui fazendo o que podia. Com medo, mas fui dando um passo de cada vez, até chegar a Bent Creek”. 31


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Pelo menos não sou o único a achar a história fantástica! Está certo que sou chato, mas dá um tempo! “Onde é que você ficou nos Estados Unidos?” “Bent Creek, Virgínia”. Bent o quê? Por falar nisso, ele quis saber notícias de sua amiga Valeska. Contei-lhe que tinha ido até o aeroporto no meu embarque. Então começou a falar dele, e de suas viagens, de como gostava de sair por aí, viajando mundo afora. Disse que era aposentado, divorciado e tinha dois filhos: Paul e Tommy, que não viviam com ele, mas com a mãe e a avó, respectivamente. Tommy era da minha idade, ou seja, vinte anos. Disse que nos conheceríamos brevemente, já que teria de retornar ao lugar onde estivera enquanto eu ligava para ele ir me buscar em Richmond. Afinal de contas, e o lance do hospital? Ele estava ou não internado, morto, sei lá? É o seguinte: em uma de suas aventuras, uma espécie de mosca ou mosquito havia depositado um parasita em seu rosto, que apresentava uma coloração mais avermelhada de um dos lados. Explicou-me que esperara uma ligação minha confirmando minha saída, quando, então, combinaria de nos encontrarmos não lá, mas na casa de sua mãe, em Bristol, Virgínia/Tennessee. Como não liguei, e ele não poderia perder a consulta para aplicação de laser no rosto, teve que ir, e acabei passando a noite na estação. Não houve pedido de desculpas de parte a parte. E você achava que cabia um? Não. Então, contei-lhe como acordei tremendo de frio no meio da noite e da maneira que conseguira chegar até os cobertores. Ele riu e adorou a história da luz do relógio. Começamos a rir juntos e isso significava duas coisas: estávamos nos entendendo bem e, a mais óbvia, estávamos bêbados. Lembrei do banho que tentara tomar. Contei-lhe das tentativas mal-sucedidas de descobrir como esquentar a maldita água. Disse que havia apenas molhado e lavado as partes e o rosto. O resto estava implorando por um bom banho quente. Foi o que precisávamos para entrar e escolher onde eu dormiria. Para isso, ele me arranjou lençóis limpos, travesseiros e dois cobertores, sendo um deles elétrico. Nunca cheguei a precisar ligá-lo. Quantos dias sem banho?

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Deixa-me ver: acho que foram dois. Por isso, o banho sonhado foi uma maravilha. Você já tomou banho em um banheiro em que uma das paredes é de vidro? Vidro? Esse cara era bem esquisito pro meu gosto! Pois é, e tem uma fantástica vista para o mesmo bosque que se vê da varanda! Parece loucura, mas não é. Continuo achando-o estranho. O jantar foi mais tranqüilo. O sol se punha por volta das sete, oito da noite. Enquanto havia luz solar, eu aproveitava para ler revistas, ou escrever no diário que ele me falou para manter. Disse que era um hábito seu e que tinha uma coleção de diários de viagem. Quando o sol ia embora, eu dormia. Acordava com o sol voltando, e com o barulho do Thomas descendo as escadas. O gringo era gordo e barulhento! Casa de madeira é barulhenta mesmo. Nem que fosse magérrimo feito você ia fazer barulho também. E do jeito que você gosta de reclamar das coisas, aí é que ia ser barulhento mesmo! OK, vamos voltar a “Themer in Wonderland”... Na nossa primeira manhã, arrumei minha cama e desci para escovar os dentes e tomar café. Quando voltei do banheiro, ele estava com uma xícara de café bem quente nas mãos. “Gosta de café?” Lembrei do café do vôo. “Depende de como você bebe café.” “Já viajei o suficiente para conhecer o que é tomar o bom café”, disse ele, passando para mim uma caneca fumegante. “Aproveite para esquentar suas mãos e parar de tremer de frio. Não trouxe outro casaco?” “Achei que nem ia usar este. Disseram-me que era quente aqui no fim da primavera.” É, quente para nós, mas não para você. Resolvemos combinar uma coisa: no dia seguinte, ele prepararia o café primeiro, então me chamaria para a primeira xícara, antes de ajudá-lo com o resto do nosso breakfast. E assim foram as manhãs enquanto estive em Bent Creek. Acordava com ele me chamando e dizendo: “Filho, o café está pronto!” Descia e começávamos a preparar o resto, que incluía panquecas, maple syrup ou mel, café, ovos nos mais 33


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com variados estilos, desde cozidos ao conhecido omelete, bacon e outras coisas que não me lembro bem. No entanto, se houve uma coisa que me surpreendeu no breakfast do gringo foi o dia em que me apareceu com um pote de picles. “Toma aí, mistura com os ovos e vai ficar uma delícia”. Quem não está acostumado, estranha mesmo! A idéia de comer picles no café da manhã era totalmente fora de cogitação, mas sua insistência valeu. Provei e aprovei essa novidade para mim. Arrumávamos a mesa, geralmente, na varanda que mencionei. A primeira caneca de café, aliada ao trabalho de ajudá-lo nas tarefas que envolviam o ritual do breakfast me esquentavam o suficiente para tolerar a temperatura lá fora. Sem esquecer a beleza dos arredores. Uma baita casa perdida no meio do nada! Essa casa era dele? Era não, ainda é. Logo que cheguei, ele me disse que iria sair e que havia um pessoal que passaria para vistoriar a casa. Disse-me que tudo que tinha a fazer era acompanhá-los, pois já sabiam o que verificar. Como não compreendera exatamente quem eram as tais pessoas, fiquei meio perdido ao receber os dois senhores. Apresentei-me e pedi desculpas por meu inglês não ser tão bom. Eles seguiram para a parte de trás da casa e abriram uma portinhola que dava acesso à estrutura. Um deles, então, olhou para mim e disse: “Esta casa foi construída em 1820. Todos os anos ela é alagada. Agora, veja isso...” Sacou um canivete do bolso e tentou fincá-lo nos grossos troncos que compunham a base. “Sólido como uma rocha, rapaz!” Fiquei espantado e eles me esclareceram que pertenciam a uma espécie de patrimônio arquitetônico ou histórico da área. As vistorias eram periódicas para manutenção das casas mais antigas, o que não impedia que a parte superior – sala, quartos, cozinha – fosse remodelada. 1820? Caminhando para dois séculos de existência... É... Só que esse negócio de ficar em casa, em contato só com ele não seria tão benéfico para seu inglês. Vocês não saíam? No domingo saímos para comprar jornal e fazer umas compras para casa. Coisas para comer enquanto passávamos o tempo. Ele me disse que pegasse um jornal de cada pilha – eram umas cinco – e saiu em busca de algo para matar a fome. Ao voltarmos para casa, sentamo-nos na varanda para ler jornais. Nem todos eram do dia. Como ele mesmo disse: ”Não faz diferença! Já que não temos TV, tudo é novo para nós. Nem que tenha acontecido anteontem.” E isso era uma verdade. Como estávamos no meio de um vale, notei que a maioria das

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com casas tinha parabólica. A nossa tinha uma TV de 5 polegadas, daquelas que se carregam para acampamento. E provavelmente só captava estática. Realmente, não há nada mais apropriado para um acampamento de primavera nos bosques da Virgínia! Por falar em camping, no dia em que nos encontramos, ele me disse que comeríamos um hot dog no galpão de um amigo. Fim de tarde, lá chegamos. “Ah, então você é que é o cara que chegou em Nova Iorque e achou Bent Creek!” Era sempre assim, onde quer que chegasse as pessoas estavam espantadas com o fato de eu ter achado aquele buraco. Também, pra que é que se esconde assim? Acho que era mais uma área de casas de veraneio mesmo. O Thomas é que era louco de morar ali! E os hot dogs saíram ou não? Enquanto as mulheres preparavam o cachorro quente, os homens sentaram-se à margem do rio James, que é raso e bem largo. O mesmo que via da varanda da casa. Um dos caras jogara uma lata de cerveja na beira do rio e atirava com uma espingarda de chumbinho, empurrando-a, pouco a pouco, para dentro do rio. Nisso, sinto algo gelado em meu ombro esquerdo. Viro-me, achando que alguém vai me passar uma cerveja e vejo o outro cara, com uma espingarda de verdade, um sorriso maroto e me dizendo com os lábios para tapar os ouvidos. Segui suas ordens e bum! A lata voou… O sujeito da espingarda de chumbo olhou para nós, assustado, e eu olhei para o Thomas, indagando-lhe com os olhos: “É pra rir ou pra chorar?” Já que eles estouraram numa gargalhada, comecei a rir também. Perguntaram como estava o zumbido em meus ouvidos, e disse que estava suportável. Os hot dogs saíram, comemos e fomos embora.

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Capítulo 4 Se não me falha a memória, você acabou ficando mais tempo em Maryland. Por quê? Antes disso. Ficamos poucos dias em Bent Creek. Thomas precisava ir ao médico e, dessa vez, ficaria uma semana na cidade onde sua mãe morava, Bristol, divisa da Virgínia com o Tennessee. Partimos de carro e, lá chegando, fui apresentado ao resto da família que ali vivia, inclusive Tommy. Como ele trabalhava o dia inteiro com uma betoneira, chegava em casa com bastante sede. E eu, que não fazia nada o dia inteiro, juntava-me a ele e seus tios em animadas rodas de cerveja. Um dia, já de banho tomado, estávamos na sala, com a TV ligada sem, no entanto, assisti-la. Ele me disse: “Olha só” – colocou uma lata de cerveja na mesa de centro –, “acho que as coisas com o seu país acontecem mais ou menos assim. Se mexerem com vocês” – disse, enquanto dava um empurrãozinho na lata –, “vocês deixam as coisas se acomodarem, assim como esta lata” – que retornara à posição original, depois de cambalear por alguns segundos. “Nós americanos somos diferentes: se mexem com a gente, não há tempo de esperar a lata voltar” – e para ilustrar como reagiam, enfiou a mão na lata, que atravessou a sala e bateu na parede espalhando o resto de cerveja que ainda estava nela. “Espero que isso o ajude a entender certas atitudes que tomamos”. Realmente, aquela lição eu aprendi e tem me ajudado bastante. Só me restou uma dúvida: quem será que limpou a parede que estava em perfeito estado no dia seguinte? Provavelmente sua avó… Avó? É. A mãe do Thomas. Só não me pergunte sua idade. Não posso me esquecer de uma passagem... Foi logo que cheguei. Ele me disse que sairia e que eu devia acompanhar sua mãe. Ela iria buscar madeira. Como sempre, falou na maior naturalidade e foi saindo. Não havia tempo para maiores explicações, com isso, fiquei a imaginar a cena: lembra de um desenho animado que tinha um personagem que era um lenhador? Paul Bunyan? Exato! Olhei para a velhinha e para mim. Pensei: Quem será que vai carregar o machado? Vai sobrar para o Paul Bunyan aqui! Só acho que vou me dar mal novamente, mas tudo bem. “Vamos”, disse ela, seguida do neto Jimmy. Entramos em um velho carro azul e branco que tinha um porta-malas enorme. Ela ao volante, eu a rezar e procurar a floresta. Começamos a subir um morro, mas era ladeado de casas. Não poderia ser ali. Finalmente, curvando à direita e buzinando para que abrissem um portão. Só aí pude entender... Por causa da 36


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com calefação, precisam de madeira, que é coletada durante o ano, para que haja um bom estoque no inverno. As madeireiras vendem os tocos e restos de madeira por porta-malas. Paramos e os caras começaram a enchê-lo. E eu pensando: Aqui eles estão enchendo, e lá? Pois fui eu mesmo. Mas até que foi bom. Duro era entender o que ela falava. Ela quem, a mãe do Thomas? É. Estávamos sempre em caminhos trocados. Quando eu achava que ela queria saber o porquê de algo, ela queria saber o quê, e vice-versa. Como a pronúncia das suas palavras (why e what) é semelhante, somando-se a isso o sotaque e a idade, acho que dá para imaginar o samba do crioulo doido que eram nossos diálogos durante o dia. À tarde, o Thomas voltava do hospital, o Tommy chegava do trabalho e tinha a roda de conversa. O que as pessoas têm que fazer para dar aulas de inglês no Brasil! Tenho que confessar que não teria feito nem um centésimo disso tudo. Simplesmente, não nasci para ter paciência com as pessoas! É, mas até que nos damos bem. E você não pode deixar de lembrar que este era meu sonho! Algo que você não compreende porque é gringo e já nasceu falando inglês. Essa, às vezes, é uma vantagem que nós professores não-nativos temos sobre vocês. Falta sentirem a dor do aluno. Onde o calo dói. A dificuldade no processo de aprendizagem. Tudo era importante e necessário para mim, mas precisava fazer algo para passar o tempo. Um dia, catei uma enxada e fui limpar a horta. Ganhei elogios e uma bolha na palma da mão! Outro dia, sabendo que Tom não usaria seu carro, pedi-lhe que me conseguisse alguns produtos de limpeza e um aspirador de pó para limpá-lo por dentro. Quis saber por que, e disse que precisava fazer algo útil. Qual era o carro dele mesmo? Ele tinha um Ford Escort Station Wagon, que estava com o banco traseiro deitado. Para começar, recoloquei o banco na posição original. Meu Deus, quando vi o tanto de lixo que tinha lá dentro me deu um desânimo! Mas, já que tinha começado, tinha que acabar. Recolhi o mais volumoso com as mãos: latas de cerveja, refrigerantes, copos de plástico, jornais velhos, papéis diversos, moedas… O mais miúdo foi no aspirador. Depois de tirar o pó, passei um produto que deixou o carro novinho em folha. Depois de tomar banho, senteime no balanço das crianças. Quando o gringo chegou – ainda sem me ver –, passou pelo carro. Parou, voltou, abriu a porta de trás, depois a da frente. Deu a volta e olhou em volta. Ao me ver, abriu os braços e perguntou: “O que você fez

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com com meu carro? Quero meu carro de volta! Este carro está novo!” E veio rindo até onde eu estava. “Bom trabalho, filho!” Espere um pouco. Você disse que em Bristol moravam a mãe dele e um de seus filhos, certo? E havia mais alguém da família por lá? Esses tios do Tommy, dos quais você falou... Tinha sim. Só não me lembro direito quem era quem. Mas houve uma tarde que escutei o som de uma criança na casa. Eu estava no quarto que eles me deram, escrevendo no meu diário de viagem. Curioso, fui até a sala e dei de cara com um bebê e sua mãe, que eram sobrinha e irmã do Thomas, respectivamente. Após sermos apresentados, brinquei um pouco com a menininha, mas isso me fez lembrar da minha sobrinha que ficara em Brasília. O resultado foi um pequeno ataque de saudade que gerou mais uma longa conversa com o Tommy, regada a muita cerveja. Nessa época, eu saía variando para provar as diversas marcas no mercado. Lembro que fizemos uma lista das cervejas que havíamos bebido. Coisas que só os bêbados fazem! Mas, até onde sei, essa era sua idéia: ir lá e viver o “American Way of Life”, melhorar seu inglês e voltar. Ou estou errado? Não. A estada em Bristol foi benéfica por me expor ao modus vivendi de uma típica família americana: TV a cabo, muito trabalho, conversas amenas ao cair da tarde, ficar em casa significa ajudar em algum dos afazeres... No entanto, foi quando cheguei a uma conclusão, talvez a mais importante e difícil dentre tantas que fui obrigado a tomar em minha curta permanência. Ficar com o Thomas seria mais lucrativo em termos de aquisição de inglês e de economia com estada. Contudo, já que ele passava tanto tempo no hospital e ainda teria que continuar seu tratamento além da minha pretendida estada de dois meses, havia a possibilidade de visitar Washington. A questão era como dizer isso ao Thomas. Um dia, ele chegou dizendo que a gente iria passar o final de semana em Bent Creek, já que haveria uma competição de rafting, e seria interessante. Pedi para falar com ele e expliquei que estava pretendendo passar meu aniversário em Washington e depois voltaria para Bristol. Disse-lhe que o fato de estarmos indo para Bent Creek já iria me ajudar, pois estaria 320 quilômetros mais próximo da capital. Ele aceitou a idéia pacificamente, só perguntou quem eram. Depois que esclareci que eram amigos da família, que me viram crescer, e que o seu Moreira estava a serviço da Aeronáutica Brasileira, ele se tranqüilizou. Ele me parece uma pessoa bem responsável. Até nisso você deu sorte. Poderia ser um vagabundo qualquer, com uma família desestruturada que lhe causaria 38


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com problemas. Até nessas famílias que se oferecem para intercâmbio, mesmo com muita preparação, às vezes, as coisas dão errado, não é mesmo? Se há uma coisa da qual não posso reclamar é da minha sorte nesta viagem. A despeito de todos os contratempos. Aí voltaram para aquela casa que você tinha “achado”? É, e de nossa viagem de volta a Creek, lembro de uma cena inusitada. Paramos para comprar um lanche. Ele me perguntou se queria ficar no carro e disse que estava tudo bem. Só pedi que comprasse uma cerveja para mim. Prontamente, ele me estendeu a mão. Olhei para ele como quem pergunta “o que há”. Ele respondeu: “dinheiro!” Ah, sim, mero detalhe! Quando voltou, trouxe uma Miller Gold de 1,5 litro e a recomendação de não tirá-la de dentro do saco de papel. O Tommy havia comprado tabaco de mascar e me ofereceu. Fiz menção de aceitar. Estávamos saindo do estacionamento e, ao ver a cena, o Thomas brecou o carro bruscamente; olhou bem nos meus olhos e disse: “Enquanto você estiver sob minha responsabilidade, não vai provar essa merda! Se você quiser ficar viciado nessa porcaria como esses dois (Tommy e seu primo, Greg), o problema será todo seu. Só não o faça sob minha responsabilidade! Ah, antes que eu esqueça, seu troco eu embolsei por conta do serviço prestado. Sem minha ajuda você não compraria sua cerveja aqui. A idade mínima pra comprar álcool é 21 anos.” Boa! Estilo Western... Depois de tudo isso, disse não aos rapazes e assisti ao espetáculo deles mascarem aquela coisa e abrirem a janela para cuspir. E de minha parte, aprendi que beber em um carro em movimento é garantia de porre. Quando cheguei a Bent Creek, estava vendo o dobro de estrelas no céu. Assim, fui apresentado ao Paul, filho mais novo do Tom, que chegara da casa da mãe para a competição que motivara nossa volta. No dia seguinte, ainda de ressaca, liguei para o seu Moreira e pedi-lhe permissão para passar de 15 a 20 dias por lá. Disse-me que estava OK e que me buscaria na rodoviária quando chegasse. Só restava agora arranjar uma maneira de chegar até um ponto de parada da Greyhound. Foi aí que entrou na história um dos primeiros amigos do Tom que conheci, ainda no dia em que achei Bent Creek. Ao retornarmos do almoço em Gladstone, passamos na casa desse cara que eu apelidei de Bud. Bud? 39


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Ora, o cara tinha um refrigerador no porta-malas do carro, lotado até a boca da mais gelada Budweiser!!! Pois foi ele que se ofereceu para me levar até a parada que ficava a uns 90 quilômetros de lá. Com um até breve para o povo que ficava, entrei no carro do Bud e fomos pela estrada até chegar ao ponto de embarque. Tínhamos algum tempo antes do ônibus passar. Como matá-lo? Bebendo. Veio ele com dois six-packs. Jogou um lá no freezer e trouxe o outro pra dentro do carro. “Toma aí que não vai dar tempo de esquentar”. Pra variar, entrei no ônibus com a bexiga estourando e fui direto para o banheiro.

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Capítulo 5 E dessa vez, correu tudo bem, ou houve mais algum atropelo, mais um “ninguém responde sua chamada”? Nada, dessa vez foi tranqüilo. Cheguei à capital ao final da tarde. Liguei para o seu Moreira e ele foi me buscar. Fiquei muito feliz de encontrá-lo. Eles moravam perto de Washington. O município era Rockville, a avenida, a Rockville Pike, o nome do condomínio era Grosvenor Park. No caminho ele me disse que tínhamos um jantar na casa de uma amiga da família. Mal chegamos, saímos para o jantar. Era uma baiana, casada com um espanhol, se não me falha a memória. Prato da noite? Feijoada. Sim, feijoada. Bebida? Bem, quando o anfitrião nos indagou, o seu Moreira me olhou e perguntou: “Uísque?” Concordei. De repente, o espanhol me aparece com três garrafas de Jack Daniels. Coloca uma na mesinha em que estávamos e diz: o gelo está naqueles baldes. Olhei incrédulo para o seu Moreira. Sei que, lá pelas tantas, o cara estava nos mostrando o carro dele que falava. Eu já não sabia se o carro realmente falava ou se todo o álcool consumido durante o dia estava correndo em minhas veias feito cavalos selvagens. De onde é que vocês se conheciam mesmo? Meu pai e ele foram colegas de farda. Morávamos na mesma vila em Fortaleza. As duas famílias vieram quase juntas, transferidas para cá. Eu e o Pedro crescemos juntos. Ao voltarmos pra casa, ele tinha chegado. Estava com sua namorada. Depois de um certo tempo, eles saíram. Acho que ela foi embora, e ele voltou com uns três six-packs de Rolling Rock. Até hoje não sei como consigo lembrar desses detalhes. Mal sabia meu nome... Para você ver a intensidade com que viveu esses momentos. Na verdade, deveríamos viver o dia-a-dia com esse mesmo nível de atenção às pequenas coisas. Na maioria das vezes, são elas que fazem a diferença e nos tornam únicos, ou inesquecíveis. Reencontros como esses nos lembram que o tempo não existe para os verdadeiros amigos. Parece que você estava lá naquela noite! É isso que mais me marcou. Foi como se tivéssemos nos encontrado recentemente. Ao som de suas fitas cassete ou da DC101-WWDC-FM, fomos nos sintonizando e nos embriagando cada vez mais. Lembro que eu perguntava: A que horas o sol vai nascer? Quando a cerveja acabou – e faltava pouco para o sol nascer – ele trouxe um resto de Johnny Walker Red Label. Foi puro mesmo. Depois me perguntou que filme eu queria ver. Será que faria alguma diferença? Tomamos um café forte pra ver se 41


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com melhorava a situação. Resolvemos ir dormir quando a galera acordou. Foi um dia inesquecível pra mim. No outro dia eu tremia de ressaca, mas estava tudo bem... O álcool tinha um papel importante em sua vida nessa época, ou estou exagerando? Não, infelizmente, não há exagero nenhum em se dizer isso. Isso marcou toda minha adolescência e princípio da vida adulta. Minha vida meio que orbitava em torno dele e nessa viagem, com o nível de ansiedade que a envolveu, tenho que admitir que bebi bastante. OK, mas e a vida em Washington? A vida em Rockville foi muito diferente do que era lá em Creek, ou em Bristol. Acordava, tomava café e sentava-me com um mapa na minha frente. Depois das primeiras aulas de como me locomover e como funcionava a cidade, decidia meu itinerário e partia – sozinho ou com o Pedro – para visitar museus e as dezenas de atrações que Washington tem para turistas como eu. Há monumentos e museus muito interessantes lá. Qual foi seu favorito? Não diria que tenha um favorito. O Museu Aeroespacial é uma jóia rara, entretanto tenho que confessar minha fascinação pelo Memorial em Homenagem aos Mortos e Desaparecidos no Vietnam – aquele muro de granito negro com os nomes dos soldados em baixo relevo, seguidos de uma cruz (se o mesmo está desaparecido); ou um losango, quando a morte é confirmada. Na véspera do Dia da Independência, estava passeando sozinho pelo Mall e vi de tudo um pouco. Muitos veteranos em cadeiras de rodas, outros de muletas, quase todos vestidos de acordo, ou seja, meio militar, meio revoltado, olhando na cara da sociedade que os renega por representarem um fracasso nacional. Muitos fumavam baseados quilométricos a metros de policiais que passavam, olhavam e nada faziam. Além disso, foi junto ao muro que vi as duas cenas mais duras: uma menina perguntando onde estava o avô, e a mãe, colocando-a no colo, apontava para o muro; e a outra, um rapaz, todo uniformizado, alisava um nome do muro, enquanto seus companheiros, visivelmente preocupados, diziam pra ele relaxar. De repente, o cara se virou de uma vez e começou a vomitar na grama, com seus amigos segurando-o pelo tórax. Foi um dia pesado, no entanto acho que aprendi muito lendo as cartas de pais para filhos e dos filhos que estavam no campo de batalha para seus pais. As centenas de fotos de gente mais nova que eu, que morrera por uma nação que destratava seus companheiros de batalha. Vida que segue...

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com É que o sol sempre nasce no dia seguinte! E, por falar nisso, o verão era perfeito! Lembro de pegar 46° C por volta das oito da noite. Umidade elevadíssima. Caminhava muito, ganhava confiança no meu inglês, à medida que conseguia me virar nas diversas situações que iam aparecendo. Lembro-me de um hot dog que me rendeu uma boa meia hora, sentado ao lado da vendedora, tentando entender o que ela dizia. Finalmente descobri que se tratava dos molhos que acompanhavam o cachorro quente. Como não entendera, apenas pedira que me desse um simples com uma coca extra large. Mas só saí do lado do estande quando consegui entender o que ela dizia. É a mesma coisa em qualquer língua. Toda vez que você repete algo muitas vezes, seu discurso tende a ser monotônico e mecânico. Ainda mais sob um sol de 40°! Situações engraçadas, aliás, foram muitas. No condomínio havia um minimercado, onde comprávamos coisas pra comer e, principalmente, cerveja. Em um desses dias - já não tão sóbrios - fomos em busca de reabastecimento. A caixa era uma senhora muito bonita, cujo marido trabalhava lá também. Ao pagar pelas cervejas, na intenção de facilitar seu troco, ela me perguntou: “Do you have pennies?” Convenhamos, o som da pergunta é embaraçoso... Tentei bravamente me conter. Repetia mentalmente que ela só queria moedas de um centavo. Devia estar vermelho, quando o Pedro sussurrou ao meu ouvido: “Pergunta pra ela se caralho serve.” Explodimos em gargalhadas e foi a vez de ela ficar ruborizada. Pediu desculpas e disse que havia dito algo sujo em nossa língua. Eu disse que meu amigo é que era sujo, a pergunta dela tinha sido perfeita... Em outra ocasião, logo depois da minha chegada, fui com o Pedro ao local em que ele trabalhava. Era uma espécie de fast food, só que especializado em pasta. Ele me apresentou a dois colegas dele, jamaicanos. Quando vi, ele tinha sumido e me deixado sozinho com os caras. Depois voltou e a gente foi tomar uma num bar mexicano que havia no mall em que ele e a irmã dele, Shirley, trabalhavam. Anos depois, já de volta a Brasília, ele me confessou que me deixou sozinho pra eles testarem meu inglês. E, rindo, me disse que eu passara no teste! Esse cara é seu amigo mesmo, hein? Outra vez, depois de uma volta pela cidade, passei pelo mall para encontrá-lo e voltarmos juntos de ônibus. Como estava com fome, pedi que me sugerisse algo pra comer. Com todo o bendito senso de humor que lhe é peculiar, ele me trouxe um prato fantástico, com uma coca. Agradeci e arranjei uma mesa. 43


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Depois de matar minha sede com uns bons goles do refrigerante, misturei bem o molho, enrolei bem o espaguete e mandei pra dentro. Se estivéssemos em um desenho animado, possivelmente minha cara deveria ter ficado totalmente vermelha, com fumaça saindo pelos ouvidos e pelas narinas. Abracei o copo como um perdido no deserto mergulha de cara em um oásis. Podia sentir o líquido borbulhando pelo meu esôfago e transformando meu estômago em algo parecido com um banho turco. Só então olhei para trás e, é óbvio, o Pedro se dobrava de rir de mim! Voltei lá e falei com ele que o próximo era por conta da casa e ele, chorando de rir, me trouxe um espaguete ao molho branco que desceu sem problemas. Que há de errado com o rapaz? Ele jogaria perfeitamente no meu time! Exatamente. Acho que é por isso que a gente se dá tão bem assim. Mas, em termos de trapalhadas, nada supera a que aconteceu no meu aniversário. Fomos a um parque temático do Hanna Barbera chamado Kings Dominion. Na hora do almoço, entramos em uma tenda enorme, onde acontecia uma apresentação. Metade do grupo foi achar uma mesa, e nós fomos para a fila da comida. Logo depois que cheguei a Rockville, o Pedro me deu um toque para eu usar só minha carteira de identidade brasileira. Andar com o passaporte seria perigoso, caso o perdesse estaria em apuros. O único contratempo de se usar a carteira de identidade brasileira era que você precisava explicar que a data de expedição não era a expiring date, ou data de vencimento. Ah, imagino... Nesse dia, o problema não teve nada a ver com a data de expedição. Estávamos na fila e ele disse para eu fazer o pedido. Entre outras coisas, seriam três cervejas extra large. Como era de se esperar, a atendente pediu minha id. Mostrei-lhe a identidade e antecipei-me em explicar que o dia vinha antes do mês. Ela olhou para a carteira como uma criança olha para um quebra-cabeça e começou a perguntar: “Então seu aniversário é no dia... 21?” Sim. “... De junho?” Isso. Foi aí que seus olhos se arregalaram e ela abriu um sorriso, dizendo com uma voz esganiçada: “E você está fazendo 21 anos hoje!” É, disse, já meio sem graça. Ela, então, completou: “É a primeira vez que você compra cerveja!” E o Pedro, em bom português: “Tadinha dela!” Controlei-me pra não explodir de rir na cara da pobre. Concordei e saí. Passamos o resto do dia rindo da mulher. Bastava eu olhar pra ele e nós começávamos a rir. Coitadinha da gringa! Aí está uma das grandes maravilhas de estar em terra estranha!

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com O que a gente brincava com a cara do povo era um fenômeno. Havia as salvavidas da piscina do condomínio. A conclusão à qual chegamos é de que elas nos achavam meio suspeitos, pois certas coisas que os locais faziam nós não podíamos fazer. Por exemplo, colocar a mão no trampolim, estando dentro da piscina, era o suficiente para ouvir o apito tocar e receber o pedido para não tocar o trampolim. Um dia daqueles inspirados, descemos para nos refrescar. Estávamos sós na piscina, com a salva-vidas sentada em sua cadeira, pegando uma cor. A maneira como estava sentada é que não se poderia chamar de apropriada para uma dama, digamos: uma perna sobre a mesa e a outra sobre uma cadeira. Nisso, o Pedro começa o que seria uma lista: “Vaca!” E eu respondia: “Piranha!” E foi daí pra baixo, cada item da lista seguido da devida gargalhada. Até ela dizer que precisávamos sair para o controle de pH da água. Tinha salva-vidas, controle de pH! Que vida dura, hein? Minha vida lá não teve nada de dura! Era um condomínio excelente. Havia lavanderia, piscina, o minimercado, um lago, e incluía não só os prédios de apartamentos, mas uma série de casas e uma boa área verde, onde se viam esquilos, os pequenos chipmunks, tartarugas e sapos no pequeno riacho que cruzávamos para chegar ao mercado. Uma vez, ao cruzarmos a ponte de madeira sobre o córrego, havia um sapão lá em baixo. O Pedro disse que estava há dois anos lá e não vira um sapo americano pular. Pegou umas pedrinhas e começou a jogá-las, despretensiosamente. Errou todas. Levantou-se, já impaciente, e pegou uma pedra um pouco maior. Sem esperança nenhuma de acertar o anuro, praticamente soltou a pedra em direção ao córrego. Bingo! Acertou bem no meio do bicho que caiu dentro d’água. Ficamos os dois em cima da ponte procurando o cadáver. Já que não o encontramos, é porque o bicho sobrevivera. Tanto que quando o vimos novamente o apelidamos de Scarface e o outro, ainda maior, de Big Boss. Tardes de verão e nada pra fazer!!! Nada a fazer e tudo a beber, pelo visto. Olhando deste prisma, é verdade. As noites eram animadas, com muita conversa, cerveja ou uísque – às vezes os dois – e alguns jogos. Lembro-me de um jogo de dados, que envolvia somas que – lá pelas altas horas – se tornavam cada vez mais difíceis. Por exemplo, quanto é mesmo 1+1+1+1+1? Ficávamos os dois olhando para os dados, em silêncio, fazendo esforço comparado ao de Einstein, para resolver esse desafio da álgebra. E havia o Uno, um jogo de cartas, responsável por horas de muita diversão e impropérios. Sem falar que, no caminho do quarto para o banheiro ou cozinha, havia um taco que rangia. Eu marquei a madeira para não fazer barulho no meio da noite, mas

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com não havia como lembrar qual era a certa e qual era a errada. Resultado: sempre pisava na porcaria da tábua errada e me xingava. E o dinheiro pra tanta farra, de onde vinha? Você só tinha 500 dólares e gastou 70 logo de cara com o Brother Jim! E a grana estava acabando mesmo. O tempo do seu Moreira na Comissão da Aeronáutica estava chegando ao fim, e eles começaram a se preparar para a volta. A maioria da família voltaria na frente, restando apenas ele e a Shirley, que viriam juntos depois. Com isso, chegava a hora de dizer um até logo e, enquanto ainda me restava algum dinheiro, cumprir a última etapa de meu sonho: conhecer Nova Iorque e visitar o Strawberry Fields, no Central Park.

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Capítulo 6 Nova Iorque é um lugar caro. Você tinha onde ficar? Ou ficou em algum tipo de hotel barato? Entrei em contato com meu médico, Dr. Kúnio Suzuki, que estava fazendo um estágio no Columbia Hospital, e perguntei-lhe da possibilidade de me hospedar por uns quatro dias. Ele concordou e me passou seu endereço e como deveria proceder para chegar até lá. Ele morava do outro lado do rio, em Nova Jersey. Levamos o Pedro, a Isabela, D. Miriam e o Jonatas ao aeroporto, e retornamos para o apartamento que parecia cada vez mais sem vida. No outro dia, peguei o metrô na estação Grosvenor pela última vez em direção a Washington-DC, mais especificamente, para a estação da Greyhound no centro. Comprei meu bilhete e embarquei, olhando para as ruas da cidade que me cativara. Mas a estrada é necessária. Sentado na primeira cadeira, saboreei toda a viagem, com pensamentos e melodias em minha mente. Ao final da tarde, chegamos à Big Apple, com seu horizonte inconfundível, uma bela e hipnotizadora seqüência de arranha-céus. Foi mais fácil dessa vez? Menos assustador, diria. Sabia que era preciso cruzar a ponte George Washington, Uptown, em um ônibus da New Jersey Transit Authority e seguir até Englewood, local onde meu anfitrião morava com sua família: a esposa, Ana Márcia (prima da minha mãe), um casal de filhos e a mãe do Dr. Suzuki. Você os conhecia daqui ou de Fortaleza? Daqui mesmo. E dessa vez não haveria ninguém dizendo que eu era o cara que tinha achado uma agulha num palheiro. Englewood é um local fantástico para se viver. Excelente qualidade de vida. Tudo isso a uma viagem de ônibus com ar condicionado, partindo da ilha de Manhattan. Com a experiência de mapas que você acumulou em Washington ficou mais fácil decifrar Nova Iorque? Embora sejam cidades com estruturas diferentes, assim como Brasília e Rio de Janeiro, tenho que reconhecer que ficou menos trabalhoso. Adicione-se a isso minha maior autoconfiança. Sem deixar de lembrar que, com o dinheiro acabando, era necessário ser preciso.

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Você e seus trocadilhos! Meu destino na manhã seguinte era o Edifício Dakota, mas antes teria que conseguir uns mapas da cidade para poder me localizar e me movimentar. Saí com o Dr. Suzuki e a Ana Márcia de ônibus até a estação do metrô. De lá, eles foram trabalhar e eu desci até o Columbus Circle e fui ao New York City Bureau of Conventions and Visitors. Mapas em mãos, comecei a caminhar pela Central Park West no sentido da 72ª Avenida. A cada esquina sentia meu coração bater mais forte. Parei em frente ao prédio e vi a entrada. Havia uma guarita e um segurança. Fui até ele e perguntei se trabalhava no prédio na época em que John Lennon fora assassinado. Ele disse que sim e apontou para o local onde o assassino estava, onde se encontraram e onde John recebeu os tiros. Disse que se arrastou para dentro do prédio e de lá foi resgatado pela polícia, mas já chegou morto ao hospital. A história eu conhecia, mas nunca contada em frente ao local onde aconteceu. Agradeci, tirei umas fotos e atravessei a avenida, procurando um banco para me sentar. O sol brilhava naquela bela manhã de verão. O vento balançava a bandeira americana que há no topo do prédio. Se conheço meu amigo, uma hora dessas as lágrimas estavam prontas pra rolar. Era preciso achar abrigo urgente. Sentei num banco daqueles e comecei a falar: Pois é, John, demorou, mas estou aqui. Sempre buscando algo, sempre buscando respostas, com um estoque de perguntas para acrescentar às respostas que a vida vai me apresentando. Agradeço a Deus por tudo e, se puder, manda um sinal de que está tudo bem, falou? Distraído, saquei a câmera e tirei mais uma foto da fachada lateral do Dakota; de frente para o sol, de frente para o Central Park. Para minha surpresa, ao revelar meus últimos rolos de filme, já de volta ao Brasil, naquela foto havia a sombra de um dos milhares de pombos que habitam o parque. Mesmo assim, o rapaz do foto quis saber quem havia soltado o pombo para que eu tirasse a foto. Hah! E quem foi? Brincadeira... E o Central Park, que lugar maravilhoso, hein? Fui andando pelo coração verde de Manhattan, como quem anda em um sonho. Na verdade, caminhava pela parte que a prefeitura da cidade doou a Yoko Ono para que ela criasse uma homenagem do cidadão que adotara o Central Park como o jardim de sua casa. Esse tributo recebeu o nome de uma famosa canção dos Beatles, Strawberry Fields, originalmente, um orfanato em Liverpool. Já vi uma foto. Pareceu-me um local agradável. 48


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com É um triângulo de bancos com um mosaico em preto e branco, com a palavra “Imagine” no centro. Em torno desses bancos, espécies de vegetação vindas das mais diversas partes do mundo. Na época da construção, ela solicitou que as pessoas que quisessem homenagear o John enviassem sementes, pois pretendia fazer um jardim especial para ele. Sentei-me ao sol, por alguns instantes, sentindo a realidade a minha volta. Havia um senhor que lia seu jornal, uma babá que cuidava de uma criança em seus primeiros passos, uma velhinha com sua acompanhante e um casal. De lá, podia ver o Dakota, os carros na movimentada Central Park West, os esquilos passeando entre as pessoas e pulando de volta para as árvores. Além de pombos, muitos pombos. Abri meu mapa e busquei meu destino. Bethesda Fountain parecia algo interessante de se ver. Ficou ainda mais interessante quando descobri que lá tinham sido filmadas cenas de um dos filmes que marcaram minha adolescência: “Hair”, do Milos Forman. Cenas inteiras do filme ao qual assisti oito vezes no cinema vinham à minha cabeça. As aventuras do cowboy de Oklahoma que desembarca em Nova Iorque em plena guerra do Vietnam e vem conhecer o Central Park antes de se alistar. Aqui, ele conhece uma pequena tribo de hippies que o leva a uma aventura muito interessante e engraçada. Um filme que tinha como temas centrais o protesto contra a guerra, o movimento hippie e a amizade. Themer, oito vezes no cinema!? Como alguém consegue assistir ao mesmo filme oito vezes? E tenho o VHS em casa. No total, entre cinema e casa, já vi mais de vinte vezes. Você é normal? Graças a Deus, não! Caso contrário, não seríamos tão amigos! Mas eu nunca veria um filme tantas vezes! No entanto, já deve ter lido um livro mais de uma vez, certo? Já. Está no caminho! Ainda há tempo. Um dia você chega lá! Tá. Continue sua “viagem”. 49


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Passei pelo anfiteatro onde o grupo de hippies acorda depois da primeira noite de farra do cowboy e fui em direção ao Sheep Meadow. Uma vasta área verde onde os locais e turistas como eu curtem o sol de verão. Deitados ou sentados, passeando de bicicleta pelas avenidas, calçadas e caminhos do Central Park, os habitantes da megalópole têm momentos de escape do estresse das suas rotinas. Fui até um estande e comprei uma cerveja. Decidi me juntar a eles e sentir aquele momento tão tranqüilo. Sentei-me ao sol, com o copo na sombra. Notei que um rapaz que estava no estande agora jogava Frisbee perto de onde eu sentara. Momentos depois ele se aproximou e me perguntou se eu queria fumo. Agradeci e ele saiu. Voltou e me ofereceu pó. Agradeci, dessa vez com um sorriso, e ele se foi. Retornou e me perguntou o que eu queria, qual era minha droga de escolha. Peguei meu copo e apontei para a cerveja e disse que já havia optado pelo álcool. Finalmente, ele se foi e não mais me importunou. O rapaz foi tão gentil! Se fosse eu, teria aceitado em nome da hospitalidade! Essa hospitalidade estou dispensando. Lembro-me de ver aviões e helicópteros cruzando o céu como nunca vira antes. Tentei imaginar o trabalho dos controladores de tráfego aéreo da área. Devem ser todos loucos; e sãos em sua loucura. O ruído da grande cidade estava sempre presente, como o zumbido nos ouvidos que são expostos a um som muito alto. Zumbido no ouvido, aviões e helicópteros... humm, não sei, não, mas acho que você aceitou a hospitalidade e não está querendo confessar. Se até o Bill Clinton admitiu que fumou sem tragar... Engraçado, mas não, eu não aceitei o bagulho que ele me ofereceu. Desci a 5ª Avenida em direção ao Empire State. Entrei e vi duas monstruosas filas: uma para subir ao mirante, a outra para entrar no museu do Guiness Book of Records. Desisti. Caminhei pela Avenida das Américas em direção ao Lincoln Center e de lá tomei o metrô de volta para o Harlem, pegando o ônibus para Englewood. Depois de um dia como esse, dormi feito uma criança. Ah, essa gente é muito sem graça. Fazem filas enormes para ver as coisas mais estúpidas. Não tenho a mínima paciência para filas. Acho que ninguém tem. Ou você conhece alguém que goste? Tem um povo que é masoquista e gosta desse tipo de coisa, sim! Mas voltemos à viagem. A manhã seguinte trouxe outro destino: Estátua da Liberdade. Da estação em que o ônibus parou, peguei um metrô que me levou 50


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com até a Rua 4, Downtown. De lá, fui caminhando na direção do Battery Park, de onde saem os barcos para a estátua. Caminhando junto a executivos apressados rumo a seus escritórios, sentia-me um privilegiado de estar de férias, solto e... por um instante, paralisado. Meus olhos mesmerizados pela grandiosidade do World Trade Center. Admito que houve um momento de silêncio quando vi de perto a imponência das torres. Hoje, sem medo algum de ser ridículo, confesso que não acreditei quando liguei a TV e vi uma das torres em chamas. Ainda incrédulo, assisti ao segundo avião se chocar com a outra torre. E, instintivamente, ajoelhei-me na cama para ver mais de perto quando as duas desmoronaram. Eram a presença dominante para quem olhava para Manhattan, seja da ilha da Estátua da Liberdade, seja de qualquer ângulo. Eram um dos mais conhecidos símbolos da cidade e do país, para não dizer do império que representam. Enfim, essa foi a imagem que guardei das Torres Gêmeas. Themer, Themer, Themer... Ao desembarcar de volta, no píer do Battery Park, dei uma olhada no mapa e vi o South Street Seaport. Passei por lá e pela entrada da ponte do Brooklyn. Foi daí que vi uma rua larga que seguia em direção ao Empire State, que era um ponto de referência excelente, já que poderia de lá pegar o metrô de volta pra casa. O nome da rua era Bowery. A caminhada foi boa, às vezes pela calçada, às vezes pela pista. Pela pista? Simples. A Bowery cruza Chinatown, Little Italy, passa ao largo do Soho e entre o Greenwich Village e o East Village. Ou seja, de vez em quando havia tanta gente e estandes de vendedores que o melhor a fazer era usar a pista. Outras vezes eram os “armários” que se juntavam para uma animada conversa bem no meio da calçada. Seus olhares nada amigáveis para mim e “muito amigáveis” para a câmera que eu carregava. Tive esse problema com uma pochette, o cara gostou dela mais que eu e a levou. Ainda bem que tinha pouca coisa importante dentro. Pois é... Finalmente, passei pelo Empire State subindo a Avenida das Américas até o Columbus Circle, onde peguei o trem em direção a Uptown.

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Capítulo 7 Afinal de contas, quantos dias você ficou nos Estados Unidos? Hoje, é fácil olhar para trás e ver que, se eu tivesse permanecido em Bent Creek ou em Bristol, com o Tom e sua família, teria melhorado meu inglês mais do que consegui. Além disso, teria poupado mais a grana que levei. Ao optar por ir para Rockville, com o seu Moreira e Pedro e o resto da galera de lá, tive que abrir mão da possibilidade de ficar mais que dois meses. Com dificuldade de se conseguir algum tipo de emprego, aliada a minha vontade de dar aula de inglês no Brasil, minha opção se fez clara: curtir o máximo de tempo possível, aprender o máximo e, quando a grana estivesse acabando, usar minha passagem de volta pra casa. Foram quase dois meses. Mas, como você ia dizendo, ainda restavam alguns dólares a serem gastos... É. Meus planos incluíam mais um dia livre em Nova Iorque e o retorno no dia seguinte. Só que, quando cheguei em casa, o Dr. Suzuki me avisou da chegada de um parente dele do Brasil. Conseqüentemente, teria que antecipar minha data de retorno em um dia. O que me deixava com mais uma manhã e começo de tarde para bater perna. Com a parte burocrática resolvida, ou seja, a data da passagem trocada, desci para minha despedida da Big Apple. Destino: Central Park. Mais uma caminhada pela “Esmeralda”, com um turbilhão em minha cabeça. Estava chegando ao fim minha aventura na América; estava chegando a hora de voltar e encarar meu futuro; será que estava preparado para meus desafios?” Decidi fechar minha despedida no Strawberry Fields. Sentado lá, como no primeiro dia, com o mosaico escrito “Imagine” à minha frente e o Dakota ao fundo. Meus pensamentos se voltaram para um grande agradecimento por todos que me ajudaram a realizar este sonho. Era hora de ir para casa, buscar a mala e pegar o JKF Express na estação da 4th Street. Hora de encarar o metrô de Nova Iorque com mala e mochila. Hora de esperar na estação com um maluco berrando “money” na cara das pessoas. Hora de um medo final de assalto, antes de embarcar no trem expresso que liga a ilha ao aeroporto internacional. Check-in lotado, alta temporada, loucura total. Nada como chegar bem cedo. Sempre que posso, chego pelo menos duas horas antes ao aeroporto. Faço o que tenho que fazer com calma e depois vou curtir. Nesse caso, a curtição incluía uma missão: comprar presentes para meus pais. 52


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Claro, e como esquecer deles? Não queria lembranças, queria presentes mesmo. Comprei uma caneta Cross ouro para meu pai. Para ter uma idéia do que essa caneta representa para ele, só é usada no que chama de ocasiões especiais. Para minha mãe, um vidro de Channel 5, que ainda está quase intacto. Não que ela não tenha gostado, muito pelo contrário. O vôo de volta não teve a carga extra de ansiedade, apenas uma leve expectativa de como seria a chegada e o começo de uma estratégia para conseguir o sonhado emprego. Chegamos ao Galeão em dia encoberto. Sentia o Jumbo da Pan Am 202 descendo, mas tudo que via eram nuvens. De repente, olhei para o corredor e senti os trens de pouso rolarem pela pista. Os flapes e reversos faziam seu trabalho e nós, passageiros, aplaudíamos tudo. Foi um pouso excelente. Mais tarde, já em Brasília, conversando com o Magno, ele me perguntou a que horas tinha chegado. Bingo! O 202 foi o primeiro avião que conseguira “colocar no chão” numa manhã de Galeão fechado e dezenas de aeronaves orbitando à espera de uma chance de pousar. Por falar em pousar, está na hora de eu ir decolando. O sol já se pôs e preciso ir andando para casa. Você ainda está morando aqui perto? No mesmo lugar. E você, soube que se mudou, é verdade? Sim. Por que não marcamos para você conhecer minha kit? A gente podia conversar sobre a sua viagem dessa vez. Pode ser. Quando? Que tal sexta-feira, final de tarde? Preciso passar lá ou você prefere ir andando? Só preciso do endereço. Agradeço a carona na volta. Com certeza. Toma aqui. Atrás tem um mapinha, mas é só seguir reto aqui. Não tem erro. A gente se vê na sexta, então. Falou. Um abraço. Valeu, Mike.

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com E saímos, cada um em sua direção. O céu ainda azulado, com nuvens arroxeadas pelo sol poente. Cores que só o cerrado revelam. Talvez essa seja uma das razões para o Eremita gostar tanto daquele lugar. Não há nada de especial. Um caminho que termina numa cerca protetora da minirepresa que divide os dois “andares” do lago do parque da cidade. Com uma pequena árvore para amenizar o calor do verão, passarinhos, ratos e corujas ao redor. Um ou outro transeunte, inevitavelmente curioso, olhava aquela figura que destoava da multidão. Às vezes, eram os tripulantes dos pedalinhos que se aproximavam da represa e sua queda d’água. Quando viam aquele cara de pele queimada e cabelos quase brancos de tão louro, começavam a olhar como quem admira um bicho diferente no jardim zoológico. Uma última olhada para trás e o vi, passando entre a galera da caminhada de fim de tarde. Todos, sem exceção, giravam e olhavam para o gringo, para depois seguirem em suas buscas pelo físico perfeito. Grande figura!

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Parte 2 “Se você entrasse aqui e anunciasse que tinha feito um acordo – com Deus, Alá, Buda, Cristo, Krishna, Bill Gates, não importa – no qual os dez anos decorridos desde meu diagnóstico desaparecessem num passe de mágica; e fossem trocados por mais dez anos de vida como a pessoa que era antes, sem um momento sequer de hesitação, eu diria ‘não, muito obrigado’.” Michael J. Fox – ator. Em seu livro “Lucky Man, a Memoir” (Hyperion – 2002).

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Capítulo 1 Acordara ao som da sinfonia da construção. Operários que chegavam para o trabalho conversando animadamente. Naquela sexta-feira, para minha total surpresa, um deles cantou “Imédine óu de pipou” e continuou a assoviar a melodia que me colocara no caminho que hoje trilho. Rendi-me. Tinha que me levantar. Depois dessa! Não adiantaria continuar a brigar por meu sono. Há sempre um preço a pagar quando realizamos algo grande em nossas vidas. Ao decidir me mudar para minha kit – sendo ela no segundo de um grupo de quatro prédios – sabia que teria que conviver com o barulho de obras. E assim tem sido. Como se diz por aí, a gente se acostuma. Preparei uma xícara de café forte e abri a janela para me deparar com um céu belo e um sol convidativo para uma caminhada. Enquanto degustava meu café, observava os peões trabalhando. Um deles olhou em minha direção e eu o saudei com um erguer de xícara. Ele respondeu tocando a aba de seu capacete em um discreto cumprimento. Somos todos parte de uma grande engrenagem. Temos que compreender isso. Tantas pessoas já passaram pela Terra e nos disseram, em diversas línguas, palavras que, se traduzidas, se resumiriam nisso. Meu pai sempre nos disse: “Tire o lixeiro da sociedade; em uma semana, os hospitais estarão lotados e estaremos caminhando a passos largos para o caos.” Sábias palavras. Naquele momento, não sabia se o peão que me cumprimentara era o mesmo que cantara “Imagine” a sua maneira. Mas, para mim, era como se fosse. Naquele trocar de silenciosos “olás”, fomos, em um segundo, o que deveríamos ser o tempo todo: iguais e cientes da importância de cada um para o bem comum. Com a “viagem” do café terminada, dei uma geral na kit, escutei música e assisti a um filme. Banho tomado, devidamente alimentado, tirei uma soneca e acordei com a campainha. O tradicional “quem é” foi respondido não por uma palavra, antes disso, um grunhido. Sim, era o Mike. Sua maneira “mau humorada” de ser gerou uma série de mau entendidos e algumas inimizades. Nada que o fizesse rever seus conceitos. Estava satisfeito com os que o entendiam e não pediam que mudasse, que se tornasse mais “sociável”.

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Abri a porta com o maior sorriso que alguém recém-saído da cama pode produzir. Ao ver minha cara, não resistiu e sorriu. Escancarei a porta como quem diz “entre, a casa é sua!” E era... Então, aqui é o novo esconderijo do Coruja? Exato. Só um segundo pra eu lavar o rosto. Não precisa exagerar. Nem vá pensando que, porque aceitei seu convite para visitar sua kit, estou querendo – você sabe o que – com você... Antes que eu me esqueça, vai... Vê se arranja um CD pra gente ouvir. Opa, escolher CD... Não sou bom nisso. Gosto mais desta estante aqui... Livros... Como gostaria de ter um espaço assim! Poder organizar minhas coisas de uma outra forma que não fosse em caixas. Se achar algo do seu interesse, pode levar emprestado. Só saiba do meu ciúme. Discos e livros são coisas que não gosto de emprestar. Raras são as exceções. Você está entre elas, pois sei de seu respeito pelos livros. Aliás, sua vida daria um belo livro, meu amigo. Já pensou nisso? Nah, nada de interessante. Como não? Só o lance da viagem de volta para os Estados Unidos de trem e ônibus! Já li livros que foram escritos sobre aventuras muito menos ricas do que a sua. Por falar nisso, está aí uma coisa que precisamos esclarecer. Naquele dia, só eu falei. Você ouviu pacientemente. Hoje, sou eu que quero saber detalhes de sua viagem. Como foi subir todo esse caminho? Uma viagem como outra qualquer. Não há nada a dizer. Acho que viajo pela viagem, não para contar o que senti. Não gosto de falar das coisas que sinto e não acho que o que sinto seja digno de nota. Mas, Michael, se o que você fez não for relevante, pense nas pessoas que vão se perguntar: se esse gringo magro e esquisito conseguiu isso tudo, o que será que eu posso conseguir? Themer, você é muito romântico! A vida real é diferente. Ninguém liga pra ninguém! Cada um vive em sua pequena bolha, tentando parecer seguro de si, ninguém quer se expor... Quem sou eu? Eu sou um nada! Sou um cara que ouviu gritos de agonia no meio da madrugada; sabia que eram gritos de morte; e aí, o que foi que eu fiz? Fiquei paralisado pelo medo, em meu quarto de 57


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com pensão. Depois, no outro dia, vi no jornal que tinha sido aquele índio Galdino. Imagine só se eu saio? Com essa cara? Era capaz de acharem que tinha sido eu! Não, não... Prefiro a obscuridade. E todo aquele papo sobre a mediocridade em que vivemos? Exato. Usou o verbo certo: vivemos, e pronto. O que você fez não é medíocre. Não é todo o mundo que resolve voltar pra casa de ônibus e trem, ao invés de fazê-lo da forma “normal”. Considerando-se que essa “casa” é nos Estados Unidos. Isso é extraordinário, na essência da palavra. Permita-me discordar. Não há nada de extraordinário em se entrar em livrarias e consultar guias de viagem sem pagar por eles. Ter que inventar desculpas para vendedores que estão fazendo seu trabalho. Nem há nada de especial em cruzar parte da América olhando a cara das pessoas. Você que foi ao Peru sabe que somos todos mais ou menos iguais. É, olhando pra você, daqui, vejo uma extrema semelhança entre você e – é claro, como não desconfiei disso antes: Viracocha! – o deus do povo quíchua, criador de todas as coisas! Com esses cabelos de sol, quase brancos de tão louros, nem que você queira não há como passar despercebido na multidão. Não aqui nesta terra de índios que é a América do Sul! Não me provoca. Você sabe do que estou falando. As cidades grandes têm problemas semelhantes aqui, no Peru, na Colômbia, no México. O interior desses países é semelhante ao interior do Brasil. Pessoas em busca do sustento para continuar suas vidas, chegar ao fim do dia e se sentar calmamente, contando e recontando histórias; para se recolher com o sol, e com ele sair para continuar suas batalhas diárias. O que há de extraordinário nisso? Se você acha isso lúdico, vá perguntar ao agricultor com seus calos o que ele pensa de sua vida! Eis o extraordinário. A chance de ver os calos nas mãos dele; a possibilidade de perguntar-lhe o que pensa de sua vida; o risco que se corre em receber uma resposta fora do “padrão”. OK. E você, quando foi ao Peru, viu os calos nas mãos do agricultor? Não, mas vi as cicatrizes que os conquistadores deixaram. Vi um povo desnorteado; sem uma religiosidade original. As tradições e raízes do povo quíchua têm sido deturpadas pelo sincretismo, o que não impede o povo de lutar com os meios de que dispõe para não abandoná-las por inteiro. 58


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Nossa, sem querer mudar de assunto, sua estante é bem eclética! Tem de tudo um pouco... A maioria é livro de referência para tradução. Tem alguns autores de que gosto, livros que li e me marcaram... E muita coisa sobre, digamos, religião. Por nossas conversas, notara em você um certo – não gosto dessa palavra – misticismo... Procuro ler um pouco de tudo. Tem outros livros que tive que deixar na casa de meus pais. Não caberia tudo aqui. Ou melhor, até caberia, eu é que teria que dormir na escada. Mas o que é que tudo isso tem a ver com sua viagem? Ah, Themer, você me conhece. Não gosto de falar sobre isso. Foi uma viagem interessante, que adorei fazer. Se você me perguntar, sim, eu a faria de novo hoje. Portanto, é algo que está escrito na minha vida e pronto. Não merece nota. Mas gostaria muito de entender o que fez você ler tudo isso. Bem, isso pede algo para molhar a garganta. Vai um suco aí? Não, obrigado. Não tem mate de coca? Já tive. Quando fui lá, trouxe uma caixa com cem saquinhos de chá de coca. Depois, ganhei uma ou duas caixas pequenas de amigos. Adorei o mate de coca. O que vai ser então? Ah, você sabe, um refrigerante qualquer ou suco! Então vamos lá. Em abril de 1990, Paul McCartney faria um show no Maracanã. Combinei com um amigo meu, Alvâni, que o veríamos juntos. Ele também adorava os Beatles. Seria maravilhoso! Por que seria? Porque no dia em que compraria as passagens, pedi o carro da minha irmã emprestado para ir ao aeroporto. Só que nunca entrei no carro. Graças a Deus! Nunca entrou no carro? Cerca de meia hora depois que saí, retornei para casa ainda confuso. Estivera fora do ar por alguns minutos, retornara, mas continuara caminhando, tentando me achar e me perdendo cada vez mais. Nessa época, morávamos no bloco R da 59


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com 416 Sul. Pois eu me lembro de subir a comercial da 415/414 ainda grogue. Lembrei do caminho que fazia para ir do Colégio Marista para minha casa, na 214. Segui para lá e lembro-me de ter perguntado para uma ou duas pessoas se me conheciam. Cheguei a mostrar minha identidade, mas de nada adiantou. Foi na volta que comecei a melhorar e me localizar, à medida que caminhava no rumo de casa. Uma vez você mencionou um certo medicamento que tomava. Tem algo a ver com isso? Tudo. Lembra-se do Dr. Suzuki, meu anfitrião em Nova Iorque? Pois é, era tempo de vê-lo de novo. Eu tivera mais uma ausência. As outras duas aconteceram em 1987 e 1988. Foi assim que o conheci, em sua clínica de neurologia, em setembro de 87. Depois de uma bateria de exames, recebi um diagnóstico: sofria de ausências e deveria tomar um remédio para mantê-las sob controle. Para mim, foi um período de confusão mental, mas, para meus pais, foi mais que isso. A julgar pelos exames pedidos, eles sabiam que uma das possíveis causas da ausência poderia ser um tumor no cérebro. Nunca me disseram isso, a não ser muito tempo depois. Assim, para eles, o diagnóstico foi uma bênção completa. Para mim, nem tanto. Por que não? Simples. Com a medicação, não poderia beber. Mas ... Localizando-nos no tempo, estava ainda fazendo o terceiro ano do que é hoje o ensino médio. E o que se seguiu foi uma seqüência de eletroencefalogramas de acompanhamento, exames de sangue para medir a dosagem terapêutica da droga, juntamente com minha preparação para prestar vestibular. Uma dose cavalar de causadores de ansiedade e eu privado de minha “droga de escolha”. Toda vez que encontrava com meu médico perguntava se já podia beber. Ele me dizia que, com o tempo, se houvesse uma manutenção do quadro estável, ele me liberaria para tomar uma ou outra, muito de leve, para não atrapalhar o tratamento. Mas, Themer, é uma questão de usar a razão! Só que a minha estava trancada em um calabouço. Quando o vestibular veio, ele já tinha me liberado para – de vez em quando – tomar uma. Férias em Fortaleza: sol, calor, praia, que tentação! Uma ou outra... mas tudo sob controle! Voltei e continuei o tratamento e, ocasionalmente... Bem, ninguém é de ferro. 60


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Até que veio a carta do Thomas e todo o processo que deu na realização daquele velho sonho. Fui ao consultório do Dr. Suzuki antes de ele viajar e combinamos de nos encontrar lá. Ele me lembrou de levar uma receita da medicação, além de caixas suficientes para o tempo que pretendia permanecer fora, pois seria complicado conseguir o remédio nos Estados Unidos. E, pelo que conversamos no parque, você ignorou solenemente as ordens médicas! É por isso que você lia tanto, pra se justificar? Não. É que sempre fui muito curioso no que diz respeito às chamadas ciências ocultas. Quando aconteceu a primeira ausência, não faltaram os que me garantiam se tratar de um fenômeno paranormal. Aquilo caía como uma luva para mim, já que “explicava” o que acontecera comigo e fazia com que me sentisse “diferente”. Por isso, antes de embarcar para os States, resolvi fazer meu mapa astral. Com certeza um dia chegaremos nos livros... Calma, rapaz. Eu chego lá. Infelizmente, não me lembro do nome do cara que fez meu mapa, mas foi o mais competente que encontrei entre os muitos que visitei. Justamente o primeiro. Aquele que me disse coisas que até hoje guardo, deu sugestões e conselhos que até hoje são válidos. Aquele que menos se autopromoveu, apenas cumpriu sua obrigação de explicar o que era um mapa astral e a relação de seus símbolos para com a minha pessoa. Também nessa época, vi um estande localizado bem na frente do Conjunto Nacional. Ele me chamou atenção por ser sobre algo que tinha lido nas revistas Planeta que colecionei em minha adolescência: fotos Kirlian. Tive vontade de fazer uma foto da minha aura, mas minha mãe me convenceu a adiar isso para depois da minha volta. Consenti. No entanto, ainda em 87, voltei ao estande e tirei minha primeira foto. Ao buscar o resultado, vi que este vinha acompanhado de uma análise do que minha aura revelava: entre outras coisas, perdas de energia (estresse, desgastes diversos), presença de energia intrusa (energia essa que poderia estar presente, instalada ou dominante) e o item que mais me chamou atenção, paranormalidade média, com a sugestão de trabalhar este potencial para um melhor equilíbrio das energias positivas e negativas. Aquilo me intrigou. Depois das referidas férias em Fortaleza, voltei ao estande, mas não mais o encontrei. Havia se mudado para a sede da espécie de instituto que tinha a kirliangrafia como base de sua pesquisa. Quando busquei o resultado de minha segunda foto, já me foi sugerido que comparecesse ao local outras vezes. Foi-me dado, como de resto a todos que faziam as fotos, uma lista de livros para me 61


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com informar melhor sobre as energias sutis que nos influenciavam tanto, bem como aquele assunto que me hipnotizava: a paranormalidade. Quando aceitei o convite para fazer atendimentos com o responsável pelo centro de pesquisas, ele me disse que uma das primeiras coisas que precisava fazer era parar de beber. Engraçado que, dessa vez, por conter o “oculto” que tanto me fascinava, foi muito mais fácil. Também tinha que fazer uma espécie de diário das coisas que aconteciam comigo e que julgasse de alguma relevância para meu processo de desenvolvimento espiritual. Esses relatórios eram lidos pelo pesquisador e a eles eram atribuídos pontos. Havia uma caneta vermelha com a qual ele ia marcando aquilo que julgava interessante. Na ânsia de acumular pontos, como se estivesse num jogo, comecei a lhe apresentar minhas poesias e meus escritos, que foram sendo analisados em busca de traços de paranormalidade. Outro procedimento inicial foi a gravação de uma fita cassete de relaxamento. Segundo ele, essa fita seria produzida para mim e somente eu poderia usá-la, sob pena de ela perder seu teor “mágico”. Opa! Sem querer interromper sua linha de raciocínio, posso saber, agora, do que tratava a fita? Um lado consistia de um exercício de relaxamento corporal e mental, e o segundo era uma seqüência de mantras que envolviam, salvo engano, saúde, dinheiro e paz. Esse exercício era para ser feito todos os dias. Qualquer alteração teria que ser registrada e levada para avaliação. Outra forma de se ir vendo o progresso era, obviamente, tirar fotos Kirlian. A título de curiosidade – para o bem do processo de pesquisa –, era preciso pagar pelas fotos, pela fita e pelos atendimentos de uma hora. É claro que, caso você não dispusesse de dinheiro temporariamente, tudo poderia ser acertado depois. E qual foi o efeito prático disso, além do financeiro? Bem, parei de beber, escrevia relatórios diários, fazia os relaxamentos religiosamente, comparecia a centros espíritas quando me pedia, tomava os banhos de descarrego com sal grosso, saía aspergindo água com sal grosso para limpar as impurezas da aura do meu lar... Perdão, desculpe-me pela insistência, eu disse efeitos práticos... Espera. Tudo que escrevia, mais o que ele anotava das conversas que tínhamos, era colocado em um envelope pardo e lacrado com uma fita durex vermelha. Ele me explicou que, um dia, eu sairia da faixa inicial para a intermediária, que 62


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com era azul. Cada vez mais eu “sentia” coisas, “via” coisas e os pontos iam se acumulando. E os atendimentos e fotos se sucedendo, sem que minha paranormalidade dissesse sequer um “alô, olha só como eu aumentei!” Saindo do trabalho, de ônibus, com meu cheque do salário no bolso, parti para mais um atendimento. Ao final, fizemos os cálculos do que devia em atendimentos e fotos e, arredondando, com um certo desconto especial, o cheque ficou. Na gaveta, pois o rapaz não gostava de tocar em dinheiro enquanto atendia. O seu cheque de pagamento do curso? Sim, meu cheque ficou. Meu trabalho de um mês como professor ficou naquela gaveta, em troca de minha busca por respostas. Convenhamos que, naquela época, não ganhava tanto assim. Uma luz se acendeu nesse dia. Acho que foi o dia em que um de meus pés voltou ao chão. Ah, já não era sem tempo! Olha só, quase me esqueço de uma coisa fundamental. Para que meu processo de crescimento espiritual se completasse, era preciso que me intoxicasse o menos possível. Para isso, logo depois que começamos os atendimentos, ele me disse que tudo que sentira – as ausências – eram fenômenos totalmente explicáveis sob a luz da nova ciência. Tudo não passara de uma manifestação de meu poder de mediunidade/paranormalidade que eu precisava aprender a dominar. Com nosso trabalho, não precisava tomar o remédio. Reagi a isso, mas deixei-me levar e comecei a reduzir a dosagem da medicação, por minha conta e risco, sem que meu médico ou meus pais soubessem disso. Comecei a entender seu comentário a respeito de sua razão estar em um calabouço. Pois é. Tudo ia bem, até que um dia o inevitável aconteceu. Estava assistindo à TV, sozinho na sala, com meus pais dormindo no quarto de nosso apartamento da 411 Sul. De repente, vi-me andando em círculos na minúscula sala-de-estar. Parei, sentei-me no sofá e disse para mim mesmo que precisava me acalmar. Respirei fundo. Senti um gosto de vômito. Isso me fez lembrar que havia vomitado em um lugar escuro. Saí procurando pelo apartamento em todos os lugares não iluminados e nada achei. Entrei no quarto dos meus pais e fui passando a mão pelo carpete, em busca do vômito. Quando voltei para a sala, vi a chave balançando na porta. “Foi lá na escada!” Ao acender a luz da escada, vi63


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com me debruçado no corrimão. O que vi na escada entre o segundo e o terceiro andar foi um líquido incolor, algo como uma poça de baba. Voltei para o apartamento ainda confuso, como é o normal nessas situações. E agora? O que fazer? Confessar que havia parado de tomar o remédio? Como foi acontecer isso comigo de novo? O que fiz para merecer isso?

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Capítulo 2 O que fez para merecer isso? Entregou-se de bandeja nas mãos do primeiro manipulador que passou na sua frente; que teve a arte de usar toda a informação que você lhe passava e se apresentar como o salvador que você tanto procurava. O que mais você quer? Tudo que tinha a fazer era aceitar isso e pronto. Isso é mais fácil falar do que fazer! OK. E o que foi que você fez? A ausência acontecera no sábado à noite. Saímos para o clube e todos passaram pela escada e nada viram. Para falar a verdade, o que sobrara da poça era só uma linha muito fina que marcava sua borda. Mas aquilo não saía da minha cabeça. Resolvi, então, partir para o que julguei ser a solução politicamente correta. Não poderia esconder que tinha tido outra ausência, mas não diria que havia parado com o remédio por sugestão do cara. A vergonha me impedia de fazê-lo. Segunda-feira, à tarde, estávamos de volta ao consultório do Dr. Suzuki, para quem contei a mesma versão apresentada em casa. Resultado: já que o remédio que você está tomando não está fazendo efeito, e a dosagem me parece boa, vamos adicionar um outro que deve dar conta do recado. Themer, sou seu amigo, mas não consigo entender seu comportamento. Isso foi de uma estupidez que não tem tamanho! Como pode alguém com seu nível de instrução ser levado a mentir e usar a vergonha como argumento? Você estava querendo proteger o pesquisador ou a si mesmo? Eu não sabia. Estava absolutamente fora do meu eixo. Totalmente desnorteado! E tudo isso que o doutor disse foi engolido calado. Minha tentativa frustrada de me livrar do remédio que tomava me levava agora a tomar mais um. Contei ao pesquisador o que me acontecera. Ele lamentou o fato. Mas insistiu que precisava continuar com meu trabalho. Marquei um atendimento para a sexta-feira. Ah, que lindo, você ainda voltou lá! Brilhante! E ele lamentou o fato. Ótimo! Continuar o trabalho? E você concordou? Em que mundo você vivia? Por quanto tempo ainda durou essa coisa toda? Não me lembro exatamente. Sei que, um dia, uma de suas assistentes me ligou e disse que haveria uma atividade especial e meu horário estava transferido para o dia seguinte. À noite, éramos esperados na casa dele. 65


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Peguei o carro de minha mãe emprestado e parti para lá. Ao chegar, fiquei sabendo que a atividade especial era uma visita ao terreiro da mãe do pesquisador. Como assim? Respeito todo e qualquer credo, crença, seita ou religião; bem como reafirmo meu direito de simpatizar com umas e não simpatizar com outras. Como estávamos em dois carros, olhei em volta e contei os presentes. Vi que caberíamos nos carros e perguntei sobre o pesquisador. Disseram-me que ele não iria. Feita a divisão, partimos para a casa de uma das assistentes, para que ela buscasse sua roupa de Pomba Gira. Sabe o que é? Já li sobre isso. É uma entidade, não é? Isso. Calado, dirigi até o local, esperei-a descer e fomos para o Lago Norte. Entramos num terreno escuro e paramos os carros. De lá, seguimos a pé, já escutando o som da percussão. Se não me engano, éramos eu de homem e umas sete mulheres. Hum, que falta de imaginação, meu amigo! Sério, rapaz. Na porta, homens de um lado, mulheres de outro. Entrei, senteime. Vi o ritual começar. Reconheci a mãe dele, que já vira uma vez no escritório do instituto. De repente, um senhor se aproximou de mim e me ofereceu meio copo de um líquido que reconheci: era cerveja. Recusei. Ele insistiu. Eu disse que não bebia. Ele me disse que era do santo. Pensei: Bem, se é do santo, pode... Bebi. Logo, outro se aproximou e me ofereceu um prato de comida. Recusei. Ele insistiu, disse que era do santo. Dessa vez, recusei e acrescentei que o santo deveria saber que, se eu comesse aquilo, iria vomitar no meio do terreiro. Ele, então, foi embora. Que grosseria espiritual a sua! Vai brincando! Nesse instante, vi as meninas se aproximarem da mãe do pesquisador e fazerem uma espécie de saudação. Ela disse algumas coisas que não ouvi, outras que não compreendi, mas algo ficou muito claro. Fosse quem fosse que estivesse falando, não tinha gostado nada do fato de o cara ter ficado em casa. Ela disse que ele pensava que podia abraçar o mundo com as pernas, ou coisa parecida. Com isso, preferi tomar um ar.

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Finalmente! Se fosse eu, não teria nem ido! Minha vontade era entrar no carro e sumir dali. Mas pensava nas meninas e, refazendo a matemática, sete, num carro só, ficaria difícil. Sentei-me num banco de madeira do lado de fora, bem na porta do local onde o ritual acontecia. Pouco tempo depois, elas saíram e se juntaram num canto, em torno da que trouxera seu traje. Do círculo, começaram a vir risos e gargalhadas. Eu via as meninas com batom e perfume nas mãos. Minutos depois, a menina vestida de Pomba Gira saiu do grupo e veio para o meu lado, levantando um lado de seu vestido e me encarando. Vesti um sorriso que fui buscar nos confins de minha paciência e não tirei os olhos de sua testa. Ouvi sua gargalhada, ela disse algo que não compreendi, então virou-se e voltou para o grupo que tudo observava. Depois de alguns instantes, ela pareceu ter voltado ao normal. Tirou a roupa que vestia e, não demorou muito, estávamos voltando para casa.

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Capítulo 3 Nada me lembro do regresso. Sei que as deixei em casa e voltei sozinho, dirigindo devagar pelas ruas vazias de Brasília. Quanto mais minha cabeça gira, mais devagar dirijo... Eu quero saber se você ainda ficou muito tempo com esse cara. Não. No dia seguinte, começo da tarde, se não me engano, chegamos ele e eu, quase simultaneamente, para o atendimento. Sentei-me, enquanto ele entrou no banheiro e de lá saiu com uma camisa, na verdade uma bata branca, a qual eu elogiara uma vez, dizendo que lhe caía muito bem. Ele me perguntou como tinha sido a atividade e eu disse que sua auxiliar já deveria ter contado o que acontecera. Poucos minutos depois, ainda nas anotações iniciais, ele começou a olhar para mim e sinalizar com os olhos para que eu prestasse atenção nos pêlos de seus braços. Estavam todos eriçados. Ulalá! Por você, Themer? Estou falando sério! Eu também! Ah, sim, com certeza... Ele, então, começou a escrever mais rápido. Às vezes, fechava os olhos e ia escrevendo, página após página. Isso durou alguns minutos, até que suspirou, balançou a cabeça, abriu e fechou os olhos e bebeu um gole d’água. Perguntou-me se sentira a energia presente. Confirmei. Disse-me que precisava ler o que escrevera, pois – segundo ele – não se lembrava do que havia escrito. Para encurtar a história, havia um elogio rasgado ao meu comportamento e à minha determinação no caminho espiritual. Além disso, a mensagem dizia que eu estava pronto para sair da fase inicial e ir para a fita azul. Ele me olhou e perguntou se eu estava feliz. Depois me perguntou se ouvira falar de uma entidade chamada Borboleta. Neguei. Adicionou que era um ser de muita luz e, se achava que merecia passar para a fita azul, ele consentiria; afinal, quem era ele para argumentar com a entidade? Se você permaneceu nesse lugar depois disso, fale-me agora, pois estou começando a duvidar de sua sanidade mental.

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Ainda permaneci lá até o final do meu tempo. Vi-o selar meu envelope com a fita azul. Voltei lá, quando muito, de passagem; mas nunca mais para um atendimento. E ele nunca quis saber por que você parou? Não. Dizem que, quando o Maharishi quis saber por que os Beatles queriam ir embora de seu local de oração, John Lennon foi o porta-voz do grupo. Ele, então, disse que se o homem era tão sábio como dizia ser, certamente deveria conhecer a razão. Na verdade, parece que o Maharishi queria “transcender” a Mia Farrow, que se juntara a eles nessa aventura espiritual. Que lições você tirou disso tudo? Muitas, com certeza. Nunca lamentar o dinheiro “perdido”. Lembrar-se dele como um dos preços que paguei na busca pelo “oculto”. Não o mais alto. Jamais esquecer de ter um propósito na vida. Quando não se tem uma boa noção da direção a seguir, qualquer um pode tirar você de seu caminho. Acima de tudo, não se envolver com manipuladores. Mas foi você que... Calma. Não estou me eximindo de culpa no processo. Tudo que vivi foi porque buscava respostas e, ansioso para tê-las, não medi as conseqüências de meus atos. Os resultados que tanto queria – por exemplo, a paranormalidade – me fizeram dar de mãos beijadas informações preciosas sobre minha personalidade, que foram habilmente usadas “contra” mim, na hora certa, por aquele que queria ser senhor do meu destino, ao mesmo tempo que me dizia que eu tinha poder para transformar o mundo, se quisesse. E esse dia chegou. E comecei a transformar o único mundo que posso transformar: o meu. E sua cabeça, como estava? Minha desilusão com a busca, aliada à culpa de ter mentido para meus entes queridos e, principalmente, para meu médico, acabaram me levando de volta a um antigo porto. Era véspera do meu aniversário e comecei a sentir que meus pais estavam armando algo. A “dose” que faltava para que não restassem dúvidas sobre uma pequena surpresa estava na geladeira. Havia bastante cerveja lá. Estranhei, já que nem eu nem meu pai estávamos bebendo. À noite, meus pais estavam muito arrumados em casa, e eu olhando para eles com aquela cara de quem sabe que vai acontecer algo, mas não quer estragar o que seja. Toca o interfone. Era um casal amigo que eles convidaram para uma pequena reunião. Ali eu voltei a beber. Relembrando: a primeira vez que parei 69


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com foi por causa do diagnóstico e do começo do tratamento – ou seja, de fora para dentro; a segunda vez foi por causa da busca – de dentro para fora, mas sugestionado. Essa retomada coincidiu com meu começo como professor no Brasas e foi até a ausência que ocorreu quando compraria os ingressos para o show do Paul Mc Cartney no Rio de Janeiro. Você nunca teve nada em sala de aula? Não. Tive uma ausência na sala de professores quando a escola ainda estava no Setor Bancário. Um de meus alunos, que era dentista, foi chamado e disse do que se tratava. Falou que não havia nada a fazer. Apenas me colocar em um local confortável e esperar que eu voltasse. Acho que foi o David que me levou pra casa. Qual foi a causa dessa ausência? Bebida. O álcool tira o efeito do remédio. É como se não o tivesse tomado. E essa que aconteceu na época do show do Paul também foi por causa de bebida? Sim. E, como tive que fazer novos eletros e exames de dosagem da medicação para saber se estava em ordem, fui novamente obrigado a parar de beber. Depois de um tempo, não me lembro exatamente quanto, perguntei ao Dr. Suzuki se poderia, de vez em quando... Ele disse que sim; mas, de vez em quando mesmo! E adicionou: e vê se não mistura o remédio com álcool! E você, mais uma vez, não deu ouvidos ao seu amigo doutor! Infelizmente, não. Nessa época, eu voltava de carona com um aluno, Elton, grande amigo e irmão da Elaine, que é casada com o Carlos Alberto – Charlie, que fora meu professor. Pois bem, como o Elton saía do caminho dele para me deixar mais perto da minha casa, eu achava que tinha que “pagar” por seu “sacrifício”. Geralmente, sentávamos para tomar chope e conversar. Lembro-me como se fosse hoje. Pouco tempo depois da liberação do Dr. Suzuki, liguei para casa para avisar que chegaria um pouco mais tarde, pois pararia em um café que ficava na esquina da comercial da 215. Minha irmã então me fez a pergunta: “Você não vai beber, vai?”

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Perdão, quem foi essa criatura iluminada? Vinda de qualquer outra pessoa, talvez não tivesse surtido tanto efeito. Minha irmã era a última pessoa que eu imaginava que ficasse incomodada pelo fato de eu beber; afinal, ela também o fazia, só que socialmente mesmo! Não preciso dizer que menti ao dizer que não. Chegamos ao café e tomei quatro chopes “com gosto de água”. Minha consciência estava pesada, era mais mentira se acumulando, gente que eu estava magoando, tudo isso passando pela minha cabeça. Falei para o Elton: “Estou parando de beber! Você é testemunha.” E pedi um refrigerante para acompanhar a conversa que estava boa. E foi assim. Simples? Não, muito pelo contrário. Nunca é simples! E eu continuei a ir aos lugares que ia. Via as pessoas bebendo. Tinha vontade de beber também, mas tomava água mineral com gás, gelo e limão. Ficava lá olhando, observando o comportamento das pessoas. Revendo meus padrões de comportamento. Revendo meus valores, minha vida, meus princípios, meus objetivos, meus sonhos... Pra quê? Você é masoquista mesmo, hein! É. Mas acho que serviu para me dar mais força ainda. Coincidiu com um desses planos econômicos mirabolantes que nossos magos da economia de vez em quando nos aplicam. Aproveitei para ajustar minhas contas. Tinha uma gaveta cheia de extratos bancários e canhotos de talões de cheques, todos esperando por uma chance de serem conciliados. Um belo dia, resolvi encará-los. A conclusão foi dura: estava gastando todo o dinheiro que ganhava, dando aula, com bebida e farra. Ou seja, a realização de meu sonho; a razão que me moveu a ir aos Estados Unidos; passar por tudo que passei; tudo isso que era uma das coisas mais preciosas e que estava a se transformar em urina e vômito. Terminando muitas vezes com a cara enfiada na privada para fazer menos barulho. Como se estivesse enganando alguém. Como se pudesse enganar a mim mesmo. Como em um passe de mágica, o dinheiro, que passei a guardar na gaveta, começou a sobrar. Pude realizar alguns sonhos de consumo, coisas palpáveis que me deram força para continuar nas horas difíceis. E decidi: era preciso estabelecer um objetivo, um destino. Passei em uma agência de viagens e comprei um pacote para oito dias no Peru, com direito a uma visita às ruínas quíchuas de Machu Picchu.

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Então foi por isso que você acabou lá? Era uma vontade antiga, e precisava de um objetivo para me estimular. Mês a mês, fui separando uma grana para a viagem, lendo sobre o que visitaria. De repente, minha irmã me perguntou se eu não queria comprar o carro dela. Pensei na viagem, mas calculei e vi que, se persistisse em meu propósito, conseguiria comprar o carro e viajar. E foi assim que, depois de três anos, passei a dirigir meu próprio carro, que apelidei de “Marvin”.

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Capítulo 4 E tem até livro de ioga? Uma das coisas que me ajudaram nessa fase foi a ioga. Fiquei sabendo que a ACM oferecia aulas e resolvi tentar. A classe era composta basicamente de pessoas da terceira idade, com algumas senhoras mais novas, e um ou outro homem, como eu. Havia também uma gestante. Logo em minhas primeiras aulas, notei que minha professora se impressionara com uma certa facilidade de eu chegar aos ássanas. Um dia, em posição de lótus completa, percebi seu sorriso. Ao final da aula, ela me perguntou se já havia praticado antes. Disse apenas que tinha uma certa elasticidade muscular, e costumava brincar de ficar naquela posição quando era criança. Para satisfazer minha curiosidade, comprei esse livro que explicava a hata ioga. Buscava mais informação sobre cada ássana e seus efeitos espirituais. O que achei foi uma fantástica aula de biologia. A introdução do livro dizia que se você não estivesse interessado em saber como funcionam os diversos sistemas que nos mantêm vivos, poderia saltar os quatro ou cinco capítulos iniciais. Hesitei, mas prossegui na leitura. Se havia menção às tais posições que tanto me interessavam, estas eram muito superficiais. O que li foi algo que mudou minha maneira de ver o ser humano, algo a que todos nós deveríamos ter acesso, já que é básico para nosso bemestar e equilíbrio físico. Também li o famoso livro “Autobiografia de um Iogue”, que é leitura recomendada, quer você acredite, desconfie, queira distância; não importa, sou partidário de que se deve ler de tudo, informar-se não só por uma fonte, buscar o oposto, a confirmação, a negação, nunca abandonar o questionamento. Com as aulas indo bem, comecei a caminhar para me preparar fisicamente para a viagem. Sempre gostei de caminhar, acho que é porque me forçavam a correr no Colégio Militar... Tomei raiva de corrida. Se tiver que caminhar duas, quatro horas, não há problema. Mas correr? Nem 12 minutos eu consigo. Soma-se a isso a devida falta de preparo físico. Em que época você foi? Minha visita aconteceu na semana do Natal. Decolei rumo ao Rio de Janeiro, onde tentei contatar alguns amigos, mas foi impossível irem ao aeroporto. Ficou para a volta. Cerca de quatro horas e meia de vôo separam o Rio de Lima, 73


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com capital do Peru. Meu companheiro de viagem parece ter sido escolhido a dedo pelo Rapaz que Tudo Controla. Até onde consegui entender, ele era ligado ao Consulado brasileiro naquele país e tinha uma empresa que exportava pescado de lá para o Brasil. Só me lembro de duas coisas: o cidadão tomou um porre de uísque tão grande que, na chegada, quando a comissária veio recolher as bandejas do jantar, ele me perguntou se eu me importava de ele pegar meus talheres. Acrescentou que os colecionava e que tinha um belo faqueiro da Varig em casa. Isso tudo, com a comissária escutando, bem atrás dele, e eu olhando para ela como quem diz : “O que eu fiz pra merecer isso?” Por essas e por outras é que eu preferi voltar de trem e ônibus! Boa! Quando chegamos, havia um rapaz me esperando para me conduzir ao Hotel Castellana. No caminho, pude ver o buraco na parede de um banco – resultado de um recente atentado do Sendero Luminoso, grupo terrorista local. Ao chegarmos à recepção, aconteceu uma cena patética. Eu, que mal falo espanhol, queria praticá-lo. Ao telefone, bem ao meu lado, um gringo se esgoelava em inglês. O recepcionista, por sua vez, esperava que eu me pronunciasse. Foi uma demonstração cabal de que, quando saímos de nossa língua mãe, passamos a usar a segunda língua. No meu caso, como tentava falar uma terceira língua, raciocinava em inglês, e com o sujeito berrando ao meu lado era impossível falar meu portunhol. Português eu não queria usar, então a saída foi partir para o inglês e explicar que no dia seguinte estaria tudo mais tranqüilo. Bravo! Bela estréia! Pela manhã, catei um mapa e saí de Miraflores, bairro onde o hotel ficava, e fui ao encontro do mar, o Pacífico; pela primeira vez o veria. Pensando bem, parecia filhote de tartaruga marinha, que nasce e vai direto para a água. Ao chegar, sentei-me em frente à vastidão e desfrutei do sentimento indescritível que se apodera de mim quando vejo o velho mar. Pensei em tudo que aconteceu até aquele momento, agradeci pela viagem e caminhei pela orla até mais perto de uns surfistas que pegavam ondas (até razoáveis) naquela praia de pedras. É verdade. Bem lembrado. E as pessoas que se aventuravam a tomar banho, naquela água gelada, faziam-no calçando tênis. Eu sou é cearense!!! Retornei ao hotel e, desta vez, consegui esclarecer o problema e usar um pouco do meu tosco espanhol. Encontrei o gringo também. Seu nome era Gilbert, mas não me lembro de que parte dos Estados Unidos era. Minha viagem para Cuzco estava marcada para umas seis da manhã, e o 74


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com pessoal da agência passaria para me pegar por volta das quatro. Tinha que dormir cedo e me preparar para subir a Cordilheira dos Andes e enfrentar a altitude e seus efeitos. De avião não tem graça! Bom é ir se acostumando lentamente... Olhando as montanhas e seus belos perfis. Admito que o seja mesmo. Acordar não foi difícil, duro foi estar a bordo de um 727 da Aeroperu sentindo a terra se aproximando sem o avião estar descendo. A cordilheira e seus picos, ou apus, cobertos de neve. Ainda bem que o vôo não é longo. Desculpe-me, mas você falou de adaptação e eu me lembrei. Em quatro horas, você estava em Lima. Deixe-me ver se me lembro como foi até chegar lá. Bolívia: pobre como era de se esperar, mas tinha belas montanhas e boa comida. Lá, bebi água da torneira. Acampei ao norte de La Paz. Queria ir para um lugar mais alto, mas estava chovendo, enevoado, e havia encostas bem íngremes; então decidi ficar. La Paz é mais uma cidade grande, só que fica dentro de um buraco. Não dá pra ver nada até que se entra no buraco, que é uma depressão no Altiplano, e não deixa de ser uma visão cativante. Ah, o lago Titicaca! Nadei nele! Quantos podem dizer isso? É enorme! De uma margem não se vê a outra! Ficamos na Isla del Sol, sem eletricidade nem água encanada, mas nos divertimos muito! E você me diz que isso não é extraordinário, não é digno de nota? Tenha a santa paciência, meu amigo! Não adianta, você não vai mudar este ancião de quarenta e cinco anos. Não sou do tipo que escreve ou conta histórias. Deixo isso pra você. Nunca esqueça isso: você tem que escrever por você e por mim! Ainda acho que falta um pouco de boa vontade de sua parte. Sua vida e tudo que fez – pelo menos a parte que me contou – já daria um bom livro. E com sua inteligência e sagacidade, aliadas ao sarcasmo – plim –, está pronto o prato. Chega. Não vou repetir. Não é não. Tomou o mate de coca? Acho que tomei mais mate de coca do que água! Quando pousei em Cuzco, havia um guia chamado Marcelo me aguardando. Pegou minha bagagem e me perguntou como me sentia. Disse que estava bem. Fomos para o hotel e me disse que aguardasse em uma saleta ao lado enquanto fazia meu check in. Foi aí que provei o chá pela primeira vez. Disse que eu bebesse o mate de coca e depois fosse para meu quarto e dormisse por umas três ou quatro horas. 75


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Segundo ele, era tempo suficiente para meu organismo se adaptar aos 3.400 metros de altitude. Segui suas instruções e, quando voltou à tarde para um tour em Cuzco, estava pronto e preparado, sem nenhum traço de falta de ar, enjôo ou dor de cabeça. Cuzco. Que lugar frio! E cheio de turistas, gringos idiotas vestindo aquelas roupas típicas. As ruínas acima da cidade serviram de um bom aperitivo para Machu Picchu. E eu estava para me tornar um desses turistas idiotas com roupas típicas! Na verdade, só comprei um suéter de lã de alpaca e um chapéu. O microônibus passou por outros hotéis e coletou outros turistas. Fomos para as calles centrais, onde as casas foram construídas sobre as estruturas quíchuas. É realmente impressionante como conseguiam encaixar os blocos de pedra. Bem como a resistência que tais construções apresentam, a despeito de Cuzco ser área sujeita a terremotos. Templo do Sol, Tambomachay (uma bela fonte de água). Kenko e Sachsayuaman (que, segundo os guias, quer dizer cabeça do puma). Cabeça do puma? Não sei se você leu sobre isso. Segundo me foi explicado, não é correto se chamar de povo inca, ou império inca. O povo é quíchua, bem como a língua que falam. Para eles, em suas tradições, há três dimensões que são representadas por animais: a subterrânea (serpente), a terrena (puma) e a extraterrena (condor). Assim sendo, Sachsayuaman é um monumento que fica na cabeça do puma, que é o formato original da cidade de Cuzco. O que buscava nos guias de viagem tinha mais relação com preços de refeição e estadas em hotéis baratos. Não dava pra ficar lendo sobre essas coisas. Lembrese que os vendedores das livrarias estavam sempre me perturbando! É, eu sei. Mas isso eu aprendi lá. Outra coisa que aprendi foi que o chamado império era, para eles, Tahuantinsuyo, que queria dizer algo parecido com o sol dividido em quatro partes: as quatro regiões nas quais o território deles se dividia. Cuzco também é conhecida como umbigo do mundo. Em que hotel você ficou? No Alhambra. Meu quarto era simples. Fazia um frio enlouquecedor. Lembrome que tive vontade de sair e assistir à Missa do Galo na catedral, mas, ao abrir a porta da rua, desisti. O vento gelado me empurrou para dentro, onde havia uma televisão gigante, perto de uma lareira (bom!), que mostrava “Casablanca” dublado em espanhol (ai!). 76


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Era noite de Natal... E vendo que não saíra, o encarregado do hotel me ofereceu uma “ceia”, que prontamente aceitei. O frango estava delicioso, e eu, faminto. Fui para o quarto e li meu livro de viagem, “Eram os Deuses Astronautas”, do Erik von Däniken, até adormecer com a luz do abajur acesa. O dia 25 era livre. Tudo que eu queria era caminhar pelas ruas de Cuzco, sem que os cambistas me importunassem. Quase matei vários ao longo de minha jornada! Bastava botar o nariz fora do hotel e lá estavam eles. Trabalhando, é óbvio, mas perturbavam muito. Cheguei, então, para a recepcionista e perguntei o que precisava fazer para conseguir caminhar sem ser importunado. Ela me olhou de cima abaixo. Estava de chapéu, suéter e calça jeans. “Deixe o chapéu e a câmera no quarto. Sua cor é semelhante à nossa. Pode sair e ninguém vai se importar com você.” Meio incrédulo voltei ao quarto. Fiz o que ela disse, passei na recepção para uma verificação final. Ela me olhou e com uma piscada de olho disse que estava perfeito. Abri a porta me preparando para duas coisas: o frio e os cambistas. O frio estava lá. Mas os cambistas não. Provavelmente de ressaca do jantar de Natal. As ruas estavam quase desertas e pude caminhar livremente até a Praça de Armas, ver a catedral e a igreja de São Francisco, entrar, fazer uma oração de agradecimento pela viagem e pedir proteção para mim e para os meus. Continuei caminhando e desfrutando as delícias de ser um turista descendente de índios brasileiros em um país de índios quíchuas. Era mais um na rua. Feliz por estar realizando um sonho, “embriagado” pela simplicidade dos locais, pela nossa semelhança, pela nossa diferença, pelo verdadeiro estupro de que nossas nações foram vítimas. Esse é um padrão que se repete até se chegar à divisa dos Estados Unidos. Essa total falta de noção do avanço tecnológico e, até, cronológico. Certos lugarejos parecem perdidos em algum local do meio do século 19! É o problema da “dosagem” de progresso. Tudo em excesso faz mal. Até os avanços. Perde-se a noção da simplicidade das coisas. Vive-se muito rapidamente, furtivamente. Isso era uma coisa que me satisfazia cada vez mais: deliciar-me com o momento; viver cada minuto daquela viagem, saborear minha conquista, valorizá-la. Como é importante sabermos dar o devido valor ao que conquistamos! É no momento da comemoração de uma vitória que ganhamos força para os combates futuros. Pois a vida é como uma guerra, uma

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com sucessão de combates, com períodos de trégua. Esses períodos precisam ser muito bem vividos. É, mas, se fosse pensar como você, talvez nunca tivesse chegado ao fim de minha viagem. Você não cansa de ver lições nas coisas da vida? Não tenho muita paciência para isso! Talvez aí esteja a explicação para não escrever nada sobre minha viagem.

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Capítulo 5 Finalmente chegara o dia. Ao despertar, tomei o café da manhã e partimos para o local onde embarcaríamos em um ônibus até um mirante que ficava a meio caminho de Machu Picchu. Ao chegarmos lá, paramos para ver as artesanias e mirar os cumes da cordilheira, a 3.800 metros de altitude. Beleza pura! Passamos então para o trem, que vai serpenteando paralelamente ao rio, até chegar à pequena estação onde desembarcamos. Daí, entramos em outro microônibus que nos leva até a porta do parque das ruínas quíchuas. Não havia uns meninos que iam correndo e chegavam junto com o microônibus, de mãos estendidas pedindo plata, dinheiro, money, dólar? Era na descida. Como o caminho é em ziguezague, fica mais fácil para eles; cortando caminho, é uma reta até a estação. Mas foi na subida que o guia disse que pararíamos para almoçar em um restaurante, na entrada do parque e, depois, entraríamos. Olhei pra ele e pensei: não estou com fome e não vim aqui para comer. Ali, decidi que entraria sozinho, de posse do pequeno mapa que estava na passagem e no tíquete de entrada. Enquanto o pessoal se dirigiu para o restaurante, entrei e comecei a andar. Fui me guiando pelo mapinha até o templo das três janelas, o Intihuatana (pedra onde se amarra o sol), o condor esculpido na rocha, uma espécie de praça central... Andei muito, com minha cabeça a 15 mil por hora. Alimentava-me de cada maravilha que via; subia escadas íngremes sem sentir absolutamente nenhum sinal de dor de cabeça. Fui passando por todos os locais indicados no mapa, até que cruzei com rostos familiares – duas brasileiras que vieram com o meu grupo. Elas me avisaram para me preparar pois o guia estava furioso comigo porque entrara sozinho. Havia sido irresponsável e ficaram esperando por mim para entrar. Justifiquei-me dizendo a verdade, o que, no entanto, não melhorou minha situação. Enquanto partiram para visitar o que eu já havia visto, subi para o cemitério, que fica no topo da cidadela. Lá me sentei. Tinha, à minha frente, toda Machu Picchu, sua beleza, seus segredos, suas histórias. De cada lado, vales. O da direita era o do Urubamba. O som de suas águas turbulentas ecoava até as alturas. Com o som do rio, e o frio do vento em meu rosto, lembrei-me do sonho que tivera antes da viagem. Estava ali, no cemitério de Machu Picchu, com alguém que me dizia: “Daqui, você vai pra lá!” No sonho, eu olhava para minha direita e via um monte de pedras enormes. Só que o lá – agora que estava ali – era o vazio do vale do Urubamba. Fiquei com aquilo e outras coisas na cabeça. Que monte de pedras era aquele? Na hora marcada para deixarmos as ruínas, reuni-me ao grupo e voltamos para Cuzco, de trem. Foram três horas de viagem. Estava deliciosamente cansado. À minha 79


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com frente, havia um casal de sul-africanos. Conversamos um pouco, mas as palavras parecem perder sentido quando se visita um local como aquele. É por isso que prefiro dizer a quem quiser saber o que senti: Vá lá e sinta! Só indo mesmo. Ao chegarmos à estação, Marcelo me aguardava. Perguntou como tinha sido a visita. Contei-lhe a história de eu ter entrado só e ele riu bastante. Perguntei o que havia de errado com ele, pois estava sempre de terno e eu todo cheio de frio. Naquela noite, estava com meu casaco, mas suava por dentro do suéter; e ele estava todo encasacado também. Ele me disse que estava realmente frio. E acrescentou que o calor que eu sentia era porque a energia que acumulara lá em cima estava se transformando em calor dentro de mim. E ainda se desperdiça dinheiro construindo hidrelétricas... Por que você não ficou por lá como “fonte de energia alternativa”? Em nome da amizade, é melhor fingir que não ouvi seu comentário. De volta ao Alhambra: banho tomado; devidamente alimentado; deitei-me e novamente peguei meu livro-companheiro. Ao folheá-lo em busca da página marcada, deparei-me com uma foto de um monte de pedras, exatamente o monte de pedras que vira em meu sonho. Ao pé da foto estava escrito Stonehenge. Fiquei sem saber o que fazer. Aquela noite eu não consegui ler nada. Dormi. Acordei com o despertador me avisando para me preparar, pois meu último dia em Cuzco me reservava uma visita a um brujo. Era o dia “esotérico” do pacote que comprara. Ih, e tem isso? Sim, como não? Business is business. E para isso, havia um guia especial. Seu nome era Amália. Uma bela e jovem morena típica da região. Nosso grupo era constituído das duas brasileiras e eu. Passamos primeiro no mercado para comprar folhas de coca e cerveja. Como? Você ouviu bem, cerveja. Daqui a pouco vai entender para quê. Enquanto nos deslocamos de van para o lugarejo chamado Huasao, a Amália foi nos contando que o brujo que veríamos era um descendente de uma tradição antiga de grandes brujos. As folhas de coca serviam para ele ler nossa história, ver quaisquer problemas físicos ou espirituais que tivéssemos.

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Mas e a cerveja? Bem, aí vem a parte dolorosa da história. Segundo nosso guia, os antigos brujos tinham uma “conexão” que os mantinha energizados, mesmo tendo que executar os trabalhos de manutenção espiritual do povo quíchua. Com a chegada dos invasores espanhóis, e o conseqüente sincretismo, essa conexão foi rompida. A tradição foi passada para outros brujos, mas os atuais não têm outro modo de repor a energia gasta nas atividades espirituais a não ser apelando para o álcool. Brilhante explicação. Será que a polícia acreditaria nisso? Talvez lá, não aqui. Dizer que Huasao era um vilarejo pobre é dispensável. Entramos na casa do Basilio e nos sentamos em um recinto pequeno. Cada um com sua garrafa de cerveja aos pés. Amália nos disse que havia um momento em que ele faria um sinal, ela, então, abriria e passaria a garrafa para ele. Como fui o primeiro, foi logo a minha que bebeu. Perguntei-lhe o que estava fazendo ali. Qual o significado de minha visita e se podia ver algo de errado no meu corpo físico. Ele me disse que eu tinha um problema no joelho esquerdo. E acrescentou que a Amália poderia me levar até um senhor que iria providenciar uma pomada que me curaria. Disse que era como se os ligamentos estivessem torcidos. Lembrei-me de que um dia, no clube, machucara meu joelho e, desde então, quando corria, sentia como se ele estivesse solto. Não me dei por satisfeito e, curioso, perguntei-lhe se não via nada errado na minha cabeça. Ele negou. Nada mesmo. Era cego o coitado! Pode ser que sim. Não viu que meus dedões das mãos parecem dedos de pé! Enfim, fui esperar do lado de fora, enquanto atendia as mulheres. Logo depois a Amália saiu também, porque elas pediram privacidade. Quando fomos apresentados, ela disse que falava inglês fluentemente, mas as brasileiras preferiam que usasse o espanhol. Ela me disse que diante de tudo que os conquistadores fizeram com as tradições do povo dela, preferia falar sua língua, o quíchua, ou o inglês que aprendera nos Estados Unidos. Quando estávamos caminhando sozinhos, comunicava-me com ela em inglês. Grande diferença! Será que nós não somos os “espanhóis do agora”? Concordo, mas cada um pensa como pode. Perguntei-lhe se fazia parte de alguma seita. Ela disse que tudo que podia me dizer era que pertencia a um 81


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com ramo da tradição ligado à selva. Contei-lhe de minhas sensações em Machu Picchu, e ela riu. Disse que havia uma hierarquia de pássaros para os buscadores. Segundo ela, naquele momento eu era um beija-flor, que saía sugando o néctar de diferentes tradições. Voltamos de Huasao e ela ficou de me pegar para irmos ao senhor da pomada que o Basilio recomendara. Depois de fazer isso, fomos visitar alguns monumentos em volta de Cuzco. Com poucos, ficava mais fácil explicar as ligações dos quíchuas com as forças da natureza, os apus, a terra-mãe, a água, o condor, o puma e a serpente; Sacsayhuaman como um local sagrado, onde é realizado um teatro tragicômico do que foi o ritual do Inti Raymi; Machu Picchu, como uma verdadeira “universidade” de uma civilização extremamente avançada para a época em que viveu. Toda a vastidão do saque aos templos originais e seus aposentos cobertos de pedras preciosas e ouro. Não satisfeitos, trouxeram um culto que se misturou ao local e, segundo ela, essa relação foi muito nociva e parcialmente responsável pelo estado de miserabilidade espiritual e econômica em que o Peru se encontra. Pelo visto, vocês conversaram bastante! Ela era realmente muito simpática. Após um café no hotel das duas brasileiras, saímos a pé até a rua onde ficava meu hotel. Lá nós despedimos com um abraço e um “may the light be with you”. Só? É, só! Um dia, conversando com minha mãe, confessei-lhe que, se tivesse permanecido uma semana com a Amália, talvez ela tivesse netos peruanos. Ela deve ter gostado muito da idéia! Não chegou a gostar muito, não. Só me deu uma olhada mais longa para ver se eu estava falando sério. E, depois desse abraço, você arrumou as malas e voltou para o Brasil? Sim. Tive mais um dia livre em Lima, mas não fiz nada de especial. Acordei tarde e fiquei papeando com os recepcionistas do hotel. Eles se espantaram como o meu portunhol estava soando melhor. Disseram que se me dedicasse, um dia, quem sabe... E por que não?

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Não descarto a possibilidade. Ainda mais que voltei a usá-lo em minha viagem à Europa e consegui me fazer entender. Acho que tem futuro. Por falar em futuro, tenho que ir. Mas há algo que gostaria de lhe perguntar. Sinto-me constrangido, contudo, foi você que resolveu tocar no assunto... Fala, rapaz! É sobre as crises? É. Há quanto tempo você... Você sabe... Pode ficar tranqüilo que não tenho problemas em falar sobre elas. A última que tive foi em janeiro de 2002. Estava retirando a medicação. Depois que contei ao Dr. Suzuki que mentira pra ele e, como conseqüência, ele adicionara o clonazepan à carbamazepina que eu já tomava, ele me disse que iria fazer a retirada gradual para ver no que dava. Já estava há algum tempo sem ter nada. Resolvemos tirar primeiro a carbamazepina e tudo foi bem. Como é essa retirada? Você vai reduzindo a dosagem que toma até ficar sem. Se nada acontecer, parabéns! E o outro, como foi? A carbamazepina foi a primeira medicação que tomei. Era tarja vermelha. Já o clonazepan é tarja preta. Embora minha dosagem de manutenção seja extremamente baixa, já tivera crises antes por retirada dele. Ah, não foi a primeira vez que você tentou retirar a medicação? Não. Sem contar a desastrosa tentativa que resultou no adicionamento do clonazepan, já tentara antes. Só que sempre começávamos por ele, já que tinha sido acrescentado “sem necessidade”. Quando o retirava, vinha a crise de rebote e eu voltava à dosagem de manutenção. O que modificamos dessa vez foi a ordem de retirada. Saiu a carbamazepina primeiro e ficou tudo bem. Marcamos um plano de redução gradual e lenta baseado no número de caixas que tinha em casa. Isso fez com que eu completasse a retirada total no final de minhas férias em Fortaleza. E isso é bom ou ruim? Acho que não influi muito, mas, nesse caso, acabou me afetando negativamente. Só que, aí, teremos que entrar em uma outra área, a da 83


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com ansiedade. Com a possibilidade de retirada total da medicação, meus níveis de ansiedade foram à estratosfera. Comecei a dormir mais tarde, alimentar-me mal, a viagem acabou por adicionar um “tempero” à sopa de fatores que estão diretamente relacionados à ocorrência de crises. Que fatores são esses? Gosto sempre de falar do meu caso, já que pode variar de paciente para paciente. É que, além de anticonvulsivante, o clonazepan é um ansiolítico, ou seja, combate a ansiedade. Com a retirada definitiva da medicação, o cérebro começa a reagir; sente falta; e pede reposição. Como não há, os níveis de ansiedade aumentam. Aliado a isso, ou como conseqüência disso, dos vinte dias que passei em Fortaleza devo ter tido umas quatro noites de sono que se poderiam considerar de qualidade. A falta de sono é cruel. E você chegou a parar de tomar o medicamento? Tomei a última metade do comprimido uns dois dias antes de voltarmos. A crise foi lá ou aqui? Na chegada aqui em Brasília. Tínhamos acabado de sair do aeroporto. Ao desembarcar, coloquei a sacola de minha câmera em um carrinho de bagagens que não estava rodando bem. Decidimos trocar de carrinho, mas a câmera ficou. Só dei falta dela quando já estávamos entrando no carro. Saí correndo, ignorei o segurança e entrei pela saída da sala de desembarque. Varri o salão com os olhos e me deparei com o estojo bem onde deixara. Depois de retornar ao carro, erguendo meu troféu para que meus pais o vissem à distância, saímos do estacionamento pago. E é até aí que me lembro. Você estava dirigindo? Não. Meu pai, que por pouco não perdeu a ponta do dedão. Como assim? A crise aconteceu na saída do estacionamento. Ele então parou o carro no acostamento e minha mãe começou a acenar para parar algum carro. Meu pai, instintivamente, foi tentar “segurar minha língua” para que eu não a engolisse. Tomou uma dentada que deixou sua unha roxa por um bom tempo. É a reação natural, mas não passa de mais uma falta de informação com relação às convulsões.

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com O que deveria fazer se, por acaso, eu testemunhasse uma crise? Primeiro, você tem que lembrar que não está lidando com algo contagioso. Por isso, não há necessidade de se proteger de eventual contato com fluidos corporais. Segundo, não faça o que meu pai fez. Ao invés de querer meter o dedo ou qualquer objeto na boca da pessoa, para evitar que se engasgue com a própria língua, basta afastar qualquer móvel ou objeto no qual ela possa se machucar. Segure sua cabeça para evitar que ela sofra qualquer impacto. Tente mantê-la em uma posição lateral para prevenir a asfixia, já que, às vezes, há baba ou vômito. Se estiver vestindo algo apertado, afrouxe as roupas na cintura e no pescoço. No mais, é aguardar a crise passar e ter paciência. Demora algum tempo até o paciente se dar conta do que aconteceu. Tudo que tem a fazer é deixá-lo o mais confortável possível. Essas crises não demoram muito. Caso ache que a convulsão está demorando demais, chame um serviço de emergência. Mas, no meu caso, isso nunca foi preciso. O que você sente? Não há como antecipar a crise e tomar a medicação? Alguns pacientes têm uma “aura”, que é um conjunto de sintomas que lhes avisa da probabilidade de uma convulsão. No meu caso, repito, não sinto nada. Como o Dr. Suzuki me explicou, há uma descarga elétrica em uma área do cérebro, saio do ar e depois volto. Sem lembrar de absolutamente nada. Essa descarga desarranja as ondas cerebrais, o que faz com que todos os músculos do corpo se contraiam – daí vem a poderosa mordida da qual meu pai guarda vivas lembranças. Por isso, quando volto, dói tudo: dos pés à cabeça, literalmente, é uma dor só, e uma horrível sensação de que você perdeu um pedaço da vida, do qual tenta se lembrar, mas não consegue. Aos poucos, o atordoamento vai passando. Quando me dei conta, estávamos dentro do carro, mas já embaixo do prédio. Vi minha mãe e o zelador. Ela me contou o que tinha acontecido. Disse que havia ligado para o Dr. Suzuki e que eu já tinha sido medicado. De volta à dose normal? É, mas isso não é o pior. O duro é lembrar que haverá mais um bom tempo tomando essa dose de manutenção, até que tenha uma nova chance de tentar parar. Há também uma enorme sensação de impotência perante o diagnóstico. E uma raiva... Raiva de quê? É muito difícil explicar esse sentimento. A convulsão não é bonita de se testemunhar. Sei que, embora convivendo com isso há tanto tempo, meus 85


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com familiares são traumatizados. Evitam comentar isso comigo. Quando me refiro ao assunto, esquivam-se e dizem que não foi nada. Você faz isso porque quer? É óbvio que não, mas é uma conseqüência de minhas tentativas de viver sem a medicação. O que seu médico diz com relação a essas tentativas? Ele já me disse mais de uma vez que vou parar de tomar essa medicação. E você confia nele? Hoje em dia, acho que confio mais nele do que em mim mesmo. Afinal, com minha mentira, sabotei seu trabalho e venho pagando o preço de minha vergonha em assumir que menti. Justamente a medicação que foi adicionada é a mesma da qual não consigo me ver livre. Desculpe-me, mas sou impelido a racionalizar tudo isso. Qual é a dosagem que você toma e em que isso impede você de ter uma vida normal? Um comprimido de 2mg que eu divido em duas doses, ou seja, uma banda de manhã e a outra à noite. Como disse, se comparado com outros casos, os quais vi em páginas especializadas de internet, minha dose de manutenção é bem baixa. Tem paciente que toma muito mais que isso e, ainda assim, continua tendo que conviver com eventuais convulsões. Em casos extremos, mesmo após procedimento cirúrgico, é preciso manter a medicação. E, finalmente, respondendo à sua pergunta, eu hoje tenho uma vida normal. Tudo que tenho a fazer é lembrar de – caso não vá dormir em casa – carregar o remédio comigo. Não entendi o hoje? Nem sempre foi assim. Já me revoltei com o diagnóstico, você se lembra do que já fiz pra me ver livre disso. O hoje é mais um resultado do tempo, da aceitação e da conscientização do meu caso em comparação com outros. Além de maior informação sobre a doença que a internet me permitiu ter. De vez em quando, pergunto coisas ao Dr. Suzuki e ele reclama um pouco. Diz que não tem nada a ver com o meu caso. Manda eu parar de fuçar. Completando, o hoje tem muito a ver com a nova fase em que estou. Saí da negação para a aceitação e tive a chance de conversar com ele sobre isso outro dia. Ele me disse que eu teria que me adaptar à ansiedade. Como vivemos em sociedade, não há como escapar dela. Quanto ao fato de eu ter parado de beber, ele me disse que há pessoas que 86


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com conseguem se controlar, outras não. E finalizou dizendo que o importante é que minha condição é tranqüilamente controlada com a dose que tomo. Acho que ele está certo. Concordo com você. Confio muito nele e na simplicidade com que trata algo tão complexo como nosso cérebro. Além do mais, meu pai sempre diz: “O Dr. Suzuki virou seu amigo.” Por falar em amigo, está na hora deste seu amigo zarpar. Tenho que cruzar o Parque da Cidade.... Já esqueceu que vou levá-lo em casa? Não precisa se preocupar. Vou caminhando. Estou acostumado. Fique aí, curtindo seu lugar. Ele está lhe fazendo bem. Não há de faltar oportunidade para uma carona. Fica para a próxima. A gente se vê. Tudo bem, então. Cuidado ao cruzar o parque.

Acompanhei-o com o olhar até transpor a porta que dá acesso à parte interna do condomínio em que moro. O vento da noite levantou ligeiramente seus longos cabelos louros e ele partiu rumo a seu lugar.

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Parte 3 “Por anos, sonhei em ter uma mesa de carvalho enorme que tomaria quase todo o ambiente... Em 1981, achei a que queria e a coloquei bem no meio de um estúdio espaçoso e com teto solar nos fundos de minha casa. Por seis anos, sentei-me à mesa, umas vezes bêbado, outras totalmente fora de mim...” “Cerca de dois anos depois que recuperei a sobriedade, livrei-me daquela monstruosidade e a substitui por um conjunto de sala... No começo dos anos noventa, antes de irem embora viver suas vidas, meus filhos às vezes apareciam à noite para assistir a um jogo de basquete ou a um filme e comer pizza... Consegui outra mesa – é linda, feita à mão, e tem a metade do tamanho da jurássica. Coloquei-a no canto do escritório, sob uma calha... Estou sentado nela agora, tenho 53 anos, meus olhos não prestam, manco de uma perna, e não tenho mais ressacas. Faço o que sei fazer, da melhor maneira que sei fazer. Passei por tudo que foi contado aqui... e agora, vou contar tudo que puder sobre o ofício...” “Para começar, coloque sua mesa no canto e, toda vez que se sentar nela, para escrever, lembre-se do porquê ela não está no meio do ambiente. Não é a vida que alimenta a arte. É a arte que sustenta a vida.” Stephen King em “On Writing – A Memoir of the Craft” (Scribner – 2000).

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Capítulo 1 Acabo de desligar o telefone. Sempre em busca de notícias. Muito tempo se passou desde a notícia que me inspirou os primeiros parágrafos deste livro. Muitos telefonemas foram dados. Primeiramente, para um hospital na Califórnia. Havia dias em que, a despeito das estritas leis americanas, conseguia algum tipo de informação sobre a condição de meu grande amigo. Em outros, não tinha tanta sorte, deparava-me com uma enfermeira mais durona e acabava por nada de novo saber. Um dia – o mais abençoado deles – falei com uma que estava em seu quarto no exato momento em que liguei. Ela colocou o fone em seu ouvido e ele pôde ouvir o que consegui articular. Na maioria das vezes, foram ligações em vão. Finalmente, resolvi usar essa ferramenta mágica chamada internet e achei o telefone da mãe de meu amigo. Em nosso primeiro contato, estava inquieto, já que, em minha última ligação para o hospital, fora transferido para três enfermeiros que me fizeram mais perguntas do que me ofereceram respostas. Ela se mostrou satisfeita de saber que seu filho tinha um amigo que se preocupava a ponto de achar seu telefone em busca de notícias. Infelizmente, as novas eram velhas. Ou melhor, seu estado era inalterado. Tudo que consegui a mais foi um esclarecimento sobre sua situação: como contraíra a doença. Segundo a mãe dele, os médicos disseram que ele morava numa região de alto fluxo de turistas, tanto americanos quanto estrangeiros. Não havia muito a explicar. A meningite o levou para um leito de hospital, onde permanece até o dia em que escrevo estas palavras. É um duro na queda, um leão, um monstro de vontade de viver! Há tantos meses paralisado do pescoço para baixo, impossibilitado de falar, alimentado via intravenosa, dopado com doses cavalares de analgésicos, no entanto, lutando, com sua fantástica mente quase sempre alerta, respondendo aos estímulos e códigos de comunicação estabelecidos pelos médicos e enfermeiros; capaz de deixar notar seu humor com pouco mais que um olhar ou piscar de olhos. Há cerca de um mês, vítima de uma gripe que evoluiu para pneumonia, foi transferido para um hospital mais bem equipado, direto para a UTI, ligado a um respirador. Antes do Natal, liguei para a mãe dele, e as condições estavam inalteradas, com uma pequena melhora no quadro geral. Hoje, parece que o “Eremita” está ensinando os médicos a não terem tanta pressa em julgar certos casos, segundo sua mãe. Está um pouco mais forte, saiu da UTI e está na enfermaria. Lutando. Durante todo esse tempo, desde que recebemos a notícia, amigos têm escrito cartas e cartões estimando sua melhora. Além dos telefonemas, escrevi-lhe uma 89


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com carta pouco antes de ele cair vítima da gripe. Aproximadamente um mês depois, foi retornada ao remetente. Espero que os assistentes sociais voluntários – seus únicos acompanhantes – tenham lido as cartas que lhe foram enviadas. Na carta que escrevi havia a promessa de que, se ele sair do hospital – independente das seqüelas que a doença deixar –, eu o visitaria. Enquanto isso, vou fazer uma coisa que ele sempre me disse que deveria fazer...

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Capítulo 2 Querido Amigo Mike, Aproveitando a oportunidade, estou escrevendo esta, que deve entrar para o seu Livro dos Recordes. Promete ser uma longa carta, talvez para despertar em você o aventureiro consciente que foi de Brasília à Califórnia de ônibus e trem. Certa vez, conversávamos sobre minha viagem à Europa e você me disse que deveria colocá-la no papel. Pois a chance é esta. E vai especialmente para você. Tudo começou com o sonho de ir a Stonehenge. Algo que estava guardado em uma prateleira qualquer de minha memória. Algo que foi reforçado pela minha passagem pela mágica Machu Picchu, que também deve trazer belas recordações para você. Além disso, havia as conversas que ouvia dos alunos que se preparavam pra mochilar pela Europa. Suas histórias quando voltavam sempre me interessaram muito. Pensei em um dia também ter minhas histórias pra contar; meus passos espalhados pelas terras do Velho (e belo) Continente. Enquanto isso, fomos vivendo e encontrei o Bernardo e o André, recémchegados do Rio e incorporados ao corpo de professores. Comecei a fazer aulas de violão com o André aos sábados – às vezes no meu apartamento, outras, no deles. Daí surgiu nossa amizade. Um belo dia, quando eu me levantei para pagar-lhe pela aula, ele disse que não mais poderia aceitar pagamento e o negócio evoluiu para parceria e amizade. Diversas foram as vezes que saímos você, o André, eu e mais uma galera legal, para comer pizza ou correr de kart. Os gêmeos vieram para Brasília em 1991. Em março de 1992, exatamente no dia do seu aniversário, o André resolveu ir com o Luiz pra Londres, tentar a vida como músico. Era a conexão que faltava: mochilar pela Europa; visitar Stonehenge e, de quebra, ver meus amigos. Estava elaborada a fórmula. Em 1993, ainda não tinha internet, o jeito era ir atrás de mapas nas embaixadas ou com alguns conhecidos que já tinham feito viagem semelhante. Era preciso que tudo fosse muito bem planejado, levando-se em conta que os imprevistos acontecem. Contudo, um itinerário foi se consolidando. Como tudo de bom que fiz na vida, era preciso estabelecer um norte. Qual seria meu objetivo com mais essa viagem? A resposta era simples: espalhar pegadas, caminhar, estar em contato comigo e com o mundo. A essa hora você deve estar se perguntando se eu não faço isso o tempo inteiro. Sim, é a resposta, mas acho 91


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com que quando estou viajando atinjo níveis que não consigo no dia-a-dia. Culpa minha – dispersão –, que é mais fácil de se combater numa viagem, quando existe um trem a se pegar às 8h01 da manhã e o trem sai às 8h01. Se você chegar às 8h02, vai testemunhar a saída do trem no qual você deveria estar. Como viajar? Da melhor maneira que já inventaram: Rail Pass. Fui a uma agência de turismo e paguei 690 dólares para um mês de viagens. Não importa quantas viagens, é um mês, podendo usá-lo não só nos trens locais e internacionais, mas também em certos transportes urbanos, como nos “comboios” lusitanos. Acomodação? Albergues da Juventude. Tudo que se tem a fazer é pagar uma taxa, tirar a carteirinha que vale no mundo inteiro e desfrutar de acomodação boa e barata. Não espere luxo, mas há belas surpresas! Pelo menos, não tenho uma reclamação sequer! Tempo de viagem? Acho que foram 50 dias. Salvo engano, 22 viajando e 27 com o André e o Luiz. Quantos dias em que lugares? Bem, essa foi uma das partes mais gostosas da viagem. Dizem que uma viagem dessas sempre começa nos preparativos. Concordo plenamente. Dinheiro? Para quê? Quanto? Sabe que não me lembro quanto levei, mas sei que foi uma parte em travelers’ cheques e outra parte em espécie. Tudo isso distribuído em uma mochila e uma pochette. Com meu casaco de couro barato, um suéter de lã e uma camiseta, invariavelmente de jeans, tênis cano longo, e meu chapéu preto, embarquei rumo a meu sonho. Decolamos do Rio com 30 graus. A chegada a Madri estava prevista para bem cedo. Toda a agitação do salão de embarque acabou quando o comandante anunciou a temperatura em nossa cidade de destino: “Em Madri, 3 graus negativos.” Pensei comigo mesmo: Foi pra isso mesmo que eu vim! Abertas as portas do avião, o frio entrou sem pedir licença. Embarcamos em um ônibus até o terminal do Aeroporto Internacional de Barajas. Imigração e alfândega sem problema, passaporte carimbado, mapa na mão e guia dos albergues da juventude na outra. Fui até o balcão de informações e perguntei sobre o ônibus que poderia tomar, e a moça me indicou um albergue que ficava perto de uma estação de metrô, o que facilitaria meu deslocamento. Senti-me em um país estrangeiro quando entrei no ônibus. O vozerio, eu tendo que me movimentar com a Liberdade (minha mochila), sem esbarrar tanto nas pessoas. Fui muito xingado! Mas sabia

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com que o seria desde que saí de meu lugar. Até eu xingaria se alguém me acertasse uma mochilada! Você, então, tenho certeza de que iria até mais longe! Para registro, a Liberdade estava pesando aproximadamente 15 quilos. A impressão que me dava, quando cheguei ao parque onde ficava o albergue, era de que minhas pernas estavam ficando tortas como as do meu pai. Nem sempre há vagas no primeiro, e – como numa “boas vindas” às avessas – tive que caminhar até o outro. Finalmente, meu primeiro albergue: Richard Schirrmann ficava em um lugar chamado Casa de Campo, perto da estação Lago do metrô. Os albergues da juventude funcionam assim: você chega de manhã, faz o checkin, mas não coloca sua mochila no quarto. Há um depósito onde ela fica até à tarde, quando então se tem acesso ao quarto e demais instalações. Nessas situações, cautela nunca é demais. No entanto, há que se ter sorte para fazer a viagem que fiz e nada ter acontecido, ou melhor, sumido dentre meus pertences. Fiz meu primeiro câmbio – por pesetas – ainda no aeroporto, caso contrário, como pagaria o ônibus e o metrô? Com dinheiro no bolso e minha mochila no depósito, saí para andar por Madri. Primeira parada: uma tabacaria. Comprar um postal e selos. O povo precisa saber que cheguei. Lembre-se, estamos em 1993, não havia cibercafé para se mandar e-mails. Rodei por algumas ruas da capital espanhola, parei em um restaurante que me arrancou os olhos da cara para comer uma galinha velha e seca com um arroz duro demais para descer. Deve ter sido o frio. O cozinheiro não acordou para ir trabalhar e serviram as sobras. Engraçado era o povo comendo com uma cara boa! Só mudavam de feição quando olhavam pra mim, com meu cabelo oleoso que não via água há mais de 24 horas. Entendo os espanhóis, merecia ser olhado mesmo. Merecia a última galinha de ontem que tinha naquele estabelecimento! Só após as 16h é que os albergues abrem para você se instalar. Durante o dia, eles fazem a limpeza geral. Outro item do qual não posso reclamar. Não sou muito exigente, é verdade. Entendo certos deslizes, por isso, acho que – pelo preço – é um baita serviço. Tomei um banho de meia hora, morninho, que delícia! O corpo implorava por esse deleite. Primeiro quarto, primeiro contato com meus companheiros mochileiros. Acomodei minhas coisas e me deitei para esticar as costas, enquanto aguardava para sair e comer algo. Um colega de quarto japonês começou a conversar comigo em inglês. Ele era superanimado, mas deve contar até hoje a história do brasileiro que dormiu na cara dele. Quando acordei, meu despertador tocava me 93


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com avisando que estava na hora de encarar o frio da madrugada, caminhar até a estação de metrô e ir para a estação pegar o trem rumo a Burgos, norte da Espanha. A decisão de visitar Burgos e Santiago de Compostela vem de um antigo sonho de percorrer a Via Láctea, ou Caminho de Santiago, a pé. Parecia um zumbi quando adentrei a estação de trens. Como era minha primeira viagem, tinha que carimbar o Rail Pass, que, a partir dali, valeria por 30 dias. Ao embarcar, mais uma bela surpresa: os trens eram bem melhores que esperava. Começamos a nos mover. Saímos da estação e passamos pelos subúrbios de Madri, rumo ao norte. De repente, lembrei-me das dunas do Ceará. Durante a descida, notara o quão seca estava a terra. Deduzi que fossem dunas. Mais umas chacoalhadas e comecei a notar que os pequenos riachos pelos quais passávamos tinham uma coloração esquisita. Finalmente, a ficha caiu. Lembrei-me de que o cara do albergue em Madri dissera-me que estaria frio em Burgos. Burro! Não é duna, aquilo no topo da montanha é neve! Chegamos pontualmente! O que deixaria de ser uma surpresa ao longo do caminho. Da estação, vi um rio – este sim, bem mais cheio de neve –, uma alameda e acima, à minha esquerda, umas ruínas. É pra lá que vamos. Como não ficaria muito tempo lá, deixei a Liberdade trancada num guarda-volumes e levei só a Bússola comigo (a pochette). Peguei a alameda, que tinha umas árvores podadas – provavelmente para resistirem ao rigor do inverno –, e umas casas muito bonitas. Ao final, tinha uma igreja, a Catedral, em cujo pátio havia neve suficiente para se tocar e chegar à conclusão de que – pelo menos aquela do chão – parece muito com gelo dos congeladores antigos, que ainda precisavam ser descongelados. Era uma igreja no Caminho e tinha a cruz de Santiago. As ruínas do Castelo ficavam bem atrás dela, só que morro acima. Vamos! É pra isso mesmo que eu vim. Cruzei com peregrinos e suas vieiras... Um dia, quem sabe? Cheguei ao topo do morro e lá estavam as ruínas de três torres. Ao fundo, o campo todo branco da neve que caíra na madrugada – um branco que nunca vira em minha vida – e, à minha frente, agora havia uma cruz de pedra. Tirei meu chapéu e deixei o vento frio secar meu suor. Sim, eu suava em pleno frio... Com a mão naquela cruz, fiz uma oração para minha família e meus amigos. Lágrimas rolaram de meu rosto. Não de tristeza, mas antes de tudo de profunda alegria de estar ali, naquele momento. Saí de Burgos e pernoitei no Hotel Feijoo. Com direito a assalto ao frigobar e uma breve tentativa de ligar a televisão. Funcionava, mas a imagem era ruim e 94


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com a programação, pior. Banho e cama. Preparação para no dia seguinte ir a Santiago de Compostela. A chegada à estação fez meu coração bater mais forte. Primeiro era preciso arrumar um lugar pra ficar, já que – na época – não havia albergue da juventude por lá. Entrei em algumas pensões, achei umas muito estranhas, outras muito caras, e acabei optando por um quarto com banheiro coletivo no fim do corredor. A cama era enorme e a impressão que tive era de que acordaria no chão; ou porque o imenso volume afundaria durante a noite, ou porque seria catapultado por alguma velha mola enferrujada. Deixei a diária paga, larguei a mochila no quarto e saí. Direto para a praça e daí para a famosa Missa do Peregrino. A catedral de Santiago tem o maior incensório do mundo. Se não me engano, são necessários sete homens para fazê-lo voar de um lado para outro num belo e inesquecível momento. Estar ao lado do pessoal que acabara de terminar o Caminho foi emocionante. Lembro-me que era Ano Santo Compostelano, ou seja, o dia 25 de julho cairia em um domingo. Se for escrever todas as vezes que chorei de emoção, alegria e agradecimento, vou ter que fazer um P.S. só pra isso. Vi a porta pela qual os peregrinos passam, o escritório no qual recebem a Compostelana – o diploma que atesta que você completou o Caminho a pé, de bicicleta ou a cavalo. Há também, na Catedral, a urna com os restos do apóstolo Tiago. Do lado de fora da porta do escritório lateral, dezenas de homens se aproveitam para ganhar uns trocados como se fossem peregrinos sem dinheiro precisando voltar para casa. Este foi um dia intenso e que rendeu bem. Já havia visto e sentido duas cidades do Caminho, que ainda está na prateleira de meus sonhos. Conversando com outros turistas, vi que não há muito o que ver ou fazer em Santiago. Decidi então pegar o último trem para Porto (Portugal). Tudo bem, minha noite já estava paga. Cheguei ao quarto e notei que, além da cama assassina e do penico de porcelana, havia a ausência do aquecedor. Foi o que faltava. Catei a Liberdade e deixei a mulher praguejando ou me agradecendo pela grana fácil que tinha feito. Poderia acomodar outro hóspede no velho colchão. Desci em desabalada velocidade para chegar à estação a tempo de entrar no trem para Portugal. Havia uma conexão em Redondela, uma estação bem pequena, mas grande o suficiente para os dois policiais que me pararam. Checaram minha documentação e fizeram umas perguntinhas básicas. Trem 95


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com chegou, embarcamos. Não tão confortável quanto o outro, mas certamente mais aquecido que o quarto no qual dormiria em Santiago. Minha preocupação era chegar e não conseguir fazer o check-in no albergue, já que há uma hora limite. Para adiantar o serviço, aceitei a ajuda de um colega de viagem lusitano, que me ofereceu uns trocados para que eu pegasse um autocarro até a rua tal e descesse no segundo ponto, dobrando na rua tal estaria no albergue. O que aconteceu? Cheguei ao albergue juntamente com um grupo que saíra para se divertir. Só que eles me confirmaram a impressão que já tinha: não poderia entrar agora. O local só estava aberto para os registrados. Teria que esperar o dia amanhecer. Onde? Saí andando em busca de alguém que pudesse ajudar um andarilho, com uma mochila, um chapéu preto e uma pochette. O lugar pelo menos não era tão deserto. Havia movimento de carros. Finalmente, alguém vem em minha direção. Pergunto-lhe se não conhece uma pensão ou local onde pudesse passar a noite. Ele se oferece para me ajudar, depois de perguntar se eu era brasileiro. Entrava nos “buracos” e saía resmungando coisas que não entendia muito bem. Até que me disse que havia uma senhora que alugava quartos para viajantes. Levou-me até lá. Agradeci-lhe pela ajuda. A dona fechou a porta e eu comecei a me sentir feliz de ter um lugar para passar a noite. Ela, então, estirou o braço e disse: “Dinheiro!” Tentei argumentar, dizer que era sábado à noite e que não fizera câmbio na estação para tentar pegar o albergue aberto... Ela nem me deixou terminar. Abriu a porta da rua e disse que era o dinheiro ou a rua, com o opcional da polícia. Preferi sair sem a escolta. Na rua novamente, caminhando, gente passando e eu acompanhando com o canto do olho, pra ver se não vinham atrás de mim. Até que meu medo se cristalizou, ou será que fui eu que me cristalizei de medo? Esse cara passou e foi me olhando, parou e se virou. Aí, quem parou fui eu e fiquei calado olhando pra ele. Abrindo um sorriso, ele me perguntou: “Queres heroína?” Em uma conversa com meu pai, pouco tempo antes de minha viagem, ele me disse que estaria em terra estrangeira, em contato direto com pessoas que não falavam nossa língua. No entanto, “há uma coisa que é universal: o sorriso. Ou seja, quando disser sim ou não, faça-o com um sorriso, pois, se a pessoa não entender sua língua, pelo menos o sorriso vai entender e pode lhe poupar situações embaraçosas”.

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Meu grande problema era achar – em algum lugar do meu ser – o sorriso que meu pai me recomendara. A pergunta do rapaz foi simples. Resolvi ser simples e direto: “Não, muito obrigado. Mas, se você conseguir achar hotel ou pensão onde eu possa passar a noite, será um verdadeiro herói para mim!” Não sei bem o porquê, mas ele bateu no meu ombro como quem diz “siga-me”, e eu o segui. Sei que foi uma atitude um tanto tonta de minha parte, achar que um traficante vai me indicar um local decente para dormir. Contudo, meu cansaço era tamanho – e obviamente visível – que não tive outra opção a não ser segui-lo. Chegamos a uma bifurcação. A rua à esquerda era curva e tinha um enorme tapume, que me impedia de ver seu fim – ou até mesmo se tinha um fim! “Está vendo esta rua? Siga e encontrará um hotel bom para passar a noite.” Murmurei um obrigado e comecei a andar devagar, sem sinal de hotel nenhum à minha frente. Só escuridão. Parei, olhei para trás e o cara já não estava mais lá. De um lado, meu cansaço implorava que continuasse; do outro, era a cautela que berrava aos quatro ventos o quão inocente tinha sido. No meio dos dois, sempre a minha frente, olhando fixamente em meus olhos, estava meu medo. “Você vai ser assaltado! Está louco? Como pode acreditar na palavra de um traficante? Não há hotel no final da rua. Tudo que encontrará será seu comparsa, que vai levar sua mochila e tudo que tem. É o fim de sua aventura e vai voltar para casa e ter que viver com a dimensão de sua estupidez!” No meio desse tagarelar, consegui forças para caminhar. Um passo de cada vez, olhava para trás e já não via nem a avenida onde o rapaz desaparecera. Só me restava voltar para onde estava antes e continuar a procurar um hotel; ou seguir em frente e pagar o preço de minha crença de que, ao olhar alguém nos olhos, você percebe a intenção dessa pessoa. Decidi continuar, porque juro ter visto sinceridade nos olhos daquele traficante. Minutos, nada mais, foi o que levou para ver o canto do letreiro luminoso do Hotel Tuela. Entrei e – a julgar pelo olhar da recepcionista – não devia haver uma gota de sangue em meus lábios. Perguntei se tinha um quarto. Ela me disse que havia dois hotéis e os quartos da parte antiga eram mais em conta. Barato ou não, estava decidido a ficar. Ao ver o quarto e saber o preço, pensei alto: Eu mereço! No bom sentido. Ao que ela respondeu: “Você deve estar exausto!” Confirmei e disse que, depois de um bom banho e uma boa noite de sono, estaria novo em folha.

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com No outro dia, acordei tarde. Era um domingo, e o horário de café da manhã já havia acabado. Decidi cruzar a assustadora rua da noite passada. Havia um enorme restaurante bem em frente ao hotel. Foi lá que me preparei para mais um dia de caminhada. Enquanto comia, fui analisando o mapa que conseguira no hotel. Resolvi visitar o Castelo do Queijo. Afinal, estava no Porto, terra do bom vinho português, e seria maravilhoso degustá-lo com um delicioso queijo, em frente ao mar. Itinerário traçado, ônibus escolhido, fomos margeando o Rio Douro até sua foz, onde saltei do ônibus e completei o resto do caminho a pé. Podia sentir o gosto do queijo. Quando cheguei bem perto do Castelo, estranhei a ausência do aroma característico. Terra de especialistas, imaginei. Vi um cartaz que dizia o preço da entrada. Recebi o ingresso e um pequeno panfleto informativo. Desconfiado, entrei e vi umas armaduras e bastante munição. Parei e olhei para um dos senhores da roleta de entrada e perguntei: Escuta, não tem muita bala e pouco queijo aqui? Eles apontaram para uma imensa rocha no centro do Castelo e me disseram que o local tinha essa denominação devido ao formato da rocha. A única dúvida que me acompanhou enquanto visitava aquele belo ponto turístico da cidade do Porto foi se fui o único desavisado e estúpido o suficiente para crer que havia queijo naquele lugar. A despeito disso, o pôr-do-sol na foz do Douro foi um belo espetáculo. Fechando um dia tranqüilo, depois de uma noite tão agitada, voltei em um ônibus cheio de torcedores do Futebol Clube do Porto que retornavam do estádio. Era preciso partir. Próxima parada: Lisboa. Pela primeira vez, estaria fazendo algo muito importante em uma viagem como essa: usar o trem noturno. Economiza-se tempo e acomodação. Chegamos ao amanhecer de um dia muito frio, pra variar. Meu café da manhã, para acordar mesmo, foi uma Coca-Cola. A dor nos dedos pelo frio, somada à temperatura da lata, acorda qualquer um! Era preciso fazer um câmbio e seguir para o albergue. Da estação, pega-se um trem urbano e um ônibus para chegar a Oeiras, onde fica o albergue de Catalazete. Para compensar o atraso no Porto, cheguei antes do horário de abertura, e tive que esperar, juntamente com outros mochileiros, para nos registrarmos. Procedimento padrão cumprido, mapa em mãos, parti para visitar o Estoril e Sintra. Aqui tive minha primeira surpresa agradável relacionada ao Rail Pass. Era possível usá-lo nos comboios urbanos, com isso economizava a passagem. 98


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Na estação, fui perguntar a uma moça se aquele era o local certo para se pegar o comboio para o Estoril. Ela me disse que era do lado oposto. Quando comecei a ir na direção que me indicara, apareceu uma mulher ao meu lado. Era brasileira e acabara de sair do trem errado. Estava indo para o Estoril também, só que precisava andar uma estação e pegar seu carro. Ela era de Minas e estava trabalhando lá como dentista. Carona legal, papo bom, mas chegamos ao banco onde ela buscaria seu marido. Deu-me umas dicas do autocarro a pegar e me desejou boa viagem. Na subida para Sintra, passei ao lado do circuito do Estoril, onde se realizava o Grande Prêmio de Portugal de Fórmula-1. Como Sintra fica nas alturas, já era de se esperar que estivesse mais frio e chovendo. No entanto, provou ser um excelente local para aqueles que, como eu, não se interessam muito em ver lugares famosos. Antes, era preciso caminhar; ou ainda, parodiando Fernando Pessoa, “caminhar é preciso, viver não é preciso.” Na volta, parei em frente ao cassino do Estoril e tirei umas fotos. Peguei o comboio e cheguei meio cedo ao parque onde fica o albergue. Ao retornar para Catalazete, ainda com o sono atrasado pela noite no trem, sentei-me em uma cadeira de frente para o rio e, embalado pela tranqüilidade daquele fim de tarde ao sol, adormeci. Meia hora de sono reparador. Entrei e achei meu quarto. Um de meus companheiros nesse albergue era gaúcho, seu nome era Ivan, e estava passando um tempo em Lisboa. Disse-me que estivera na Grécia e me incentivou a visitar as ilhas gregas em minha próxima viagem. Divertimo-nos muito pois, na hora do jantar, as mulheres ficavam assistindo a uma novela brasileira, “Pedra sobre Pedra”. Queriam saber quem acabava com quem, mas fingíamos não saber. Elas insistiam e dizíamos que as novelas eram uma grande fonte de exportação para o Brasil e estaríamos indo de encontro aos interesses patrióticos, se revelássemos o fim. Ademais, inventamos que os finais eram alterados, para melhor vender o produto no mercado internacional. Catalazete é um albergue construído em um antigo forte. Os quartos tinham dois beliches, e os banheiros eram comunitários, apenas separados entre feminino e masculino. Da janela se via a foz do Tejo. Foi um dos melhores albergues em que me hospedei. Apesar da distância de Lisboa, meu destino no segundo dia.

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com No caminho, passávamos pela Torre de Belém. E, ao chegar ao centro, fui caminhando até o Marinho da Arcada. Café-restaurante onde Fernando Pessoa costumava sentar e escrever. A dona lhe oferecia sopas, pelas quais pagava com poemas. Da Praça do Comércio, vi um castelo. Sem a ilusão de lá encontrar qualquer tipo de queijo, subi as ruas que dão acesso ao Castelo de São Jorge, um dos principais pontos turísticos da capital portuguesa. A vista que se tem do Tejo e da cidade é fascinante! É curioso estar percorrendo ruas de um país que não é o seu e se descobrir nelas. Nossas raízes européias na arquitetura, no linguajar, nas feições do povo que colonizou o Brasil. Andar nas ruas de Lisboa é como estar nos centros históricos das antigas cidades brasileiras. Depois de mais um pernoite em Catalazete, tendo me divertido muito e recebido dicas e mapas valiosos do Ivan, parti para uma perna um pouco mais longa. Talvez a mais longa feita de trem. Saí da capital de manhã e fui a Madri, de onde peguei outro trem para Barcelona. Foi o dia todo de viagem, cruzei praticamente toda a Península Ibérica e cheguei na Catalunha de manhã. Devo admitir que foi uma das etapas mais monótonas da viagem. Para fechar com “chave de ouro”, tinha tirado meus tênis e estava mais dormindo que acordado – julgava que ainda havia mais uma estação, já que ninguém desembarcara – quando um de meus companheiros de cabine me disse que, se não corresse, ficaria no trem. Este continuaria viagem sei lá eu pra onde. Tudo que pude fazer foi catar meus pedaços e sair, batendo com a mochila em paredes e cabines, repetindo licença e desculpa, até me ver fora do trem. Havia, por sorte, um banco em frente à porta por onde pulei para fora do trem, antes que o bicho saísse. Lá sentei e pude me recompor. Amarrar os tênis, afivelar o cinto, respirar fundo, e só então ver que o dia, para compensar, amanhecera maravilhoso. Com um sol fantástico. Tudo que tinha a fazer era seguir as instruções do gaúcho e, da estação ao albergue, seria um pulo. Depois de me registrar, saí caminhando até o Mediterrâneo. Queria ver se suas águas eram realmente exuberantes como nas fotos de panfletos de agentes de viagem. E eram. Digo mais, surreais! Não sei explicar, mas tenho uma estreita ligação com a água. Vastos oceanos e mares me transportam para um lugar dentro de mim onde há uma paz que me reabastece de forças, coragem e fé. Com o mapa do Ivan, cheguei a um píer de onde podia ver parte da Vila Olímpica. Barcelona sediara as Olimpíadas um ano antes. Ao consultar meu mapa, vi que o Parque de Monjuic ficava a minha esquerda. Mas deixei aquela 100


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com parte para o dia seguinte. Segui rumo à Sagrada Família, uma belíssima catedral, com uma fachada inesquecível em seus detalhes elaborados por Gaudi. Depois de bater muita perna, sentar em praças, escutar os locais, voltei para o albergue. Cabe aqui uma nota: estava viajando há cerca de sete dias, e somente em Barcelona pude comemorar a volta de meus intestinos à atividade. Está certo que não estava me alimentando bem, mas acho que a ansiedade teve um papel importante nessa “greve”, que, segundo me disseram, é normal. Outra coisa que pude celebrar foi o retorno de minha urina à coloração cristalina. Estava ingerindo pouco líquido. Ainda mais se levarmos em consideração que estava suando muito, a despeito da temperatura. Terminei essa primeira semana considerando-me adaptado ao ritmo da viagem de meus sonhos. Lições aprendidas seriam praticadas. Você deve estar pensando que minha memória é excelente, mas tenho que creditar o Thomas – meu anfitrião americano – por me incentivar a escrever diários de viagem. Certos detalhes vão se perdendo com o tempo. Outra coisa que me ajuda muito agora é a internet. Junte-se a isso, o monte de mapas, guias e lembranças que fui coletando ao longo do caminho. Nada grande demais ou pesado demais, afinal, era o verdadeiro caramujo, carregando minha casa nas costas. Outra coisa interessante que me ensinaram é que, já que passamos por tantos países, com tantas moedas, precisamos estabelecer um padrão para caro e barato. Meu padrão foi a típica refeição. Tudo era calculado em termos de uma, duas ou três refeições. Com isso, pude me controlar bem e gastar bem menos que esperava. Até agora nenhuma grande mudança de planos, certo? Errado. Essa viagem longa de Lisboa a Barcelona não era parte do trajeto original. Havia uma visita a Sevilha. Sem trens direto de Portugal para lá, era preciso pagar um de Madri, pois os trens que iam para lá não estavam incluídos nos que aceitavam o Rail Pass. Deletei Sevilha e fui direto para Barcelona, e não me arrependo. Outra nota que preciso fazer aqui: se não tive um torcicolo foi por pura sorte. Não sei dizer onde havia mulheres mais bonitas. Uma beleza diferente daquela da mulher brasileira, que é especial, mas, olhe... E era isso que eu fazia, olhava deslavadamente. Bem, em meu segundo dia de Barcelona, fui visitar o Parque de Monjuic. Ao chegar à estação do teleférico que dá acesso ao monte, este ainda estava fechado. Era muito cedo, cerca de nove horas. O serviço começaria às 10h45. Ora, por que esperar? Saí e comecei a escalar o caminho que levava ao local 101


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com onde foram realizadas muitas das competições olímpicas. Ao longo da subida fui me deliciando com a vista, embora a cidade estivesse ainda encoberta por uma suave neblina. Logo estava vendo o Estádio Olímpico. Entrei e me lembrei da cena em que um arqueiro acendia a Pira Olímpica com uma flecha de fogo. Depois – graças a um novo ângulo de filmagem – viu-se que a flecha apenas passou por cima da pira, que foi acesa mecanicamente. Pude ver de longe o ginásio no qual a equipe de vôlei masculino do Brasil ganhou a medalha de ouro. Continuei andando e me maravilhando com as cenas que se sucediam. O parque aquático onde se realizaram as provas de natação e saltos ornamentais, com a vista da cidade ao fundo, e a neblina já se dissipando. O local é cheio de ruelas ladeadas de jardins bem cuidados que tornam o passeio não só recomendável, mas, diria, imperdível. Há também um palácio lá em cima. Na descida, passei por uma Plaza de Toros e por uma praça em homenagem a Juan Miró. Havia esculturas suas espalhadas por entre gramados e pequenos caminhos. Aproveitei a proximidade da estação de trens para saber os horários para Monte Carlo. Para meu deleite, ao esperar, assisti pela televisão ao treino classificatório para o Grande Prêmio de Kayalami de Fórmula-1. No último segundo, o saudoso Ayrton Senna arrancou um segundo lugar, à frente do Alain Prost – e era o que importava. Não me segurei e soltei um berro. Depois, ciente da mancada, quase enfio a cabeça em meu casaco. Mas, por dentro, vibrava de estar ali, caminhando, espalhando minhas pegadas e dar a sorte de ver a proeza do Senna. Busquei a Liberdade, que já estava no depósito – tinha feito meu check-out de manhã –, e voltei para a estação Sains. Aproveitei para atualizar meu diário de viagem, jantar e continuar minha hidratação. Era sexta-feira e, à medida que o final da tarde se aproximava, maior era o número de passageiros na estação. Seria mais um pernoite em trem. Houve uma parada em Cerbere, na fronteira com a França. Na época, era necessário visto para aquele país. Passaporte carimbado, seguimos viagem. E com os primeiros raios de sol, comecei a ver os contornos das cidades da famosa Costa Azul do Mediterrâneo: St. Tropez, Cannes e, finalmente, Nice, meu destino. Mochila no guarda-volumes, embarquei em outro trem para o Principado de Mônaco. Louco por Fórmula-1 como sou, não perderia essa oportunidade. Ao chegar à estação, não consegui um mapa. Olhei para fora e vi um certo mar de

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com gente descendo uma avenida. Concluí que o melhor a fazer era seguir a multidão. E não demorou muito, percebi que estava no caminho certo. As tão famosas ruas do principado que abrigam o circo da Fórmula-1 uma vez por ano foram aparecendo na minha frente. Descendo a Avenida do Porto, comecei a fazer o traçado pela contramão, curvando na Rascasse, em direção ao porto onde ficam os S’s da Piscina, subindo em direção ao túnel. Maravilhado por tudo que via – de vez em quando, parava e ficava espantado de imaginar a velocidade com que os carros passavam por ruas em que mal cabiam dois carros de passeio. Ao chegar ao túnel, vi que era vazado. De dentro, tinha-se uma bela vista do Mediterrâneo. Logo ao sair, vi uma loja da Ferrari, com uns “carrinhos” em exposição. Babando, continuei minha peregrinação pelas trilhas que fizeram a glória de tantos heróis da Fórmula-1. Sem esquecer dos acidentes, os quais – à medida que andava – julgava cada vez mais inevitáveis. Serpenteando, em direção ao Cassino, parei para tirar uma foto da praça que há em frente. Percebi que havia um policial me observando. Continuei meu caminho, andando normalmente, em direção à porta. Não queria entrar no cassino, apenas vê-lo mais de perto. Fui bloqueado por outro policial, que falou comigo em francês. Expliquei que não falava sua língua. Nisso, o outro, que estava me observando antes, se aproximou e pudemos nos comunicar em inglês. Fizeram as perguntas de praxe; pediram meu passaporte; chamaram alguém pelo rádio que carregavam (não havia celulares) e, meio a contragosto, me liberaram. Com essa minha cara de cearense, andando em Monte Carlo, entrando da loja da Ferrari, fazendo menção de adentrar o cassino... Elemento suspeito e perigoso! E ainda havia um agravante: quando fui renovar meu passaporte, levei duas fotos recentes. A Polícia Federal colocou uma delas em minha ficha e carimbou meu passaporte com a nova data de vencimento (9/11/2000). Recapitulando, estávamos em 1993 e minha foto do passaporte era de 1987, de quando fui para os Estados Unidos. Prevendo esse tipo de aborrecimento – já que me garantiram que não teria problema algum –, meu pai mandou fazer uma carteira dessas que têm o brasão do nosso país e pedimos para gravar “Federative Republic of Brazil”, juntamente com o número de minha identidade. Levei, também, uma cópia da foto que ficou na Polícia Federal, e foi ela que apresentei aos policiais que me pararam e duvidaram que fosse eu mesmo.

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Subi de volta para a estação e peguei o trem para Nice. Eram 20 minutos de viagem. Suas ruas ainda tinham as marcas do carnaval recém-acabado. Seu povo – muitos africanos ou descendentes – era alegre, e a atmosfera, semelhante à do Rio de Janeiro. O que vale no Rio vale em Nice. Saiba aonde vai. E fui pro McDonald’s, pois ninguém é de ferro. Precisava fazer uma boa refeição, já que mais um pernoite em trem me separava de Roma. Essas viagens noturnas têm umas coisas muito engraçadas. Houve uma (Porto – Lisboa) em que tivemos a companhia do “homem-aranha” em nossa cabine. O cara entrou, quando ainda nos acomodávamos, e subiu pelas poltronas, indo se instalar no compartimento de bagagens. Lá permaneceu até o desembarque; sorrateiro como o embarque, deixando-nos a nos entreolhar, antes da inevitável risada. Outra coisa divertida era a passagem do bilheteiro. O sujeito aparecia no melhor do sono; ou quando você finalmente encontrava uma posição; ou ainda, quando o digníssimo companheiro de cabine abaixava os decibéis de um ronco assustador. Chegava, batendo na porta, acordando todo o mundo, alguns com cachorros farejando tudo. A diversão ficava por conta das trapalhadas que aconteciam pela “embriaguez” que o sono, aliado ao cansaço, produz em nós. Pediam o bilhete e eu dava o passaporte; pediam o passaporte e eu dava o Rail Pass; e por aí vai. Nunca acharam graça de nada... Na verdade, na hora, nem eu achava. Cheguei a xingar muitos deles (mentalmente, é óbvio!). Roma foi mais um de meus destinos sobre o qual recebi vasta informação de meus companheiros mochileiros. Quando cheguei em Roma Termini, já sabia até que metrô e ônibus tomar para o albergue que ficava ao lado do Estádio Olímpico. Mais um belo amanhecer, mais um refrigerante gelado para acordar, e vamos nós. Na parada de ônibus, perguntei a uma ragazza quanto custava a passagem. Entendi-a me dizer que não precisava pagar (?). Ao solicitar sua confirmação – com meu parco italiano – ela disse “domenica”. Devia haver alguma coisa especial com o domingo. Nesse dia, não se pagava pelos ônibus. Que bom, pensei. Notei que não havia mesmo um cobrador ou bilheteiro, então ela devia estar certa. Perto do estádio, saltei e fui caminhando até o albergue. Procedimento normal, registro, mochila guardada, pernas pra que te quero! Os primeiros momentos da manhã eram sempre mais difíceis. As pernas e costas ainda doíam, o corpo ainda reclamava descanso decente, o sono ainda pedia cama, e o frio era mais “caprichoso” em seu torturar.

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com À medida que o sol ia subindo, tudo ia melhorando. E foi com isso em mente que peguei mais um ônibus gratuito para a Cidade do Vaticano, meu primeiro ponto de parada em Roma. Quando entrei no Maracanã pela primeira vez, vi que era bem maior que imaginava. Efeitos de televisão ou fantasias de menino... Ao adentrar a Praça de São Pedro, aconteceu exatamente o contrário. Tudo é grandioso, mas não tanto quanto esperava. Uma vez dentro da Basílica, onde está o túmulo do apóstolo Pedro, vi que havia uma tour até o topo. Para isso, é óbvio, precisávamos pagar e estar bem preparados fisicamente. Tudo isso alertado em cartaz, em várias línguas, para prevenir inconvenientes. Explico: eram 330 degraus até o topo da cúpula, para chegar mais perto dos famosos mosaicos que revestem o teto do principal templo da fé católica. Como reclamamos de tudo, lá pela metade da escadaria o povo começa a bufar. Daí para os impropérios – primeiramente mentais – é um passo, ou melhor, um degrau. Finalmente, chegamos ao fim da escalada. Nossa recompensa é uma bela vista da praça apinhada de turistas e devotos, bem como uma perspectiva única da Basílica. De volta ao andar térreo, passei pela Pietá – imagem de Maria com Jesus em seu colo, após a crucificação – e pelo túmulo do primeiro Papa, Pedro, o pescador. Com minha estatura, ficava difícil brigar por um lugar mais à frente para ter uma melhor vista de ambos. Além do mais, não era bem esse o espírito de minha caminhada. A Capela Cistina estava fechada para reformas, então dei como encerrada minha visita ao Vaticano e cruzei o rio em direção à Fontana di Trevi. Era tudo simples, bastava olhar no mapa e apontar: Vou para cá! Ver as ruas e chegar. O máximo que acontecia, às vezes, era pedir informação com meu já mencionado italiano. Bela fonte, cenário de vários filmes, e belas donas. A primavera começava a despontar no horizonte; com isso, as pessoas estavam mais felizes, usando menos roupa. Cumpri o ritual de jogar uma moeda brasileira na fonte e saí batendo perna. Almocei uma pizza, finalmente a pizza italiana genuína de que tanto se fala. Resumindo: prefiro a nossa! O sol já descia quando cheguei ao albergue e, depois de um banho e limpeza geral – ouvidos limpos, unhas cortadas, barba feita –, resolvi fazer hora para o jantar atualizando meu diário. Meu erro foi querer fazê-lo deitado em meu beliche de número 97, naquele quarto com cinco beliches. De meu leito, podia ver a avenida que passava nos fundos do albergue. Com a noite mal dormida

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com no trem, somada ao cansaço do dia, dormi solenemente em cima de minhas anotações. Acordei assustado. Buzinas, muitas buzinas. Era um engarrafamento na avenida. Lembrei que me ofereceram ingressos para o jogo Roma x Lazio. Eram os torcedores voltando do clássico local. Um pequeno acidente envolvendo uma lambreta acontecera em frente à minha janela. Como havia lambretas na Europa! A pizza deu conta do recado, e a exaustão falou mais alto. Embarquei em um sono de doze horas. Revigorante. E nada melhor do que um café da manhã farto para completar o serviço. Com o ar primaveril daquela manhã, saí sem meu casaco de couro pela primeira vez. Naquele dia, conversando com um dos brasileiros que estavam no meu quarto, quis saber sobre a “promoção” do transporte grátis aos domingos. Ele não entendeu nada. Expliquei-lhe o que havia acontecido. Ele, então, começou a rir e me disse que eu escapara de uma boa. Na verdade, não há a figura de um cobrador, mas você precisa comprar nas tabacarias, ou mesmo no albergue, um bilhete, que deve ser perfurado no ônibus. De repente, tudo fez sentido. Lembrei dos passageiros entrando e passando um cartão por uma espécie de máquina. Ele disse que se eu fosse pego sem bilhete, poderia até ser deportado. Esclarecido, saí de bilhete em punho e feliz de estar mais leve para uma boa caminhada. Saltei do ônibus perto da Praça Veneza, com seu majestoso Altar da Pátria. Descia ao largo do Foro Romano, quando vi um grupo de crianças atravessando a rua. Uma delas veio em minha direção, pedindo um trocado. Era uma menina. Disse com um sorriso e um alçar de ombros que não tinha moedas. Ela me olhou, balançou a cabeça e se juntou ao grupo. Poucos segundos depois, ouvi um grito. Eles tinham assaltado uns turistas a poucos metros de mim. Levaram suas câmeras, parece. Atordoado, procurei um lugar onde pudesse parar um pouco. Achei uma velha basílica. Cosme e Damião. Entrei e sentei num banco ao fundo da pequena mas simpática igrejinha. Minhas pernas tremiam. Era ele, o medo, mais uma vez. Alertando-me que não havia como perder o foco. Que, quando menos esperasse, ele poderia não só passar perto, mas puxar meu tapete e me jogar no chão. Acendi duas velas, fiz uma oração e fui para o Coliseu. Não sei se era o caminhar, mas estava com a sensibilidade à flor da pele. Ao chegar àquele pedaço de história, confesso que dei a volta em torno do lugar antes de entrar. E, ao fazê-lo, me deparei com um sentimento surreal. Visto de onde estava, o labirinto em ruínas guardava uma grande semelhança com o 106


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com cérebro humano. Ao juntar isso à memória das aulas de História, era como se besta e homem lutassem na mente humana. Estávamos todos digladiando com nossos medos, fraquezas, defeitos. Até hoje não entendo, mas ouvi um coro. Essa bela melodia que devia vir de algum lugar nas redondezas me trouxe de volta dessa espécie de transe em que estava. Não me canso de repetir, não compraria sequer um postal naquele lugar. É muito difícil descrever o que senti nas ruínas do Coliseu naquela bela manhã, décimo-segundo dia da minha jornada. De lá, fui até as Termas de Caracalla. Antigo banho que é usado nos verões como palco para espetáculos de ópera. Um impressionante conjunto de arcos, ambientes, complexos de banhos quentes e frios. Colunas caídas, restos de cerâmica, grandes gramados e casais se divertindo. Na saída confirmei que eram realmente prostitutas as mulheres que vira na entrada. De lá fui até a estação confirmar a hora de saída do trem para Assis no dia seguinte. Teria tempo de tomar o café da manhã no albergue e sair. Aproveitei o final de tarde para arrumar minha mochila, organizar roupas sujas, equilibrar as coisas, revisar mapas de cidades ainda por visitar e tomar mais um baita banho. É incrível a quantidade de pêlos que vão se depositar nos tênis. Com o corpo quase todo coberto, por longos períodos, com todo o roçar de mochila, pochette, casaco, calça jeans... Lembro-me disso todas as semanas, quando faço faxina em meu apartamento. Poucas cidades estavam em meu itinerário desde o primeiro dia. Assis era uma delas. Obviamente, devido a minha verdadeira fascinação por Francisco. Assim como Machu Picchu, é uma experiência. Tudo que descreverei aqui tem a ver com o que vi e fiz, pois gosto de resumir o que senti em uma simples afirmação: Assis é o lugar onde o sonho que os hippies quiseram viver foi realidade. Como a única informação que tinha era de uma aluna minha que passara por lá dois anos antes, achava que não havia albergue da juventude lá. Deixei a Liberdade na estação e saí procurando acomodação. Entrei na parte antiga e cercada da cidade. O coração batia forte de emoção. A Basílica estava a minha frente. É dividida em duas: a parte superior, cujo teto é coberto de afrescos de Giotto, construída sobre a original, onde repousa a urna com seus restos mortais. Na saída frontal da Basílica, há um belo gramado com a palavra PAX. É isso que se sente ao se caminhar pela cidade medieval e lembrar da história de fé e amor de Francisco e Clara, dos Irmãos Menores, do embrião da Ordem Franciscana.

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Tenho um medalhão que foi feito em homenagem aos 800 anos de nascimento de Francisco. Em 1993, estavam sendo comemorados os 800 anos de Clara. Aliás, visitei sua Basílica também. Bela. Seu corpo é preservado em uma cripta. A casa onde supostamente morou a família de Francisco e onde ele nasceu, o Templo de Minerva, que data do século I A.C., a Catedral de S. Rufino. Parei em uma tabacaria para perguntar sobre pensões, e o senhor me disse que havia o albergue da juventude. Estranhei, mas, seguindo sua indicação, cheguei ao recém-inaugurado “Ostello della Pace”. Fundado em 1991 por uma família de viajantes, o albergue é um sonho dos donos. Queriam retribuir por tudo de bom que receberam em suas viagens, dando aos viajantes a chance de ter acomodação decente em Assis. Tudo que tinha a fazer era buscar a Liberdade. Nos dois dias em que fiquei lá, andei mais de vinte quilômetros. Havia um argentino de nome Gustavo, com quem me encontrei ao voltar da estação. Como éramos os dois únicos hóspedes, a família nos ofereceu jantar nas duas noites em que ficamos lá. “Comam!” Delicioso como estava, e famintos como estávamos, nem precisava do incentivo. De nosso quarto, tinha-se uma bela vista da cidade medieval de Assis, toda iluminada. Aproveitei as confortáveis instalações para lavar roupas e colocá-las para secar no aquecedor. Em meu segundo dia, resolvi sair dos muros da cidade e ir – 4 quilômetros e meio, Subásio acima – até o Eremo delle Carceri. Era um dos lugares onde Francisco se refugiava. Há uma série de trilhas que recebem nomes como Trilha do Irmão Sol, Trilha da Irmã Lua. Lá sentei e relaxei um pouco, escrevendo postais e um poema em minha caderneta. Ao voltar para a cidade, perambulei pelas ruas, entrando nos becos, perdendome nas fachadas, para me reencontrar frente a algo grande o suficiente para estar em meu pequeno mapa. Assim passei o resto do dia, fechando com uma boa estirada até a Santa Maria dos Anjos. Uma catedral que foi erguida em volta da Porciúncula – local onde Francisco se reunia com os Irmãos –; e sua Capela da Transição – que era a enfermaria onde ele veio a falecer. Estava mais que energizado para voltar ao ostello. Ao chegar, Gustavo já esperava nas mesas colocadas à entrada. De dentro, surgiu o italiano com quem ficara “trovando” na noite anterior. Trazia nozes, amendoim e chá para nós. Ficamos lá, assistindo ao espetáculo do pôr-do-sol na Úmbria, com a Santa Maria dos Anjos como coadjuvante. No caminho para a estação, na manhã seguinte, parei algumas vezes e olhei para a cidade do amor e da paz.

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Assim como na vida, depois de tanta beleza é bom se preparar. A chegada em Florença foi por volta das 13. Uma hora depois, já estávamos no albergue – fantástico, diga-se de passagem. O plural fica por conta da companhia do argentino, do qual me separei para os respectivos objetivos na parte da tarde. Não queria centro de cidade, burburinho, muita agitação. Saltei do ônibus bem pra lá do centro, cruzei o Rio Arno e tirei uma foto magnífica da cidade. Caminhei ao longo do rio e acabei passando pelo coração de Florença. Parando antes em um minimercado, abasteci-me para o jantar. Depois de uma bela noite de sono, saí para encarar os monumentos. Mapa em mãos, Batistério, Duomo e Igreja de São Lourenço, com sua bela biblioteca que me fez lembrar do filme “O Nome da Rosa”. Vitrais, pinturas de pura arte sacra. As duras lições de Florença estavam apenas começando. Um sentimento estranho me acompanhava. Estava em uma das capitais da arte, efervescência em cada paralelepípedo, história onde quer que seus olhos mirem. No entanto, algo me fazia intuir que deveria ser ainda mais cauteloso que fora em Roma. Com as guerras nos países da antiga União Soviética, as ruas da cidade estavam coalhadas de imigrantes, ciganos, refugiados. Os arredores do centro transformados em verdadeiro mercado a céu aberto. Por tudo isso, saíra com uma pochette ainda menor que a Bússola, na qual cabia apenas minha câmera fotográfica e meus documentos. Logo após sair da Igreja de São Lourenço, busquei um ângulo melhor para uma foto de sua fachada. Como seria uma só foto, esqueci a pochette aberta. De repente, uma senhora se aproximou de mim com o que seria uma criança de colo envolta em panos escuros. Ao mesmo tempo em que fazia sinal que não tinha trocado para lhe dar, enfiei a câmera na pequena pochette e mantive a mão cobrindo-a, já que não tivera tempo de fechar o zíper. Ela continuou se chegando e se curvou para mostrar a suposta criança. Foi quando senti sua mão tocar a minha. Tentava roubar minha câmera. Olhei sério para ela, bem fundo em seus olhos. E o sorriso se desfez em meu rosto. Ela, então, calmamente se foi e se misturou à multidão. Ainda rodei pelas tendas, mas – por uma razão que até hoje não compreendo – Florença morreu no olhar daquela mulher. E junto com isso, desapareceu minha vontade de visitar esse ou aquele ponto turístico. Tudo que queria era ir para a estação. Minha mochila já estava lá. Longe de mim dizer que todos em Florença eram oportunistas como a mulher da praça. Pela manhã, quando ia levar a Liberdade para um guarda-volumes, 109


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com parei e pedi informação a um senhor sobre a “stazione”. Num exemplo de comunicação com muito poucas palavras que uso até hoje, largou o que fazia e atravessou a rua, com a mão em meu ombro. Olhou para mim e para a calçada a nossa frente. Com sons, disse que devia seguir em frente; com as mãos, disse que deveria parar, subir escadas, caminhar, descer escadas e me virar. Aí, completou com um sorriso e um “stazione”! Agradeci e lá cheguei sem problemas. E foi para lá que voltei quando cheguei a esse ponto em minha viagem. Um ponto em que uma série de fatores esperados se juntam e cortam o fornecimento de energia para o cérebro, causando assim o caos na cabeça do viajante. Depois de almoçar, lá estava, sentado à beira dos trilhos, contando os vagões dos trens que passavam. Ali fiquei muito tempo. Tempo suficiente para me perguntar porque não temos trens no Brasil. Será que é porque tiraria milhares de caminhões e ônibus de nossas estradas? Será que precisamos manter nossas estradas em constante uso de petróleo, seja na forma de asfalto, pneus, combustível, óleo lubrificante? Comprei um cartão e liguei para casa. Falei com meu povo e isso me fez bem. Parece que meus postais estavam muito atrasados. Só tinham recebido um, por isso foi um alívio para eles também. Saí do Campo Marte e caminhei por sua vizinhança. Era perto do estádio da Fiorentina. Parei em uma loja para ver um jogo de tênis da Steffi Graf. Depois voltei para a estação. Havia um cara com um violão. Lembrei-me do André e de que estaríamos nos encontrando em breve. Pude fazer um balanço da viagem até aquele ponto. Estava cumprindo o que me prestara a fazer: espalhar pegadas por aí. Mas vivia uma espécie de “ressaca” de Assis. Um certo cansaço de dormir em tantos e tão diversos lugares, e acordar tentando me localizar. A maioria das noites sonhava que estava em casa, ou no Brasil. Podia ser a saudade das pequenas coisas que só sentimos quando nos são tiradas. Pelo menos até aqui, nada estava enquadrado na categoria de inesperado. Depois de ter dormido minha primeira noite em uma estação de ônibus nos Estados Unidos, quando “desenhei” meu trajeto, sabia que dormiria em trens, estações, albergues bons e ruins, hotéis bons e ruins e que haveria muitas esperas. Esperas como esta. São esses os momentos em que o medo se aproveita de nossas fraquezas e mostra sua cara.

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Mas o sol sempre nasce. E quando o astro-rei apareceu, estava entrando em um novo país: Áustria, mais precisamente Innsbruck. E foi o reflexo do sol nos nevados picos do Tirol que me trouxeram de volta à tona. Achei o albergue, que mais parecia um hotel cinco estrelas. Na recepção, como ademais em vários deles, cédulas dos mais diversos lugares do mundo. Fiz minha contribuição e saí para caminhar naquela bela manhã. Innsbruck foi sede dos Jogos Olímpicos de Inverno, e visitei o local de algumas das competições. A cidade antiga é bem atraente, com seus cafés, e antigas e douradas fachadas. Expresso delicioso! Parti para o outro lado do rio e senteime ao sol. Postais para casa e amigos. Respirar ares diferentes. Não havia a agitação de Florença, que começava a desaparecer da minha memória. Aproveitei as belas acomodações para atualizar meu diário de viagem. Oportunidade para lavar roupas e organizar a mochila. Verificar que estava adiantado em meu planejamento, o que me obrigaria a confirmar com o André se poderia chegar antes do previsto. Meu próximo destino era Basiléia, na Suíça. Último dos destinos claramente mapeados antes de sair do Brasil. Depois de lá, só havia de claro Paris e Londres. O resto era meio nublado. E foi num dia enevoado que desembarquei na pacata Basiléia. O albergue ficava por trás de uma igreja de onde se via o Reno. Ruas limpas, gente sorridente com a primavera que chegava, desfiles saudando sua chegada. E eu com um mapa cheio de lugares circulados, referências de um companheiro de quarto. Comecei a andar e me perdi. Desisti do mapa, pois só está perdido aquele que não sabe para onde vai. Eu sabia. Estava pisando em meu objetivo. Era o agora, aquele metro quadrado era meu objetivo, o próximo passo, as fachadas daquele quarteirão, as belas mulheres que passavam por mim, a pequena e simpática vendedora que me vendeu uns canivetes de lembrança. Assim, passeando sem rumo, acabei passando por todos os pontos que estavam circulados. Não sei absolutamente o que são nem o porquê de estarem circulados. Beleza, talvez. Eram belos. Exóticos? Com certeza. Mas não era isso que me trazia ao Velho Continente. O que nos traz à memória o fato de que, como nessa parte da jornada as cidades são muito perto umas das outras, teria que usar uma como base e partir dela para visitar as outras. A idéia original, embora ainda em aberto ao sair do Brasil, era ir a Estrasburgo, ficar um ou dois dias lá e ir para Utrecht, de onde visitaria Amsterdã e Liége.

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Quando chegamos a Estrasburgo, chovia horrores. Eis um componente novo na viagem: a chuva. Decidi mudar minha “base” para Bruxelas. Chovia copiosamente quando cheguei ao albergue. Não havia mais vagas. Fui informado sobre um outro, onde talvez encontrasse abrigo. No mesmo mapa que me mostraram onde ficava esse outro albergue, localizei uma estação. Perguntei se era de lá que saía o trem para Paris e me disseram que sim. E assim foi feito. Tudo em um dia de chuva. Passei por Estrasburgo e Bruxelas, e fui parar na estação Midi. O trem para a capital francesa saía à 01h55. Eram 21h. Havia muito a esperar, muito frio, e apenas uma sala de espera. Devia ter uns 5x7 metros. Com bancos de plástico em volta. Catei minha agenda de bolso e comecei a escrever. Parei e conversei com um cara do Zaire. Uma mistura de francês e português, salpicado de gestos e umas gotas de inglês foram os ingredientes de nosso entendimento. Mas ainda havia uma surpresa maior preparada para mim. Lá pela meia-noite, havia uma senhora já idosa, que me lembrava muito minha avó Helena. Ela me olhou e eu, mais para espantar o frio, o medo e a solidão, perguntei se ela falava inglês. Ela não só falava inglês, mas também uma meia dúzia de outras línguas. Não era fluente, mas se comunicava e muito bem. E nessa salada de línguas, começamos a conversar e eu a lhe contar minha aventura. Estava perto da 1h quando lhe perguntei se não era muito tarde para estar fora de casa. Ela então me respondeu que estava em casa, morava ali. Disse que havia um lugar onde passava a noite. Com certeza, ela sentiu que eu não conseguia esconder minha surpresa. Como pode alguém assim, que fala seis línguas diferentes, uma senhora de idade, que poderia ser minha avó, morar numa estação? Essa é uma das impressões mais fortes que trago de minha curta passagem pela capital belga. Depois que cheguei aqui, não faltaram os que me censuraram por não ter visitado a cidade, que é magnífica. A todos, só posso oferecer o silêncio de quem estava lá e sabia que era o melhor a fazer. A viagem de Bruxelas a Paris foi a pior de todas que fiz. As palavras que usei em meu diário estão mais próximas da realidade. O tempo se encarrega de dosá-las com um pouco de cautela. Lembro-me do passageiro da frente que quase me nocauteia com o encosto de sua poltrona. Havia também um espaço mínimo entre os assentos. Ou seja, quando chegamos à bela Cidade Luz meu humor inspirava cuidados. Nada como voltar ao que foi traçado antes. Nada como a segurança de um local que dispunha de mapas e dicas de amigos desde antes de sair de casa. Sabia que ônibus tomar ao chegar à estação, que linha de metrô, onde saltar, como 112


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com achar o albergue... E, para completar, o sol nasceu resplandecente naquela manhã. O Albergue ficava perto da praça da República. Logo, estava na rua. Tomei o metrô em pleno Champs Elisée. Chique, não? Uma das primeiras coisas que fiz foi comprar um cachecol, pois sentia que minha garganta começava a dar sinal de vida. Sentei em um dos inúmeros cafés, comi um croissant e tomei um expresso duplo, para recarregar as baterias. O pouco que sentira de Paris já me convencera que fizera a escolha certa. Estava feliz novamente. Sentia-me como um viajante que voltava a sua trilha, fortalecido pelo acerto das decisões tomadas nos momentos cruciais, e revigorado pela simples realização de estar de volta ao caminho. Arco do Triunfo, Torre Eiffel, Notre Dame, Sagrado Coração... Aliás, de lá, escrevi em minha caderneta: Palavras ao Sagrado Coração: são cerca de 14 horas de um dia de sol. Paris se espalha a minha frente. Poluída e cheia como qualquer metrópole, mas bela como poucas. As pessoas, assim como eu, sentam-se ao sol. É primavera, mas os últimos suspiros do inverno – que se foi há três dias – ainda estão no ar e no povo. Os pombos, que me circulam agora, estiveram presentes durante toda essa primeira parte da viagem. Seja em Madri; ou em Assis; ou ainda em Paris. Sempre voando, ciscando, enfim, vivendo em um mundo não tão paralelo, mas com sua própria realidade. Assim foram também todos aqueles com quem me encontrei. Cada um em seu caminho. E os caminhos se trançando com a velocidade de trens que se cruzam em direções opostas. Esse era meu espírito. Não posso esquecer do Louvre. Caminhar sozinho por entre os milhares de obras, parar em frente a algumas – umas célebres, outras nem tanto, mas belas. Flertar com a Monalisa foi impossível. Do mesmo jeito que as pessoas não entendem que não se deve tirar fotos em igrejas, a despeito dos cartazes inteligíveis em qualquer língua da Via Láctea, há sempre um bando de turistas, armados de suas câmeras tirando foto de tudo! Os pobres guardas do museu espantavam um e ele dava a volta para tentar tirar a foto de outro ângulo. Meu Deus! Trata-se da obra do Leonardo, de fácil acesso. Não entendo a compulsão por se tirar uma foto. Só para dizer que foi você quem a tirou? A que custo para a obra? A ignorância não respeita fronteiras nem bandeiras. O albergue de Paris merece nota especial. Talvez tenha sido aquele em que eu mais me diverti. Tinha um companheiro de quarto da África do Sul. Seu nome era Sean, se não me falha a memória. À noite, em meu segundo pernoite - e 113


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com último em albergues –, conversamos sobre o chimarrão e ele quis provar. Esquentávamos a água com um aquecedor elétrico que ele carregava e tomávamos o mate, sob os olhares curiosos de nossos companheiros de quarto. Um chinês, que nos ofereceu galinha, e que aceitamos sem hesitação; e o alemão que saiu à noite para visitar um cemitério famoso. Nessa conversa fiquei sabendo de um pequeno contratempo que me faria acordar um pouco mais cedo. O Rail Pass não cobria a viagem de ferry entre Calais (França) e Dover (Inglaterra), nem a conexão até a estação de Victoria, em Londres. Teria que comprar esse trecho antes do embarque para Calais. Quando meu despertador tocou, já deixara tudo preparado para me arrumar e perturbar meus companheiros o menos possível. Ao sair, como símbolo de toda a camaradagem em todos os albergues que fiquei, o Sean me assustou ao colocar sua mão estendida entre meu rosto e a claridade que vinha do corredor. Cumprimentei-o e ele disse um “safe journey”, com seu sotaque carregado e acentuado pela embriaguez do sono. Não havia como perder energia xingando o frio absurdo do dia que começava. Era preciso chegar à estação a tempo. Caminhar rápido, com o cachecol protegendo meu nariz e minha garganta. Entrei na fila que se moveu rápido e, cinco minutos antes do horário marcado para a saída, embarquei e achei lugar numa cabine cheia de executivos, que me fulminaram com seus olhos. Acomodei minha tralha sem deixar nada bater naquele povo e me sentei calado. Na primeira ou segunda estação o bando todo desembarcou e, no resto da viagem até Calais, tive uma cabine toda para mim. Ao chegarmos lá, um ferry tinha acabado de sair e o próximo iria demorar um pouco, o que atrasaria minha chegada a Victoria, onde o André o Luiz me esperavam. Espantei-me com o tamanho dos ferries que fazem a travessia do Canal da Mancha. Passeei pelo interior do enorme barco, quase um navio. Tentei ficar um tempo do lado de fora, mas era um vento e um frio insuportáveis. Estava ansioso pela chegada em mais um país, com o “agravante” de ser a Inglaterra e de ter que passar pela imigração. No entanto, tudo correu tranqüilamente. Entramos no trem que liga Dover a Londres e, na tarde de 25 de março, 22 dias depois de sair de casa, chegamos à Victoria Station. No meio da confusão de passageiros embarcando e desembarcando, vi uma mão e um rosto conhecido, logo, dois. Eram eles. Abraços e desculpas de minha parte pelo atraso. Tínhamos que correr, pois estavam atrasados para o ensaio daquela tarde. 114


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com A casa onde estavam, e onde passaria meus dias por lá, ficava a noroeste de Londres, em um bairro chamado Harrow-on-the-Hill. Eles estavam lá a convite dos donos da casa e responsáveis pela banda em que tocavam: o Vatican Roulette. O André era o baixista, o Luiz, o guitarrista, havia ainda o Robin, baterista, e o Geoff, vocalista. Além destes, o Harvey, que era o manager da banda e filho da Sara e do Stanley – estes, os donos da casa. Mal tive tempo de colocar minhas coisas no quarto – que dividiria com meus irmãos e o baterista – precisamos descer correndo para a sala de ensaio. Naquela tarde, tinham atrasado o começo pra que os meninos fossem me pegar na estação. E foi ali, ainda vestindo minhas roupas de estrada, escutando – pela primeira vez ao vivo – músicas que só conhecia pelas fitas que o André mandara para mim, que senti que mais uma fase de meu sonho se realizara. Várias vezes as lágrimas encheram meus olhos. Felizmente, estavam todos concentrados e não notaram minha emoção. Depois dessa chegada, era preciso tomar um banho. Chuveiro? Não. Banheira? Mais ou menos. Diria um tanque confortável, cor-de-rosa, como o tapete peludo que cobria o chão do banheiro do quarto em que estávamos. Com as dicas dos que já estavam lá há mais tempo, usei a garrafa de refrigerante de dois litros, cortada pela metade, e tomei o primeiro de uma série de banhos de cuia. Sair do Brasil para ir tomar banho de cuia em Londres? Já imaginou? Só havia um contratempo. Tomar banho depois que o Robin o fazia. Mas não era todo dia que isso acontecia, já que ele não se achava sujo e não precisava tomar banho todo dia. Apesar de, antes da seis horas de ensaio, os membros da banda malharem regularmente para se manter em boa forma física a fim de agüentar as demandas das performances ao vivo; o Briton de Brighton não julgava que o suor – sendo parte de seu corpo – fosse razão suficiente para justificar um banho. Um dia quis ir mais a fundo nessa discussão sobre banhos e fui interrompido pelo André, que passou por trás do Robin gesticulando para que eu interrompesse o argumento. Depois me explicou que era uma questão cultural e não chegaríamos a um denominador comum. Restava-nos desinfetar a banheira toda vez que ele resolvia se banhar. Bom, não era eu que tinha que dividir uma cama de casal com ele mesmo! Por falar nisso, a organização do quarto era assim: André e o Robin na cama de casal, eu ao lado da cama e o Luiz aos pés da cama; sendo que os dois últimos sobre colchonetes. A banda tocaria na semana seguinte à minha chegada. Por isso, saíram para fazer divulgação, e eu, que não gosto de nightclubs, fiquei em casa e aproveitei 115


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com para atualizar meu diário e ler um pouco. Era preciso reorganizar a Liberdade para a nova realidade, ou etapa. Lavar roupa, passar para baixo certos itens que foram importantes na primeira fase, mas que agora perderam utilidade imediata; enfim, curtir meus amigos sem deixar que minha presença os impedisse de fazer o que precisavam ou queriam. No primeiro final de semana, saímos e pegamos o metrô para caminhar pelo centro de Londres. As Casas do Parlamento, o Big Ben, o Palácio de Buckingham, o Regent’s Park e todos os parques famosos, bem como outros pontos turísticos. Como eles tinham que trabalhar – ou seja, ensaiar –, essa saída foi para me apresentar ao sistema de transportes da cidade. Nos outros dias, enquanto eles ralavam, eu saía, escolhia meus destinos e batia perna pela capital inglesa. Numa dessas saídas, estávamos voltando e descemos em Harrow-on-the-Hill. O André e eu entramos em um típico pub localizado perto da estação. Pedi minha cerveja sem álcool, mas o garçom disse que não tinha. Já estava quase pedindo um refrigerante, quando o André me convidou a tomar uma Budwiser com ele. Afinal, estávamos em um pub, a banda tocaria no dia seguinte, completara com sucesso a primeira parte da viagem e estávamos felizes, com frio e tendo que fazer hora para o próximo ônibus. Aceitei. Era a primeira vez que bebia desde o começo de 1990. Para se chegar à City, havia duas opções: caminhar 7 minutos até a estação de South Harrow, na linha Picadilly; ou se dirigir até a estação Harrow-on-the-Hill da Metropolitan – de táxi (2 libras no minicab), ônibus, ou, é claro, a pé (acompanhado pelo vento londrino). Dependendo de onde se queria ir, era preciso trocar de trens em Baker Street, estação toda decorada com o perfil do Sherlock Holmes. Havia um lugar fantástico chamado Trocadero, ficava em frente à Leicester Square. Eram três andares de jogos eletrônicos. Algo absolutamente imperdível. Como inenarrável era andar com o Luiz e o André tirando onda com a cara do povo. O pior – para mim – é que eles o faziam e permaneciam como se nada tivesse acontecido, enquanto eu explodia de rir e era dado como louco. Um dia entramos em um trem do qual tinha saído um cara que não devia ver banho há um bom tempo. Quando o Luiz sentiu a inhaca, soltou um sonoro palavrão em português e abriu a janela de emergência. Na primeira estação, ele mudou de carro e ficou olhando pra gente, pela janela entre os carros, como quem diz “como é que vocês estão agüentando isso?” A brincadeira era boa, mas eles estavam a trabalho. E trabalho foi o que vi no dia 30 de março, quando a banda se apresentou no Mean Fiddler. Eles saíram 116


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com cedo para levar o equipamento e passar o som. Falaram que era muito chato e que me juntaria a eles mais tarde. Foi uma noite extraordinária, não só porque estava em uma casa noturna londrina, mas porque a atração principal da noite era a banda dos meus irmãos brasileiros. Uma coisa era o ensaio, em casa, onde se discutia a melhor maneira de se interpretar essa ou aquela música. Onde se criava. A outra era o palco, onde a verdade aparece; uns crescem e brilham, outros minguam. Era o caso do vocalista. Em conversa com meus irmãos ao fim de um ensaio, já perto de meu retorno, disse a eles que achava que o Geoff estava usando o talento e a vontade de vencer deles para divulgar umas mensagens de magia através da música da banda. Disse que “brincar” com isso era perigoso e que deveriam prestar atenção, já que, invariavelmente, as letras tinham que passar por seu crivo; e das originais, pouco ou nada restava, sendo que era possível notar uns tons meio místicos no meio das letras até boas, diga-se de passagem. O Luiz contou para o Geoff o que eu havia dito para eles. O homem quis saber qual era o problema com as letras que escrevia. Foi uma longa noite, com nosso amigo letrista querendo provar que não tinha idéia nenhuma de divulgar nada a não ser sua arte. Insisti que as letras eram boas, mas havia certas frases que tinham, sim, um certo duplo sentido que poderia ser entendido como informação subliminar. A coisa foi evoluindo até que, após cerca de quatro horas de conversa, ele aceitou me mostrar as letras das canções que a banda tocava. Fui apontando algumas frases e dizendo quais as que eu achava que tinham conotação mágica. Lá pelas tantas, ele assumiu que “colocara o demônio” em uma das músicas. Dei o caso como encerrado, pois nosso amigo “vampiro” acabara de confessar o que negara peremptoriamente durante as quatro horas de nossa argumentação. Tempos depois, em uma visita do André ao Brasil, após a saída do Geoff da banda, uma conhecida deles disse que ele estava envolvido com uma espécie de culto. Deve ter percebido que pelo rock não ia ser tão fácil como achara. Não brigamos, mas fiquei proibido de assistir aos ensaios. Por mim, era mais uma chance que tinha de caminhar pela cidade e fazer o que tinha que fazer. Afinal, era preciso visitar Stonehenge, parte importante de meu sonho. Resolvi fazê-lo não sozinho, mas com o André. Ele estava economizando tudo que podia, por isso, foi com prazer que o convidei para compartilharmos esse momento. No dia 4 de abril de 1993, saímos rumo a Salisbury. Visitamos sua catedral e partimos para o círculo de rochas. O local, que é patrimônio mundial tombado pela Unesco, estava cercado para preservação das formações. Chegar até lá era 117


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com cumprir algo que se desenhou em minha viagem ao Peru; foi confirmado quando de minha curtíssima visita às ruínas quíchuas; e se acentuou com a decisão dos meus amigos de irem tentar a sorte naquelas bandas. Caminhamos em volta da área cercada por cordas. Depois, saltamos e nos deitamos na grama. Não dentro do círculo, mas para fora, de onde tínhamos todo o monumento a nossa frente. Como fica em uma área muito aberta, o vento era muito frio, no entanto, ao colocarmos as mãos na grama, notamos o quanto ela estava mais quente que a temperatura ambiente. Sem falar que, durante toda nossa estada – assim como acontecera em Machu Picchu –, havia nuvens de chuva em torno de Stonehenge. A chuva só começou a cair quando já estávamos voltando para Salisbury. Aqueles que tiverem interesse em entender o que senti, recomendo que visitem o local. Nada se compara à experiência. Na volta, felizes e realizados, desembarcamos em Heathrow, quando o ônibus parava para depois prosseguir para a Victoria Station, no centro. Como dali ficaria mais perto para pegarmos a Picadilly até South Harrow, resolvemos embarcar no metrô e chegamos em casa bem rápido. Um dia perfeito! Sendo eu um fã do quarteto de Liverpool, desde os rascunhos de meu itinerário, incluí esta cidade. Novamente de ônibus, só que desta vez fui sozinho. O André teria sua chance de conhecer a bela Liverpool acompanhado do novo vocalista da banda, John Neild, que não cheguei a conhecer. Desembarquei na cidade dos Beatles antes do sol nascer para o dia 14 de abril. Dá pra imaginar o frio? Mapa? Nenhum, mas fui caminhando... Cheguei à beira do Rio Mersey. Vi o sol nascer de lá. De onde saí para achar um lugar para comer algo. De repente, parecia que estava em um outro país. As pessoas eram mais agradáveis, mais atenciosas, riam mais facilmente que em Londres. Comi uns pedaços de bolo e tomei um café bem gostoso em uma espécie de padaria/bar. Foi lá que fiquei sabendo que poderia conseguir um mapa da cidade em qualquer banca de revistas. Como ainda estava muito cedo, não seria fácil encontrar bancas abertas; assim sendo, o próprio rapaz que me atendeu já me deu algumas dicas de como chegar ao Cavern Club. Com sua placa dizendo “onde tudo começou”, o prédio de tijolos passaria despercebido, se não fosse o letreiro e toda a história que começou nessa área. Uma revolução na música e nos costumes que ficou conhecida como Beatlemania. Foi justamente para reviver essa história que voltei ao píer e fiquei conversando com o segurança do local conhecido como “The Beatles Experience”. Uma espécie de museu em que se tem uma boa idéia da seqüência

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com de acontecimentos que mudaram o curso da história da música em meados do século passado. Reproduções do Cavern Club, dos estúdios, ambientes em homenagem aos Fab Four, tudo com acústica, e uma voz guia para completar toda a emoção de reviver a onda que se espalhou pelo planeta nos anos 60 e chegou ao fim em 1970, quando a banda se dissolveu oficialmente. Fim esse que se tornou irreversível com o assassinato de John, em 1980, e a morte de George, em 2001. Depois, fui a uma banca de jornal, já esperando que o jornaleiro fosse me “empurrar” um mapa. Mais uma vez surpreendi-me com a diferença do povo. Ele não só me deu o mapa, como o abriu e começou a me dar instruções do que ver e como chegar a esse ou aquele lugar. Essa “diferença” nos traços culturais deste povo foi, com certeza, fator determinante na transformação de quatro rapazes talentosos nos eternos ídolos do rock. Eleanor Rigby, a estátua inspirada na música homônima, fica perto da área onde acontece o festival anual de Mathew Street – uma rua nos fundos do Cavern Club. A noite mal dormida e a caminhada começaram a fazer efeito. Satisfeito com o que vi e senti, embarquei de volta para Londres e dormi quase todo o trajeto. No trem, voltando pra casa, lembrei-me de que estava chegando a hora de preparar o caminho de volta. Assim, comprei minha passagem para Madri. E tratei de cumprir mais uma missão: visitar meus amigos Floriano e Sabino. Já telefonara para eles, que tinham sido meus alunos e estavam em missão pela Aeronáutica Brasileira em solo britânico. Almoçamos juntos um dia e marcamos de nos encontrar para que ele e o André pudessem se “deliciar” com uma fita em VHS que eu lhe enviara. Nela havia um jogo da seleção brasileira, um jogo do Flamengo (time do coração do André e do Floriano) e um desfile da Mangueira, escola de samba dos dois também. Antes de ir, tive a oportunidade de assistir à banda mais uma vez. Tocaram no Rock Garden e eu estava lá, firme e forte. O joelho do André é que não ficou bem, depois de uma pisada em falso. Agüentou meio show com dor. Antes de embarcar para Londres, ele torcera seu joelho direito jogando futebol. Chegamos então ao dia 24 de abril, véspera de meu retorno. À noite, após o jantar, o povo se reuniu para uma despedida. Lembro-me de que havia velas na sala de ensaio, onde tantas vezes nos sentamos e tomamos chimarrão, colocamos nossas conversas em dia, desabafamos sobre nossas muitas dúvidas e poucas certezas. Daquela última noite, lembro-me do Luiz tocando “The Long 119


Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com and Winding Road” (Lennon-McCartney); e da derradeira arrumação da Liberdade. Já que estava voltando pra casa, fui me desfazendo de tudo que não me seria mais útil. Meu par de luvas de couro, uma toalha de banho e uma série de outras coisas ficaram com o André, outras coisas foram para o lixo. Separei a roupa de viajar e uma pra ficar em casa e dormir. Nossos despertadores tocaram naquela manhã fria e, depois de me despedir do Luiz, saímos para South Harrow. De lá precisávamos ir até Victoria e pegar o trem para Gatwick. No aeroporto, check-in feito, Liberdade 5 quilos mais leve e despachada, fomos tomar café. O André me disse que estava feliz por eu estar voltando pra casa, tendo realizado meu sonho. Disse que se sentia reenergizado por minha passagem por lá e satisfeito por eu ter “visto de perto” sua realidade londrina. Escutei-o até um momento em que o mandei embora, dizendo que embarcaria. Na verdade, eu não queria chorar na frente dele. Abraçamo-nos e nos despedimos, sem saber quando voltaríamos a nos ver. Por sorte, no final daquele ano ele veio passar férias no Brasil e nos encontramos no Rio de Janeiro. O vôo de volta a Madri foi cheio de lembranças dos momentos vividos e de expectativas pelos que ainda estavam por vir. A paisagem da janela, o Canal da Mancha, ajudava-me a lembrar que já havia cruzado aquele corpo de água a bordo de um gigantesco ferry. Ao som de uma fita cassete gravada no ensaio da véspera de minha partida, e de algumas canções de autoria de meu irmão, que escrevera em sua aventura londrina, desembarquei em Barajas para mais uma longa espera. Não tinha vontade de sair, caminhar pelas ruas. Estava tomado de um sentimento de completitude que me impedia de buscar algo mais. Tudo que tinha a fazer era gastar minhas últimas pesetas, o que fiz lanchando, comprando umas lembranças e ligando pra casa para confirmar minha chegada. Quando embarcamos, sem o peso da Liberdade, coloquei a Bússola embaixo do meu assento, o Pessoa (meu chapéu) no colo, apertei o cinto de segurança e apaguei. Quando acordei, já tínhamos atingido a altitude de cruzeiro e o serviço de bordo já começava. O vôo foi tranqüilo, ao som das músicas que embalaram não só minha estada em Londres, mas minha preparação para as novas viagens que me aguardavam.

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Themer Bastos de Oliveira – (61) 8117-9391 / (61) 3208-3091 E-mail: themerb@yahoo.com ou themer@gmail.com Muito do que pude contar vem do diário de viagem que mantive. Em Londres, confesso, não tomei tantas notas como deveria, o que deve ter acarretado uma certa e compreensível imprecisão de dados. Mas o importante é que a essência está aí, para você, meu amigo Eremita. O que veio depois? Bem, com o dinheiro que economizei na viagem, pude comprar meu primeiro PC, no qual escrevi meu primeiro livro, ainda sob o impacto da viagem recém-cumprida, “O Vôo da Coruja”. Sim, voltei ao trabalho, à universidade, formei-me em tradução. Mudei de emprego, desapontei-me, repartimos este momento. Quantas vezes você não foi o ouvinte paciente de minhas queixas! Finalmente, de volta à sala de aula, lancei meu segundo livro: “árvore do cerrado”. Este, você conheceu. Em 2002, já depois de sua viagem de volta para casa, saiu o “Conexões”. E agora, pelo visto, tudo isso vai virar um livro também. Minha mais longa carta só poderia ter sido escrita para alguém como você. Como se não bastasse todo o agradecimento por tudo que fez por mim, durante nossa convivência, tenho que fazer mais um. A oportunidade de colocar meus atos e pensamentos no papel me é extremamente salutar. Força-me a confrontar meus medos do mesmo jeito que as viagens me expõem a situações que me transformam em uma pessoa melhor. Tudo que revi, reli, revivi ao longo desta descrição me serviu de incentivo para continuar lutando. Sei de sua condição, e não há nada que possa pedir a você além disso que já está fazendo: continue lutando, um dia de cada vez, respire, continue respirando e desafiando nossa fé e a medicina. Um grande, longo e fraterno abraço do mano tb

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Epílogo Hoje é dia 7 de março de 2004. Recebi um e-mail da mãe do Mike com a notícia de seu falecimento. A agonia dele chegou ao fim; bem como a nossa, infinitamente menor, no entanto, digna. Quantas vezes questionei minha própria fé; quantas vezes, por amor a este grande amigo, não esperei ou pedi que este momento chegasse. Quantas vezes me xinguei por meu egoísmo de achar que a minha verdade devesse prevalecer sobre a vontade divina. Para depois cair em mim e chegar à única conclusão possível: todos temos a nossa hora. E a dele chegou só agora. Como escrevi no e-mail de resposta, acho que a essência da vida é entender o amor em suas diversas faces. Agora, por certo, o Eremita está livre novamente. Livre, finalmente. Para caminhar por aí, de braços abertos e rosto ao sol... Se por um lado estou triste, sou obrigado a reconhecer que me sinto aliviado por seu sofrimento e dor terem chegado ao fim. Resta-me apenas lembrar o eterno amigo da maneira como o descrevi aqui: sentado ao sol do cerrado, com seu livro, seu sorriso e seus belos cabelos ao vento. Quando a cabeça começar a girar a mil por hora, basta descer até o Parque da Cidade. O velho Eremita estará sempre por lá, escondido por trás de um arbusto, no canto de um pássaro, no silêncio, no grito da coruja que guarda a cria no ninho.

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Agradecimento Todo o processo que culminou com a composição deste livro começou há cerca de vinte anos. Por isso, gostaria de começar por agradecer ao Dr. Kunio Suzuki, não só por ser o profissional de reputação que é, mas, acima de tudo, por não deixar que toda essa importância mine a raiz que o fez grande: sua capacidade de empatia para com seus pacientes. Continuo, ainda cronologicamente, agradecendo ao Thomas, por ter hospedado um estranho em sua casa. Por ter me possibilitado – juntamente com meu tio – realizar o sonho de viajar aos Estados Unidos. Mas meu agradecimento maior é pela idéia e insistência em que mantivesse diários de minhas viagens. Sem eles, muito do que aqui foi relatado já se teria perdido no tempo e na memória. A toda a família Moreira, por sua amizade de longa data, mas, principalmente, por ter dito sim, quando meu pai perguntou da possibilidade de eu passar um tempo com eles. Muitas vezes na vida dizemos coisas cuja dimensão não concebemos. Por sua acolhida e paciência para com este amigo, filho, viajante e hóspede, minha eterna gratidão. A minha irmã, Kátia, por ter me perguntado se eu ia beber, mesmo sabendo que não podia. E, assim, tendo me levado a mentir, e descobrir que não mentia para ela, e sim para mim mesmo. Por ser fortaleza, disfarçada em simplicidade. Melhor o dizem Milton Nascimento e Fernando Brandt na letra de “Maria, Maria”. Meu carinhoso beijo, Mana. A todos aqueles que me ajudaram a realizar meus sonhos. Por sua inspiração e força – aqui nomeados ou anônimos –, que com uma informação certa me fizeram atingir algum objetivo imediato, sem o qual seria difícil continuar. Aos meus familiares, que sempre estiveram ao meu lado – mesmo quando nem eu mesmo sabia onde estava. (Se é que hoje eu sei!) Este livro é dedicado à memória de Michael J. Smith, o “Eremita”.

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