1999 - Avaliação pra valer e Conecom

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Seminário

Avaliação pra V ale r e

CONECOM Conselho Nacional de Entidades de Comunicação

Comissão Organizadora 14, 15 e 16 de Maio de 1999 I Brasília

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c;:eatro Ac:ademic:o

"PENSAR ESSA MATÉ

Comuuicaçao Social

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EXPERIÊNCIA NACIONAL" Entrevista com Paulo Eduardo Arantes Concedida a Pedro Benevides no dia 17/0911998, no Hotel das Nações, e no dia 18/09/1998, em frente ao Shopping Pátio Brasil- Brasília, DF.

ATENCÃO: ESTA ENTREVISTA NÃO FOI CORRIGIDA PELO ENTREVISTADO.

Existe inadequação em se procurar um professor de filosofia para tratar de realidade brasileira?

Em princípio, quem lida com filosofia no Brasil está fora do debate - com algmnas exceções que confirmam essa regra - por razões que não dependem da clarividência pessoal, da competência ou do interesse, mas da natureza da disciplina filosofia no Brasil. Uma coisa é você se manifestar como cidadão: leitor de jornal, politizado, geralmente intelectual no Brasil é de esquerda, quer queira, quer não. É raríssimo se encontrar, pelo menos nas ciências hmnanas, r--.

um intelectual de direita - a não ser na Economia, atualmente então nem se fala. Há, como eu estava dizendo, uma espécie de discrepância, uma incongruência enom1e entre opinar como mn cidadão que lê jornal, que é politizado, que é intelectual, que é universitário e que geralmente diz coisas de bom senso ou de senso comum, da esquerda em geral, e opinar como um filósofo. A filosofia no Brasil é praticada num plano de excelência elevado, isto é, um bom professor de filosofia no Brasil deve muito pouco ao seu sinlllar europeu ou americano. Essa excelência filosófica do ponto de vista acadêmico, é resultado de um processo de aclimatação institucional bem-feito, bem realizado, bem sucedido, daquilo que nós poderíamos chamar de filosofia universitária ou filosofia profissional propriamente dita. Isso aqui no Brasil deu certo. Constituiu-se um público de leitores que podem ler livros de filosofia com conhecimento de causa, isto é, não são mais enrolados, por assim dizer, por elocubrações amadorísticas. De modo que, quando eu digo que deu certo, é no seguinte sentido: disseminaram-se as Faculdades de Filosofia nos moldes da USP - sem nenhum paulistocentrismo, o molde da USP é o francês. Depois isso se diversificou e agora as pessoas vão mais à Inglaterra, aos Estados Unidos, à Alemanha. Não há mais a escola estritamente francesa, mas enfim esse é o modelo da filosofia acadêmica, no bom sentido e não no pejorativo. No próximo Congresso da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia, por exemplo, que se realiza agora no fim do mês de setembro, em Caxambu, vão se reunir aproximadamente 600 pessoas entre ouvintes, expositores de trabalhos, professores, estudantes de pós-graduação. Simplesmente serão apresentadas umas 200 ou 300 comunicações. Eu não tenho ido com freqüência, mas fui nos últimos dois anos e posso assegurar que a maioria dos trabalhos apresentados, embora ainda haja muita bobagem, são corretos, são de gente que conhece o seu métier e o público tem condições de avaliar qualidade e interesse daquilo que está sendo oferecido, criticar e discutir. Isso há quarenta anos atrás no Brasil era impensável. Não existia, não


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havia condições. Então, há uma espécie de com1..midade de talvez duas, três mil pessoas que no Brasil se interessam por filosofia sabendo do que se trata. Para o funcionamento da cultura brasileira como um sistema -haver leitores criteriosos que sabem o que comprar, o que encomendar, que curso programarisso é fundamental. Se você pensa no periodo anterior inteiramente amadorístico, no pior sentido do auto-didatismo, da falta de critério, da incapacidade de discernir um livro interessante daquele que não tem o menor interesse, da falta de sobriedade na recepção das vogas internacionais, pela primeira vez, evita-se a postura subserviente, subalterna. Isso é fi.mdamental. Mas - agora vem o outro lado - para que isso acontecesse, foi necessário que nós formássemos estudantes, profissionais da filosofia, inteiramente voltados para essa disciplina. O que significava que eles tinham que dar as costas para uma espécie de tropismo nacional que os puxava para um baixo nível, um auto-didatismo, uma auto-referência, mn amadorismo e assim por diante. Então, eles tinham que dar as costas para o Brasil, para o que havia de ruim e para o que havia de bom. De modo que essa cultura filosófica profissional foi feita nmna espécie de vácuo social e cultural. Era preciso se isolar do meio ambiente, sobretudo por que aí não havia interlocutores. Então criou-se uma comunidade intelectual que era obrigada a se distinguir do seu meio de origem. Tinha que ler, pensar e escrever como se estivesse se dirigindo a um público externo, no caso, europeu. Em São Paulo, nós éramos praticamente bilíngües. A nossa língua filosófica era o francês. O português era uma língua de relação social fora da tmiversidade. Isso fez com que fossem produzidos intelectuais competentes, mas completamente atrofiados, sem condições de equiparar suas eventuais opiniões erráticas sobre o que acontecia no Brasil e no mtmdo fora da filosofia ao alto grau de sofisticação conceitual do tratamento dos problemas filosóficos. Isso não é mn acidente histórico, não é algo que acontece por falta de talento. Simplesmente, o tipo de filosofia que foi implantada e aclimatada no Brasil é uma filosofia que há um século e meio, desde que ela se institucionalizou, fOra obrigada, para se constituir como disciplina aceitável, a romper com todos os vínculos possíveis com a cultura viva de uma sociedade. De modo que a nossa cultura era de gueto. Uma cultura que não tinha meios de se colocar em confronto, de se justapor ou de se defrontar com as exigências de uma vida cultural viva. De modo que não se tinha nem a consciência de que havia um abismo entre esses dois tmiversos separados e nem os meios de ultrapassá-lo. Não se desconfiava disso. Nossa comunidade filosófica havia se desvinculado da vida cultural brasileira, porque era necessário já que seus eventuais pares filosofantes, como dizia o Cruz Costa, eram um desastre. Então, nós nos imaginávamos como europeus perdidos no Brasil, com toda a razão, porque se essa fantasia não fosse alin1entada não haveria filosofia funcionando no Brasil. Congressos razoáveis, decentes sendo realizados, gente sendo mandada para o exterior, participando de colóquios internacionais, indo lá fazer mna commlicação correta, de bom nível sobre Kant, sobre Wittgenstein, sobre problemas da filosofia da linguagem, sobre ética discursiva, isto é, todo aquele

menu que consta da bibliografia internacional mais atualizada. Agora, enquanto intelectual público,


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nada. Nem poderia ser. Não foi moldado, equipado, preparado, concebido para intervir no debate brasileiro. IDe modo que esse conjunto de 600 pessoas do melhor quilate acadêmico que vai se reunir em Caxambu, se for opinar sobre a sociedade brasileira, sobre a sociedade de classes, sobre a cultura brasileira, sobre a crise intemacional, os mais politizados, a maioria de esquerda, vão dizer o que lêem no jomal ou então outros vão repetir preconceitos que ouvem nos seus respectivos centros universitários, mais ou menos conservadores e ajustados ao atual establishment nacional cuja espinha dorsal é tmiversitária. Então, você tem novamente aquela situação de esquizofrenia. O cidadão médio que repete, que devolve o que lê no seu jomal de preferência e alguém que fala sobre a dedução transcendental na Critica da Razão Pura, os jogos de linguagem em Wittgenstein e assim por diante. As coisas não se juntam mais. Elas não se jtmtam de uma maneira específica no Brasil e também não se juntam na Europa e nos Estados Unidos. Só que, dada a densidade cultural na sociedade européia ou americana, um "filósofo", entre aspas, francês - sobretudo o francês; o americano é um analítico e como cidadão é completamente asnático - ainda é contaminado, dada a tradição de politização do intelectual francês, por esses problemas. Assim, aquela reunião em Caxambu, do ponto de vista cultural brasileiro, é irrelevante. Absolutamente irrelevante. Não é nada. Mas porque os tempos modemos tomaram a filosofia uma especialidade müversitária entre outras. Mas há exceções. Há os colegas de São Paulo que tentaram fazer isso. Há dois tipos de personagens que não perderam o vínculo com aquilo que algtms autores chamam de cultura da cidade, por oposição .àJ:;ultu.ra_de.._g:ueto_da-UnÍllersidade.. No caso, a cultura de gueto filosófica. As demais ciências humanas, não. Porque justamente a ciência social no Brasil, quando começou a ser cultivada num plano acadêmico, de uma maneira metódica e sistemática, estava inteiramente devotada e voltada para decifrar mn enigma chamado Brasil. No caso da filosofia, justamente por ser universal, por ser estritamente epistemológica, voltada para problemas da teoria do conhecimento e assim por diante, esse problema não se colocava. Mas mesmo assim, no caso específico de São Paulo, eu vou citar três casos, três exceções que confirmam essa regra. Duas podem ser agrupadas neste vínculo direto com o debate de fi.mdo nacional. Outra tem uma espécie de vinculo com a vida nacional por osmose, só que literária: o meu mestre e amigo, Bento Prado. Ele não perdeu alguma coisa que nós poderíamos chamar de senso de realidade acompanhado de senso do ridículo da posição filosófica brasileira, que diz: "eu sou filósofo, portanto eu observo o mundo, o país, a minha ahna e a minha sociedade do ponto de vista da etemidade ou das categorias filosóficas universais, portanto cabe a mim a última palavra sobre não importa que assunto". Como este professor de filosofia, dileto e fratemo amigo, tem um pé na tradição de formação do intelectual brasileiro (que é literária),

pelo fato de ser poeta bissexto, poeta de gosto pamasiano

duvidoso mun certo sentido, mas bem cultivado, por ser admirador do Drmmnond na sua fase classicizante, admirador de Femando Pessoa, leitor do Guimarães Rosa, portanto estar encharcado de


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literatura, mesmo que ele tenha sublimado essa contaminação pela literatura mun plano estritamente filosófico e filosofasse sobre literatura, ele nunca perdeu duas coisas fundamentais: o senso do ridículo e, portanto, o senso da realidade e o contato com a maneira pela qual se pensa, se estiliza a vida e a existência da sociedade brasileira que nós devemos à tradição literária brasileira, que, bem ou mal, há dois séculos e meio, se nós fôssemos até os árcades, tem pensado essa matéria brasileira que nós chamamos de experiência nacional. De modo que esse meu amigo Bento Prado conseguiu a façanha de contaminar a filosofia francesa aclimatada e importada por uma espécie de savoir-faii-e no trato da linguagem que vinha da literatura. Foi o primeiro - posso dizer, com certeza cometendo algumas injustiças - que eu conheço dessa geração que começou a escrever sobre asstmtos filosóficos, clássicos, obrigatórios, que constam de qualquer currículo, de uma maneira tal que uma pessoa letrada, cultivada, adulta, não especialista de filosofia no Brasil poderia ler sem enrubescer. Mas isso, digan1os, ao preço de ficar confinado naquilo que nós poderíamos chamar de a espuma literária pamasianista, por assim dizer, da experiência cultural brasileira. Bento foi mais um estilo à procura de asstmto do que um ponto de vista articulado sobre o que se passa na sociedade brasileira. Esse é um caso de alguém que foi salvo da absoluta irrelevância que caracteriza a minha profissão por este pé na cozinha literária. Os outros dois são Giannotti e Marilena Chauí. Cada um de um lado do espectro político brasileiro. Sobre tradição de auditório. ( ... ) Uma literatura sem nenhum tipo de complexidade, digamos, de pensamento literário, uma vez que a complexidade é sempre tomada como rebuscamento verbal. Aí, os autores difíceis são grandes pacholas como Rui Barbosa ou Euclides da Cunha. "Ler Euclides, como se dizia na Faculdade de Letras, para pegar vocabulário". Até hoje isso existe. Os concretos ainda imaginam que a complexidade literária são as palavras engarrafadas, é o trocadilho - o Concretismo é mot valise. Isso é a complexidade que eles imaginam que vem do Joyce e do Mallam1é, veja você. ( ... ) Mesmo um autor da maior complexidade, seguramente o maiOr escritor brasileiro, o ma1s contundente da critica social, Machado de Assis, é o autor oficial por excelência. Foi considerado a coqueluche da nossa classe dominante no tempo em que ela lia algmna coisa - agora é só tela de computador para ver indice de bolsa. Machado era considerado o grande escritor brasileiro por ser fino, mordaz, de grande perfeição estilística e apuro vocabular. Ele era obrigado a fazer isso, senão não seria lido. Com essa prosa, digamos, no mais estrito decoro oficialesco literário, ele disse as coisas mais terríveis sobre a classe dominante e a sociedade brasileiras. E demorou um século para ser descoberto.

(... ) É curioso que ele (um professor de Formação da Imprensa Brasileira, do CEUB) tenha juntado essas duas tradições (de auditório e radical). Interessante. É pena que essa tradição de radicalismo tenha sumido desde 64, porque foi arrochada pela ditadura e agora porque é esse desastre que está aí. Como seus alunos, na graduação, apreendiam suas idéias sobre filosofia? E, pensando naquele parágrafo sobre estudantes, da entrevista para Teoria e Debate, o que fazer diante do "gelo de

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tamanha alienação sem palavras"? Como ensinar? Eles conseguem ver, ao final de um curso, filosofia como um problema? Só no meu curso. Sou eu o {mico que fala nisso. Adotei dois princípios desde que comecei a dar aula no primeiro ano, há 15 anos atrás. Antes eles não me escalavam, eles achavam que as minhas aulas seriam muito complicadas, que haveria uma sublevação de alm10s reclamando. Quando fui escalado, eu gostei e fiquei por 15 anos dando aula no pnme1ro ano. Então, eu tomei duas providências: uma, só comentar filosofia do século XX. Geralmente um comentário de texto, cada aula com mn autor diferente, mun texto curto e em português, isto é, condenado a abrigo cultural. Outra é que a partir de 82, 83, eu arrumava um jeito de fazer seminários sobre textos de autores brasileiros. Não por serem brasileiros -

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q11_e. existe_essa bobagem chamada filosofia

brasileira - mas para que eles começassem a estudar, a ler de outra maneira a filosofia feita no Brasil,

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vinculando um pouquinho filosofia brasileira com cultura brasileira, para que eles tivessem uma idéia de que I!ão é ~1aturalg _estu~o

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fil_<Jsofia no Brasil. De Literatura, é. É indiscemível a fom1ação da

nacionalidade brasileira e a consciência literária que se tinha desse fenômeno num certo sentido artificialmente produzido. Agora, no caso da filosofia, eu posso falar, no primeiro dia de aula, sobre Descartes. É bom fazer isso.

É muito divertido ver mna cabeça como a do Descartes funcionando, não tenho nada contra. Mas é preciso introduzir uma espécie de cmilia mais ou menos diferencialista para que eles percebam que cuidar, se ocupar, fazer, mexer com filosofia no Brasil não é a mesma coisa que na França ou na Itália ou na Alemanha ou na Inglaterra, como também não foi nos Estados Unidos. A----·-dita filosofia americana não é filosofia americana, não é natural, não nasceu lá. Ela é- m11a filosofia ·--- --------· ~alítjca__ ou neo-p.ositivismp _lQg;!go, que não é americano, é austríaco, é da Europa Central, que se jtmtou à corrente da filosofia inglesa do fim do século passado que desaguou na obra do jovent-Bertrand Russell e formou-se uma espécie de amálgama entre Frege, Círculo de Viena e lógica matemática -essa ~

sim era européia, mas estava particulannente estabelecida na mliversidade inglesa - tangida pela guerra e pela ascensão do nazismo. Houve a imigração de uma geração de filósofos alemães, austríacos e alguns ingleses que por muitas razões foram para os Estados Unidos levando essa grande novidade da filosofia científica e desbancaram o oficio de caipirismo, provincianismo, auto-didatismo, amadorismo que era a filosofia mais ou menos estabelecida nos Estados Unidos e que tinha tm1a vida pública razoável. Uma delas, uma filosofia inteiramente metafisico-religiosa das congregações americanas que patrocinavam as m1iversidades. Outra era o pragmatismo do Dewey, que vinha do início do século e que foi desmoralizado por essa vinda de professores de filosofia europeus, como mandava o figurino, e que lá se instalaram, montaram departamentos de filosofia de alto nível e competência, centrados inteiramente na epistemologia, na filosofia da matemática, na filosofia da linguagem à qual se somou


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mais adiante a filosofia das linguagens ditas naturais inglesas, de Oxford. Essa é a filosofia americana, que é um enxerto artificial que deu certo e que agora acabou. Agora ela funciona de maneira rotmeira, mas não tem mais nenhmna relevância. Isso para mostrar, de maneira sistemática, que não é inteiramente

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você chamar a

atenção dos alunos: "não é tão natural quanto respirar se ocupar de filosofia no Brasil. Há problemas. Daí que vem a nossa

irrelevânci.a_çultur~l.

A não ser que vocês estejam aqui para formação de uma

cultura geral, o que seria muito bom para conviver com seus amigos, ir a concertos, ir a bar, viajar, saber um pouco de Kant, Platão, Descartes, o que se estuda na filosofia contemporânea, o que é contrato social, direito natural, quem é o Rousseau. Isso é muito bom".

E a reação dos alunos? Eles ficam chocados. Mas eu não digo nesses tennos brutos. Eu dou um curso nonnal, comento meio mundo da filosofia contemporânea do século XX e faço seminários sobre filósofos brasileiros, o que só foi possível fazer a partir dos anos 80. Antes não teria sentido, porque não havia matéria.

Eu posso dizer que existe na sua aula um esforço de desideologização? Desideologização, no sentido critico talvez? É ... Uma espécie de anti-clímax quanto ao êxtase diante da superioridade da filosofia, sem dúvida. As aulas são de Jow profíle, satíricas num certo sentido. Não há nenhmna reverência pelo objeto. Há muito interesse intelectual, eu imagino. Os alunos quando entram se divertem. Há muita vivacidade. Discutem Heidegger, Horkheimer, Sartre de igual para igual.

Mas naquele parágrafo de teoria e Debate você diz "depois de treze anos ensinando (?)", e vem uma interrogação. Sim. É porque aquilo é wislJf'ul tbinlâng. Na verdade, quando funciona, funciona para 10% numa classe e o resto é de desesperar. O resto não tem salvação. Como eu digo na entrevista, eles são vitimas de uma espécie de dano cultural irreparável. Não tem como. É um outro mundo. Primeiro, porque há dois tipos: há classe média já inteiramente bestializada, que está ali porque é o refugo, porque não entrou nos cursos mais exigentes, de nota maior, ou há gente proletarizada, empobrecida - não são proletários, não são filhos de operários, são pessoas que vivem em situação de penúria material e cultural, gente que não tem dinheiro nem para tirar xerox, mal sabem se expressar, escrever então nem se fala. Você fica desesperado. É m11a massa falida . Segundo, dessa massa falida, os poucos que conseguem sobrenadar, e dessa classe média imbecilizada não por razões intrínsecas, o país está se imbecilizando -, os que conseguem também sobreviver e tocar o curso até o fim, são chantageados por uma espécie de profissionalização precoce para obter bolsas. Existem pacotes de aperfeiçoamento com bolsas na graduação, depois na pós. Até que fi.mciona nmn certo sentido. Há uma espécie de especialização já dentro da graduação que dá uma bolsa para os


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altmos, mna iniciação científica. E eles assistem a outros cursos, fazem pesquisas paralelas às que eles têm que fazer nos trabalhos acadêmicos, prestam contas, têm tutores, têm colegas, fazem seminários, têm que cmnprir um programa pré-estabelecido. É uma sobrecarga de trabalho bmtal. Os melhores são selecionados e já saem dali prontos para começar o mestrado. Então, é uma espécie de estilo francêsalemão de exigência máxima. Eu imagino que é tm1a vida infemal. É tU11 massacre. Mas eles saem perfeitinhos. Saem literalmente profissionalizados, vão fazer um mestrado direitinho, um doutorado idem e assim por diante. Para o resto, funciona cultura urbana em lata que sai no jomal, na imprensa, CEBRAPs da vida, o que é mna espécie de prolongamento do estabhshment Como explicar aqueles 10%? Esses dez não são mais dez. Não e que eu esteja fazendo arregimentação, doutrinando ninguém. Curiosamente, dos anos EHLpa.t=a--e-á,.esse-púbheo-está-interessadG-em.discutir__çoisas vivas, cultura de

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esquerda, çgss!_cos dttê~q.\,terga, mas não só isso, também "'"filósofos clássicos. É um público que está •· - -

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mais animado, toma iniciativas, fundou um núcleo de estudos chamado Jean Maugüé - o grande mestre do Antônio Cândido, o segundo professor de filosofia francês que veio para a USP e fom1ou mna geração, formou o gmpo Clima-, interessou-se pelo gmpo Clima, pelo Antônio Cândido, pelo Roberto (Schwarz), por cultura brasileira e sendo bons alunos de filosofia. Eu dizia: "se vocês se interessam por isso, tudo bem, mas em Lógica, Filosofia Antiga, Filosofia Política, tem que tirar dez. Não pode dar de barato. Não pode abrir o flanco para que os outros digam que vocês foram para lá porque são incompetentes, não têm cabeça filosófica, especulativa, lógica, conceitual, são segm1do ou terceiro time. Prestem atenção." Esse gmpo foi se ampliando. Há um interesse real. Isso é uma espécie de contrapeso à baixa ideológica geral da era FHC e que começou com o Collor.

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Você só teve tm1 interregno de intermpção entre a posse do govemo Itamar, em outubro de 92, e a posse do FHC ministro da fazenda, em abril de 93. Aí, você pode dizer que houve uma pequena brecha na Era Collor-FHC, tirando o banditismo. Não é mais esse o caso, porque não é mais necessário. Na época do Collor, o big business passava pelo pedágio, pela acumulação pessoal, privada de uma gangue. Agora, você está criando mna nova classe dominante que se fmancia com as privatizações. A cormpção, nesse sentido subaltemo, tomou-se completamente obsoleta. Então, começou a aparecer mn contrapeso. Você nota isso. Há algw1s anos atrás, se você fizesse mn colóquio sobre os 150 anos de A Ideologia Alemã, teria meia dúzia de gatos pingados. Houve uma espécie de saturação de marxismo. Ele vinha nos anos 70 e nos anos 80 baixou. "Marxismo não vende". Há três anos atrás, por iniciativa desse núcleo de estudos chamado Jean Maugüé, foi realizado esse colóquio. Tinha gente saindo pelo ladrão. Seções, debates com 200, 300, 400 pessoas. Inacreditável. Outra coisa é essa coleção Zero à Esquerda. O país está indo pro brejo, o pessoal está duro, inadimplente, e ela não está no vennelho ainda, com perdão do mau trocadilho. E os livros não são baratos.


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--uma es écie de vivacidade nova. _Esses estudantes de filosofia tomam a iniciativa de fazer um ciclo de --·· estudos e colóquios sobre cinema brasileiro, sobre Paulo Enúlio, sobre Décio de Almeida Prado, sobre

}lá uma - curiosidade intelectual a respeito da natureza cl<LcrisJUTI!!!ldiªLS) da_filt_ração dela no Brasil. É -- . -------"- .

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Antônio Cândido, sobre pensamento contemporâneo, sobre Teoria da Dependência. Tudo isso à margem e em paralelo a mn departamento de filosofia em que ficou mn núcleo de gente competente, mas ... eu diria ...

Irrelevante? Eles não gostam e nem eu gosto de falar isso, mas enfim ...

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Então, esses 10% se explicam por uma espécie de mudru].ç.a _sociológica-que-está acontecendo no. Brasil, ..... que nós não sabemos quando _virá à tona, mas que está aparecendo. É uma politização diferente do movimento estudantil. Nesse gmpo que eu conheço mais, que eu freqüento mais, que me pede mais coisas, não que eu seja mentor deles, há uma pequena parcela de organização do tipo PCdoB, muito pequena. Não estão organizados, não tem nenhmn gmpo trotskista. São politizados, mas não estão organizados nesse sentido. É mna coisa nova. As referências bibliográficas deles sãe diferentes. -Não _basta mais ler M_3rx. _Eles querem outras coisas. Isso é novo.

Quais são essas referências? Eles lêem, digamos, Zero à Esquerda. Eles lêem mna nova literatura de esquerda que não é mais ?

ortodoxa, não é mais talmud~JL Eles estão à procura de diagnósticos diferenciados da crise brasileira que sejam de esquerda, mas que não necessariamente venham com a chancela de marxista. Organizam, por exemplo, montagem de peças de Brecht. Enche de gente. Estão interessados nisso, no que é o Brecht agora, depois da crise, depois da queda . Não se pode representar mais a classe operária, o partido comunista ou o bolchevismo tal como aparecem nas peças dele. Está datado. Isso compromete ou não? É isso que eles estão discutindo. Estão ligados nos novos movimentos sociais, tipo MST. São vidrados nisso. Acompanham, editam jornais, tomam DCE, Centro Acadêmico. Mas não há mais o estereótipo - que virou estereótipo e não era - da esquerda que ressúrgiu nos anos 70 quando a ditadura começou a afrouxar. Você ia a qualquer tipo de reunião de SBPC ou qualquer seminário e havia sempre banquinhas, mna atrás da outra, com Mao Tse-Ttmg, Trotski, Lênin. Isso era uma demru1da reprimida, que começou a aparecer no primeiro ano Geisel. Você corria risco de vida se comprasse um livro marxista. Essa demru1da saturou-se nos anos 80. Aqueles 10% significam isso. E, no caso específico da filosofia, que é um caso à parte, que não se aplica a outras áreas, nós temos mais e mais alunos interessados em filosofia . No mercado, há uns poucos anos -não sei se continua ainda -, filosofia era o que mais se vendia de ciências hmnanas. Os livreiros estavam atrás de livros de filosofia. Não importa de que tipo. Passou a haver mna grande demanda. Nos cursos de filosofia do primeiro ano, eu encontro 220 alunos no curso noturno e, desses, 80% são profissionais liberais ou gente que acabou outros cursos e que estão insatisfeitos com eles e que não vão se dedicar profissionalmente a filosofia, mas estão interessados em ouvir, estudar, ler, dizer


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o que acham. Acham Descartes, as Meditações, o maior barato. Acham Kant um saco. De fato, porque Kant é o primeiro filósofo profissional e Descartes ainda não é. Isso dá para explicar. Na minha entrevistazinha eu explico isso um pouquinho. A partir dos anos 80, com este refluxo de parte da esquerda mundial, e também no Brasil em meados dos anos 80, por uma confluência de várias tendências - uma delas é a própria transfonnação da filosofia francesa com o estruturalismo e depois com o pós-estmturalismo -, a filosofia francesa, ao contrário da filosofia estritamente profissional e analítica americana, incorporou vários asstmtos, como lingüística, história das mentalidades, antropologia do Lévi-Strauss, psicanálise do Lacan e assim por diante. De modo que quem, nessa linhagem francesa em São Paulo, se ocupava de filosofia e estava encharcado dessa nova viravolta da filosofia francesa, que remonta em última instância ao existencialismo, ao chute que o Sartre deu na filosofia acadêmica e epistemológica (havia uma outra tendência, digamos, francoamericano-inglesa, que fazia epistemologia, que era a do Giannotti, num certo sentido, aquela filosofia da Lógica, história da filosofia stndo sensu), era profissionalmente convidado a ler, escrever, refletir, incluir nos seus cursos psicanálise, história, antropologia, lingüística, teoria literária tipo Roland Barthes e assim por diante. Quando veio este boom pós-moderno, nos anos 80, em que os assuntos clássicos da modernidade desapareceram, o "filósofo", entre aspas, o professor de filosofia sobretudo de corte franco-paulista e de maneira caricata o carioca, tomou-se especialista em cultura geral ou em conversar sobre cultura, sobre o olhar, a paixão, o sentido, o tempo, juntamente com outras especialidades. Mas o filósofo em geral passou a ser pau para toda a obra para essa conversa sobre cultura para mega-públicos de eventos com inscrição, pagos, em que se ouve sobre A Clivagem do Sujeito, o Desejo e a Pintura Contemporânea. Estou brincando, mas é isso. Então houve uma espécie de demanda por esse especialista que virou uma espécie de intermediário cultural, que é o professor de filosofia da cultura. "Reencontramos a vocação universal da filosofia". É um lindo engano. Seria uma conversa universal sobre assuntos gerais ligados ao consumo cultural de uma classe afluente internacional. Você vê semelhança entre a, natureza da dificuldade dos alunos em assimilarem as suas idéias e a dos mal-entendidos de muitos intelectuais acerca de "As Idéias Fora do Lugar" ? Houve, no fim dos anos 70, um debate sobre esse ensaio. Depois ele estancou, não voltou mais ao lugar, continuou gerando o mesmo tipo de mal-entendido, mas de uma maneira mais ou menos nebulosa, uma espécie de garoa fma que circunda todos os que se aproxin1am do Roberto e que se afmam com ele - o que não é o meu caso, não tenho afinidade, mas identidade absoluta com ele -, e que recicla muna nova chave um velho debate que é o mal-entendimento da posição do Antônio Cândido como sendo um crítico literário sociologizante, nacionalista e portanto inteiramente démodé por oposição ao formalismo, ao Concretismo, àqueles que se interessam pelo específico literário, pela literalidade do texto, pelo textualismo. Então, o episódio "As Idéias Fora do Lugar" é apenas um rótulo que carimba wn capítulo I

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dessa longa história do mal-entendido a respeito da evolução da obra do Antônio Cândido, que é cultuado como um grande patriarca da crítica literária brasileira, mas não é acatado, nem entendido. Eu imagino que nas suas aulas haja repercussões do tipo de abordagem do Schwarz. Eu nunca abordo diretamente isto. Eu nunca fiz seminários sobre textos dele. Sempre que eu pego um filósofo brasileiro, eu vou nessa direção, como quem está explicando um fenômeno de idéias fora do lugar, no caso, filosofia feita no Brasil. Qual o interesse dela e qual é o registro das alienações, dos curto-circuitos que ela provoca, o efeito paródico involuntário? Mas isso não é feito como se estivesse fazendo uma demonstração de um receituário programático. Sem tocar no assunto, eu mostro que filosofia no Brasil tem importância, faz parte do debate contemporâneo, mas precisa ser abordada num registro diferente. Não se pode imaginar que seja um autor francês, alemão, americano. Para que seja um tratamento interessante, ele tem que ser diferenciado, o que principia por colocar em confronto essa posição filosófica específica feita por brasileiros com o conjunto da cultura brasileira em fi.mcionamento. Aí se vê o quanto nós que mexemos com filosofia ficamos a dever em interesse aos grandes ensaístas, cineastas e assim por diante. Como os alunos absorvem isso? Quando eu trato da relação entre filosofia e cultura no Brasil, eu pego um texto do Porchat dos anos 70, do Giannotti dos anos 80, analiso-o, tento situá-lo no debate brasileiro e, ao mesmo tempo, nas filiações européias profissionais. Quando eu apresento de maneira geral o quadro, modéstia à parte, os alunos mais aproveitáveis, do ponto de vista do fi.mcionan1ento da vida intelectual brasileira, se interessam. Os outros detestam, aliás, toleram. É incompreensível para eles, que logo se sentem à vontade quando voltam ao trilho do profissionalismo stlicto sensu, contra o qual eu não tenho nada. É uma estupidez dizer: "não me interessa estudar Kant, vamos ver Tobias Barreto". Jamais me atribua esse tipo de coisa, porque é uma completa incompreensão dos meios profissionais. "O importante é a filosofia de Euclides da Ctmha". Atribuem-me isso, como caricatura, como piada. Uma espécie de Policarpo Quaresma, como se eu fosse dar aula em tupi-guarani. Eu acho que os alunos que podem dar alguma coisa são os que começam a juntar essas áreas até então separadas. Agora, veja só, esse talvez seja o ímico efeito benéfico da era FHC do ponto de vista cultural: mesmo nos meios tucanóides, que estão solidamente implantados na filosofia, dada a real e justificada ascendência intelectual do Giam1otti como filósofo oficial, dado o poder institucional que ele tem (você não é inocentemente presidente do CEBRAP, nem participa de Conselho disso e daquilo, nem é amigo intimo do presidente impunemente - isso significa poder real: ele controla poder acadêmico, controla verbas, é tll11 pólo de atração, dirige o CEBRAP, que dá bolsas), sendo ele filósofo, tendo sido marxólogo, tendo escrito sobre Marx, sobre O Capital, tendo gosto pela esquerda, sendo liberal, tendo lido os clássicos da esquerda teórica, sociológica, sendo pluridisciplinar graças ao Seminário do Capital, graças ao CEBRAP, dado o fato de que o FHC é a origem dele, sendo a era FHC o que ela é,

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dada, enfim, a posição central ocupada pelo Giannotti nesse momento, todos os pequenos afluentes filosóficos, médios, minúsculos, subalternos ou dignos num certo sentido, que convergem para o Giannotti em função dessa constelação, mesmo que sejam especialistas em Wittgenstein, Kant, em escola de Frankfurt no sentido emasculado, eles, dada essa nova configuração,.-PassataiD-ª-êe

~!ere~~ar

de m11a matJeira _malli_ç_ons(~<2L1t§_e n~um;jQrnalí§tiçª_pel9 d~bate político, .social c--·· o brasileiro ---- .. - -e econQ!JÜ. _._._.,_..,.....__., ~

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e_c()),ll€çara.IJ1_- eu não diria a incorporar isso, nem seria esse o caso na vida filosófica acadêmica - a prestar atenção, a escrever, alguns de maneira mais sistemática, artigos confomüstas, situacionistas não no sentido muito subalterno -, a fazer coisas que os sociólogos, os politólogos que são tucanos, por opção ideológica clara, fazem como sustentação ideológica do regime, explicando a transição dual brasileira, a estabilização, as mudanças políticas, a nova inserção internacional, toda a fraseologia tucana, que até então era apanágio apenas dos assessores, coordenados pelo Luciano Martins, que tem um grupo de estudos que apresenta subsídios só para inglês ver - são os famosos neo-sociais tucanos aos quais ninguém dá bola no Plat1alto, quem decide são outros . Isso que até então era apanágio da família de origem do presidente, que eram sociólogos, politólogos, alguns economistas, que estudavam o Brasil, como ele mesmo estudava, passou a interessar a esses filósofos. Então, você po_:l~ dizer_g~~-Q.ela _prgn~r~ ve~ gr51Ç<!S a_Q.fi:!C, lwuy_e_!!ill.. ~Jeito benéfico na filosofia. Ess~s tilós9i2.~§.!:~2- ~!~~~ado~_: no

sentido institucional, não no sentido marxista de grupos leninist~s

dissidentes - e começam a discutir, com a competência que tem qualquer âncora de jornal da Globo News, estabilização, juros, câmbio, tra11sição dificil da ditadura, \;ácuo político entre o fim do Cruzado em 87 e a ascensão de FHC. Começam a falar isso e a fazer artigos para o CEBRAP, sendo filósofos de formação. Estão no ponto para se tra11sfonnarem em jornalistas e escreverem artigos na página 3 da Folha ou do Estadão, que não discrepam muito das análises oficialescas, ajustadas, alinhadas de jornalistas, cientistas políticos e sociólogos governistas, cuiQ..Radrão fojjpaugqrª.do pelo Giatmotti"há 15 anos atrás.

Qual o potencial transformador de uma categoria como a estudantil? Atualmente, nenhum. Absolutamente nada. Ele já vem desaparecendo há um bom tempo. Mesmo a última aparição na cena pública, no impeachment, foi um show entre outros. Aparecer na televisão, mídia, cara-pintada e assinl por diante. O fato de você pedir a renúncia de um notório corrupto, versão mídia, não implica em absolutamente nada.

E se eu transferisse a pergunta para o MST? Ah, bom. Mas os estudàntes, se é que tiveram alguma função, tiveram, a11tes de 64, seguramente, um papel importante. Por que diabos, né? É uma coisa a ser pensada. Eu participei do movimento estudat1til antes de 64. Depois, nunca mais. Fiquei grande. Há. uma conexão para a qual pouca gente presta atenção. Houve uma mobilização nacional. É uma história que ninguém conhece mais, esse país pré-64 não existe mais. De fato, o__mo.Y.imento-estudantil foi- sobretudo_{2or.que-os...smdicatos ainda e.ram.mtJ!!.o

a~_çlQS_<Luro_p..§l~gu_g:mg_ de

Estado e..não-ha:via


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sindicato independente como

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- ativo, altamente politizado, no caso, imantado pelo Partido

Comunista - depois apareceram outras tendências, como aquela em que eu apareci, a AP - e bagunçou muito a estrutura sindical, ligas camponesas, estava metido em tudo e empurrou muita coisa para a frente com o seu radicalismo. E foi justamente essa massa estudantil que depois do golpe - isso é uma coisa a estudar e muito bem estudada nwn artigo do Roberto (Schwarz) que eu acho primoroso, que é "Cultura e Política 64-69" - ficou, diz o Roberto, confmada. O que o golpe fez foi cortar a ligação entre a agitação estudantil e o movimento sindical, autorizando, por assim dizer tacitamente, a agitação estudantil em recinto fechado. Então, houve o teatro, sobretudo o de Arena, em São Paulo, o teatro do Rio de Janeiro, o cinema e as faculdades, que começaram a se mobilizar contra o golpe como se ele tivesse sido um acidente, como se fosse necessária uma correção de rota, que tinha sido um erro do PC, assim como toda uma aliança com wna fictícia burguesia nacional e assin1 por diante. :Qe_modo que -a mobilização estudantil pré-64 foi canalizada para ...,_____

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festivais. da_caução. Então, eu acho que entre 64 e 68, indo na

linha do que o Roberto diz, eles ficaram aquecendo-se uns aos outros, excitando-se uns aos outros, em termos de surenchere, como dizem os franceses, ideológica: awnenta-se a aposta cada vez mais para ver quem é mais radical do que quem. Criou-se uma forte mentalidade, fermentada pelos professores, anticapitalista no Brasil. E foi essa a massa hwnana da luta armada. Foi wna sublevação de classe média eminentemente estudantil recrutada nesse meio, com fraco aporte sindical e alguns militares de baixa patente cassados em 64. Foi esse o último grande movimento anti-sistêmico no Brasil, praticamente suicida. Essa massa que veio de 64, padeceu o golpe e .depois ficou num espécie de assembléia pennanente durante 4 ou 5 anos, preparou-se para essa aventura épica e ao mesmo tempo suicida: essa classe média intelectualizada em armas, a luta armada no Brasil durante a ditadura. Ora, eu acho que, depois, quando a coisa afrouxou, essa mesma massa desmobilizada pela luta armada - wna parte foi derrotada, liquidada, extenninada fisicamente - engrossou um caldo maior de intelectuais e pesquisadores que começou a se aglutinar. O papel que teve os festivais da canção nos anos 60, teve a SBPC nos anos 70. Cada SBPC era um enom1e festival da canção, reunindo 3 mil pessoas fazendo subversão, estudando o Brasil, descobrindo o Brasil, fazendo propaganda de literatura marxista. Nesse momento, você tem a impressão de que o movimento estudantil renasceu. Mas não foi isso. Foi wna incorporação de estudantes, professores, novos partidos políticos, pequenos grupos políticos que depois foram se aglutinar na grande federação do PT. Era wna espécie de preparação da fundação do PT. Quando o PT se fonnou, foi com esses pequenos grupos, mas sobretudo com um tipo de sindicalismo autônomo, absolutamente inédito no

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Brasil. Quando.isSO-Se-agll:ltinou, necessariamente- o.....moV-i.mento__estll..dantil acabou,-ê!cerrou-se. ~ Diretas-Já foram um movimento nacional e multi-classista, num certo sentido, ou multi-categorial, se Jl.Ós._qu.isermos. E o-imp<:achment,

--.... um . ~h.ow_ de

televisão. Sair na rua contra um bandido, que é pichado

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como bandido pela núdia, não tem glória, graça nenhuma. Você pode fazer farra, aparecer na televisão. Tanto é que aquele Lindbergh virou um canastrão e se elegeu. Você vê a possibilidade de o MST desestabilizar as relações de poder no país? Não. Nem de que eles sejam alternativa de poder. Eles não são o futuro para nada. No momento em que eles se apresentarem em público como uma alternativa de poder, eles acabam em 48 horas. Murcham. Eles perdem o apoio, a simpatia nacional que eles têm e que oscila muito dependendo do surto de invasões, de como eles são demonizados pela imprensa, pela núdia. Mas ao mesmo tempo que eles não são uma alternativa de poder na velha estratégia político-partidária ou mesmo revolucionária de tomada do poder central (Eu acho que esta estratégia está encerrada. Acabou. Inclusive através de um partido político legal como o PT. Se ele chegar lá algum dia, com uma forte aliança, vai continuar a administrar. Não altera nada. Simplesmente é uma coisa um pouquinho melhor, com menos bangt.mça, menos corrupção, menos vandalismo. Enfim, não é por aí. Não sei. Não tenho idéias a respeito.), o MST eu acho decisivo para uma sociabilidade alternativa no Brasil. Pode então suscitar alguma coisa de semelhante no mundo político. Por que eles são uma unanimidade? Porque eles não são corporativos, eles não são um partido político, eles não têm ambições políticas, eles estão dentro da lei, eles querem simplesmente que se cumpra a Constituição- por ela a reforma agrária é uma coisa legal. Crédito, assistência técnica são coisas legais. Eles simplesmente querem isso. Não querem a postergação. E forçam isso. Para a opinião pública, eles aparecem como algo que não é corporativo, que é universalista. É uma espécie de demonstração de que terra, trabalho, créditos da moeda não podem ser mercadorias. Eles não querem uma diminuição da jornada de trabalho, um atunento da remtmeração. Não é nada aquisitivo, actunulativo. É terra para cultivar, não só mas sobretudo em cooperativas, agricultura familiar e produção para abastecimento de mercados regionais. Podem inclusive vender leite para a Pam1alat, para multi.nacionais, nada contra. Mas eles são pobres, de verdade, sem-terra, por definição, cuja organização se exprime por uma sociabilidade alternativa. Eles têm escolas, agrovilas, wna socialização cooperativa da produção organizada em tem1os civilizados, em que a terra não é adquirida para acumular - pode servir de moeda, para você vendê-la, mas não visa à acumulação. Num país socialmente desmanchado ou em vias de desintegração, como o Brasil, isso é fundamental. É um núcleo de vida social possível numa sociedade · pobre, bem-organizada. Isso desde que a barbárie não avance mais . Senão, eles viram zapatistas ou entram em conexão com as drogas. E aí começam a desconectar grandes territórios nacionais. Isso é possível. Não estou dizendo que eles sejam bandidos. Isso é uma infâmia e volta e meia o governo tenta, ao demonizá-los, associálos a plantações de maconha. Num determinado momento, e nós estamos sendo empurrados para um abismo, é perfeitamente possível, embora não desejável, que pedaços do território nacional possam se tomar zonas de conflagração tipo zapatistas, que não visam à expansão nem à tomada do poder central. Então, eles se desconectam do circuito mundial. Pura e simplesmente. E dizem: "A sua globalização não


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nos interessa. Nós podemos nos reproduzir sem a sua globalização". Eles se desconectam, e podem avançar mais um pouco e se jlmtar com a droga, por desespero. Como o pessoal da seca com a maconha. O pessoal não planta coca? O que se vai fazer? Se acabar a plantação de coca, acaba a Bolívia e acaba o Peru. Eles vivem disso, subsistem assim. Pode haver uma desconexão desse tipo, como a zapatista, que não é uma reação, não é wn movimento reativo, não pode propor nada. Não é uma altemativa para mudar a estrutura de poder do México. Abandonados por abandonados, eles cortam. Declaram um território autônomo. Mas têm conexão internacional via internet, estão ligados ao mundo inteiro, propagam sua imagem e identidade. Veja como a coisa está complicada.

~ no caso do MST, w11a coisa fi.mdamental que, aí sim, eu acho que pode ser um modelo de sociedade possível, é a questão do crédito: eles querem terra, que existe e está garantida pela Constituição - a categoria jurídica latifundio improdutivo está lá. Eles pressionam não só pela terra, mas por crédito. E quando se luta por crédito público, direito ao crédito e assistência técnica, o crédito passa a ser um bem público. Se o crédito é um bem público, que deve ser fornecido pelo Estado, você começa a contaminar a idéia de moeda. A moeda, portanto, não pode ser mercadoria, é um meio de pagamento e um meio de troca. Ela então tem que ser desmercadorizada. Muita coisa começa a mudar. Se você começa a imaginar que muitas firmas falidas possam se tomar cooperativas dos próprios fi.mcionários, que passem a exigir crédito, tudo vai mudando. Não estou dizendo que o cooperativismo é uma panacéia mundial. Não é nada disso. Isso existe no mundo inteiro há mais de séculos. Mas pelo menos wna coisa já está mais ou menos estabelecida: com o colapso da União Soviética, a tomada do poder central por uma vanguarda revolucionária é coisa histórica. Deve ser estudada novamente. Então, como podem ser movimentos anti-sistêmicos? Por que o MST não é? Se ele diz que a terra não é mercadoria, que ela é fi.mdamental para a reprodução da vida e que, portanto, aquele que trabalha a terra não vai transformar em mercadoria a sua força de trabalho, se diz que a moeda tampouco é mercadoria porque é preciso crédito e assistência técnica no nível da tecnologia contemporânea para produzir bens de uso, se isso prospera, você tem wna espécie de espinha dorsal para que wna sociedade desarticulada como a brasileira se reproduza em termos razoavelmente civilizados, pobres, isto é, as suas aspirações não sejam as de classe dominante. Sua agenda não é mais estabilidade da moeda, redução do custo Brasil - nós custamos para eles, isso é agenda de classe dominante. Você pode ter un1a expressão política disso: um governo que conceba a idéia de crédito abundante ou racional para cooperativas de produção, sobretudo as do MST. A coisa começa a mudar um pouquinho. Como vai haver wna nova situação internacional, agora, caracterizada pela escassez de dinheiro, o modelo criminoso que esses caras montaram em quatro anos vai pro brejo também. Eles montaram uma estabilização monetária e portanto wna redução do custo Brasil em favor da classe dominante que supwilia a abundância da oferta de dinheiro. Isso acabou e não vai voltar tão cedo. Então, vai ser um modelo com restrição de crédito internacional. O padrão de fmanciamento da economia mudou. Como é que você vai fazer isso agora sem a legitimidade política que lhe dava crédito abundante e portanto via


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consumo do lumpen? Isso acabou e está montada uma bomba social que vai explodir na metade do ano que vem. Aí, se você tem grupos organizados como a igreja, o MST ou um novo PT refundado pela base que deixe de ser máquina eleitoral para eleger deputado e vereador em carreira solo, algo pode acontecer, porque agora nós vamos administrar pobreza. Não tem mais dinheiro para financiar consumo aqui . Acabou. Tem que ter poupança interna, crédito e como é que se vai produzir? Tudo isso tem que ser rediscutido. Se não quiser discutir, a sociedade vai explodir. Então, vai baixar o pau, só? Só repressão? Não vai dar também. Não vai dar para colocar todo mundo na cadeia. Nem a droga eles conseguem dominar. Então, como é que vai ser? É uma bomba que eles montaram. Eles sabem disso. E não dá só na base da repressão. Até agora e durante quatro anos, deu na base do iogurte e do forninho de microondas, porque isso era financiado por dólar externo, que cobrava juros astronômicos. Acabou essa farra. Simplesmente acabou. Eles vão continuar mais wn pouco por causa das privatizações. Vai ter Petrobrás, Banco do Brasil. Vão privatizar tudo que der! E quanto mais privatizar, mais barbariza, por que isso é estoque, que não garante fluxo, só dá W11a sobrevida. E nessa sobrevida eles não vão mudar a estrutura produtiva do país e engrenar no Primeiro Mw1do como eles imaginavam. Vão continuar fazendo bons negócios. Isso eles fazem sempre. Lucros de qualquer maneira . Comprando ou vendendo coisa do Estado. Subsidiado pelo Estado ou vendendo patrimônio público. A configuração disso vai mudar no ano que vem. É claro que você pode prever, do ponto de vista político, conhecendo as raposas que a gente conhece, que eles vão fazer uma aberturinha à esquerda: vão dizer que vai ter um governo social, vão pôr o Serra de ministro da fazenda, para administrar a ,--...,

escassez, porque ele é duro, ele não abre o cofre. E assim por diante. Portanto, enquanto vão privatizando para manter o rolego, vão enganando com Ministério tipo social - podem até trazer o Ricúpero de volta. Vai ter uma maquiagem ministerial e vão continuar privatizando. Vão dizer que mudaram o modelo. Mas tem um déficit na conta que precisa ser coberto, tem um rombo de 50 bi e não tem 50 bi no mundo para financiar o Brasil, aliás, para fmanciar quem investiu no Brasil. Então, vai haver uma tergiversação de alguns meses no ano que vem, mas não vai dar pra enganar muito. Talvez em 2002 haja uma virada . Não necessariamente eleitoral. Não necessariamente eleitoral. Não sei. Não sei. Que tenha expressão eleitoral. Não sei. Eu acho que não. Expressão eleitoral não tem mais, porque sociedade desarticulada é isso que você está vendo. Os juros vão a 50 % e o índice do fulano aí (FHC) sobe para 49%. Eles estão apostando nessa irracionalidade. Se não der, é fascismo mesmo. O voto, a expressão eleitoral, será cada vez mais conservador. Por isso é fundamental que você tenha pobre organizado de maneira civilizada como é o MST, como alguns setores da igreja que organizam essas coisas. É o último recurso que a gente tem. Talvez até do exército, como está sendo proletarizado, desgarre-se m11 setor patriótico e faça coisas por aí: hospital, pontes.

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Está tudo baixando. Eles cortaram saneamento básico para fazer acordo com o FMI, para tentar trazer capital de novo. Estão cortando 2 bi de saúde. Estão barbarizando. E quem aposta em expressão eleitoral? O PT imaginou faturar com a crise e a crise elevou o homem na estratosfera. Num momento de crise, como o nosso, há uma enorme cobrança sobre os intelectuais. Todos os dias, os jornalistas vão atrás deles e pedem: "expliquem-nos o que está acontecendo e digam-nos o que fazer". Seria razoável dizer que é possível explicar o que está acontecendo, mas que a passagem para a prática depende de um momento histórico? Você acha que a relação entre teoria e prática muda historicamente? Como fica a histm·icidade da relação entre teoria e prática hoje? Sem esquecer que a cobrança é justa. Claro, claro, claro. Mas é possível que essa relação não esteja disponível? Você vai achar que eu estou desconversando, mas eu preciso dar uma resposta enviesada. Eu não posso teorizar dizendo o seguinte: não há mais nenhmn macro-sujeito social, tipo classe revolucionária. Não vou teorizar dessa maneira. Não vou teorizar como se fazia no fmal dos anos 70 e início dos anos 80 dizendo que existem novos atores sociais. Não vou esperar que apareçam novos atores sociais. Pode aparecer até bandido como ator social. O Comando Vermelho é um ator social. Teorizar nesse nível de generalidade não dá. Propor nesse nível de generalidade também não dá. Ou dizer que as previsões do Manifesto Comunista estão de pé- isso é tun artigo genial do Arrighi que está lá no Ilusão. Leia aquilo. Mas ele também não faz nenhum prognóstico, ele diz mais ou menos o seguinte: Marx e Engels, em 48, quando redigiram o Manifesto (diga-se de passagem, isso o Arrighi não diz, eles sabiam pouco de economia, depois souberam mais), fizeram mais ou menos o seguinte diagnóstico: o Capital e o seu portador, a classe dos proprietários capitalistas, criaram o seu Outro, o famoso coveiro, que vem de dentro. Aquele que vai enterrar e dar o passo adiante para fora está ali dentro. A aposta da dialética, o pressuposto da dialética é esse. Se esse mecanismo desaparece, acabou. Você tem que repensar tudo. É isso que nós estamos vivendo agora. Quem é o Outro do Capital agora? É o assalariado da indústria moderna? É o agente inovador tecnológico, que está produzindo desenvolvimento, que gera tecnologia, que gera valor? É o lumpen, a não-classe dos não-trabalhadores que foram desconectados do sistema produtivo? Quem é?

Não sei. Quem é o Outro do Capital? Quem é o antagônico dele gerado por ele mesmo? Marx inflectiu a trajetória do socialismo com esse raciocínio. Então, nós não sabemos identificar esse Outro. Nós podemos dizer que existe mn campo dos Outros do Capital. Talvez. Talvez. Mas não sabemos quais são os sistemas de alianças entre eles. Nós não sabemos quais são as classes sociais. Voltando ao argumento do Arrighi. Para Marx, o Capital tinha um Outro, ele engendrava os seus próprios coveiros, que eram a classe daqueles que só tinham a sua força de trabalho para vender. Só

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trabalhavam se encontrassem um comprador, só encontravam comprador se seu trabalho acrescentasse valor ao Capital. Era um sistema contraditório, antagônico. Para que ele fosse subvertido, eles fonnularam duas condições: era necessário que a concentração de Capital gerasse no seu oposto, no seu par antagônico, a mesma concentração de poder social. Isto é, que a força de trabalho, a classe operária, tivesse um poder de veto decisivo na acwnulação, que se expressa pela greve. E que portanto a cada rodada de acumulação, a força social da classe trabalhadora - e portanto a sua expressão política - crescesse no mesmo ritmo até o enfrentarnento final. Mas para que isso acontecesse, seria preciso uma segtmda condição. Senão, de certa maneira, essa compensação social dessa força política da classe operária poderia ser satisfeita indefinidamente sem subverter o sistema. Era necessário que a concorrência entre proletários fosse de tal ordem e a exploração, de tal ordem, que houvesse wna penúria de massas. Não wna pauperização, no sentido clássico, mas uma situação de penúria maciça. Quando a penúria se jtmtasse com a força social, nós teríamos a revolução. O sistema seria posto abaixo. O Arrighi vai acompanhando esses ciclos sistêmicos de acumulação e a estratificação da economia mm1dial em periferia, semiperifeira e núcleo orgânico e diz que se nós acompanhannos toda a história desses ciclos de acumulação capitalista, que são sempre mundiais, e a correspondente evolução desses dois fatores na classe trabalhadora, nós veremos que houve un1a disjtmção, uma dissociação inclusive espacial. Em detenninadas localidades da acwnulação capitalista, a classe trabalhadora acwnulou cada vez mais força social a ponto de ser uma expressão política ftmdamentalno pacto de dominação. Isso se deu na Inglaterra e sobretudo nos Estados Unidos e nos países escandinavos. E nestes países, um partido socialista teve clientes, mas não a revolução. Ela não prosperou. Tanto é que você não teve nenhum partido revolucionário, mas grandes partidos operários que disputavam o poder central jtmto com os partidos burgueses. Cada vez mais satisfaziam os interesses crescentes da massa trabalhadora que participava da produção. E nas outras localidades do capitalismo, a revolução encontrou os seus clientes, os seus sujeitos, que foram uma massa trabalhadora pobre a qual a burguesia não tinha condições de atender, portanto não cumpria um dos requisitos da dominação e da hegemonia que é sustentar aqueles que o sustentam. Não tinha condições de proteger socialmente. Isso começa a aparecer sobretudo com as guerras. Não é por acaso que a primeira revolução aparece em 1917 junto com uma Guerra Mundial. Então, ele diz que durante mn século e meio houve wna bifurcação. Onde você tinha proletariado forte, você não tinha revolução. Onde você tinha proletariado fraco, você teve revolução. E foi na periferia do sistema. Agora, diz ele, com a crise sistêmica que nós estamos vivendo e com a corrida ao corte de custos, a força de trabalho é etnizada, sexizada, o trabalho industrial tradicional é deslocado para a periferia, o trabalhador qualificado é desalojado do poder social com a tecnologia e portanto os altos salários vão

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para aqueles que não são assalariados, que são os técnicos - que produzem a tecnologia em que está a base de conhecimento em que se assenta a nova economia da reestruturação capitalista . Então, o poder social vai para esses agentes inovadores e a classe proletária perde influência, poder político e assim por diante. O Arrighi está fazendo tm1a aposta fundamental. (Ele não diz que existe desemprego de massa, pelo contrário, o exército industrial de reserva cresce, está presente aí, não é obsoleto, não é o inútil tecnológico. O desemprego é uma coisa completamente flutuante. Para ele, esse não é o argumento fundamental.) Para ele, existe o proletariado, só que está espacialmente disperso. Pela primeira vez na história do capitalismo, nós temos uma periferia industrializada e, no caso do Brasil, quase houve uma tomada do poder central pelo PT, classe operária. (O que aconteceu com o PT aqui, aconteceu com o Solidariedade na Polônia. Houve lá um movimento de massa operária. Não foi só a crise extema, não. Houve um impulso de baixo também.) O Capital industrializou a periferia, montou uma classe operária com penúria de massa - fordismo de baixo salário que é o nosso aqui. Ao mesmo tempo, empobreceu a classe operária americana e européia. Botou mulher e imigrante para trabalhar e, portanto, rebaixou tudo. Mulher- sobretudo decor-e inllgrante você pode explorar mais. A proletarização aumentou, o poder social cresceu no mundo inteiro, de certa maneira, e há a penúria de massa. Só falta um elemento: o assalariamento dos agentes inovadores, à medida em que os técnicos forem sendo proletarizados, venderem sua força de trabalho como vende um operário comum. Não simplesmente um trabalho em casa. Uma coisa diferente de uma remuneração de quem está fora. Isso porque a ciência foi intemalizada como um fator de produção . Com isso, diz ele, as condições previstas por Marx e Engels há 150 anos atrás estão pela primeira vez se jtmtando. Há força social, claro: a globalização levou o capitalismo para o Sudeste Asiático, num certo sentido. Milhões entraram no mercado de trabalho, nas condições piores possíveis, mas entraram, estão lá. Com a globalização, essa disjunção espacial está desaparecendo e as coisas estão se jtmtando. E podem se misturar com o assalariamento dessa classe inovadora. Portanto, nós podemos estar às vésperas, no século XXI, de um surto endêmico de lutas de classes generalizadas como Marx e Engels previam. Com wn senão: nós não sabemos se o planeta vai se transformar numa grande Bósnia ou se haverá solidariedade entre as várias classes operárias ou assalariados, seja lá o que for, nacionais, como acontece debaixo da fronteira entre o México e os Estados Unidos. De qualquer maneira, não teremos mais partidos nem sindicatos do grande modelo industrial que nós

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conhecemos durante os 150 de vigência do Manifesto, cuja previsão não se cumpriu. Haverá uma outra

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estrutura do movimento operário, que nós não sabemos como será. Não será mais como as grandes

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centrais sindicais, os grandes partidos operários, que estavam justamente acoplados ao fordismo, às

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grandes plantas industriais . Isso acabou. O trabalho foi individualizado, segmentado. Então, nós não

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sabemos como isso vai se recompor. Pode se recompor, dada a deterioração social, de fom1a bárbara ou de outra maneira que nós não imaginamos. Então, você tem ainda um dado. Não está tudo pela hora da morte. Não sabemos o que vem por aí. Voltando a teoria e prática. Onde está o Outro do Capital? Pode aparecer? Pode não aparecer? Eu diria mais ou menos o seguinte. A imprensa não sabe de nada e chama o intelectual para opinar: "o que está acontecendo e o que fazer?". As opiniões são erráticas, a maioria apologética, e os que não são apologéticos não sabem o que fazer. Quem sabe o que fazer, fala em abaixar o câmbio, reformar o Estado. Abobrinhas administrativas, o assim chamado planejamento estratégico. Do meu ponto de vista (Um ponto de vista estritamente intelectual. Não sou ativista, não estou fundando partido político, não estou atrelado a sindicato. Sou estritamente intelectual, porém independente, não devo nada a ninguém. A coleção é absolutamente independente. Não tenho dinheiro, não tenho poder.) de intelectual que está se mexendo contra, juntando coisas, a opinião que eu posso dar é a seguinte: eu faço parte de uma família intelectual, de um grupo intelectual, descendo já na terceira geração, sou já netinho desse pessoal, que apostou todas as fichas nessa famosa construção nacional, mesmo sendo eles marxistas, keynesianos de esquerda ou pouco importa, não eram ortodoxos e portanto de certa maneira eram progressistas no sentido de apostar na capacidade, no ímpeto civilizacional do capitalismo e se prepararam para isso. A Teoria da Dependência é uma preparação para isso. Ela tem un1 lado conformista, afirmativo. Toda a escola econômica da Unicamp, a teoria do capitalismo tardio, também apostava numa espécie de realização civilizada de uma economia competitiva. Ruy Mauro Marini se enquadraria nesse caráter afirmativo? Não, não. Ou Vânia Bambirra? Também não. De jeito nenhum. Mas eles tendem, digamos, para a abstração, a espera da alternativa socialista. É uma posição doutrinária muito simpática, gostaríamos todos de estar nessa posição, mas ficamos aí esperando o socialismo chegar. Você acha que as referências à transformação futura comprometem a análise histórica, política, de Ruy Mauro? Não, não. Mas aí você fica na base do socialismo como convicção ético-política. Ela fica armazenada muna reserva de consciência moral. Você vai à luta, é o feijão com arroz. Depois de 64, quando se delineou a modernização conservadora sob os militares, traçou-se uma estratégia de recomposição da sociedade brasileira: com 1m1a retomada do desenvolvimento de maneira civilizada, fmalmente as classes sociais iriam se enfrentar e uma solução sairia. Era mais ou menos essa a aposta. Havia socialistas, liberais-progressistas, mas haveria uma sociedade organicamente coordenada, se reproduzindo sem grandes disparidades e, portanto, num determinado momento - a situação seria internacional - você veria o passo que você queria dar: socialismo, social-democracia,


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algo desse tipo. Todo mtmdo foi se encaminhando para isso e foi perdendo o senso da alternativa radical. Fora a alternativa radical abstrata: leninismo, socialismo. Isso acabou. Mas as pessoas não imaginavam que isso tivesse acabado e ficavam com reserva moral. Podiam ser leninistas e ao mesmo tempo reformista no dia a dia. Não havia incompatibilidades. O problema era mexer na caixa preta e dizer que não dava mais. Via soviética, leninismo, isso é coisa encerrada, não dá mais. Houve um gap. Por isso as pessoas não sabem o que fazer. Elas se prepararam para uma coisa que não houve. Uma fração dessas, muito esperta, deu o bote e abocanhou o poder, associou-se à classe dominante, que consertaria o estrago enquanto aquela fração reformaria o capitalismo; entraríamos mun novo surto, numa terceira onda, e era esse o projeto inicial. Quem ficou para trás são uns burros. Uma fração foi pra lá. E está aí dizendo abobrinha. Quebrou a cara, queira ou não queira. Não tem mais milagre, não tem mais Real. E os outros foram ao chão, não só porque perderam a referência soviética, mas porque o PT começou a patinar, as centrais sindicais começaram também a definhar. Não tinham o que propor, não sabiam dizer o que fazer, porque não tinham mn diagnóstico. Ficaram 4 anos sem assunto. Isso é verdade. Há 4 anos, o que nós tínhamos? Generalidades sobre globalização, outros tantos diagnósticos sobre a crise do Estado desenvolvimentista brasileiro, mas as coisas não estavam arrumadas na cabeça. Demorou quatro anos - o tempo de maturação dessa coleção (Zero à Esquerda) entre outras coisas - aqui e no mundo para as idéias voltarem a se ajeitar e se formular pelo menos um diagnóstico. São vários diagnósticos (na coleção), vários cenários da globalização. Nem todos eles coincidem. Só a partir da cristalização vai demorar um pouco, o meu timing é 2002, para dar um timing eleitoral - desses vários cenários do que é a reestruturação capitalista mundial, qual é o lugar do Brasil, qual é a composição do Brasil, quais são as classes sociais no Brasil, é que se vai começar a ter uma lupa para ver o que está acontecendo na sociedade brasileira e aí sim vão começar a aparecer respostas para a pergunta o que fazer, dadas pela própria sociedade brasileira. Não porque ela não tinha nada, mas porque agora você está vendo. Antes você não tinha condições de ver. Uma dessas coisas é essa visão diferente sobre MST, sobre cooperativas, políticas públicas regionais. Vão começar a aparecer proposições, seguramente. Não porque você está induzindo, mas porque você mudou o quadro de referências e então você começa a ver, certas coisas começam a se sobressair. Eu acho que é por aí. A relação entre teoria e prática será por aí. Não será mais a relação clássica, práxis social que engendra teoria. Vai ter novamente mn certo intercâmbio entre elas. O essencial da resposta no plano estritamente da história intelectual é isto: uma camada significativa da inteligência brasileira não sabia mais responder a pergm1ta "o que fazer?" (mesmo tendo um Partido dos Trabalhadores ativo, o MST se mobilizando, ninguém tinha resposta, porque o PT não era alternativa, o MST tampouco), porque não tinha idéias claras e idéias claramente oposicionistas - ainda não tem - a respeito da situação local e mtmdial. Quando essas idéias se cristalizarem - não é intelectualocentrismo -

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a realidade vai se tomar mais visível, mais nítida. Aí, você vai saber onde se meter, onde se enfiar, com '--

quem você vai se associar e assim por diante. Eu acho seguramente que deve ser força de trabalho empobrecida que se organize de uma maneira que é imposta, de certa forma, pela organização da economia mundial, pela simetria da economia mtmdial. Eu acho que é por aí. Portanto, é estudar, pensar, ler, discutir bastante, viajar bastante. Eu sinto isso nessa coleção, no salto que deram as pessoas que participaram dessa coleção - que é o grupo que fez Poder e Dinheiro, economistas cariocas, gente da Unicamp, que fazia parte dessa velha guarda à esquerda do dependentismo, do capitalismo tardio, do diagnóstico do que era o Brasil, que estava numa espécie de inércia, estava se tomando estritamente acadêmica, comentando os comentários, teve o tapete puxado e ficou sem ter o que falar, estava realmente desanimada, acabrunhada, sem idéias. No momento em que chegou alguém e propôs coisas, as pessoas começaram a estudar, viajar, ler adoidado e começaram a pensar, nesses 4 anos e em função da coleção, a trocar figurinhas, fazer seminários, estudar, trazer gente, viajar. Depois você tem quatro ou cinco cenários da globalização, que são dissidentes, que têm uma grande força especulativa, portanto explicativa, portanto mobilizadora de inteligência -não de grupos sociais, ninguém é paranóico. Eu vejo o progresso nesses 4 anos em mim mesmo. Eu, há 4 anos atrás, era um cebrapino cardosista. Por isso querem me matar lá em São Paulo: sou um traidor, ingrato, era o mais jovem, esperança do grupo, mordi a mão do mestre e assim por diante. Em um ano de coleção, esses caras do Rio que se juntaram para fazer Poder e Dinheiro, vão fazer agora un1 outro livro. Houve uma aceleração. Começaram a ter idéias. Essas idéias, seguramente, quando forem socializadas, vão servir para tomar visível, pôr no foco coisas que estão acontecendo na sociedade e que ninguém está vendo. Eu acredito muito que vai reaparecer wna grande sociologia no Brasil novamente como nos anos 50 e 60, para descobrir o que é esse monstrengo que foi gerado. Coisa que nós não sabemos, mas vamos acabar sabendo e é aí que nós vamos engrenar.


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PASSOS DA TRADIÇÃO CRÍTICA BRASILEIRA* Segunda parte de um aula de Paulo Eduardo Arantes para a turma de Formação da Literatura Brasileira, do professor Hermenegildo Bastos, realizada na sala B1 -251 do Minhocão, Universidade de Brasília, no dia 18/09/1998. Transcrição de Pedro Benevides. *Título do transcritor. O símbolo * * * defme o final de um lado de fita. ATENCÃO: ESTA TRANSCRICÃO NÃO FOI CORRIGIDA PELO AUTOR

Explicado mais ou menos o porquê de eu estar me aventurando a falar de literatura e a centralidade da literatura na experiência brasileira, eu anotei os tópicos enumerados pelo Hennenegildo (Bastos). Será que vale a pena começar pela idéia de formação? Não? Hermenegildo - Acho que sim. Sim? Depois chegamos então à dialética entre forma literária e processo social. Eu vou começar tentando expor mais tml pouquinho essa noção de formação no Antônio Cândido e dar uma idéia geral da obra dele. Eu acho que há três dimensões nessa obra, que se encaixam perfeitamente nos esquemas dele. A idéia de formação não nasceu pronta na cabeça do Antônio Cândido. Ele não disse: "vou escrever sobre a literatura um livro análogo àquele que Sérgio Buarque, Caio Prado e assim por diante, até o Celso Furtado, escreveram sobre o problema da formação, incompleta ou não, numa sociedade nacional. O fundo do debate é a passagem da Colônia à Nação. Alguma coisa desse debate aparece na literatura e eu vou rastrear esse fio condutor na sua manifestação literária." Não. Não apareceu assim. Pelo menos, não dá para perceber que tenha sido assim. Ele foi empurrado pela força do seu material nessa direção. Ele já contou mais de uma vez essa história, mas eu vou recontar pela enésima vez, porque as pessoas não entendem. Elas acham que a F01mação da Literatura Brasl1eira é um livro nacionalista, sociologizante, um livro inimigo das vanguardas, que começa muito tarde e tennina muito cedo, que tem omissões graves, que não inclui o Barroco, não inclui Anchieta, Vieira, não inclui o Barroco baiano e assim por diante. E além do mais, entrando direto no assunto, há um tópico interessante que poucas vezes é sublinhado: Antônio Cândido suscita equívocos simétricos àqueles que ele diagnosticou como sendo elementos constitutivos da evolução da cultura brasileira. É interessante isso. Confirmando, portanto, a tese dele. Isto é, ele ora é chamado de nacionalista, ora de tmiversalista - portanto, de costas para o Brasil. Ele seria alguém que não confia, por exemplo, na pujança vanguardista do Brasil, porque teria escamoteado Gregório de Matos da F01mação. Portanto, ele seria um impatriótico e, assim,


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m1iversalista, como foi Machado de Assis, mun certo sentido, segtmdo essa mesma leitura. Portanto, . Cândido seria um neo-iluminista, interessado na difusão das luzes num país que tende à folclorização da ·cultura devido a suas raízes coloniais e, sendo neo-iluminista, estaria do lado da classe dominante. Seria um modemizador, que se entroncaria diretamente na fase ilustrada, por exemplo, do Mário de Andrade, vinculado à oligarquia paulistana. E, por outro lado, para um outro tipo de equívoco, ele seria um nacionalista, romântico inveterado, tributário de José de Alencar, quase que nativista e assim por diante, porque ele teria retratado o desejo dos brasileiros de ter mna literatura. Ele seria mn teórico da literatura nacional no sentido de algo que tem uma origem, uma semente, um caráter, mn espírito que se desenvolve ao longo do tempo e assim por diante. O que é mn grotesco absurdo. Porque justamente lhe impingem, como se fosse uma espécie de vício onto-teológico-metafisico, uma teoria das origens da literatura brasileira. Ele teria ido atrás da origem da literatura brasileira, como se isso tivesse sido idéia dele, quando na verdade não foi. E ele é impingido de romântico, quando no último capítulo da

F01mação da Literatura Brasi1eJi-a - chama-se "Teoria da Literatura Brasileira" - ele mostra como o Romantismo construiu uma mitologia acerca da literatura brasileira, de um país que nasceu do nada, que foi fabricado inteiramente. Era América portuguesa, mna Colônia, um entreposto comercial. Como é que você tira uma Nação daí? Você inventa. hwenta uma origem. E toda a teoria romântica literária européia foi concebida, veio a calhar para a invenção dessa origem. E foi nada mais, nada menos que o Romantismo francês filtrado pelo Almeida Garrett em Paris, que contou essa mitologia, essa narração de constituição, esse mito de origem, para os moços que vieram depois, com Domingos Gonçalves de Magalhães, a fundar a revista Niterói; no Rio de Janeiro. Antônio Cândido conta tudo isso no fim do livro. A teoria de tm1a literatura nacional é mna invenção romântica do início do século XIX, com essa mediação do Almeida Garrett, que estava pensando a mesma coisa sobre Portugal e disse: "O Brasil, como país exótico, periférico, colonial, e assim por diante, tem que valorizar isso. Aí começa a literatura, que tem que se deixar entranhar pela cor local, pelo regionalismo". Os românticos inventaram isso. Ele conta essa história no fim do livro e depois dizem que o homem é isso. É inacreditável. Então, vejam como esses dois equívocos complementares a respeito da obra dele reproduzem justamente aquilo que ele enm1ciou no início dos anos 50: a lei de evolução da cultura brasileira é uma sutil dialética entre o local e o mundial. Portanto, há uma dupla fidelidade, uma oscilação pendular entre a fidelidade à cor local, à expressão da particularidade, e, por outro lado, a fidelidade à vocação W1Íversal de uma literatura que está entranhada na tradição ocidental, como é a brasileira através da portuguesa. E que nós - salvo raros momentos de equilíbrio entre esses dois hemisférios, ora no Machado de Assis, mais adiante no Modernismo e depois na literatura brasileira já fom1ada, pois aí ela segue esse trilho deste movimento pendular - sempre oscilamos . Ora nós nos apegamos à particularidade local, a retratamos literariamente, ora nos encaixamos numa norma supostamente europeizante, que seja tmiversalizante e que eleve o nosso assunto ao plano da nonna


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culta mtmdial. A nossa evolução mental se dá de acordo com o diapasão dessa evolução bifásica, se é . que se pode falar assim. Essa lei de evolução do espírito nacional, segundo Antônio Cândido, para falar num vocabulário um tanto exótico, é a mesma que exprime a oscilação dos equívocos a respeito da obra dele, que ora seria nacionalista, ora neo-ilmninista. Isso oscila. Às vezes, são os mesmos críticos que o increpam dos dois versos opostos- é o caso dos concretistas. Eles são ao mesmo tempo vanguardistas e patriotas. Quando eles estão na fase vanguardista, eles dizem que o Antônio Cândido é nacionalista, sociólogo-metafísico nacional, e quando eles estão na fase patriótica, eles dizem que o Antônio Cândido não se interessa pelas letras pátrias, como vão dizer de Sousândrade até Gregório de Matos. Os concretos são as duas coisas. Na verdade, eles são de vanguarda por serem patriotas. O Antônio Cândido não é nem uma coisa, nem outra. Ele só diz que a lei é essa. E está sendo confím1ada na mesma pessoa. "Numa década vocês dizem que eu sou isso, na outra década, que eu sou o contrário disso, como eu acabei de dizer. Pra lá e pra cá. Pra lá e pra cá. O tempo inteiro." A origem do livro é a seguinte. Ele não disse: "vou fazer um livro que se encaixe nessa tradição fonnativa brasileira". É claro que a palavra formação não apareceu ao acaso. Ela vinha desses clássicos. Antônio Cândido recebeu a seguinte encomenda, em meados dos anos 40, do livreiro Martins: uma história da literatura brasileira que fosse nos moldes da História da Literatw-a Francesa, do Albert TI1ibaudet, que é uma obra-prima daquilo que se chama crítica esquemática - não no mau sentido, crítica esquemática é dizer tudo sobre Moliére em três páginas. Só o Tiübaudet conseguiu fazer. É uma maravilha. É um livrinho em formato pequeno, 400 páginas, que começa com a Revolução Francesa e vai até um pouquinho além da morte de Proust. Ele lida com gerações. É muito divertido. Ele começa justamente com a primeira grande geração da literatura francesa e diz, no primeiro parágrafo: "Por que será que Chateubriand falsificou a data de seu nascimento? Porque ele quer ser conhecido para a posteridade - ele começou a escrever as suas memórias de além-túmulo para isso e por encomenda, para serem publicadas depois que ele morresse- como nascido no mesmo ano que Napoleão e Madame de Stael". Daí, a geração de Chateaubriand, Napoleão e Madame de Stael. E é nesse ritmo de gerações que o Thibaudet vai fazendo essa pequena história da literatura francesa, que é uma história maravilhosa, bem-feita, bem escrita, inteligente, sobretudo ele tem alguma coisa para dizer - e na base da geração.

By the way, no nosso problema, em nenhum momento, no Thibaudet, aparece que a literatura francesa seja indispensável para a construção de alguma coisa que nós podemos chamar de consciência nacional francesa. Nos anos 30 desse século, haveria alguma dúvida a respeito da nacionalidade francesa? Evidentemente, nenhuma. E nem no século passado. Isso é outro erro cometido justamente por esses críticos que vão na esteira do concretismo e que nós poderíamos chamar desconstrucionistas, neoformalistas, esses obcecados com a metafísica da


32 origem e que dizem que o Antônio Cândido é logocentrista, antropologocentrista, logofalocentrista, . obcecado com a origem - e que dizem o seguinte (isso está lá no Haroldo - O Seqüestzv do Bmwco na Formação da Literatura Brasileira-, ele diz com todas as letras e é a única coisa que eles sabem, porque eles copiaram do J ... , da "História Literária como Provocação"): todo o grande crítico literário, num determinado momento, decide-se a escrever uma obra da sua vida, a história da literatura nacional no seu país. Aí, cita o L ... , que era o diretor da Escola Normal de Paris e escreveu no fim do século passado um manuaL Só escreveu isso. A grande obra da vida dele era isso, um manuaL Cita depois o Giovanni de Sanctis. Aí sim, A Histón'a da Literatw-a Italiana é uma contribuição ao esforço de constituição da nacionalidade italiana, que não existia até a segtmda metade do século passado. A Itália é um problema de formação complicado, mais ou menos semelhante ao nosso: também está na periferia do capitalismo, é um capitalismo retardatário, tem uma classe dominante inepta. O Giovmmi de Sanctis, sim, está escrevendo a história da constituição problemática através da literatura - como pensar o grm1de dran1a da nacionalidade italiana que é tematizada desde o tempo de MaquiaveL Então, ele é o grande leitor republicano do Maquiavel e vai até a constituição de alguma coisa que o Gramsci, mais adim1te, vai chamar de nacional-popular. Mas isso não tem nada a ver com o que eles estão dizendo. Muito menos o TI1ibaudet e mais o G ... , que é o modelo alemão, que eles também trazem. Antônio Cândido, então, recebe essa encomenda e diz: ''Não posso fazer isso. O Thibaudet é um livro geniaL Eu não tenho condições de fazer esse voluminho que você quer. Posso fazer uma história da literatura no sentido corrente do termo'' E ele diz que topou o convite, porque precisava de dinheiro. Tinha mulher, filho, ganhava muito mal na Faculdade e propôs espertamente dois volumes. O Martins o financiou por 10 anos, o tempo de entrega do livro. E por que a demora? Porque ele não encontrava o fio. Ele estava com o assunto pronto, porque havia preparado um concurso para a cátedra de Literatura Brasileira, no qual ele tirou segundo lugar - o concurso foi (. .. ), ele era considerado comunista. Ele passou um ano estudando, lendo literatura brasileira, tomando notas adoidado. Ele é um homem que toma notas desesperadamente, compulsivamente. Tem cademos e cadernos de notas. Sabese lá quem vai por as mãos nisso. Ele descobriu a literatura brasileira. Novamente uma descoberta tardia, veja só. Uma descoberta da literatura brasileira num sociólogo fonnado -já assistente da cadeira de Sociologia II, de Fernando de Azevedo - para quem a literatura brasileira não existia. Até o início dos a11os 40, a literatura brasileira era uma coisa inferior, para moças - desculpem-me, mas naquela época todos eram machistas, chauvinistas -, não era literatura para gente grm1de. A literatura brasileira, com exceção de um ou outro Machado de Assis, não era algo que você pudesse mostrar para um mnigo estrangeiro sem enrubescer. Não existia. Ele sempre gostou de literatura, queria fazer tese sobre literatura e uma vez chegou ao professor Bonzon - que era o titular de literatura francesa, da missão francesa, no fim dos anos 30 e início dos anos 40 - e disse que queria fazer uma tese sobre Baudelaire. Pensar em literatura é pensar em literatura frm1cesa - e ele sabe Baudelaire de cor até hoje. O Bonzon


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disse que ele não poderia fazer, porque não era formado em literatura e sim em sociologia. Aí apareceu · esse concurso, que foi o caminho do Antônio Cândido. Receberia o título de livre-docente em literatura brasileira e poderia fazer sua tese sobre Baudelaire. Literatura francesa, veja só. Isso não ocorreu, porque ele começou a se preparar para o concurso e leu, em tempo integral, durante um ano, literatura brasileira - que ele conhecia de in!ancia, tinha lá o Sílvio Romero completo, encadernação vermelha na casa do pai dele, médico em Poços de Caldas. Aí, ele descobriu que aquilo era extraordinário. Não que ele fosse patriota. Ele descobriu simplesmente que nós nos deciframos a nós mesmos lendo literatura brasileira mesmo e sobretudo quando ela é pífia. E é preciso explicar porque ela é pífia. É isso. Ele começou a adorar Alencar e assim por diante. Tudo o que ele achava que era de segtmda ordem. Então, ele estava com tudo isso montado quando veio o convite do Martins . Ele disse: "Tá pra mim. Está tudo lido, vou fazer. É só sentar na mesa e mandar bala". Mas a coisa não saiu. Por quê? Ele diz o seguinte: "Porque eu queria fazer uma história da literatura que evitasse vários erros cometidos por todos os meus predecessores: um conjunto de monografias que se restm1iam geralmente a ( ... )e precedidas por uma longa introdução metodológica em que o autor exptmha as suas preferências metodológicas em 50 a 100 páginas de elucubrações filosóficas, metodológicas e teóricas sobre a natureza ·da filosofia no mtmdo, da história e assim por diante, do tipo do Sílvio Romero, que, na introdução da História da Literatura Brasileira, diz que para compreender a literatura brasileira é preciso estudar até botânica e geologia no Brasil. Eu quero evitar isso. Ou então os marxistas, ou o new

criticism que faz introdução metodológica e depois 'José de Alencar: nasceu em tal data, escreveu ... '. E por outro lado, quero fazer análises que sejam esteticamente relevantes dos autores que eu vou considerar. E que, por outro lado, haja um encadeamento cujo fio seja histórico entre esses vários capítulos. Sem o quê, não será uma história, mas um conjunto de ensaios soltos, avulsos. Seria um dicionário. Como fazer isso? Leio, leio e as coisas não se engrenam."

Aí, ele teve um estalo. Foi uma virada. Ele começou a notar, lendo os escritores brasileiros dos séculos XVIII e XIX, que eles remetiam uns aos outros a tarefa de continuar a sua própria obra. Referiam-se uns aos outros, como se existisse um elo entre elas. E esse vínculo era entendido como a expressão intencional, deliberada de dotar essa sociedade, que estava se conformando e que estava completamente desconjuntada por outro lado, de alguma coisa que nos entroncasse na civilização, na norma culta européia, que ao mesmo tempo nos oprimia com colonização, e que portanto nos exprimisse. É necessário que nós tenhamos também uma literatura, diziam eles. Antônio Cândido explica no prefácio - e até hoje as pessoas não entendem, é notável - que vai fazer, adaptando um título do B .•. , mna história do desejo dos brasileiros de terem mna literatura. Só que os que increpam o Antônio Cândido não percebem que esse desejo não é mais o dele. Quando ele escreveu isso em 1942, 45, ou no prefácio em 59, há muito tempo a literatura brasileira estava pronta, acabada, feita, formada, funcionando e esse desejo de ter uma literatura nacional era contraproducente, tinha caducado, não funcionava mais. Não era mais esse o problema. Desejo diante do qual ele recuava, tomava distância.


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Ele tratava ironicamente desse tema, que era falso. Mas foi em função desse desejo que a literatura brasileira se constituiu. Foi disso que ele tratou. A literatura brasileira foi empurrada nessa direção pelos seus próprios autores, que tinham esse projeto na cabeça. A primeira vez em que ele aparece e que se forma um pequeno sistema literário é com os árcades mineiros, que se referem uns aos outros, à norma arcádica e que imaginam que o assunto da norma, o assunto arcádico por excelência está presente ali em Minas Gerais. Como diz Antônio Cândido, para eles era muito mais natural colocar uma ninfa no Ribeirão do Carmo - porque justamente a tradição pastoral era muito mais verossímil num país periférico -do que rei:nventar a Arcádia grega na França. Você começa por essa aclimatação e por esse desejo de constituir uma literatura brasileira. A primeira vez em que as obras começam a engrenar e a ter um público próprio é com o Arcadismo mineiro. Eles geram seus próprios leitores. E o mais curioso, a grande descoberta dele: apesar da grande mudança do gosto estético, da reviravolta que é a introdução do Romantismo em relação ao Classicismo Arcádico, este mesmo ímpeto continua sem ser alterado. Tanto é que os românticos, malgrado a discrepância estética brutal, se reconhecem nos árcades como seus antecessores na constituição de mna literatura brasileira. Portanto, para além da oposição estética, existe uma continuidade de fundo que é a constituição dessa literatura. "Então, é isso que eu vou fazer". No fim do Romantismo, quando o Machado entra em cena, esse processo se fecha, se completa. E o Machado é justamente a expressão dessa completude, porque é o primeiro escritor que pode escrever se referindo aos seus antecessores como sendo antecessores reais . Ele aprende com os erros acumulados pelos seus antecessores. E mais do que isso: é o primeiro que não precisa mais dar um desconto de compreensão patriótica para a inépcia dos seus antecessores e que, portanto, pode escrever literatura adulta, isto é, pode criticar. Pela primeira vez, aparece um escritor que, dentro das normas do decoro edificante da classe dominante - ele não pode escapar disso -, arruma um jeito oblíquo de, dentro dessas normas, fazer literatura como manda o figurino europeu e que seja ao mesmo tempo um retrato crítico da sociedade contemporânea em constituição, sem o quê a nossa literatura ficaria sempre em situação de inferioridade, minoridade, sendo obrigada a ser patrioteira, sentimental, localista, nativista, edificante e, portanto, literatura para moças- como dizia o Antônio Cândido, com o perdão do chauvinismo. Então, com o Machado, completa-se a história dele. Tennina quando o Machado entra em cena - o primeiro a fazer literatura séria, com a complexidade à altura da fonna literária modema européia - e começa com os árcades, onde isso aparece pela primeira vez. Porque, antes, essa consciência não existia. Existiam manifestações literárias avulsas que não faziam sistema. Portanto, a literatura é antes de tudo um sistema e esse sistema não nasce pronto - essa a sua grande teoria. Isso não quer dizer que o Antônio Cândido acha que literatura tem que ser sistemática, como se fosse uma obra filosófica. Sistema é entre obras, autores e público, portanto, um sistema de referências recíprocas e cmzadas que dão consistência à vida literária enquanto tal e que não se transfonna apenas em curiosidade. As manifestações avulsas - o Vieira, o Gregório de Matos - não entram no sistema. O


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Gregório de Matos só entra no Florilégio de Vamhagen, quando, pela primeira vez, ele consta como . fazendo parte da literatura brasileira e começa a funcionar como tal. Até então, ele não existia. Não é que não se soubesse da existência dele. É que ele não :influía em nada, não interferia em nada, ele não era uma presença, não constituía uma tradição. Então, o que é importante para o Antônio Cândido é justamente a constituição dessa tradição e, portanto, a constituição de um elo, de uma causalidade intema, justamente aquilo que não havia na filosofia . Porque, justamente, o que garantia essa coesão de uma tradição era a possibilidade ou a necessidade de retratar, de figurar a experiência brasileira, isto é, apresentar o Brasil para os brasileiros. É um filtro através do qual se interpretava a sociedade brasileira. Forma-se, portanto, esse sistema e descarta-se essas manifestações avulsas. Nesse momento, Antônio Cândido viu que ia escrever a Fonnação da Literatw-a BI-asüeii-a nesse sentido exato.

Aí, foi a perdição dele. Porque ele falou em fom1ação (que tem

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lado genético,

historicista) e em literatura brasileira (E todos dizem: "Mas como, se começa com Arcadismo mineiro e tell11Ílla com Romantismo? Ficaram dois terços fora!"). Para evitar esse dissabor, ele poderia ter posto assim: "Arcádia e Romantismo na literatura brasileira". Pronto. Não teria havido nenhuma discussão. E teria passado desapercebido o que ele de fato fez: o por quê é fundamental a idéia de formação. Vamos dar mais um passo até chegarmos na dialética. Está concebida mais ou menos a

F01mação - e fonnação é formação da literatura e é óbvio que essa formação de mn sistema literário é impensável sem essa espécie de baixo contínuo que é a idéia de formação de uma sociedade nacional, embora ele não vincule diretamente isso. Mas a idéia dos nossos fonnadores da literatura brasileira era sempre a de que cada um que escreve - desde um memorando, um ofício, um artigo de jomal, um poema celebração do pudim da Dona Maroquinha - está imbuído da missão - é uma tradição empenhada - de contribuir com um tijolinho para a construção de uma sociedade que se reproduza em termos civilizados - não sem escravidão - à maneira européia. Portanto, a idéia de formação tem w11 conteúdo também normativo, embora ela exprima um outro processo de acumulação de experiência literária que vai conduzindo essa causalidade intema, como ele a chama, da seguinte maneira: na medida em que esse sistema se consolida, o autor começa a filtrar com sobriedade a famigerada preponderância do influxo externo na confonnação das obras. Isto é, você está indo numa certa direção, vem o Naturalismo francês, derruba tudo e você começa a fazer Naturalismo. Na medida em que você tem um sistema já composto, essa reviravolta do gosto estético - que por sua vez exprime uma reviravolta social na Europa - é filtrada por esse sistema, é retraduzida, é incorporada, como faz o Aluísio em relação à

L 'Assommoii; do Zola. Então, a história que eu quero contar a respeito da evolução geral da obra do Antônio Cândido é mais ou menos a seguinte, até chegar à dialética. Concluída a idéia de formação - agora recapitulada à luz da crise contemporânea, que é o que nos interessa, o que significa formação hoje-, a obra do Antônio Cândido comporta três dimensões, que vale a pena sublinhar à luz da crise contemporânea. Primeiro, as pessoas que devotam a maior admiração e inspiração à critica do Antônio


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Cândido não sabem mais o que fazer com ela, porque a idéia de formação nacional parece ter caducado com a famigerada globalização, patati, patatá e tome desconstrução e por aí afora. E, por outro lado, porque o Antônio Cândido é mna referência central. Então, não sabem o que fazer. Mas encontraram uma solução e eu vou dizer qual é. O velhinho foi descartado. Ele é colocado no museu, reverenciado, mas nada se faz com a obra dele. Está inteiramente esterelizada. Ela tem três dimensões. A primeira, nós acabamos de ver. A segunda va1 entrar um pouquinho adiante, nessa história que eu vou resmnir rapidamente para poder chegar na dialética - mas a dialética está no coração disso. Nós vamos entrar no conceito de dialética nele e nas adjacências. Do que consta a obra de crítico literário, de crítico da cultura, do Antônio Cândido? Ela tem dois eixos fundamentais. Um é o eixo formativo, que é a crítica literária em perspectiva histórica e todas as ramificações disso como crítica cultural. Por exemplo, ele inaugurou dois tipos de ensaio: mn nos anos 70, sobre a Revolução de 30 e a cultura, e outro, extraordinário, nos anos 80, chamado "Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade", em que ele junta vários tipos de materiais como memórias, anedotas, vida literária, análise de obra, compreensão· da vida política nacional. Tudo isso arrumado - tudo de que ele se lembra, do que ele arrola, organiza, como é que se descobriu realidade brasileira nos anos 30, o que foi a virada do modernismo nos anos 30, como se rotinizou o modernismo nos anos 30 e assim por diante - dá mn tipo de ensaio (como dá também um tipo essa reflexão do primeiro ensaio). É uma espécie de ensaio digressivo de crítica cultural, que entronca nessa linha da formação da literatura brasileira ou da formação do sistema cultural brasileiro, que vem desde essa obra original, seminal, que ele começou a redigir em 1945 e publicou em 59. Esse é um eixo. Um eixo fi.mdamental, porque é, ao mesmo tempo, tm1 eixo crítico. É um ponto de vista crítico a partir do qual opinar a respeito da evolução da literatura brasileira, não no sentido trivial de evolução, e é um eixo eminentemente comparatista, isto é, a formação desse sistema em confronto com os sistemas similares europeus, que não são guiados pela mesma lógica de pesquisa da consciência nacional, fortalecimento da consciência nacional e assim por diante. De modo que eu sempre comparo o Romantismo aqui e o Romantismo na Europa. O Arcadismo aqui e na Europa. E assim por diante. É sempre comparativo. O que dá tiD1 ponto de vista mais avantajado ao crítico brasileiro, porque, até certo ponto, dada essa "dialética", entre aspas, da dupla fidelidade ao local e à norma culta internacional, ele é obrigado a saber do seu e do geral. Ao passo que o escritor ou crítico europeu, até um detemúnado momento do século XX, podia se bastar consigo mesmo e ignorar o que se passava na periferia. De modo que, bem pensado, quem estava na periferia sabia duas vezes mais. Daí, o fato de que alguém como Machado de Assis, que vem do nada, mora num país que é nada, que é coisa nenhuma, ser o igual do Henry James, que pode dar tm1 balanço da falsa normalidade burguesa a partir do ponto de vista deslocado da periferia . De modo que essa perspectiva formativa é eminentemente crítica. Do segundo eixo, nós já vamos começar a falar - é o que nos interessa mais de perto, porque trata da dialética entre forma literária e processo social. Nesse primeiro eixo, nessa primeira


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dimensão formativa, há uma outra dialética ftmcionando, que é a entre local e mundial. O achado do . livro é justamente esse: em cada uma das duas porções do livro, a arcádica e a romântica, nós temos essa dupla fidelidade. No caso do Arcadismo, havia o cenário da sociabilidade do ciclo do ouro de Minas Gerais e, por outro lado, a nonna arcádica européia, que era a convenção literária que naquele momento nos favorecia . No Romantismo, a mesma coisa. Só que no caso do Arcadismo, o momento forte é o universaL No caso do Romantismo, o momento forte é a fidelidade à cor local - inventa-se a mitologia indianista -,mas, por outro lado, ela é invenção francesa: essa descoberta das raízes nacionais é uma convenção literária européia. Portanto, você tem os dois lados, com o peso para o lado local. E no conjunto do livro, você tem o universal e o local novamente se contrabalançando. Portanto, é uma máquina perfeita que ele montou. É o eixo dessa formação de um sistema cultural brasileiro. Na pintura, na arquitetura e na filosofia, nós vamos encontrar sempre isso. A formação da filosofia paulista se dá em poucos anos, numa década só, nos anos 60. Isto também acontece.

É o caso da literatura americana, que também foi sempre assediada por esse complexo de inferioridade - que foi o nosso durante muito tempo - em relação à literatura inglesa e européia em geraL E também foi alimentada, impulsionada por esse desejo de dotar aquele país igualmente ou tão mais bárbaro quanto o nosso de uma literatura. Ora, isso acontece rapidamente - o que alguns autores chamam de Renascimento americano - nos anos 50 do século passado, quando aparece o Emerson, o Thoureau, A Letra Escarlate, do Hawthome e mais adiante o Melville e Whitman. Com Whitman, acaba a década e o sistema literário americano está lá. Uma das grandes coisas a serem feitas - nós sempre nos propusemos a fazer e nunca fizemos - é comparar o Antônio Cândido a esse processo americano. Há um livro americano - muito semelhante ao do Antônio Cândido - sobre a história, nessa década maravilhosa, do nascimento da literatura americana - O Renascimento Ameiicano, do T .••. Agora veja só a vantagem do Antônio Cândido, a diferença entre ele e o T... . É que o T... não tem a distância irônica que tem o Antônio Cândido em relação à nossa literatura passada. O Antônio Cândido inventou um jeito que o Roberto chamou de senso amistoso do ridículo, que é o que nós somos. (Você não ter um senso do ridículo nacional, que é uma coisa do arco da velha, dá nisso que está aí: perdeu-se o senso do ridículo, entre outras coisas, entre outros sensos. Levar-se a sério dessa maneira: eu e Bill, eu e Blair. É a coisa mais provinciana e mais caipira brasileira. É o protótipo do caipirismo nacional, que começa por essa perda do senso do ridículo e das proporções, evidentemente.) O Antônio Cândido toma distância em relação a esse desejo brasileiro, que é um desejo dissonante: a literatura se completa num país escravista. Essa dissonância é o assunto do Machado. O T ... entra no miolo dos temas do Emerson, dos temas edificantes, aquele Romantismo transcendentalista americano de paróquia, o Thoureau e assim por diante, que formam wna espécie de pensamento americano que depois vai aparecer nos romances do Hawthome e sobretudo do Melville, que são romances metafisicos sobre a culpabilidade calvinista. E isso é constitutivo da nacionalidade. Então, é matéria de reflexão. Então, o T ... mergulha nisso e


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começa a pensar a substância da sociabilidade americana a partir dessa expressão literária, que é · também um debate religioso. Daí, a profundidade da literatura americana que é desconhecida. Se o Antônio Cândido fizesse o mesmo com José de Alencar estaria babando pelos ouvidos. Não é possível você meditar lendo O Guarani. É inacreditável. No caso do T •.•, que não é débil mental, isso é possível, porque começa pela primeira vez uma grande literatura que separa a novel do romance. Ela não tem romance realista, não tem novel. Tem romance, que é uma fabulação romanesca (estou falando do Brasil ainda), porque não há material europeu, que é uma sociedade organizada, uma sociedade de classes, que tem mn passado, uma profundidade, um passado pré-capitalista e, portanto, há luta de classes, há história, há uma sociedade estruturada. Essa a matéria-prima do romance no século XIX Isso você não tem nos Estados Unidos, tampouco no Brasil. Por isso é que o Machado não faz romance realista - essa o Roberto matou. Então, nos Estados Unidos, como não há isso, você vai para a romance, que é não só fabulação romanesca, portanto livro de aventuras, mas também a aventura psíquica, interior, que é a moralista, que é a . calvinista, que é o tema de A Letra Escarlate, do Hawthome, do Melville (Vocês acham que Moby Dické uma caçada de baleia? Não é. É mna alegoria do bem e do mal. É óbvio. Eu vi primeiro o filme do John Ford e sempre achei que era caça à baleia. O Ahab é uma figura bíblica. Tem m11a biblioteca, nos Estados Unidos, sobre se a mitologia é egípcia, mesopotâmica, grega.). Daí, a profundidade. O primeiro a descobrir isso foi o Lawrence, inglês, da Lady Chatterley, que tem mn livro pequenininho sobre literatura americana no fnn do século passado que é uma maravilha. A literatura americana, para os ingleses, é quase infantil, contando historinha de bem e mal, aventura na pradaria. Mas por outro lado, ela tem uma profi.mdidade de reflexão e de alcance que os ingleses não têm com suas bobagens aristocráticas. Isso não aparece. Nos Estados Unidos, há essa pesquisa em profi.mdidade que é muito semelhante a dos russos. Basta estar na periferia da assim chamada normalidade civilizada burguesa, para se ver que ela é teratológica. E foram os russos que descobriram isso. Eles colocam, na pátria Rússia, russos europeizados que são ao mesmo tempo ridículos e monstruosos. Por isso, quando os russos, no fim do século passado, entram em cena, o grande realismo francês e inglês vira coisa de criança, uma literatura pueril, ingênua, apologética e ideológica. E os russos entram pra quebrar. E os americanos, nesse momento, idem. Mas tem um lado também ideológico. Isso para fechar o parêntese comparativo. Voltemos à obra do Antônio Cândido. Voltemos ao segm1do eixo. O segm1do eixo é curioso. Essa segunda dimensão da obra dele apareceu da segunda metade dos anos 60 em diante e foi inaugurada pelo ensaio sobre o Sargento de Milícias, "Dialética da Malandragem". Tem que contar muita história sobre isso. E tem a terceira dimensão: as manifestações avulsas de critica literária. A que conta - aos meus olhos e também aos do Roberto - são as duas primeiras dimensões. A obra do Antônio Cândido é a maneira pela qual elas estão imbricadas. O resto são manifestações avulsas, primorosas, de crítica literária. É a isso que as pessoas estão se apegando hoje. Porque não podem, não têm condições, não


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sabem, não descobriram o que é o Antônio Cândido, não conseguem dar um passo adiante na direção dessas duas dimensões: a formativa e a da dialética entre forma e processo social ou entre literatura e sociedade. De um lado, formação da literatura, formação do sistema literário, fonnação de um sistema cultural, de outro, essa dialética entre forma literária e processo social - os lados se cruzam - e, no meio, as manifestações avulsas de crítica literária das quais a obra dele está cheia - e é isso que as pessoas estão agora atalhando, valorizando, porque não sabem o que fazer com o legado, porque estão dando de barato que, de fato, nós como sociedade acabamos e que é de vanguarda você dar isto como encerrado, como assunto caduco, o das formações nacionais. Portanto, entroncamos diretamente na tradição mtmdial, cosmopolita, como se ela existisse. Ela não existe. No momento em que você se descola dessa referência nacional, você não se junta a nada e tomba na mais cruel irrelevância. Não começa a falar de mais nada. Começa a falar da essência da literatura em geral. Essas manifestações são grandes textos. São grandes ensaios literários, como, por exemplo, alguns de Tese e Antítese, de Rec01tes. São ensaios avulsos em que ele faz crítica literária primorosamente bem-feita, mas é uma critica literária que, digamos, não tem futuro. A não ser que você faça algo semelhante, primorosamente bem-feito, mas que não avança em nada. Vou dar um exemplo. Num colóquio sobre Antônio Cândido, as pessoas não sabem o que fazer. É um colóquio de homenagem a Antônio Cândido, mas o homenageado não conta. O homenageado não tem futuro. As pessoas dizem isso nas entrelinhas, às vezes abertamente: "Não, isso é genial, mas é coisa dos anos 50, 60". O que vai ficar? Eles se fixam numa coisa como a seguinte: em O Discw-so e a CÍdade, há quatro ensaios chamados "Quatro Esperas" . Um comentário do poema do

Cavafis, um comentário dos vários continhas kafkianos sobre a muralha da China, outro sobre Le RÍvage des Sy1tes, do Julien Gracq, e um quarto sobre O dese1to dos tá.Jtaros, do Buzzati. Com razão,

as pessoas fica deshm1bradas. Um ensaio é mais bonito do que o outro. E ele comete uma coisa que deixaria um europeu pasmo diante desses quatro ensaios: ele glosa conteúdos, ele conta a história. São quatro casos em que há uma meditação sobre a morte, entre outras coisas. Para um alemão, que lê Kafka como nós tomamos leite paulista, o problema não é fazer metafísica sobre os assuntos do Kafka.

É justamente o contrário. É a discussão da ·forma kafkiana e o que você extrai daí. Ele faz glosa de conteúdo. Só no Brasil isso é possível. Ele extrai leite de pedra. Ele glosa os conteúdos de um modo tal que você fica enlevado. É um refresco para a alma. Mas quem é que pode fazer igual? E quem se arriscaria a pegar por exemplo o Doutor Fausto, do Thomas Marm e contar a história? Não dá. E ele faz isso nesses quatro ensaios. Então, o que as pessoas estão dizendo? Que ali é que está o verdadeiro Antônio Cândido. Esse é o Antônio Cândido do futuro, do século XXI, o Antônio Cândido pós-nacional, pós-colonial, pós-desconstrucionista e assim por diante. Porque ali nós não vemos mais a distinção entre critica literária e literatura. E essa indistinção se faz graças à elevação do propósito da crítica literária a -é o título de um livro recentemente saído -alta literatura. Ele tomou-se edificante, glosador dos temas sublimes da literatura ocidental. Glosador de temas e de assuntos. É esse Antônio Cândido que vai ficar.


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Então, você tem literatura, no sentido mais elevado, edificante possível, e glosa de temas supostamente · sublimes, isto é, coisa nenhuma. Porque isso acontece? São ensaios tremendamente bem-feitos - você ouve como se fosse música - e, de fato, as pessoas têm a impressão de que se trata de literatura. É da maior simplicidade. E ele está, glosando conteúdo kafkiano, a um milímetro do ridículo. Em todos os ensaios ele está a um fio de cabelo da banalidade a mais ridícula possíveL Claro que ele escapa disso. Nós não escaparíamos. Há uma espécie de composição de música de câmara. Mas e daí? E daí, nada. Você, quando chegar aos 70 anos, faça igual e morra em paz. Legue para a sua família. A famosa lâmpada do interesse se apaga . É muito bonito. Você lê antes de dormír, donne contente e pronto. Não há conexão com aquilo que insufla vida na crítica literária brasileira o qual era o pressuposto da linha formativa e que é explicitamente pólo condutor da segunda linha: a experiência brasileira. O Antônio Cândido foi o primeiro a - isso o Roberto diz com todas as letras no ensaio sobre "Dialética da Malandragem" - juntar, depois de muito tempo, a crítica de escritor com a tradição dita naturalista, que era a explicação social - ele juntou essas duas tradições e trouxe de volta para o âmbito da crítica literária a reflexão independente através da forma sobre a originalidade da matéria social brasileira e a partir daí, não simplesmente por impulso nativista, em função da especificação dessa matéria, opinar a respeito da confonnação do mundo contemporâneo. Isso é wna façanha. Não só uma façanha, é o objetivo de cada um de nós. Se não for isso, não adianta gastar dez minutos para pensar, ler. A matéria brasileira só interessa, porque ela não é uma matéria subordinada dessa gravitação mundiaL Ela é uma matéria que revela aquilo que não está visível no Centro. Isso é que é o fundamentaL E a literatura, a forma literária, é a via de acesso privilegiada. E eu iria mais adiante, se vocês me derem tempo. Eu teria algumas sugestões a dar nessa direção quando nós chegannos no capítulo "Dialética da forma e do processo social". A linha formativa vai da crítica literária, da crítica da cultura, e supõe essa constituição, essa problematização da formação nacional, e, portanto, vai ao fundo do debate, da passagem da Colônia à Nação e do que significa essa passagem, que não se completou, no capitalismo contemporâneo. Nós somos uma Nação pós-colonial sem ter sido Nação. O que é isso? É esse o assunto. É esse o assunto. Como a forma nos permite chegar a ele. Como esse assw1to vai aparecer na forma literária. Essa é a porta de entrada. Essa matéria social não está conformada e visível a olho nu. E mesmo um cientista social vai passar batido por isso. Não vai ver nada. É preciso sempre que haja o sismógrafo literário. Foi o que Antônio Cândido fez na linhagem fonnativa e na que nós estamos chamando de dialética da fonna e do processo social. Porque é onde entra a experiência. Se não entra a experiência nacional e se ela não é problematizada através disso, nós resvalamos novamente para a irrelevância. Não somos nada. Não dizemos nada. A menos que se queira pegar textos avulsos e ficar fazendo glosa de conteúdo edificante. Pronto, acabou. Mas como? Não é possível.


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Tem uma história que não foi contada ainda- fica só em conversa lá em São Paulo- e que é a seguinte: em 59, o homem publicou a Fonnação da Literatw-a Bmsildra, quando ainda estava em Assis. Veja só, fazendo um parêntese, como ele funciona. Ele era assistente de sociologia na cadeira do Fernando de Azevedo e louco para passar para literatura, que era o que o interessava. Como ele fez? Ele deu uma volta . Ele saiu da cadeira de sociologia, abriu - ou abriram para ele - uma disciplina de teoria literária, literatura comparada, na Faculdade de Assis. Ele foi para lá para ficar dois anos estudando, se preparando, para poder abrir condignamente uma disciplina de teoria literária, literatura comparada em São Paulo. Isso não existe mais . Ele ficou dois anos no mato estudando. Lendo adoidado. Assinava 17 revistas. E portanto pode ser Assis, Quebec, pouco importa . As pessoas querem logo Nova Iorque, querem ser cidadãos do mtmdo - fon11ação nacional não conta mais. É o que o Roberto chama muito bem de ilusão de bolsista: quando você tem um pé numa biblioteca aqui, fez um estágio numa universidade fora do Brasil e tem w11a bolsa aqui, você imagina que está conectado internacionalmente, portanto você publica um artigo em inglês e todo mtmdo vai ler e comentar na internet. Isso é ilusão de bolsista brasileiro. É ilusão da leitura. Você é nada vezes nada. Tem que falar de O Cortiço. Se você não escrever sobre O Cortiço, você não vai falar de nada que interesse ao mundo. Tem que escrever sobre O Smgento de Milícias, sobre Machado, sobre Paulo Lins, Cidade de Deus. É por aí que vocês vão falar do mundo. Não é escrevendo sobre a desconstrução da origem mitológica do Romantismo brasileiro e publicando no Joumal of Litera.ry Studies de w11a universidade em Austin. Nada. É nada vezes nada. As pessoas não se dão conta. Hegemonia falsa é isso - estávamos discutindo ontem. Descolamento. Em Assis, então, ele organiza o 2° Congresso de teoria literária, em 61. E lá -veja só, tudo preparadinho - ele coordena, não participa de nenhuma mesa como expositor, anima os debates e numa das mesas ele pede a palavra - o tema era sociologia e literatura. Ele lê - leva cinco minutos - um papelzinho desse tamanho - está nos anais e é o primeiro capítulo de Lite1-atw-a e Sociedade, publicado em 65 , quatro anos depois - em que está o programa das relações entre literatura e sociologia, que naquele momento ele vai abordar. Portanto, já estava no horizonte dele. Temrinada a obra fundamental dessa linhagem formativa, ele passa a tematizar, através da análise de obras, as relações entre literatura e sociedade. Foi por onde ele começou, estudando, por exemplo, o Cururu, a relação entre cultura e sociedade, como ele diz em Os Parceiros do Rio Bonito. Isso é o que o interessa. Por quê? Porque o asstmto é o Brasil. O assunto é a sociedade brasileira. Embora, na verdade, o asstmto privilegiado por ele seja sempre, como ponto de partida, a forma estética. Aparece esse programa em que ele fala da famosa dialética entre externo e interno, como o externo vira interno. E o new cn"ticism já tinha consagrado inteiramente a obra voltada sobre para si mesma estudando as suas tensões. O que não é


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falso. Só que precisa saber que essas tensões da obra voltada, como um ounço, sobre si mesma é justamente processo social sedimentado lá dentro. É isso que você tem que descobrir. A chave do enigma é essa. E a obra vai te revelar coisas que a olho nu você não vê na sociedade. Por isso nós precisamos de literatura. Então, Antônio Cândido começa a emmciar de maneira muito discreta, sempre dando exemplos, nunca passando por teoria. E ele simplesmente estava retomando a tese dos frankfurtianos isso não vem ao caso. Hermenegildo - Mas, Paulo, você poderia dizer se o Antônio Cândido freqüentava essas teorias? Não, não. Ele conhecia o Lukács, achava que ele exagerava em certas coisas, mas apreciava as coisas do Lukács sobre o século XIX. Os frankfurtianos, ele achava muito rebarbativo, abstruso, ele não era dado a isso. E é uma coisa fundamental. Eles estão encharcados de senso agudo da realidade social, uma espécie de olho sociológico, histórico, clínico inato, que vem do que nós podemos chamar de escola sociológica radical paulista, e por outro lado, a bússola intelectual deles é sempre a obra de arte. ''Nós gostamos é da obra de arte. O que nos interessa é a obra de arte, o que ela nos diz. É a partir daí que nós começamos a pensar. Teoria não nos interessa. Teoria é bom para aula." Como professor, ele pegava um poema, uma novela e distribuía as tarefas: um aluno analisa de um ponto de vista estrutural, outro aluno, de um ponto de vista estilístico e distribuía tudo. "Vocês precisam saber teoria. Mas depois, quando vocês ficarem grandes, vão analisar a obra em função dela mesma, com as indicações que ela dá e para isso não tem teoria. Ou você vê, ou você não vê. Você passa direto." (Neste parágrafo, o sujeito não está claro- nota do transcritor.) E no caso do Brasil é ainda muito mais dificil - o Roberto tem repisado isso - porque o processo social, que é o referente da forma brasileira, não está esmiuçado, não está codificado, não está estudado. Nós não sabemos. Um europeu tem toda a tradição sociológica, marxista inclusive, a respeito da passagem do Antigo Regime para a sociedade modema, a sociedade de classes na Europa. Está lá. Está montado. Então, para você explicar o Balzac, basta conhecer coisas que todo mundo conhece. Pronto. Não tem mistério nenhum. O mistério está na agilidade da escrita de perceber coisas que as outras pessoas não viram. Mas no Brasil isto não está feito e nós não cabemos na bibliografia clássica, sociológica, marxista inclusive. Sobretudo marxista. O caso aqui não foi previsto pelo Marx. Ele não diz coisa com coisa sobre isso. Nem poderia dizer, sobre a periferia. Achava que era tudo igual, que nós nos espelhávamos neles, que nós víamos o nosso futuro lá em cima. Até hoje, o nosso futuro não está lá em cima e nem somos o passado deles. Não passa por aí. Então, você tem que reunir informações históricas e sociológicas, costurá-las estruturalmente para poder entender a que se refere a forma brasileira. É isso que só o Antônio Cândido podia fazer, porque ele ficou encharcado dessas coisas a vida inteira. Quando ele chegou lá no Sargento de Milícias, ele tinha o mundo do Primeiro Reinado na cabeça, arrumado- o que era o Império, o D. João VI no Brasil e assim por diante.


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Isso estava mais ou menos programado. Nesse meio tempo, ele escreveu Tese e A11títese. Saiu em 64. São exemplos dessa crítica literária avulsa. Há um esquema, tese e antítese, contrários, mas não é dialética dos contrários. São os contrários em geral: bem e mal imbricados em I11ocê11CÍa, covardia e coragem no C ... e assim por diante. O ensaio sobre O Homem Subterrâneo, do Graciliano, podia ser sobre Dostoiéviski, não faz diferença - quer dizer, claro que faz, é uma beleza de ensaio, pertinente, mas falta o passo adiante que dá vida, que dá ânimo à crítica literária. Então, está na moita mais ou menos. Ele fez esse livro, publicou Os Parceiros do Rio Bo11ito, publicou Literatura e Sociedade- um conjtmto de ensaios da linha da formação. E não aparece nada. Aí, em 69 ou 70, aparece- ele sempre publica nos lugares mais inóspitos e inesperados, de propósito, é óbvio - em estado de separata - onde ficou até o ano retrasado quando ele incluiu no volume O Discurso e a Cidade- da revista de literatura da Faculdade Mário de Andrade, de Araraquara- onde Mário escreveu Macw1aíma - um dos maiores, senão o maior ensaio de crítica literária deste século no Brasil. O gravador está gravando, mas não é exagero. Fica registrado para a posteridade. É, sem dúvida, o maior. E ele deixou lá em estado de separata. Ele escreveu em 69, 70. Passou desapercebido. Simplesmente, foi colocado na ordem do dia pelo ensaio do Roberto, "Pressupostos, salvo engano, da dialética da malandragem", que é de 78 e foi escrito para comemorar os 60 anos do Antônio Cândido lá no Esboço de Figura. Nesses oito anos, tanto faz como tanto fez. Simplesmente, em 70, quando chegou esse ensaiozinho - nós estávamos reunidos -para o Roberto, ele leu e disse: "É uma descoberta do Brasil. Esse homem reinventou tudo. Está aqui o trilho por onde vai passar a minha explicação do Machado". Não deu outra. Não só as MemóJias Póstumas, mas depois a Helena Morley vai nessa direção. Está descoberta a idéia de forma objetiva. Está lá. O homem descobriu. Forma objetiva que é o que faz a mediação entre a forma literária e a fonna social. Está lá, na estrutura, essa matéria que depois ele vai batizar de matéria brasileira. Então, eu vou contar um pouquinho a história de como esse gênero novo entra na estrutura da obra do Antônio Cândido. E é desse gênero novo que nós vamos extrair, eu acho, os passos que nós teremos que dar, se for verdade que a tradição crítica brasileira ainda tem um futuro pela frente. Se não tiver, fechamos a butique, paramos de pensar e de escrever e vamos para casa exercer, como diz o outro, o ofício de vagabundo- aí para valer. Então, qual é a história? Eu acho que não é fantasia o seguinte: não por acaso ele viu que esse ensaio que ele decidiu escrever era uma coisa nova. Ele contou uma vez que, quando estava escrevendo os parágrafos finais, ele teve um ataque cardíaco. Ele notou que tinha encontrado a pedra filosofai - disso não tem dúvida. É uma coisa extraordinária. Ele descobriu qual é a lógica de reprodução da sociedade brasileira - a famosa dialética da ordem e da desordem. O que todo mundo diz? "Ah, é uma tipologia weberiana". Tenha paciência. As pessoas querem enquadrar sempre em doutrinas e depois entrar no mercado de teorias.


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Tudo leva a crer que o golpe de 64 tem algwna coisa a ver com isso. O mesmo golpe de 64 que revelou ao Roberto a profundidade, a atualidade do Machado de Assis, deve ter revelado ao Antônio Cândido o seguinte: a famosa fonnação nacional não vai mesmo se completar. "O golpe está aí para mostrar que não estou enganado." A classe dominante brasileira decididamente - desde 64 isto está claro, até 64 podíamos ter algumas ilusões -não vai ... é dela mesma consertar o estrago herdado. De 64 até hoje nada disso foi desmentido. Estão agravando o estrago herdado. Novamente se juntaram para agravar o estrago herdado. Portanto ela não vai se auto-reformar. De modo - claro que eu estou carregando nas tintas, nosso homem não é assim tão veemente, é mais low profile, mas todos os passos dele são decisivos na história intelectual brasileira - que ele deixa de mão, em detenninado momento, o seu interesse pela linhagem formativa, que é uma linhagem deliberada, intencional, programática, isto é, o ponto de vista da formação é um ponto de vista da classe dominante brasileira. Literalmente, filologicamente é disso que se trata. É claro: foram os grandes próceros, os grandes maiorais, desde a Colônia, como durante todo o Primeiro e Segundo Reinado, durante todo o Império, foram os barões sabedores desse país que se interessaram em dotá-lo de uma literatura que funcionasse de acordo com os padrões da nonna culta, civilizada européia e assim por diante, que o Brasil participasse do concerto das nações. Isto malgrado as relações sociais de produção bárbaras, iníquas e selvagens, que era a fusão entre capital e escravismo. Portanto, nós alcançamos o ftmcionamento da literatura - pífia ou não, ela ftmciona . E é forte a tradição literária brasileira malgrado o obstáculo social visível - a dissonância é brutal. Trata-se de um processo deliberado, intencional, de criação de um sistema cultural que ftmcione . Isso faz parte de um conjunto de providências .que a classe dominante tomou para justamente colonizar, isto é, propagar a civilização ocidental. Civilizar, colonizar, enquadrar, educar, formar, organizar, constituir, sempre de maneira autoritária, é óbvio . Democracia numa sociedade colonial-escravista é coisa de doido. Jamais passou pela cabeça deles. Não teria condições. Está fora de cogitação. Isso é que permitiu o ftmcionamento da literatura brasileira com todas as suas disftmções e deformidades, porque ela estava à contracorrente de um processo que não se completava do ponto de vista material. Como esse é um projeto de classe dominante, nesse momento em que ela disse fmalmente a que veio e pelo jeito é para valer e para o resto das nossas vidas e para gerações e veio pra ficar - a não ser que o mundo vire de cabeça para baixo, salvo uma ordem pós-capitalista mundial -, o Antônio Cândido vai estudar de outro ângulo esse mesmo processo. Vai entroncar- veja só, era o que animava a pesquisa anterior dele -na matéria-prima daquilo que é o grande achado sociológico que nós devemos a não só exclusivamente ele, mas a essa escola paulista de ciências sociais que se aglutinou em torno da Faculdade, mas que vem de antes, vem dos anos 30, desses clássicos de sociologia, vem desde Sílvio Romero, vem de Euclides da Cunha, vem desse interesse pelos que estão fora do sistema de dominação brasileira, isto é, interesse pelos pobres, pelos mestiços, pelo negro, pelo ex-escravo, pelo encortiçado, pelo favelado, pela cultura do caipira que Antônio Cândido estudou. Ele quer saber quem é esse povo,


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como ele funciona e qual é a fom1a literária que pode dar conta desse ponto de vista do famoso povo sangrado e capado, como falava o Capistrano de Abreu. Nesse momento, ele vai entroncar nessa tradição - que ele mesmo veio estudando sorrateiramente - que ele chama de tradição radical no Brasil. Que é a dele, que é um radical de ocasião, que não é um revolucionário, é aquele que serve de contrapeso e que se contrapõe ao bloco conservador brasileiro que é imemorial e tem quatro séculos de distância e está aí recomposto, novinho em folha para barbarizar novamente. Antônio Cândido se contrapõe a isso. Eles mostraram a cara em 64. Antônio Cândido vai por outro lado. Ele vai procurar alguma coisa que tenha se passado no subterrâneo dessa formação nacional e que tenha algo a ver com aqueles que estão fora: o povo miúdo, colonial, que foi segregado pelo modo de produção escravista, se é que podemos falar assim, liberal-escravista e pelas grandes segregações coloniais que nós herdamos e que estão aí vivas. Não mudou nada. A ímica coisa que mudou foi que eles foram alcançados pela mercadoria. Estão barbarizando também. Querem entrar imediatamente no consumo. Se não podem por meios assalariados e contratuais, é à bala mesmo. À bala para consumir drogas, aparelhos eletroeletrônicos. É um direito. Não é uma sociedade de consumidores? Por que eles não podem entrar? Então, compram um 38 e entram no consumo. A imagem ideal, o tipo ideal weberiano da nova burguesia tucana é o crime organizado, é o tráfico de drogas e a igreja paga, o culto pago, a ascensão aos céus mediante contribuição financeira. É isso. Fechou o bloco do partido tucano. A imagem especular invertida da burguesia tucana enriquecendo-se com as privatizações é o crime organizado, é o tráfico. Não tem outro. Eles se completam. O Antônio Cândido vai para esse bas fo11d, por assim dizer, esse subterrâneo da classe subaltema, que era justamente o que ele queria. Qual era a novidade da Faculdade de Filosofia, dos primeiros estudos de ciências sociais e induzida pelos franceses? Foram os franceses que nos fizeram estudar o Brasil. Os franceses e, claro, a Revolução de 30 e o que vem de Modemismo e assim por diante. Era a primeira visão não senhorial que nós tínhamos da sociedade brasileira. Essa a grande novidade. E Antônio Cândido vai tirar as conseqüências literárias disso. E fez mn programa, que nós poderíamos batizar - o Roberto batizou - de ... Aluna intervém.

Eu me exprimi mal. Você tem toda a razão. Os franceses ensmaram os paulistas afrancesados a prestarem atenção nos antepassados deles. O que o Roger Bastide, chegando em São Paulo, faz? Em dois meses, ele aprende português, vai a Minas, volta, dá um curso sobre Barroco mineiro e começa a se cartear com Mário de Andrade. E os nossos bacharéis, na Maria Antônia, queriam aula em francês. O que faz um Monbeig? Geografia brasileira. O que faz um Lévi-Strauss? Vai para o Mato Grosso ver os índios. E assim por diante. Os franceses fizeram com que nós estudássemos o Brasil e nos ligássemos à tradição modernista que vem do fim do século XIX e deságua justamente nos grandes modernistas que estão fi.mcionando nos anos 30. E nós nos ligamos. A força da Faculdade de Filosofia foi ter esse grupo Clima.


46 Ai, tem uma coisa muito complicada a dizer, a sublinhar. Eu não contei toda a verdade .dessa tradição radical da sociologia paulista. Quando ela começa, há uma outra dimensão, igual à da filosofia, que é a sociologia científica. Esta não tem nada a ver com o ensaísmo de explicação do Brasil de antes. Eles cortam com isso . Salvo este grupo Clima -em que eram todos formados em sociologia, era mn diploma commn sociologia e filosofia -, cujas vinculações, graças à arte, com o Modernismo, fazem com que eles não rompam com essa tradição. Então, eles conseguem fazer explicação social e entroncá-la na tradição literária que vem dos modernistas. Eles são os ímicos. Por isso que o Antônio Cândido pôde fazer isso.

Hermenegildo

Os

franceses

possibilita.-am

que

determinada

camada

da

intelectualidade brasileira recuperasse essa tradição. E, por uma espécie de esnobismo metodológico necessário, eles romperam, transfonnaramse numa estufa para poder nascer ciência universitária. Recuperar e depurar essa tradição. Por isso, esse pensamento sociológico deles funciona quando está entroncado nisso. Quando eles cortam, eles cortam tudo ... Um outro parêntese, graças à sua pergunta (da alm1a), que veio a propósito. Quando eles cortam com isso, eles tendem à apologética. Vou explicar. Dito com outras palavras, está no ensaio do Roberto sobre o seminário do Capital. Ele diz que esta tradição sociológica, da ciência política, da história econômica e assim por diante, ao pensar - o que era uma intuição original do Brasil - como é que conflui capitalismo e escravidão, tinha em mente não mais uma visão senhorial, mas mna visão modernizadora do Brasil: como cortar esse nó, esse ciclo infernal das reciclagens permanentes do passado colonial que é reposto em todos os ciclos de modernização. Então, era uma visão progressista de como você pode cortar esse nó que puxa para baixo - são as famosas raízes do Brasil, que é a herança colonial - estudando essa configuração original que é a confluência entre capitalismo e escravidão moderna. Portanto, eles são modernizadores. Eles são industrializantes. E, ao serem modernizadores e industrializantes, eles, por defmição, não podem criticar aquilo que lhes serve de metro e padrão e que é a normalidade burguesa capitalista dos países centrais como modelo de desenvolvimento ou de modernização ou de industrialização ou de sociedade moderna em que se apaga todas as raízes do antigo regime nosso que é escravista-colonial. Vai nessa direção a nossa sociologia critica radical - não tão crítica nem tão radical - porque cortaram as amarras com a reflexão literária, ensaística, amadorística sobre a originalidade dessa liga e as idiossincrasias dessa liga. Portanto, sendo modernizantes, eles tendem à apologética e deu nisso que está aí. O representante máximo disso está aí, dessa sociologia progressista, industrializante, burguesa, à maneira do século XIX, que inclui perfeitamente um certo tipo de marxismo. Então, nós criamos em São Paulo esta aberração, este aleijão, este exemplo de teratologia mental, que é marxismo de classe dominante, que explica isso que está acontecendo do ponto de vista marxista progressista, novos pactos de dominação e assim por diante, o sujeito-automático, a autonomização do processo do capital fmanceiro - isso não é enrolar, é ideologia


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em estado real. Nós estamos vivendo um momento em que w11 certo tipo de marxismo é a própria .realidade. A realidade se tomou marxista. Não vou explicar agora. Isto é, então você é economicista. Porque não é marxismo. Marxismo não é economicismo. Mas eles acham que marxismo é economicismo, como a sociologia é uma maneira de salvar o Brasil rapidamente e fazer com que ele entre na modemidade. Está aí. Cortaram wn vínculo com quê? Com tU11 lado ensaístico, amadorístico, culturalista, que vem da maneira pela qual modernistas e ensaísmo de explicação do Brasil entendiam o fenômeno brasileiro. Cortaram isso, porque não era científico. Florestan diz que esses caras não são científicos. "Nós somos aqueles de sociologia como ciência". Está aí. Ao cortar isso, eles perderam o grande impulso modernista de vínculo com esta tradição brasileira que vem do primeiro modemismo que, segundo o José Veríssimo, se foijou nos anos 1870 e que passa por Euclides, chega até o Gilberto Freyre. Eles perdem o ímpeto modemista que era de contrapor a civilização brasileira como parte integrante e ao mesmo tempo parte crítica da normalidade burguesa. O Modemismo era isso. O Modernismo era a tentativa de colocar entre parênteses e depois riscar do mapa o que eles consideravam o erro do Brasil, o Brasil fora dos trilhos, o Brasil desinteressante, o Brasil encasacado, que era o interregno burguês da civilização brasileira. Portanto, do ponto de vista da critica cultural, eles eram críticos do capitalismo. Quando se rompe esse vínculo com a literatura, você perde esse elemento crítico e dá na apologética atual. O que diziam os modernistas? Depois eu volto ao segw1do eixo do Antônio Cândido. Eles diziam que o Brasil burguês é uma coisa superposta, é um enxerto artificial e por isso ele é opressivo, por isso ele sufoca, por isso ele domina sem hegemonia - eles não nos cooptam. E portanto nós temos que dar um salto sobre essa modernidade atrasada, postiça, burguesa, que se expressa na arte acadêmica. Dar um salto. Um salto de vanguarda no qual nós reencontramos a critica das vanguardas históricas européias, as vanguardas artísticas da civilização burguesa e apresentamos como matériaprima para essa nova civilização a nossa tradição, que é a do povo segregado da Colônia que é préburguês. Daí, a simpatia infinita que eles têm. Eles não participaram da formalidade burguesa. Estão fora disso. São mestiços. A cultura deles é diferente. Eles não estão colonizados pela mercadoria, pelo vínculo mercantil. A criatividade deles é infinita, você tem a arte popular e assim por diante. Eles tinham sido segregados, portanto quando você ia a Minas você encontrava uma outra sociedade. Parecia uma sociedade de vanguarda, de vanguarda pós-capitalista, porque coincidia com a revelação estética das vanguardas européias, que haviam descoberto as artes pré-colombianas, a arte africana e assim por diante. Isto é, num momento de desintegração da civilização burguesa, você tinha em toda a periferia à volta do capitalismo uma espécie de crítica viva da inviabilidade dessa civilização. Tudo aquilo que é rebaixado do ponto de vista burguês como inferioridade, na verdade é uma superioridade civilizacional. Claro que nisso há ideologia, há equívocos - transformar patemalismo em padrão de civilização e assim por diante. Mas era isso. De modo que na coreografia animadíssima do grande Modernismo havia um ânimo oposicionista, histórico, de se contrapor à civilização burguesa ocidental. No momento em que você se desvincula disso ou que você emascula o Modernismo para virar assunto de dissertação, acaba .

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Vira bobagem. Vira exercício lingüístico. Para os concretistas, Oswald de Andrade vira trocadilho. Quando não é. O que o Oswald está pensando é isso. Não é trocadilho. Não é mot valise concreta. Não são experin1entos com a linguagem de vanguarda para juntar com Joyce. Por favor. Isso é uma besteirada inomináveL São essas duas tradições que se jtmtam novamente quando sai o ensaio de Antônio Cândido sobre o Smgento de Milícias. Primeiro, ele analisa, através da forma do Sazgentó de Milícias, a dialética da ordem e da desordem, da malandragem, que é a sú1tese que reproduz a sociedade brasileira - claro que ele teve que colocar fora o trabalho escravo e os controles do mando. É uma sociedade que funciona num outro registro, não é o do capitalismo calvinista. E, em função dela, nós, numa eventual ordem pós-capitalista mtmdial, temos uma matéria social, um tipo de sociabilidade a oferecer a esse novo concerto das nações pós-capitalista. Refletindo sobre essa experiência aparentemente rebaixada, barateada, desautorizada, pouco valorizada do nosso liberal-escravismo, tomado nesta fatia, que não é o ponto de vista da classe dominante, nós temos o que contrapor a esse mtmdo terrível de A Letra Escarlate, do Hawthome. Nós não queremos queimar ninguém. Ninguém vai pôr aqui o A de adúltera. É isso. Quem sabe, há alguma coisa diferente. Parece culturalismo - que é ideológico - que toma o ponto de vista de uma classe e generaliza para a sociedade inteira. Culturalismo de classe dominante é isso. Mas pela primeira vez, o ponto de vista nacional é o das classes subalternas. Do pobre, não-proprietário, que vive ao deus-dará entre os dois hemisférios, o da ordem e o da desordem, o dos ilegalismos e o da legalidade. Eu não sei se te respondi (diz para a altma). Você também não tem nem ânimo; se fizer outra objeção, eu passo mais meia hora ... (Risos) Era isso, né? Eu sei. Hermenegildo -Não seria mais um caso da dialética entre local e cosmopolita? Você diz que o localismo romântico é uma invenção européia. Quer dizer, no local está presente o internacional. De maneira que essa tradição pré-modernista de pensar o Brasil, onde, portanto, predomina o local, é também algo em que está contido o seu oposto. No momento em que dessa dialética pende um dos lados, o outro também está presente. Sempre que se pensou o Brasil, sempre que se priorizou o local ••• Claro . ...isso também é feito sob uma influência estrangeira. Eu não diria influência. Nesse momento, o que Antônio Cândido está descobrindo - e que depois o Roberto vai ampliar- é o seguinte: o nosso "atraso", entre aspas, é o outro lado do progresso. Portanto, não somos atrasados, somos ultramodernos. Ultramodernos . A América portuguesa foi o resultado de tun grande empreendimento de marketing internacional que enfiou na Europa consumidora o açúcar. Tudo para vender açúcar. Plantar cana e vender açúcar na Europa. Famos criados por um interesse mercantil o mais avançado do ponto de vista organizacionaL Imagine a complexidade da


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importação de mão-de-obra escrava, da economia bipolar, da plantação da cana aqm em sistema empresarial, passar pelo Caribe e vender na Europa. Isso é da maior complexidade. Só as grandes multinacionais, operando em rede, fazem isso. Nós já fazíamos. Isso é mna coisa extraordinária. Atraso? Herança arcaica ibérica de que os bobocas do Planalto falam. Que é isso? Do ponto de vista dessa herança arcaica, nós estávamos muito mais avançados- agora somos primário-importadores. Portanto, o núcleo daquilo que nós podemos chamar de tradição crítica brasileira - é disso que nós estamos falando desde o início - é justamente entre essa parte, a manifestação local do conjtmto, e esse mesmo conjtmto. Toma-se uma objeção crítica àquilo de que ela é parte e expressão na sua totalidade- de maneira muito abstmsa, mas é isso. Então, foi o que o Antônio Cândido viu ali: a nossa pequena sociedade desorganizada ou fortemente organizada nesse jogo de báscula entre os dois hemisférios, o da ordem e o da desordem; a presença da sociabilidade que é parte - é claro que é um artifício, tirou tanto o trabalho escravo, trabalho compulsório e o mando senhorial, e claro que este dominante- desse mtmdo. Ao mesmo tempo, aquilo que nos rebaixa, essa desordem, esse vaivém, é uma objeção, representa o avesso desse conjunto mundial do qual nós somos a crítica. É esse o eixo de todo o raciocinio do Roberto em relação ao Machado, que é -por isso completou-se o sistema -o primeiro autor que faz dessa dissonância o objeto da sua especulação. Portanto, entre o particular e o universal não existe um rebaixamento. Nós não somos humilhados pela norma burguesa, como se :ffissemos uma infração permanente dela. Mas nós relativizamos um pelo outro. É uma espécie de crítica recíproca do tmiversal e do particular. Não que o nosso atraso seja o progresso. Isso é um horror. Isso é um Gilberto Freyre. Isso é o ponto de vista nostálgico da classe dominante que erige o paternalismo ou o patriarcalismo como norma civilizacional e portanto imaginam um Atlântico português no fim do século XX Foi o Gilberto Freyre. A famosa crítica imanente, que é da tradição materialista, fimciona nessa base de maneira muito mais percuciente no BrasiL Porque a crítica imanente marxista - como nós estávamos vendo ontem - é tributária ainda do liberalismo como a norma do progresso. Então, simplesmente é a realização das promessas da ideologia burguesa da qual o socialismo é a crítica imanente - ela é falsa porque ela não se realizou. No caso do Brasil, há uma antecipação: por isso aparece na literatura mais do que nas ciências sociais. Porque a literatura já está fazendo isso na crise da civilização burguesa, na virada do século, que coincide o imperialismo. É a crítica da cultura burguesa tomada imperialista que aparece nas grandes vanguardas \__

estéticas, artísticas do início do século. O que faz o Roberto? Ele pega a norma e a infração à norma, e vice-versa, uma faz a crítica da outra. Portanto, ao mesmo tempo, a face retrógrada do progresso, que é a opinião que nos cabe, é a crítica desse mesmo progresso e este mesmo progresso também é a crítica daquilo que somos e portanto somos atrasados, porque ele é uma nonna, mas, ao mesmo tempo, ao ser relativizado como norma, porque nós somos a verdade dele, os dois pólos se desmancham, se criticam mutuamente. Portanto, nós conseguimos pela primeira vez nos aliviannos do fardo de ter que carregar a norma burguesa como norma civilizacional universal, que é o fardo do socialismo, que é apenas um


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desdobramento, é a solução dos antagonismos da sociedade burguesa. Pela primeira vez, nós podemos ·dizer: "Não, não. Não é bem por aí'' Nós criticamos a realidade pelo seu próprio conceito que ela enuncia de si mesma, mas emmcia de maneira incompleta e falsa. Nós fazemos realidade e conceito se criticarem um ao outro. Dizemos: "O conceito é uma outra realidade, está aqui." Criticam-se um ao outro. Esse é o núcleo da tradição crítica brasileira. Ou é assim ou nós não pensan1os. Se nós não pensamos, nós não capitulamos integralmente e acabou. Acabou a vida útil, pensante no Brasil. Você se comporta, se entende como tffil desvio da nom1a modema . Volta novamente toda a compreensão do Brasil como um país errado, como um país com taras sociológicas que precisam ser erradicadas, como a herança ibérica. Simplesmente tem que ser amputada para nos adequarmos à norma que não é criticada. Então, está aí, se vocês quiserem uma explicação mais abrangente da rotina dos ajustes intell11ináveis - corta, corta, corta, corta, corta... Porque nós nunca nos adequamos definitivamente à norma burguesa. Ora, a grande tradição crítica brasileira que começa com Machado de Assis pergunta: "Por que não o contrário? Por que a nossa inadequação não é uma revelação da falsidade dela?" Nós continuamos inadequados. Isso aqui não é o paraíso. Isso aqui é um horror. Isso é um museu de horrores. Mas, por outro lado, esse teatro de horrores, que é uma inadequação permanente, é a crítica dessa norma como objetivo a ser alcançado. Por isso não é possível oposição no Brasil. Por que sempre aparece essa miragem que nós temos que alcançar - essa verdade normativa da modernidade da qual nós nos desviamos permanentemente. Então, ajusta, encolhe, ajusta, encolhe, corta, joga no mar, desfaz-se dos ineptos, corta aqui, corta acolá, conserta mais ou menos, ajusta e vai assim indefinidamente. De milagre em milagre, de ajuste em ajuste, barbarizando. Porque nesse meio tempo, o famoso povo, da cultura popular, venerado pelos modernistas, foi se modernizando. Não tem mais ninguém tradicional. Não tem mais ninguém que venha dessa segregação colonial. Todos são sujeitos monetários, só que sem dinheiro, para usar a expressão predileta do Robert Kurz e do nosso Schwarz. Então, não tem mais essa. Já foram todos colonizados pela mercadoria, o que complicou ainda mais a equação. Você não tem mais esse manancial de sociabilidade que você pode contrapor e partir para outra. Acabou. De ajuste em ajuste, foi-se também barbarizando. Bom, voltando ao segundo eixo da obra do Antônio Cândido. Que é um eixo mesmo. Ele imaginou, ele projetou. Às vezes ele aceita, às vezes ele nega. Mas existe. Está lá em estado de caderno. (Por isso que nós chamamos, no privado, Roberto e eu, de mimesis brasileira. Mimesis é o livro do Auerbach, é um dos livros prediletos dele. Não que ele seja auerbachiano, que ele aplique o Auerbach. Leiam esse livro, porque nenhtiD1 homem civilizado pode morrer sem tê-lo lido: é uma história extraordinária. Mas tem defeitos graves. Não tem classe dominante, não tem classe dominada, não tem luta de classes, mas é um livro democratizante. A métrica estilística, do ponto de vista do Auerbach, vai na direção da democracia. Por isso, o modelo para ele é o Flaubert em que todos, inclusive seres inanimados e animais, têm vozes iguais. Daí a neutralidade do estilo do Flaubert.) Então, o Antônio Cândido resolveu escrever uma espécie de Mimesis. Mimesis porque seria a representação literária da


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realidade na civilização brasileira - como é o sentido da Mimesis do Auerbach: a representação literária da realidade no Ocidente. Só que o Auerbach vai do Homero à Virgínia Wolff. A idéia da métrica estilística não está presente na obra do Antônio Cândido, é óbvio. E essa Mimesis, curiosamente, é uma representação literária da realidade do ponto de vista das classes dominadas, do ponto de vista do pobre (Eu não gosto da palavra excluído, porque ninguém está excluído de nada. Pelo contrário. O drama é que você está incluído e sendo chutado para fora. Se estivesse excluído, poderia até estar numa boa. O drama é que você está incluído.) . Então, é wna história da representação literária da realidade que vai puxando esse filão -que ele descobriu - que tem a ver com esta contraposição radical-democrática ao ponto de vista da classe dominante, o ponto de vista da formação. Ele projetou analisar isso em cinco livros. Seriam O Ateneu, o Machado que eu acho que é o Esaú e Jacó ou O Memoâa/ de Aii-es, não me lembro mais, o Serafim Ponte Grm1de, Fogo M01to e O Cortiço. Ele tomou nota de tudo. Ele só publicou, só escreveu o Smgento de Milícias e O Cortiço. O interesse pelo avesso da formação - que é o outro ponto de vista, a explicar, daqueles que estavam sendo objeto da conformação civilizadora - faz com que ele descubra (E o Roberto foi Já e mostrou, porque se ele não fosse mostrar, nada disso estaria acontecendo. Estaríamos pastando e eu também. Tudo que eu disse dos anos 70 para cá foi em função disso.) que existe uma lógica na sociedade brasileira, existe uma matéria brasileira. Portanto, existe wna forma objetiva, que os críticos desentranham porque ela está lá, funcionando na obra e que é assinalada porque a obra tem um referente, que ele descobriu porque juntou uma montanha de informações sobre o funcionamento da sociedade brasileira na época concemida pelas Memónas de wn Smgento. O que é o fundamental dessa forma objetiva? (Coisa que o Roberto está começando a dizer agora . Leiam na Praga, n° 5, nun1a conversa sobre Duas Meninas, o Roberto se explica a respeito disso. E é o que ele faz: a Helena Morley dele sem tirar nem pôr - claro que ele recusaria isso por modéstia real - é uma continuação desse projeto do Antônio Cândido. Ele acrescentou mais wn elo nesse projeto. Ele rastreou mais wn fi.mcionamento dessa forma objetiva na sociedade brasileira tal como ela aparece na literatura.) Então, o que nós temos? O Antônio Cândido começa a fazer uma história do subterrâneo da formação, que é wna formação não-intencional e não-deliberada. É o âmago, digamos assim, da obra de arte. Qualquer projeto estético é isso. Ele depende menos da intenção de arte do autor do que do fato de ele ter confiado na lógica imanente de um material e deixar aquilo se configurar. lndepende da construção do autor. Ou melhor, a construção artística é o processo de desentranhar essa fom1a objetiva que está presente no seu material, no caso, a matéria brasileira. (... ) É esse o ponto de vista que começou a interessar wn Antônio Cândido, quando houve essa grande revirada na história política e social brasileira a partir de 64. Ele se desinteressou pelos projetos da classe dominante, porque ela não vai mais se auto-reformar e consertar o estrago, que ele estava acompanhando. Ele foi lá para o subterrâneo. Interessa-o o que se passa às suas costas, que são esses processos cegos, inintencionais, não-deliberados, que são processos objetivos que ... (inaudível). Ele não fazia un1a ligação doutrinária. Nem é o caso. E como é que uma vai se entroncando na outra. Mas ele não disse tudo isso. Só escreveu

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dois. Em O Cortiço, ele tira tudo de um trocadilho infamante: os três PPPês. Ele tira um romance, tira . forma social, tira um insulto, tira um cortiço, está tudo ali na comparação do brasileiro com o português, nas formas de acumulação, de enriquecimento, nos conflitos de classe e assim por diante. Tudo se faz como se Antônio Cândido tivesse dito que o Brasil mudou de eixo, reencontrou a sua verdade a partir de 64 e essa verdade vem se conformando; e que então nós temos que estudar aquilo se passa às nossas costas e à nossa revelia por um processo objetivo que nós vamos escavar lá em baixo. Porque até então o seu fi.mcionamento como crítico literário e como crítico cultural acompanhava deliberadamente alguma coisa mais ampla que tinha a ver com a construção de uma sociedade nacional que foi pro brejo. Então, todos se prepararam para esse tipo de apoteose, no bom sentido, do desenvolvimento pensado por Celso Furtado, da arquitetura moderna brasileira como a do Lúcio Costa, do cinema moderno pensado pelo Paulo Enúlio e isso não deu em nada. Nós fomos bigodeados por um processo maior que independeu ou que esteve associado de uma maneira secreta que nós não sabemos a este processo intencional

q"~.te

era a luta política às claras ou a famosa luta de

classes. Então, por um lado há a luta de classes e, por outro, esses processos cegos que é a própria forma-mercadoria, o próprio valor, o próprio capital se valorizando. É o outro lado. E que vai portanto conformando a sociedade de uma maneira a qual nós não temos acesso a não ser pela obra literária, que fi.mciona então como um sismógrafo, para saber o que está acontecendo na profi.mdidade da sociedade. Como ela se reproduz? Nós não sabemos. Então, ele vai lá no Sargento de Mzlícias e começa a fazer isso. É claro que tem um lado normativo, (inaudível) o ponto de vista simpático dos dominados, por subtração, que aparecem sozinhos em cena. Isso o Antônio Cândido começou. Escreveu dois ensaios e parou, encerrou, fechou a butique. Deu a obra por encerrada e começou a publicar coisas passáveis, recortes e assim por diante. Ficou por isso mesmo. E só o Roberto que prestou atenção.

* * * Quais os próximos passos dessa tradição crítica brasileira (cujo nervo sempre foi a literatura, mas que depois se espraia pelas ciências sociais, com uma modesta contribuição do marxismo filosofante)? Qual seria o fi.tturo dessa tradíção crítica brasileira? Se o nervo é literário, como se pode levar adiante essas duas dimensões da obra do Antônio Cândido - a formação visível e o seu lado subterrâneo? É nesse momento que eu acho que o nosso amigo Roberto - o objeto do curso, eu sou apenas um comentador de um e de outro - está dando o passo decisivo que ninguém está notando e que eu gostaria de assinalar. Ele é muito discreto. Não gosta de falar. Escreve, as pessoas não entendem e ele fica com preguiça de explicar. Dizem: "Oh, mas como? Agora, você escreve sobre o diário de uma adolescente de Minas Gerais! Onde está a intenção artística, a fom1a?" E ele: "Está lá, ó! Na sociedade ..." "Não! Mas


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não tem intenção autoral! Como é possível!?" "Pois é, né? ... Não tem ... Gozado ... De vez em quando a .arte pode ser cidadã também, não precisa de artista ... " As pessoas ficam cabreiras. Bom, a virada, como se deu? Deu-se de um ponto de vista político. É como se Antônio Cândido dissesse o seguinte: "em 64, até então, embora socialista convicto, sempre contribuí para o aprimoramento civilizacional do Brasil, portanto sempre fui prestativo, sem perder o decoro socialista em relação às providências formativas civilizadoras da classe dominante brasileira, que eu sei que é bárbara, mas de vez em quando aparece gente de boa vontade para fazer isso e para fazer aquilo da universidade, departamento, revista, museus. Eu faço isso. Nunca tive um bom empresário, sempre foram as chefes oligárquicas." Em 64, o país virou de banda e ele disse: "Bom, então o nosso destino não é mais comum". Ao contrário do atual titular do poder executivo que atrelou o seu destino ao da classe dominante num momento em que ela já disse a que veio -portanto, não haverá perdão. Registre isso. Não haverá absolvição interna. Não existe essa história de crise externa que nos assola, um furacão que abre o teto e cai em cima da gente. Então, Antônio Cândido se dissocia e passa a investigar essas formas objetivas inintencionais e que possivelmente se encadeiam nessas várias obras.

Portanto foi um revertério

político, na luta de classes. Perdemos. A sociedade não será construída, não será decente, o povo não será incluído nas relações civilizacionais que constituem a sociedade civil e, mm1 certo sentido, o capitalismo está começando a perder no Brasil, se é que teve algum dia, sua função civilizadora. Perdeu sua capacidade civilizacional. Isso, para um socialista dizer, é muito duro. Porque ele acredita nisso, que isso é uma etapa. (Tanto é que o primeiro grande debate dos russos: primeiro capitaliza-se a Rússia, que fica capitalista e depois, socialista; como não deu, tentou-se fazer as duas coisas ao mesmo tempo e deu no que deu.) Então, para um socialista dizer isso, é uma coisa muito grave. Mas ele não começou a dizer ainda. Ele se desinteressou politicamente dos destinos da classe dominante. "Não dá mais. Eles não vão reformar coisa nenhuma. Não vão consertar o estrago. Então, eu mudo." Ora, no caso do Roberto, ele começou a escrever o Machado dele e viu que o Machado era atual, que o golpe de 64 revelou o Machado. Ele - como é muito lento - começou em 64 e terminou no impeachment do Collor. Ele pôs o ponto final no Mestre na Penfena na hora em que o Collor estava sendo impichado e, portanto, em pleno mise-en-scene da crapulização acelerada da classe dominante brasileira com o Collor - ali não dava pra esconder mais nada. Eles se crapulizaram inteiramente. Portanto, era o ponto final das virtualidades eventuais civilizatórias do capitalismo dependente no Brasil. Acabado. Não foi um acidente. As coisas se acumulam. Não voltam para trás. Resta saber de que outra forma essa crapulização está continuando. Não precisa ser abertamente, com pedágio, comlpção trivial. Não é necessário que isso seja assim. As coisas evoluem, claro. Até o crime organizado evolui. Politicamente também. Quando ele põe o ponto final no Mestre na Perifena do Capitalismo, vê que escreveu um livro atual, embora não tivesse a menor intenção. O capítulo "A deseducação do Brás" é a juventude do


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Collor- o que o Machado retratou na fina estampa (estou falando fina estampa de propósito) da classe .dominante brasileira na figura do Brás Cubas e depois do Bento Santiago, que escreve divinamente bem. Jamais a classe dominante escreveu divinamente bem como o Bentinho caluniando a Capitu. Então, o Machado capricha no modelo e diz: "Eis aí um crápula". Finíssimo como só a classe dominante brasileira pode ser. Ele expõe isso. E ninguém viu durante wn século. Todo mundo acreditou naquele narrador, achando que a Capitu fosse aquilo. Ninguém viu que aquilo era uma auto-exposição da classe dominante brasileira. Então, o Roberto tennina aquele livro atual e vê que está igualzinho. O Machado abdicou de escrever romances realistas dizendo que o Brasil não tem conserto - ele vai nessa direção, porque não é direção coisíssima nenhwna. O que não significa que não seja viáveL A classe dominante vai viver cada vez melhor no Brasil. E não está dando outra. O país é inviáveL A classe dominante vai muito bem, obrigado. Isso aqui é um grande negócio. Sempre foi. A década perdida ficou para nós aqui embaixo, não para eles lá em cin1a. Sempre ganharam dinheiro. Nunca perderam dinheiro no BrasiL Nunca. Nem agora. Eles vão voltar e arrematar pela metade do preço todos os ativos brasileiros. Crise não tem crash. Não tem ninguém se atirando de edificio. Não tem nada disso. Tem mais gente pobre. Você fica mais pobre, portanto, mais bárbaro. E os ativos, mais baratos. Possivelmente 50%. Os capitais que fugiram, voltam, foram bem remtmerados e arrematarão a baixo preço empresas, estatais. Como o México, que voltou a crescer 6% ao ano. Foi lá para baixo e depois cresce bastante. Os negócios se retomam. Com lucro. Até isso. Não tem fim do mundo. Bom, voltando. É nesse enredo que nós estamos. O que está fazendo o Roberto? Olha, por favor, se vocês estiverem exaustos, me avisem, senão eu conto a história até o fim, hein? Os alunos pedem para continuar. Um deles diz: "O corpo pode estar cansado, mas o espírito está inteiro." Eu não sou dualista. (Risos.) Mas então me avisem. Agora eu comecei e quero contar um pouquinho até o fim. Vamos lá. Agora, a história do Roberto. Ele tenninou o Mesác: na Peâfeiia do Capitalismo e viu que o livro era atual. O Machado era atuaL Ele inclusive chegou quase que singelamente a atribuir a vendagem do livro - vendeu muito bem no início -ao fato de que as pessoas estavam se reconhecendo. Eu disse: "Ô, Roberto, você está forçando demais ... As pessoas reconhecendo a classe dominante atual, em pleno impeachment, nos Brás Cubas?" Oxalá, tivesse razão. Isto posto, ele viu que a coisa tinha mudado e, justamente com o Collor, essa crapulização não era apenas um acidente patológico, corriqueiro na história da dominação social no Brasil, mas tinha algo a ver com a desagregação social avançada depois de uma década - estávamos em 90 - em que o motor econômico que havia impulsionado a idéia de formação no sentido deliberado, intencional, tinha


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parado. Seguramente não voltaria mais a ftmcionar. E, portanto, nós já estávamos mergulhando muna espécie de sociedade pós-catástrofe - esse é o Roberto que eu estou interpretando. Pós-catástrofe nas categorias de Robert Kurz - está lá na nossa coleçãozinha, no Colapso da Afodemização, Os Últimos Combates e assim por diante. Colapso da Modernização: a idéia de desenvolvimento - não exatamente nesses termos é a idéia do Kurz, mas a gente pode adaptar um pouquinho - é página virada no arsenal das categorias de interpretação e de prática, de práxis - como nós dizemos - social. Está encerrado. Mercado emergente não tem nada a ver com desenvolvimento social. Simplesmente é um mercado solvável. E portanto, paga o que deve. É a única coisa que interessa. Se não pagar, fecha. "Pay back your debits and forget development" foi o que disse um gringo uma vez quando se começou a negociar as dívidas a partir de 82, depois da moratória. Há muitos que se iludem ainda de que vão entrar no bloco da globalização, de que serão seguramente um nó nessa rede global. O que não fonnará tecido vai se reproduzir de uma certa maneira que nós não sabemos. Por isso que uma das coisas que nós temos que fazer é reinventar a sociologia no Brasil. Nós não sabemos o que são classes sociais no Brasil atualmente, como elas se reproduzem, como elas se confrontam, como elas se alinham, como elas lutam entre si, o que elas são, quais são elas, nós não sabemos. Nós não sabemos mais. Por isso, nós não acertamos nada. E perdemos eleição em cima de eleição. Nós não sabemos mais o que é isso. A sociedade brasileira está mudando. O que é esse bichão que está saindo aí? Não temos idéia. Sobretudo porque é uma sociedade pós-catástrofe. Uma sociedade inteiramente moderna para a qual a idéia de desenvolvimento, de modernização, desapareceu enquanto luxo normativo-ideológico. A não ser da cabeça dos nossos governantes que ficam falando feito ventríloquos: modernidade, modernidade, modernidade. Não é nada. Socialmente não significa nada. Sendo assim, o que faz o Roberto? Ele vê que no caso do Antônio Cândido, a crítica só é relevante indo nessa direção e começa a fuçar, a especular sobre o que a arte pode dizer sobre esse avesso da formação, esses processos cegos, que foi o que de fato o que aconteceu. Nós, durante uma ou duas gerações, nos encaminhamos para essa construção nacional. Todos os próceres brasileiros fizeram tudo - o Antônio Cândido inclusive, embora mmca tivesse ambições políticas, era uma espécie de ministro feito - e essa construção não se dá, ela desaba, e vemos que às nossas costas se passou um outro processo que levou de arrastão o país, que se transformou numa outra coisa . O que resultou disso? Como é que nós vamos investigar? O que vai nos fazer pensar a partir de agora? Não pode ser mais igual ao que era antigamente. O que vai nos fazer pensar a partir de agora? Bom, o Roberto, não só porque ele é crítico literário, está convencido, enquanto teórico, intelectual, de que a arte ainda é o principal sismógrafo. É pela arte que nós podemos saber a quantas anda a sociedade e quais são os ftmcionamentos inclusive normativos dela, como é que, do ponto de vista conceitual, ela está funcionando, como ela se pensa a si mesma. Mas só que como se trata de mn processo cego - houve uma dissociação entre uma luta de classes, que se abortou, não construiu a


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Nação (inclusive o Celso Furtado diria que ela abortou) - então eu tenho que imaginar que tipo de sociabilidade esse processo de autonomização da valorização do capital - que não se transformou em mercado emergente - está construindo à nossa revelia, porque a luta social, política está indo numa direção, mas a sociedade está se conformando na outra. Por isso é que a gente quebra a cara. Esse é que é o drama. Essa nova configuração toma pertinente a descoberta do Antônio Cândido dessas formas subterrâneas, objetivas, não-intencionais, que a obra de arte revela. Mas, diz o Roberto, revela, no caso do nosso Sargento de Milícias, por uma tênue construção artística. Muito pequena. A construção artística dele se limitou a eliminar os dois pólos e fazer com que o balanço da frase se ajustasse a esse vaivém da ordem e da desordem, dos ilegalismos e da vida juridicamente ordenada. Ele vai, então, começar a prestar atenção muna forma objetiva tão completa que dispense a autoria artística. Ele começou a ler a Helena Morley, que ele descobriu por acaso, não sei como. Nunca conversei direito com ele sobre como caiu nas mãos dele. O livro circulava. Todo mundo o lia com enorme prazer- é admirável, bonito, gostoso. Mas quando ele -não sei porque cargas d'água - releu aquilo, falou: "Ué!? Essa moça é a Capitu. É mm Capitu viva. Ela funciona como a Capitu." Então, ele foi estudar isso, comparar as duas, juntar num livro só o Dom CasmwTo e a Helena Morley. Ele descobriu que há um funcionamento específico brasileiro. Não que ele esteja propondo isso como modelo. Ele descobre que a regressão econômica (como a que nós estamos atravessando) no sentido de integração social -não de negócios, não confundam economia com negócios e crescimento (O pessoal diz: "Ah, voltaram os investimentos!" Tudo bem, voltaram os investimentos diretos, estrangeiros, mas isso sociologicamente não significa absolutamente nada . É un1 entreposto comercial. Chove dinheiro e o país está se desmanchando. Então, é outra coisa.) -naquele breve interregno entre a Abolição e o fato de que a sociedade mercantil moderna não tinha chegado naquela região - que começa a regredir, no norte de Minas - criou uma sociabilidade em que há uma espécie de regulação recíproca (ele não está pensando isso como modelo, é mna realidade da matéria social brasileira) entre o escravismo, que já não é mais violência, que acabou, e a norma burguesa que não se impôs aí. Então, há uma regulação, digamos, exótica entre paternalismo e sociedade contratual. E que fi.mciona a ponto de permitir essa espécie de refrigério para a alma que é a Helena Morley raciocinando no diário, superando todos os antagonismos postiços da civilização e ao mesmo tempo vendo animação no que sobrou do antigo paternalismo escravista e longe da mercadoria. Parece utopia. E essa matéria, esse funcionamento social está organizado no diário dela- daí a comparação com o Machado. Ela só perde por uma coisa. Ela, a Helena, dá certo. Casa bem, sobe na vida. Do ponto de vista da ficção, que é mais verdadeira que a realidade, isso não pode acontecer. Por isso, a Capitu se ferra. Por isso que o Machado é o grande artista. É o único argumento para dizer que intenção artística ainda é fi.mdamental e por isso o Machado é superior à Helena Morley - pelo menos o Dom Casmun-o é.


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Ele descobre essa fon11a, que está fimcionando num momento em que há uma regressão .econômica. Portanto, ele começa, ideologicamente, a desmontar todas as ilusões do progressismo sociológico-marxizante dos seus amigos que estão aqui do lado. Ninguém percebeu. Essa crítica é conttmdente e mortaL Só que ele fez em low profile. Ele é amigo dele, não quer brigar. Mas disse: "Vocês embarcaram numa canoa furada . Não é do ponto de vista político-econômico. Não estou nem aí para isso. Do ponto de vista civilizacional, acabou. Vocês embarcaram no barco da barbárie supondo que ele flutue . Pode afundar." Então, veja só: num momento de euforia modernizante, conservadora, um novo ciclo, ele vai lá atrás, pega uma forma objetiva, não-intencional, no subterrâneo da formação e mostra como que é que você pode ter civilização à contravapor num momento em que o motor econômico que poderia segurar a constmção da nacionalidade acabou, não existe mais. Foi m11a exceção, os 30 anos do BrasiL Foi uma exceção no capitalismo. Fora de cogitação. Portanto, nos interessa, do ponto de vista critico e da reprodução da sociabilidade, ver como é que a sociedade vai ftmcionar daqui para frente. Portanto, olho na Rússia. Não é que a Rússia vai retomar fmalmente o fio dos negócios, acumular, desenvolverse, entrar na União Européia. Mas nem .. . Isso é tll11 mito e um mito nefasto. Vai ter uma oportunidade de negócios para especuladores americanos e alemães que ganharan1 um dinheirão agora com a falência da Rússia. Levaram a Rússia para isso. Como é que vai se reproduzir essa sociedade, que não é arcaica, que foi modernizada pelo comunismo soviético, que é altamente sofisticada do ponto de vista tecnológico, embora tenha sido sucateada e que está fora do mundo da mercadoria? Eles estão inviáveis como economia. Não adianta privatizar. Já está tudo privatizado, está tudo na máfia. É uma eliminai

global economy. Está lá. Então, é m11a sociedade que, literalmente, nos ten11os do Kurz, é póscatástrofe. Acabou a modernização para ela. Como ela vai se reproduzir? (inaudível) ... está pensando nela. Na Índia, que ficou fora também. Uma parte da China está fora. É isso que está acendendo a imaginação do nosso crítico. O Brasil está indo nessa direção. Nós temos que pensar como é que o Brasil vai se reproduzir dessa maneira. Ele está fora do nexo mercantiL Exceto essas ilhas de prosperidade fictícias. Quem sabe se com sorte, se Deus existir, eles nos dão um chute. O problema é que não dá para dar um chute. Se desse para fechar tudo e resolver entre nós, já teríamos feito isso há muito tempo. Mas não dá. Simplesmente não dá. Tirando isso de lado, o interesse é esse. Então, para saber como é que a sociedade vai estar se reproduzindo e portanto como é que a experiência póscatastrófica da sociedade brasileira passa a ser relevante para quem pensa criticamente a crise contemporânea novamente, o Roberto foi um pouquinho para trás, chegou na Helena Morley. Nela há uma espécie de rápido lampejo de ftllguração utópica. Nós vemos essa forma ftmcionando, como ela revela essa matéria brasileira, portanto nós temos invariâncias nessa matéria brasileira. Por que nós temos invariância? Porque ele descobre na Helena Morley, ftmcionando ali, uma variante da dialética da malandragem, da ordem e da desordem, da regulação recíproca, do mando na civilização burguesa e do patriarcalismo que estavam no Sa1gento de Milícias. Ele foi lá e descobriu.


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Portanto, há uma matéria brasileira, ela continua, ela aparece nos momentos de regressão . .No caso do Sargento de Milícias, o autor subtraiu os dois pólos. A Helena não precisou subtrair, porque a sociedade juntou as duas coisas. A escravidão tinha acabado de ser abolida e a sociedade burguesa plenamente mercantilizada tinha se afastado. Então tinha uma pequena economia regional que se reproduzia de uma certa maneira, muito simpática inclusive. Está lá . Não que agora ele vá propor uma generalização do distrito diamantino decadente para o Brasil. Isso é uma loucura. Tem gente que atribui isso ao Roberto, mas enfim. Há uma invariância. Essa dialética da malandragem é wna espécie de lógica dessa matéria brasileira que tem uma confonnação original no limiar da modernidade. O que ele faz? Não é de caso pensado, novamente. Por isso é wna coisa extraordinária ver funcionando uma bela cabeça de crítico literário ou de escritor. Ele vai pelo faro. Ficou quase três anos escrevendo a Helena Morley. Todo mw1do enchendo a paciência dele. "Roberto! Só faz isso! Não faz nada! Tá fora! Não sei o quê! Só Helena Morley, Helena Morley, Helena Morley ... " E ele: "Calma". Você vê: a fibra do intelectual é isso. Foi fazendo. Não se desviou. Ele viu que mordeu algmna coisa. Quando publicou não foi entendido. Mas está lá o tijolinho dele: um enorme passo. E esse enom1e passo é confirmado por lll11 outro que não foi devidamente analisado, que é a análise que ele faz do romance do Paulo Lins, Cidade de Deus. Não sei se vocês leram. Ah, então leiam, que é m11a obra-prima. Uma coisa extraordinária. Saiu na Companhia das Letras, infelizmente. Eu queria publicar na Zero à Esquerda. O Roberto descobriu. Paulo Lins entregou para o Roberto, que deu para o Luís Schwarcz, que leu o primeiro capítulo e não gostou. O Roberto insistiu. O Luís avançou, viu que era uma obra-prima e publicou. Eu fiquei a ver navios . O ensaio fonnidável do Roberto sobre o Paulo Lins tem uma pequena passagem que serviu de mote para um outro artigo explicando A Cidade de Deus, que á da Vilma Areas, colaboradora da

Praga, n° 5. A passagem do Roberto é o seguinte: esses movimentos da guerra da droga na neofavela Cidade de Deus são mais ou menos cegos e não são controlados por nenhuma intenção deliberada dos seus personagens, que são arrastados por ele, o que dá mna idéia da segmentação do processo social. Ponto. E depois analisa várias outras coisas: o que é um enredo, drama e assim por diante. Na verdade, o que o interessou - não está dito nessa resenha - quando ele leu os originais do Paulo Lins e depois me passou - veja o que é o olho clinico de um crítico, ele matou a charada - é que o livro era O Cortiço do Aluísio Azevedo escrito pelos encortiçados. Aluísio Azevedo é o ponto de vista do branco dominante naturalista. Agora, o cortiço é o espaço confmado da acumulação selvagem do capital, no caso a bandidagem, descritas por mn deles, que é o Paulo Lins. Foi inclusive no sentido naturalista do termo, porque tem pesquisa. O livro é não só resultado da experiência, por ele ter nascido lá, vivido lá, convivido com os bandidos - ele é negro inclusive, participou da cultura deles, mas depois tomou-se poeta, letrado, fez faculdade de letras .. Ele era um auxiliar de pesquisa, um informante, no sentido antropológico, da Alba Zaluar, quando escreveu o livro dela sobre a Cidade de Deus, O Condomínio do Diabo. Então, ele decifrava aquilo para ela, contava os casos e foi acumulando material. Então, o


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Roberto vê duas coisas: "É O Cortiço na linhagem do Antônio Cândido e a fom1a objetiva está lá na matéria alinhavada por esse rapaz." O romance está construído. Os movimentos do romance, da realidade estão lá feitos . E ele descobriu isso não só pela vivência, mas pela pesquisa de antropólogo como o bom naturalista mandava fazer. Tem um lado de enquête- claro que tudo depois é imaginado que dispensa o que há de arbitrário e de artificial na fantasia de romancista, que, bem ou mal dotado, pega um assunto desses - a guerra das drogas na Cidade de Deus - e imagina mil scripts de filme hollywoodiano ou de minissérie da TV Globo. Um asstmtão: bandido, droga, tráfico, morte, estupro, violência, rapto. Prato feito. Não foi isso que ele fez. Então, o Roberto viu que a matéria se apresenta organizada e a organização dessa matéria é uma segmentação do processo social em que as coisas, por assim dizer, avançam sem ir para lugar nenhum. Nada resulta em nada. Estou me antecipando tiD1 pouco. E é o retrato de uma sociedade póscatastrófica. É economia criminal da droga que gira em tomo da comercialização de um produto. E da guerra. Guerra social, inclusive. Você imagina a desconexão provocada pela globalização e a reconexão através da droga. A droga é uma network sofisticadíssima. Sofisticadíssima. Portanto, eles estão na vanguarda. E mais ainda: no caso do Paulo Lins - isso o aproxima não só de O Cortiço mas também do Sargento de MiHcias- não está o alto mando do controle da droga. É só a ralé colonial, por assim dizer, que está ali se matando tms aos outros . Não estão nem os chefões, nem os políticos, nem os militares. Estão só eles. Está o povo miúdo do tráfico matando-se uns aos outros. Os comandos desaparecem. Outra prova da segmentação desse processo. É claro que isso existe. Mas você vê que a coisa está fraturada, está interrompida. Seria impossível um relato realista, tipo realismo clássico. Que tipo de filme se faria? E vão fazer um filme. Que tipo de minissérie se poderia fazer na televisão? Não pode ser um relato novelesco, porque não tem matéria, embora seja recheado de crônica policial o tempo inteiro. Tem muito de faroeste, de filme de gângster americano, embora não seja isso. O Roberto ainda vai voltar ao assunto e vai encompridá-lo. A Vilma Areas, tomando essa pista do Roberto, faz uma análise magistral do livro - está na Praga, n° 5. Ela começa a descrever o movimento ininterrupto que atravessa todo o livro. A movimentação, à revelia dos personagens, que não leva absolutamente a parte alguma em tennos sociais e de narrativa. As coisas não se acumulam. Não há entrecho, denso, realista, que tem um desfecho. O mesmo destino - lugar nenhum - se repete indefinidamente ao longo de todo o livro. E a cada frase também. E que repete a geografia labiríntica da Cidade de Deus. Ela diz que é um movimento turbilhonar, uma espécie de redemoinho, que traga tudo, que gira à alta velocidade, em pennanência, e não vai a parte algtm1a. Isto é, nenhum dos bandidos consegue, como um personagem do Balzac, se dar bem na vida, tirar a sorte grande, um grande assalto, uma grande partilha de cocaína e pronto, se estabelece ali. Não. Eles vão morrer todos. Desdentados, pretos, analfabetos e com 16, 17 anos. Mas o que é impressionante na análise da Vilma é que ela mostra essa ida e vinda que não vai a parte algwna. E tanto faz - ela vai analisando os personagens - estar ora na ilegalidade do tráfico, numa gangue, ora se você passa para o trabalho do otário, o trabalho


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assalariado. Continua-se na mesma o tempo inteiro. Então eles vão ora para o trabalho assalariado, ora para a bandidagem. Vai e volta, vai e volta. Não sai do lugar. E ninguém consegue se dar bem na vida.

É sempre a mesma repetição, o mesmo movimento que aparece na geografia labirú1tica da favela - uma favela construída, uma neofavela, a Cidade de Deus, o maior núcleo de violência do mundo nos anos 80, parece. Esses altos e baixos que não vão a parte alguma lembram algumas coisas. Lembram, por exemplo, un1a análise magistral - que toca nesse assunto - de Macunaíma, análise da Dona Gilda de Mello e Souza, mulher do Antônio Cândido. Reparem como o desfecho do Macunaíma é melancólicoele não sobe na vida, vira estrela - e ele, durante o livro inteiro, percorre o Brasil, ele se movimenta sem parar como um esquizofrênico, em certo sentido. Ele anda pelo Brasil o tempo inteiro e não sai do lugar. Termina onde começou - só que ele vira estrela, o que é uma fantasia, un1a sublimação literária. Ora, uma outra grande movimentação em que você tem momentos de fastígio e depois de tédio, de sofreguidão e depois de melancolia e assim por .diante e que não vai a parte alguma é o narrador do Machado de Assis, o narrador volúvel descoberto pelo nosso Roberto Schwarz. Está lá a lógica da sociedade brasileira nesse movimento turbilhonar- ele é empurrado por uma hélice que o leva a quê? Ao capítulo das negações, ao nada. Não que a vida das nossas classes dominantes seja insignificante. Pelo contrário, é uma boa vida até hoje. Mas do ponto de vista da nonna burguesa européia é nulo. (inaudível) ... caprichoso sem vontade forte é uma nulidade do ponto de vista do burguês europeu. Aqui, eles estão instalados nessa nulidade confortavehnente - modernos e patriarcais, ligados ao comércio internacional. Esse movimento do narrador, essa arbitrariedade - que não dá em lugar nenhum - da classe dominante, a volubilidade, portanto a impunidade da classe dominante, desse narrador volúvel, que é veleitário, que não tem desfecho do romance realista, enfim, essas invariâncias da matéria brasileira reaparecem na estrutura da forma objetiva de um romance sobre a guerra da droga numa neofavela brasileira - que é a prefiguração da desconexão do Brasil depois do colapso da modernização, porque não tem mais a construção nacional. Ora, se isso não é uma revelação do que está acontecendo e de onde é que nós vamos investigar e pensar a sociedade brasileira através da forma literária, fiquei aqui falando quatro horas coisa nenhuma. Mas é isso que está acontecendo. Então, nós queremos saber o que significa isso. Esse movimento incessante que é uma espécie de compulsão por um processo impessoal cego que leva a coisa nenhuma. Se você não se movimentar, você morre. Você tem que se movimentar sempre. O que significa isso: movimentar-se permanentemente para ficar exatamente no mesmo lugar? É uma história do Brasil. Agora, para explicar qual é a matriz prática disso, nós teríamos que voltar para o nosso mtmdo global de que estávamos falando ontem. Mas eu vou poupá-los disso. Ficará para m11a próxima vez.


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Não sei, Hermenegildo, se respondi. Talvez sobre a natureza da ficção do Brasil eu tenha resvalado um pouco. A parte mais conceitual sobre dialética, se eu fosse um professor malandro, diria que dialética foi isso que nós fizemos aqui durante 5 horas. (Risos) E vocês diriam: "Essa é boa, hein? Mas não me convenceu." (Risos) Obrigado pela atenção. Desculpem o exagero. Hermenegildo- Vocês gostariam de colocar alguma coisa? Alguma pergunta? Lunde Braghini - Nas "Providências de um crítico literário na periferia do capitalismo", antes de questionar até que ponto "país errado" e "cultura certa" podem andar ,_

juntas, você destaca que a Formação de Cândido, em tendo se "completado" no passado, não precisava se preocupar com um desfecho positivo, o qual estava em jogo em outras áreas cobertas pela ensaística de formação. Hoje, porém, você abor·dou explicitamente a importância do golpe de 64 para uma modificação da perspectiva de Cândido, consolidada com a afirmação, na obra do autor, de um segundo eixo, em torno da dialética entre forma e processo social, atento a uma "formação subterrânea".

É expressão do Roberto, formação subterrânea.

É uma variação do seu ponto de vista, é uma evolução sua ou eu que desde o começo não entendi nada?

É que eu não acentuei devidamente. Eu imaginava continuar esse pnme1ro ensaiO "Providências de mn crítico na periferia do capitalismo". Depois, por falta de oporttmidade ... Então, aproveito para me explicar melhor. Isso sempre esteve na minha cabeça. Mas há oito anos, quando eu escrevi esse ensaio, em 90, eu tinha escrito um outro, também no início de 90, sobre a formação do sistema cultural brasileiro. Eu, num certo sentido, sabia menos coisas. Você aprende com o processo social, lê mais, estuda mais, conversa mais, debate mais, claro. Eu posso explicar de maneira diferente, mas a idéia vem dessa época e é mais ou menos o seguinte. Naquele livro Dentro do Texto, Dentro da Vida, na comunicação do Roberto, ''Nota do Debatedor", ele compara todas as formações: a saudosista, do Gilberto Freire; a radical, do Sérgio, mas sem trocadilho, porque ele separa as raízes coloniais, ibéricas, patriarcais e assim por diante; e a progressista do Caio Prado, que também vai no sentido da superação da herança colonial e assim por diante; e conclui com o Celso Furtado, a Fo1111ação Econômic<'l do Brasil, que o Roberto tinha incluído depois de uma conversa comigo. (Porque a comunicação que eu fiz em Marília, e depois não botei no papel, não é o que está no livro, é uma longa comparação com o Celso Furtado. A Fo1111ação

Econômica do Brasil foi publicado em 1959, junto com a F01mação da Literatura Brasileira. Quando eu falei isso, em Marília, e por isso eu não quis escrever naquele momento, todo mtmdo: "Ah, está chamando o Antônio Cândido de desenvolvimentistal". Só era mais essa que me faltava. Você tem que ser prudente, porque as pessoas não sabem o que é desenvolvimentismo, só tem estereótipos a respeito do Celso Furtado.


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Então, a idéia era essa. Eu tinha feito oralmente lá, o Roberto a fonnula na ''Nota do Debatedor". E aliás o primeiro a fazer a comparação foi o Roberto. Em fms dos anos 70, ele já vinha fazendo isso. Em relação a todas essas formações, como o Antônio Cândido relata uma formação que já se completou, a da literatura, o dele foi o único livro que não foi desmentido. Todos os outros - salvo o conservadorismo do Gilberto Freyre - foram desmentidos. Sobretudo o Celso Furtado, tanto é que quando ele escreveu "A Construção Interrompida", isso foi o reconhecimento de que (inaudível) vai se concluir. De modo que era a vantagem teórica do Antônio Cândido: o dele era um livro pronto, certo, não foi desmentido pela história. Mas será que é possível falar de uma literatura funcionando mun país que está se desagregando (inaudível) teatro de horrores. É dessa pergunta que sai a idéia dessas formações subterrâneas, as formas objetivas não-intencionais - a maneira pela qual você pode começar a investigar como é que se reproduz essa sociedade que não se construiu mais como sociedade nacional. Isso não é mais sociedade nacional. Nem vai ser. Está se reproduzindo, tem classes sociais, tem exploração, tem capitalismo- como é que é isso? Nós não sabemos. Vem daí. O quadro ficou claro. Dito isso, algo ficou no meio do caminho e precisaria ser esclarecido: essa convergência entre o Antônio Cândido e o Celso Furtado - mas não é que o ponto de vista do autor da Fo;mação fosse desenvolvimentista. É e não é. Diria Antônio Cândido: "Eu, nos anos 50, escrevo a história do desejo dos brasileiros de ter uma literatura, que foi satisfeito, se realizou, de um ponto de vista desenvolvimentista". Isso é uma questão complicada, mas eu quase diria que é isso mesmo. Como o Lúcio Costa, como o Celso Furtado, ele imaginava uma espécie de formação concluída em que você poderia ter, por exemplo, uma sociedade nacional que se reproduzisse em tennos das formas modernas que nós conhecemos e que foram descritas pelos sociólogos clássicos num certo sentido. Daí, a impressão de que se trata de um neo-ilmninista modemizador que difunde as luzes ou que enche de saber as instituições civilizadas, racionalmente planejadas e assim por diante. Ora, são dois pontos: primeiro, há uma semelhança estrutural nas duas obras muito grande. Nós podemos ver se as providências práticas do Antônio Cândido não coincidem com as providências imaginadas pelo Celso Furtado, se não há mm equivalência entre a constituição da SUDENE -é só ler o segundo volume das memórias do Celso Furtado que você fica boquiaberto, era un1 personagem notável - e a fonnação do departamento de estudos da linguagem na Unicamp ou em Assis, e assim por diante. Tudo o que ele fez na vida. Tem algo a ver. No Celso Furtado tem alguma coisa do radicalismo do Antônio Cândido - ao mesmo tempo socialista, no plano das convicções éticopolíticas, e radical, nos termos da prática em contraposição à tradição conservadora, avassaladora do país. Isto é, você pode dizer que mesmo que ele tenha sido iludido -nós todos fomos - achando que os trinta anos gloriosos do capitalismo eram a regra e não a exceção, mesmo que ele tenha embarcado nessa canoa furada, portanto, tenha colocado todas as fichas na homogeneidade, na homogeneização da sociedade de classes através da difusão do progresso técnico, distribuição de renda e assim por diante,


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wna sociedade salarial como manda o figurino, mesmo que ele tenha embarcado naquilo que foi a industrialização consentida numa situação de dependência, que foi o que nós vivemos de 30 a 80, os 50 anos de desenvolvimento no Brasil nwn certo sentido, havia no Celso Furtado alguma coisa de radical, de contracorrente. Todo mundo fala que a industrialização foi consentida, o imperialismo nos industrializou, o capitalismo dependente é associado dessa maneira. Não é bem assim. Isso agora retrospectivamente é muito fácil dizer. Lendo bem recentemente os três volumes das memórias do Celso Furtado - eu tenho a intenção de escrever sobre isso, porque é wna coisa pouco estudada no Brasil, o que significou de fato o desenvolvimentismo -,por mais que você discorde da sua teoria econômica, ele e o Prebish na CEPAL procuravam compreender de wna outra maneira o que significa o comércio internacional - que não haverá uma convergência natural entre centro e periferia como pensam os neoclássicos desde Ricardo e assim por diante até a teoria das vantagens comparativas do comércio, que nós continuaremos sempre lá embaixo e que, portanto, nós teremos que tomar iniciativas industrializantes centralizadas por wn Estado que induza a actmmlação na periferia e que vá a contracorrente, porque a depender dessa famosa hegemonia americana da qual falávamos ontem, nós continuaríamos primário-exportadores. Acontece - e o Celso Furtado é muito claro a esse respeito, é uma coisa extraordinária isso, ele é muito realista - que nós começamos de maneira pragmática: durante a guerra, nós começamos a substituir importações - éramos obrigados, estávamos cortados dos circuitos comerciais internacionais, porque a guerra os interrompia. No imediato pós-guerra, se nós rossemos reverter esse mecanismo de substituição de importações - essa pequena industrialização periférica, que começa pelo têxtil, que é o mais fácil e assim por diante - para voltar ao crescimento anterior via primário-exportador, isso seria muito oneroso, não seria razoável do ponto de vista do cálculo econômico. Então, temos que ir em frente. Estamos condenados a isso. Mas, por outro lado, o hegemo11 americano era contra - dizia: "Não, industrialização é coisa para gente grande. " Então, de fato, fazer a crítica da teoria das vantagens comparativas no comércio internacional e falar em desenvolvimento econômico como industrialização induzida pelo Estado era heresia. O Prebish rompeu com isso e o Celso Furtado foi atrás e começou a pensar o Brasil nesses tem1os. Nwn certo sentido, trata-se de uma manifestação radical - para usar o vocabulário do Antônio Cândido- de inconformismo de um reformista . Ele é um socialista ....

* * * Somos um país industrializado e continuamos, no velho jargão, subdesenvolvidos como antes. Exatamente como antes. O que ele dizia? Você tinha esses ciclos, há pontos que são manifestações avulsas e entre eles há interregnos de estagnação. Um desses interregnos de estagnação foi o que o Roberto analisou na Helena Morley- só um parêntese. Quando é, diz ele, que se completa a formação econômica? Quando


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esses ciclos se ligam tms aos outros e, portanto, nós temos m11 dinamismo endógeno. Está lá. Ele diz com todas as letras. Na formulação do Celso Furtado, a formação econômica do Brasil tem a mesma estrutura conceitual do modo pelo qual o Antônio Cândido pensou a literatura nacional como sistema. Isso é uma coisa espantosa. Do ponto de vista da iniciativa, da providência do intelectual radical, se nós quisermos, isto é, da contracorrente do conservadorismo local, as iniciativas também são convergentes.

Aí, nesse sentido, nós podemos dizer, com todas as precauções, que ele era desenvolvimentista. Em 64, Antônio Cândido viu que a vaca tinha ido para o brejo. O Celso Furtado ainda acredita que se possa, enfim .. . Não quer largar a família. O Antônio Cândido começou a apostar nos de baixo. Tanto é que é com maior coerência que ele, depois de toda a mílitância, funda o PT. É um dos fundadores do PT - o primeiro partido que junta a ralé colonial. É uma novidade sociológica. Por isso que o PT deu o ímpeto que teve nos anos 80: dada a absoluta novidade dele. Como passou a novidade da industrialização brasileira, ele foi junto para o ralo. Está aí. Vai dar furo n'água por mais uma geração se não mudar. Refundar tudo de alto a baixo. Bom, não sei se te respondi. Mas eu acho que é por aí. Nós temos que pensar novamente o que foi desenvolvimento no Brasil nesses 30 anos e que nesse momento nós tínhamos quase algo que se assemelhava a sociedade nacional: um público que lia livros, que criticava, cinema e um público que o entendia, que se via na tela. Não tem mais. Se você não tem sociedade, se você não tem essa configuração sistemática, você não tem crítica, discernimento, oposição. Por isso que não tem oposição. Se a meta é alcançar os padrões de consumo do Primeiro Mundo, acabou a oposição. Não há discernimento. As pessoas podem escrever nos jornais e dizer na televisão as maiores barbaridades e não se percebe. Pegue as colunas da Folha. Os jornalistas são mentecaptos. Tem um que eu conheço e gosto. Ele escreve às quintas -não vou dar o nome dele, não merece. Ele me alimenta, porque eu gosto de besteiras - como os modernistas, que adoravam fotografar a estupidez, como disse uma vez o Mário de Andrade do Oswald de Andrade. Então, todo o dia da semana - por isso que eu leio jornal - tem wna coluna da Folha de um especialista em dizer espontaneamente aquelas besteiras que tocam no ftmdo na alma. São economistas, historiadores, todos apoiando o governo. Eles conseguem ser conservadores quando comentam o hino da República, falam de futebol, de vida privada. É um festival. Toda a semana. E eu leio as cartas dos leitores e não tem ninguém para dizer: "vamos parar de publicar besteira, que eu assino o jornal de vocês". Ninguém repara. Por que? Porque não tem sociedade. Se não tem sociedade, você não tem senso critico. Sociedade forma esfera pública no século XVII e XVIII, quando havia (inaudível) burguesia, para criticar obras - peças de teatro, sonetos, todo mundo produzia e todo mw1do se criticava. Isso é a esfera pública burguesa - Habermas analisa muito bem isso. Portanto, você pensava duas vezes antes de abrir a boca para dizer besteira, montar uma peça de teatro, porque as pessoas entendiam e iam criticar. A esfera pública começa ali - sob o absolutismo, intraburguesa . Esse núcleo vai se expandir, depois chega a indústria cultural, a mídia. Mas isso pode


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ser contrabalançado por sociedade. Quando você não tem mais sociedade fimcionando, lü1ia esfera . pública pensante, raciocinando em voz alta, todo mundo criticando todo mundo. Você tem meios, mídia, informação, circulação. Você tem o monopólio e essas colunas de bestialógico toda a semana e ninguém vê. Eu resolvi, num momento de bom humor, dar um coice nos meus adversários tucanos de São Paulo. Como eu colecionava isso, eu ordenei aquilo e fiz

w11

dicionário.


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HEGEMONIA GLOBÂL E SENSO HISTÓRICO DE OPOSIÇÃO Paulo Eduardo Arantes

Palestra apresentada no auditório da. Reitoria da Universidade de Brasília, no dia 17í09/1998.

Transcrição: Pedro Benevides. O símbolo

* * *

Jefine o final Je um laJo Je fila.

ATENCÂO: ESTA TRANSCRlCÃO NÃO FOI CORRiGIDA PELO AUTOR.

O que eu gostaria de expor esta noite é uma espécie de tema caudaloso e infindá vel, de modo que eu vou mais ou menos interromper quando eu sentir pelo rosto de vocês que estão cansados. Eu vou - não de propósito, mas, depois que eu fiz aqui o meu roteiro, vi que era uma coincidência - de certa maneira fazer uma costura entre vários autores - não é ecletismo - dessa coleçãozinha vermellia simpática que está lá fora. O ponto de partida é o seguinte: uma espécie de sensação, sentimento ou impressão generalizada de que nós, mais uma vez, ou novamente - possivelmente porque no Brasil é uma experiência única -, vivemos numa era sem oposição. Não entendam, por favor, oposição no sentido corriqueiro, político, de situação e oposição, e assim por diante - seria um mal-entendido catastrófico apresentar o problema nesses tennos -, mas oposição num sentido propriamente anti-sistêmico, que acompanha, por assim dizer, a história do capitalismo enquanto sistema mundial pelo menos há quatro ou cinco séculos - desde o início. A expressão "viver mm1a sociedade sem oposição" não é minha - eu já vou explicar de quem é-, mas eu simplesmente estou tentando aclimatar essa expressão para alguma '-·

coisa que eu imagino que paira no ar. Isto é, um certo sufoco soft,

W11â

asfixia meio tênue, meio sui

geneJis. Só para dar mn exemplo mais conttmdente - estou vendo que vocês são muito jovens, não devem se lembrar disso -, quem viveu, e agora falando exatamente do Brasil, sob a ditadura militar não tem a impressão de estrangulamento, ou de pensamento em extinção, ou de sociedade tão paralisada, como nós temos nesse momento. Durante a ditadura, sobretudo nos períodos mais negros e iniciais, havia uma espécie de contraposição mecânica. Ameaça da violência, do terror, da tortura, da morte, do seqüestro, da censura explícita, isto é, não havia engano a respeito da natureza da ditadura. Portanto, nunca foi, sem humor negro, tão fácil, tão natural, tão espontâneo, tão óbvio, tão lógico se contrapor como durante a ditadura. Hoje, a situação é completamente diferente. Se nós tivéssemos um senso histórico retrospectivo mais agudo, poderíamos dizer que um tenente da República Vellia, se ressuscitasse nesse


70 momento, se sentiria em casa. É um certo ar de museu putrefato, de partido único - não no sentido . bolchevique, mas no sentido do partido revolucionário institucional mexicano -, um ar de perenidade viscosa pennanente que vai se reproduzir e de que não há necessidade de - aquilo que a distingue da ditadura - violência física contra a classe média branca por razões políticas. Isso é a única coisa que nos separa do que vivemos há alguns anos atrás. Mas ainda há mais do que isso. Mais do que no tempo do milagre econômico, que durou quatro ou cinco anos, durante a ditadura militar, há uma espécie de impressão de servidão voh.mtária. É como se explicitamente o regime acreditasse, apostasse todas as suas fichas na regressão social. No

caso, como nós estamos vendo agora- é uma tendência mundial, mas particularmente no Brasil -,essa coisa reahnente espantosa que é essa irracionalidade coletiva. Um economista, que a essa altura é mais sociólogo que economista, numa entrevista no outro domingo nos jornais, dizia o seguinte: as autoridades, que estão realmente suando frio - merecem -, dizem que somos vítimas de um comportamento econômico irracional - um comportamento de manada, como se diz no jargão econômico. Isto é, investidores que podem ser regiamente remunerados a 30, 40, 50% ao ano no Brasil fogem para praças mais seguras para serem remunerados a 6% ao ano. Portanto, um comportamento irracional: trocam rendimento por segurança. E ao mesmo tempo em que esses números absolutamente surrealistas, como 50%, sobem aos céus, nas pesquisas o candidato também sobe. Só que do ponto de vista governamental, diz esse observador, isso parece racionalidade, quando é exatamente a mesma irracionalidade. Você troca por mna fictícia segurança, por um absurdo.

É uma sensação de estar diante de um fenômeno natural incontrolável. Isso é que me leva a recordar, então, o autor dessa expressão "viver numa sociedade sem oposição". Quem falou isso pela primeira vez, veja só, foi o Herbert Marcuse, em l9ó4, no prefácio do livro O Homem Unidimensional. Naquele momento, o J\farcuse estava se refelli1do exclusivamente à sociedade afluente, industrial americana, que começava a se atolar na guerra do Vietnam e que, por outro lado, vivia uma espécie de boom também econômico - a crise começou a bater lá só no fim dos anos 60. O problema do Marcuse era o seguinte: havia uma espécie de integração absoluta mesmo daqueles setores ou classes sociais que, em prillcípio, estariam estruturalmente condenados a um confronto com o novo capitalismo avançado, industrial americano. Isto não ocorria. Fazia-se a experiência de uma sociedade altamente industrializada cuja produtividade era estritamente destrutiva, como se podia ver desde a discriminação dos direitos civis em relação aos negros e pobres nos Estados Unidos até as ex-plosões de napaL11 no Vietnam. Uma sociedade de consmno e destrutiva em todas as suas dimensões. Portanto, ele estava à procura de uma espécie de linguagem que discrepasse desse enquadramento geral, desse ofuscamento - as pessoas não viam o caráter destrutivo daquela produtividade, daquela perfonnance econômica alucinada. De modo que ele era obrigado a recorrer não só no plano retórico, no plano da sintaxe, no vocabular, àquilo que ele chamava de pensamento negativo, que escapasse àquela integração sistêmica e que exibisse um ponto de vista que fosse


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e:h.'terior, isto e, que expressasse necessidades que ainàa nao estivessem mteiramente colonizadas naquela circunstância. Na cabeça do Marcuse, quando ele falava que havíamos perdido o sentido histórico da oposição - "vivemos pela primeira vez numa sociedade sem oposição" -, ele imaginava uma situação de ofuscamento generalizado, de embaçamento generalizado, em que essas coisas não apareciam. Como se a loucura àa economia estivesse inteiramente intemalizaàa, não se visse o seu caráter destrutivo. Daí, a necessidade de se recorrer a uma outra maneira de pensar, a uma nova sensibiliàade, a algo que havia sido abastecido pela arte - no caso, a tradição àas vanguaràas históricas a partir do surrealismo - e que de certa maneira descentrasse e recentrasse este enfoque critico nãointegrado em relação ao sistema. Por aí você vê que ele jamais disse a besteira ou a batata de que, em substituição à classe operária, existiriam grupos revolucionários fora do sistema que seriam minorias oprimiàas e assin1 por diante. Ele dizia que, quando muito, isso poderia levar a w11a guerra civil, mas não a uma desestabilização do sistema . Mas é necessário que apareçam novos sujeitos em que esses desejos ou essas necessidades que não foram ainàa colonizadas se exprin1am fora desta integração sistêmica. Portanto - ele dizia outra coisa - o velho dogma da oposição marxista, a idéia da negativiàade tal como foi lida lineannente até então, estava em via de caducar, estava fortemente comprometida. No que apostava esse nosso senso oposicionista do qual nós alimentamos até hoje o nosso senso histórico de oposição? Em que o próprio sistema engendraria no interior de si mesmo o seu outro, no caso, a força de trabalho na direção do capital. E que se não fosse uma força negativa, interna e imanente ao sistema, não haveria solução e portanto não haveria transcendência, isto é, ultrapassar esse mesmo sistema - simplesmente ele seria contraposto a um voto piedoso, político, moral, de um mundo melhor e assim por diante. Seria, portanto, a redução do anticapitalismo ou do não-capitalismo do socialismo se nós quisermos - a uma espécie de receita moral, o que não é o caso. Uma visão moral do mtmdo. Era necessário que ela fosse suscitada por wn antagonismo interno insolúvel desse próprio sistema. O problema do Marcuse era justamente encontrar alguma coisa que estivesse fora e que ao mesmo tempo fosse interno. E ele achava que havia forças sociais ainda não inteiramente subordinadas - portanto, colonizadas - à mercantilização generalizada da vida que se exprimiam nesses grupos que não estavam inteiramente integrados. Ora, de lá para cá, a situação mudou. A observação do Marcuse de que as pessoas estavam enceguecidas, ofuscadas pela perfmmance do sistema e não viam o compromisso que esse mesmo sistema tinha, por exemplo, com tendências à morte, à tanatologia, por assim dizer, à extinção da vida no planeta e de que, portanto, era necessário que você mudasse a sensibilidade, senão não haveria a possibilidade de se enxergar a catástrofe que se aproximava, hoje mudou . Hoje, o paradoxo é que - não sei se isso é wisl1fw thinking, se estou sonhando - mn bom leitor de jornal - imaginando que ainda leiam jornais, não vejam só televisão (a diferença não é muito grande) - não tem a menor ilusão quanto ao caráter destrutivo do sistema. É como se não houvesse, portanto, necessidade de uma nova linguagem, de um pensamento - como o Marcuse dizia - negativo,


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que funcionasse com um pé dentro e outro fora , que pudesse colocar à distância o sistema - tudo isso é . necessário até hoje. Mas é como se as coisas estivessem visíveis, claras, transparentes, nítidas à nossa frente - a não ser que você seja obrigado a mentir por profissão, isto é, seja mn governante, um político, no sentido tradicional do termo. Não há como passar desapercebido o fato de que o capitalismo entregue a si mesmo está tomando impossível a vida civilizada sobre o planeta. É claro que há gente que ainda se ilude, porque ainda está incluída nos circuitos integrados, na globalização financeira, onde tudo é uma festa 24 horas sobre 24 horas no planeta inteiro. Fora disso, é uma espécie de evidência obscena o crescimento exponencial da desigualdade social, da miséria, da espoliação, do trabalho atroz - é uma coisa inacreditáveL E está nos jornais todos os dias. Seguramente, se nós nos dennos ao trabalho de assistir a dez minutos de propaganda política ou de noticiário com os grandes âncoras da telev1.são, perceberemos perfeitamente que eles não acreditam em absolutamente nada do que estão nos dizendo, que se dão ao luxo do cinismo explícito, o mais contundente e com a maior desfaçatez, porque eles apostam naquilo que eu estava chamando . de regressão social, muna espécie de esquizofrenia estrutural do sistema: todo mundo sabe que está sendo enganado, sabe que ele é destrutivo, sabe que ele está arruinando a existência, sabe que ele está levando pessoas ao desespero, que está inviabilizando a economia enquanto reprodução material da sociedade e, no entanto, continua o jogo. As pessoas vão à televisão, mentem, prometem, dizem que vão fazer isso e aquilo, escondem, escamoteiam e com a cumplicidade do leitor de jornal e do assistente de televisão e assim por diante. É essa a esquizofrenia estrutural: todo mtmdo vê que a economia está pondo em movimento mn programa suicida. E, ao mesmo tempo, como alguém v1.ciado em drogas, como alguém narcotizado, como alguém hipnotizado, como um coell1o hipnotizado pela serpente, oll1a para a tela do computador, vê as cotações e transfere investimentos de lá para cá, apertando tecla e a coisa vai rolando como uma bola de neve na direção do precipício. Só que todos sabem disso. A idéia de ideologia, no sentido clássico, de uma racionalização que encoberte o vh1culo com interesses particulares, materiais, desapareceu. De certa maneira, a ideologia está nas próprias cmsas - está no barulhinho gostoso do trincar do Big Mac na orell1a das pessoas, na tela de televisão, numa cotação de bolsa. Está ali. A pessoa sabe que está sendo enganada, sabe que todos têm conhecitTLento disso, mas a energia para levantar um dedinho da mão é impressionante. Qualquer pessoa que tenha mn mínimo de experiência analítica sabe do que eu estou falando. Neurose é isso. Esquizofrenia é isso. Tem sempre um grão de consciência e ao mesmo tempo a dependência amnenta cada vez mais. Durante quatro anos se disse que dependíamos de capitais externos. É dependência química, num certo sentido. E continuamos dependentes. E, a cada medida, aproftmda-se mais essa dependência. É uma insanidade coletiva. E ela faz com que a cotação do candidato suba todo o dia. É manada mesmo. É irracionalidade encarnada. É uma coisa impressionante. InescapáveL E isso - como não há violência, a palavra sempre choca chama-se fascismo. Isso é o material, é a matéria-prima do fascismo. Não precisa ter violência. Não


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precisa ter Gestapo às quatro horas da mâJ.'1.hã levando alguém para campo de extermínio. Agora, pode.se perfeitamente conviver com eleições de quatro em quatro anos e assim por diante. Entre parênteses: na Alemanha, todo mundo sabia o que estava acontecendo. De A a Z, ninguém ignorou nada. Isso quanto a essa sensação e a essa mudança de regime na noção de ideologia. O ponto que eu quero abordar - não comecei ainda a minha exposição, isso é apenas a entrada - é exatamente o seguinte: como é que, do ponto de vista conceitual, essa situação que eu propositadamente dramatizei, essa experiência - em todos os planos de vida, desde o consmno do objeto cujo áesign mercadológico foi preparado até o consumo do candidato, no caso, se reelegendo -, foi transposta? Ela foi transposta em tennos conceituais pelo Francisco de Oliveira, que reumu um punhado de artigos que fazem sentido ao estarem juntos num livro publicado pela nossa coleção Zero à Esquerda chamado Os Direitos áo Al1tivalm; tendo como subtítulo "Uma economia da hegemonia imperfeita". Eu vou deixar o título de lado e explicar um pouquinho o subtítulo, que é o ponto de partida das minhas considerações. Não vou falar em ex-posição, porque eu seguramente não vou levá-la até o fim para a gente poder debater um pouquinho. O problema do Chico é o seguinte: como descrever, como analisar em termos conceituais e não em termos melodramáticos como eu fiz um pouco, embora ache que não incorretos - essa sensação de extinção do sentimento histórico de oposição? Isto é, como você convive com essa Lmanimidade (que não é nada burra)? Nelson Rodrigues diria que ela é burra. A de hoje não é burra. A de hoje tem uma parte delinqüente e tem lll11a parte de regressão social que dá em fascismo. Como explicar, em termos conceituais, esse sentimento de rolo compressor, esse massacre a que nós estamos assistit'1do em todos os plât!OS, dos mais

co11~queiros

até o fato de que nós não temos

um Judiciário independente? Isso não é pouca coisa. As pessoas dizem que isso é coisa de advogado. Não. Nós vivemos sob uma ditadura legal. Só. Pronto. Como é que, nesse amplo espectro de destituições, nós conceituamos isso? O Chico, há uns três anos atrás, foi no óbvio (Isso segundo ele. Não estou criticando.) e disse: "isso aqui, se nós quiséssemos dar um curso introdutório, é uma ilustração de manual do conceito gramsciano de hegemonia. Hegemonia é isso." Diz ele que o seu dileto ex-coleguinha de centro de pesquisas em São Paulo conseguiu finalmente unificar as nossas divididas oligarquias regionais, a nossa classe dominante, que não se entendia, estava se entredevorando e por isso havia hiperinflação. Não pensem que éramos nós, assalariados, que causávamos a inflação. Eles não se entendiam e não sabiam para quem mandar a conta. Um passava para o outro e sangravam o Estado, que emitia e subia a inflação. É isso. Pura e simplesmente. Era necessário um condottiere que os pusesse de acordo e sin1plesmente os organizasse em tomo de um rumo. Quando o nosso conáottiere diz que o pais tem rumo, ele não está mentit1do, por incrível que pareça. Tem mmo. Na direção do abismo, mas tem. E não é trocadilho fácil. Há um projeto histórico, embora ele não seja original, porque ele é igual ao de óO países que estão fazendo exatamente a mesma coisa. Que tem rumo, tem, porque óO estão indo para a


,_

74 mesma direção. E ele está sendo vitima agora do teorema dos rendimentos decrescentes -se todo mundo faz a mesma coisa, vai escassear dinheiro para financiar o nosso desequilíbrio na conta corrente. Não dá para 60 fazerem a mesma coisa. Portanto, tem rwno, mas não é um rwno original. Diante disso, o Chico diz que nós estamos diante de um caso de manual de hegemonia no sentido gramsciano, como nós mmca haviamos visto na história recente da República. Fechou o arco. Ficaram de fora uns pobre diabos que ficam esperneando, fazendo conferências aqui e acolá e mais nada. Fechou o arco, juntou o que os militares sabiamente resolveram não jtmtar: Arena e MDB. Do ponto de vista daquilo que se entendia por hegemonia, no sentido vulgar e também no sentido gramsciano, nós estamos diante de um bloco sem nenhuma rachadura. l\fais ainda: conseguiu mna façanha superior à do Getúlio.

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O atual é amado, idolatrado por todas as oligarquias e por todos os segmentos da classe dominante brasileira sem exceção. Quando eles escrevem contra, é porque querem mudar a equipe econômica. Só isso. É uma questão técnica. Não é política. Portanto, diz o Chico, é uma situação de hegemonia perreita. Não se trata de um aventureiro. Nós estamos diante de algo que veio para :ficar durante uma geração, possivelmente mais, vejam o México. A partir de um determinado momento, diz ele, quando essa hegemonia se aprofundou, ele disse - não que o Chico tenha tirado o titue de campo - que era preciso rever o conceito de hegemonia, que ele estava aplicando-o de maneira muito óbvia, muito direta, muito linear, tal como o Gramsci a entendia. E para o Gramsci - depois hegemonia passou para o sentido comum e as pessoas não lembram mais que foi o Gramsci que formulou pela pritueira vez o conceito - hegemonia implica que, na dominação de uma classe sobre os outros grupos sociais aliados e as classes ditas subalternas, para que essa dominação seja efetiva, ela não possa dispensar e que ela conte com o consentimento, com o consenso daqueles que em princípio ela deve liberar. Porque conta com esse consentin1ento, ela os libera. Ela tem o poder coercitivo, a credibiiidade e uma liderança intelectual e moral. É necessário que a sua alegação de que dorrili'1a em nome de algo que poderíamos chamar vagamente de interesses gerais não seja inteiramente fraudulenta - porque em parte ela é, senão não haveria dominação, haveria democracia. Dominação social implica, portanto, em consentimento baseado num trabalho de educação, esclarecimento e liderança baseada na autoridade moral e intelectual do projeto de uma classe social que passa a ditar os parâmetros daquilo que nós poderíamos chamar de senso comum de uma determinada época histórica - como foi com a República francesa, com hegemonia jacobina cuja alegação de ser mna classe '\miversal", entre aspas, era correta.


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Portanto, nuina sitUãção de hegemonia, de mlificação de interesses contrapostos numa . sociedade necessariamente antagônica, existe uma liderança natural que está baseada não numa fraude ideológica. Está baseada também numa espécie de auto-engano quanto à universalidade dos interesses e das razões que os exprimem. É necessário que essa dominação se apresente como algo universal e que efetivamente ela o seja mun determinado momento, como foi o jacobinismo enquanto representante da República francesa recém-nascida, portanto capaz de mobilizar todas as classes da sociedade, inclusive na guerra extema contra as potência das monarquias do Ântigo Regime. É necessário que entre dominados e dominantes exista urna linguagem comum, que exista pelo menos como horizonte a idéia de um contrato social do qual todos sejam partes atuantes - em francês, é pmti prenant, mas não me lembro a expressão equivalente em português -, que exista uma comunidade de significados nas palawas que são empregadas por um grupo e outro. Direito é direito, num certo sentido. Para dar um exemplo, que não é o do Gramsci, de como a idéia de hegemonia implica a participação dos dois pólos -o que domina e o que é dominado, mas se sente liberado e representado. É necessário que haja um campo de significações comur1s, sem o quê, não há comunicação entre eles, há

pura e simplesmente ditadura e coerção. Pronto. Portanto não há sociedade. E, no caso do Gramsci, na sociedade civil esses grupos se encontram e há essa partilha de si1;;uificados. Para nós termos wua idéia do estrago que veio depois - pois é isso que está me interessando anotar agora -, basta lembrar, por exemplo, a mais contundente critica do modo de produção capitalista que nós conhecemos, que é a do Marx - tuna critica imanente, isto é O Capital se objeta contra o capital nos seus próprios termos, não em termos morais, pré-capitalistas. Os termos do capital, o que significavam, entre outras coisas, para Marx? Troca de equivalentes - compra e venda de força de trabalho. Para demonstrar que existe um esbulho quando nós passamos da esfera da circulação e descemos para o andar de baixo da esfera da produção - onde veremos como é que essa força de trabalho que foi vendida a tun justo preço é utilizada - e, portanto, criticar o que aparece na superfície, :Marx fez uma grai!de suposição à qual ninguém presta atenção, mas é isso que está em jogo na idéia de hegemonia (por isso é que existe hegemonia burguesa, enquanto durou a era industrial da burguesia): o direito natural. Na idéia de exploração ou de esbulho, há violência, fraude. Há a violação de um direito, o da livre troca de equivalentes entre iguais, que é a aparência da circulação sob o qual está alicerçado todo o aparato jurídico, político, institucional, da dominação burguesa, que nesse sentido é hegemônica. Porque entre a classe dos proprietários dos meios de produção e a classe dos que apenas têm a sua força de trabalho para vender e só vivem quando encontram empregador para a sua força de trabalho existe em comum a suposição de que ambos têm os mesmos direitos. E, portanto, ao apontar com o nome exploração, não está fazendo simplesmente uma espécie de reclamo sentimental, choramingas, de que é uma injustiça, que atenta contra as leis do coração. Não. É um direito natural mesmo. Direito racional modemo. Portanto, a crítica à dorninação e à hegemonia de tuna classe dominante é tuna crítica que se faz sempre de um campo comum entre os dois pólos. A ciitica só é contundente - é nesse sentido que o Marcuse se


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perguntava se ela não teria se esgotado - quando ela toma ao pé da letra aquilo que o dominante alega . como sendo um parâmetro universal. Por isso, a idéia de se jogar o direito no lixo como relíquia ideológica é uma bobagem que mmca teve naàa a ver com o marxismo. Não estou advogando a causa perdida do marxismo, embora as causas perdidas sejam muito simpáticas. É apenas um exemplo de de onde vem o Gramsci. É esta comtu'lidade de significados ou de valores, se nós quisermos falar de uma maneira um pouco mais incorreta, que é o cimento da hegemonia. E o Chico descobriu que a hegemonia - analisando só o caso brasileiro, mas isso se estende para a Europa também - tomou-se imperfeita, é uma quase hegemonia e que nós estamos para além da hegemonia e aquém da democracia - é um dos artigos desse livro ao qual eu estou me referindo. Ele diz que isso é novo. Então, ele não vai usar, para descrever o novo regime brasileiro, a expressão consagrada de hegemonia - embora nós sintamos sobre o lombo o peso dessa hegemonia, mas na sua acepção vulgar de preponderância, de poder incontrastável, mas não no sentido ditatorial. Por isso hegemonia ainda tem um certo sentido .. Porque não se trata de ditadura stricto sensu. É um fenômeno novo. E não é peculiaridade nacional. Pela primeira vez, diz ele, se nós percorrermos esses últimos oito anos (Quatro anos é muita injustiça. Façamos a conta com oito anos, porque a Era começou com o outro Fernando. Houve um interregno de quatro meses entre outubro de 92, quando tomou posse o govemo do Itamar, e abril de 93, quando o atual primeiro mandatário tomou-se ministro da fazenda e portanto retomou o governo - sem a bandidagem, que tomou-se obsoleta. Não é que as almas tenham se tomado mais puras. Ela é obsoleta e contraproducente.), observaremos que, pela primeira vez na história do Brasil, possivelmente na história do mundo, a idéia de hegemonia de uma classe dominante está começando a fazer água, ratear, isto é, pela primeira vez, a burguesia (não há outro nome, ou a classe dominante ou como nós quisennos, classe dos proprietários, elite, pouco importa) renunciou à universalidade dos seus valores. Por exemplo (eu não estou inventando nada, nem o Chico), uma coisa tão trivial que para muitos é um problema técnico: previdência - reforma da previdência, privatização e assim por diante, capitalização, rombo, déficit. Aquele trololó que está todo o dia no jornal. Todo o dia tem algum âncora dizendo que esta é uma verdade divina. Isso significa simplesmente o que? Uma previdência pensada em tennos de capitalização e não por partilha generalizada, universal, significa que um dos valores da civilização ocidental burguesa foi para o lixo: a solidarieàade entre as gerações de uma mesma espécie. Simplesmente isso. A idéia de proteção social, seguro social, direitos sociais, conquistas sociais, direitos adquiridos, tudo isso é velharia ideológica, metafisica, é arcaísmo, é sentimentalismo, é populismo e assim por diante. A idéia de direito não é mais comum. Pergunte a um banqueiro se direitos adquiridos não são direitos adquiridos. Claro que sim. O que vale para um grupo social já não vale mais para outro. A idéia de direito não tem mais um significado comum. Vale o direito de um e o direito de outros. Quando a burguesia renuncia à universalidade dos valores que ela alega para legitimar a sua dominação, quando ela não incorpora mais o mundo do trabalho assalariado, cujo nexo


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salarial não é simplesmente mn contrato mercantil, privado, de compra e venda de mna mercadoria, é · um nexo institucional de garantia de direitos e deveres, quando ela renuncia a isso, na verdade ela está reprisando um velho mote da sua própria ancestralidade histórica, enquanto classe dominante. Essa não é a novidade do Chico. Aquilo é algo que está voltando e nós sabemos no que ela deu. Em fins do século passado, os grandes ideólogos europeus da nova elite imperial européia - foi o período da segunda colonização, que começou por volta da segunda metade do século passado - começaram a enunciar e a criticar, dizendo que as noções tmiversalistas da burguesia, como justiça, liberdade, igualdade, simplesmente exprimiam (Isso eram os grandes intelectuais mais ou menos ou não vinculados à nova elite imperialista no sentido histórico, preciso, européia do fim do século passado. E eles criticavam brilhantemente, não eram capadócios, pelo contrário, eram grandes teóricos, filósofos e sociólogos.) o complô dos fracos contra a vitória dos mais fortes e portanto é o fruto do ressentimento popular para culpabilizar uma classe dominante que domina por sua própria natureza, porque ela é superior. Isso começou com o imperialismo. Isso que eu acabei de dizer é mn teorema de mn filósofo alemão do fim do século passado. Esse imperialismo, acoplado à mitologia do mercado auto-regulado que em tempo foi criticado há 50 anos atrás - as pessoas esquecem - pelo Karl Polanyi, terminou em duas guerras mundiais, no nazismo, no fascismo, em campos de extermínio. É onde, quando começa essa dissociação, isso terminou, pelo menos historicamente. Então, pela primeira vez, essa idéia de uma sociedade do nexo salarial que articula a sociedade passou para a categoria de velharia metafisica, ideológica, expressão dos inempregáveis, tecnologicamente obsoletos e, portanto, irrelevantes ou redundantes enquanto material humano economicamente rentável. É isso que quer dizer. E as pessoas sabem disso e simplesmente íntemalizam a culpa. "Ah, eu estou desempregado porque eu sou tecnologicamente um retardatário. Sou um inempregável. Tenho que me reciclar, mas aos 50 anos como é que eu faço? Recorrendo à caridade pública, fazendo cursinho,

cursi...J..t~o,

cursinho e passando o

chapéu". No momento, diz o Chico, em que isso se toma a rotina ideológica do sistema, como eu posso falar em hegemonia? Mas também não se pode falar em ditadura no sentido elementar do termo. Ele começou a falar- e as pessoas não compreendem muito -em totalitarismo. Que era exatamente a mesma expressão empregada - ele não sabe disso, não cita, nem vem ao caso - pelo Marcuse ao descrever a sociedade americana dos anos 60. Ele usava a palavra totalitarismo- uma lógica totalitária. E não queria dizer com isso que ela fosse igualzinha à Alemanha dos anos 30. Pelo contrário, não tinha absolutamente nada a ver. Totalitário no seguinte sentido: você não tem mais para onde fugir, escapar. Você é apanhado pelo nexo mercantil em todos os momentos e é desqualificado em função deste parâmetro. Portanto, a sua irrelevância social é uma irrelevância mercantil. Você não serve para nada, isto é, não tem valor de mercado. Portanto, não tem nem valor de uso, você é descartável em termos sociais. A faca que vai nos cortar o pescoço está sendo amolada e não é privilégio nacional, não é idiossíncrasia, não é que nós estejamos na vanguarda dessa corrida em direção ao fascismo.


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Esse é o problema do Chico: que hegemonia é essa? Ela é avassaladora, é mn rolo · compressor, conta com a adesão irrestrita de um novo tipo de lúmpen, que nós não sabemos mais o que seja, sem falar nos emergentes da vida, que pululam como cogumelos nesses momentos de transição. Ao mesmo tempo que se esvai, se extingue esse senso histórico de oposição, ele é alimentado - ou pelo menos ele é ofuscado - por mna hegemonia que parece ser total, mas não é. Ela é uma falsa hegemonia e ao mesmo tempo não é uma ditadura no sentido claro do termo - porque essa sim é a dimensão mais propícia para se explicitar e gerar um senso histórico novo de oposição, como foi o caso de 20 anos do Brasil. Durante a ditadura - não é que eu seja um nostálgico da ditadura - nós fomos muito mais inteligentes do que somos agora. Tínhamos muito mais idéias, muito mais saídas, muito mais imaginação política. Agora, não temos. É uma espécie de extinção da vida mental no Brasil. E não só no BrasiL É um negócio impressionante. E, ao mesmo tempo, é uma eÀ'tinção da vida mental que rende conforto. Na ditadura, você não podia ter conforto, salvo os executivos que eles inventaram durante o milagre, que só durou 5 anos. Vivemos de milagres. Então, que diabo de hegemonia é essa? Eu vou recorrer a um outro autor da nossa coleçãozinha. Fala-se em hegemonia, fala-se em preponderância, mas ela renunciou ao cimento ideológico da hegemonia, que é poder, com algum fundamento, sustentar a sua alegação de que representa não só os seus interesses como classe dominante, mas atende aos interesses de todas as classes subalternas que se tomam nesse momento aliadas e forma-se um bloco histórico. E assim a coisa funciona. Até que uma classe ou grupo que seja estruturalmente universal possa atíavés de uma contra-hegemonia romper esse bloco e preparar uma transformação social radical. Isso na cabeça de um italiano dos anos 30. Não tem nada a ver com o nosso momento. Nós temos que recomeçar de zero. Repensar tudo. O que isso significa? Entre parênteses, os autores dessa coleção não são programáticos, nenhum pensa igual ao outro. As únicas coisas em comum nesses autores é que eles estão do outro lado do mainstream, contra ele. Tem de tudo. Há braudelianos, há neokeynesianos de esquerda, há até marxistas -não tenho nada contra o marxismo, muito pelo contrário -, marxistas, digamos, heterodoxos, ex-ocidentais, há republicanos socialistas. É a expressão de um certo fio condutor histórico dessa tradição anti-sistêmica de oposição que acomparJla o capitalismo como uma sombra há muitos séculos e que durante um bom tempo foi, por razões óbvias de hegemonia real, confundida com o marxismo, que foi a principal tendência desses movimentos anti-sistêmicos - com toda a razão, porque de fato foi a principal corrente do ponto de vista intelectual, a mais interessante e a que tinha o diagnóstico mais seguro da situação mundial- que acompanham o capitalismo desde o início e que se chamavam de movimentos sociais ou socialistas. Mas não podemos esquecer da renovação que está acontecendo na França, para não falar na Alemanha, mas sobretudo na França, no movimento associativo francês. E dizem: "Mas não é possível. O socialismo não acabou? A União Soviética não foi para o brejo?" Bom, duas confusões realmente insustentáveis. Mas, de qualquer maneira, a União Soviética era uma referência. É que as


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pessoas esquecem que antes do marxismo chegar e mesmo depois dos comunistas, dos bolcheviques, dos leninistas aportarem na França a partir dos anos 17 -com grandes resultados, não estou denegrindo ninguém, pelo contrário, eu venho daí - havia mais de um século de socialismo na França e que essa enorme tradição de oposição socialista na França, de todos os tipos, do fourierismo até os contemporâneos, está se reaglutinando, não para repetir, pensar em falanstério. Não é nada disso. Ela ressurge das catacumbas e é responsável por uma grande revivescência social como há muito tempo não se via na França pelo menos desde 68. E é muito diferente, porque 68 foi hegemonizado pelo marxismo, um marxismo meio extravagante, mas foi . Voltando. Qual é a matriz desse caso brasileiro (que não é só brasileiro, seguramente isso deve estar sendo debatido na Argentina, no Peru, no México, na ex-União Soviética nem se fala, isto é, em todos aqueles que estão sendo submetidos a um processo de ajustamento drástico - é disso que se trata)? Um outro autor que eu tenho em mente é um autor nosso - nosso, mas que não depende da gente. É um italiano radicado nos Estados Unidos, historiador da economia, economista também, chamado Giovanni Arrighi. Publicou no Brasil há uns dois anos atrás o livro O Longo Século XX e nós publicamos no ano passado A Ilusão do Desenvolvimento, uma coletânea de artigos que fazem sentido e que não existe nos Estados Unidos. São todos artigos americanos, mas nós montamos aqui um livro armadíssimo. Um dos aspectos que me interessa nesse livro e no outro - O Longo Século XX - é o seguinte: existe uma escola de pensamento chamada teoria dos sistemas mu11diais - é só um lembrete, não estou citando bibliografia e nem me alinho com essa posição - da qual faz parte o Arrighi, além de uma montanha de americanos, entre eles o Wallerstein, autor de um livro clássico, que nós vamos republicar, chamado O Capitalismo Histórico. E há uma outra chamada escola da economia política internacional, que em determinado momento confluiu com esses teóricos dos sistemas mundiais, world

f:lystems, e que tomam o capitalismo como uma economia mundial, um sistema mundial, um sistema histórico. Portanto, para eles, o capitalismo - eles não são antimarxistas, mas não são marxistas estritos, são, digamos, braudelianos de esquerda (F emand Braudel, o grande historiador do Mediterrâneo) - não depende da Revolução industrial. Eles consideram o capitalismo um sistema altamente maleável e que não tem preferência por nenhuma fonna histórica definida de tmidade de produção, no caso, a industrialização. Não precisa ser necessariamente industrial. Portanto, ele vem de muito antes. E a passagem daquilo que nós chamaríamos de economia medieval para a capitalista se dá sem revolução burguesa. Para eles, revolução burg-uesa também é outra ilusão retrospectiva. E o Wallerstein tem três livrões interessantíssimos em que ele procura mostrar como a classe dominante de antes continua depois -houve um ajuste interno, porque na economia medieval estava havendo uma perigosa propensão a uma espécie de igualitarismo econômico anárquico entre os produtores, corroendo portanto o poder dos grandes senhores, que tomaram providências durante alg-um tempo para se


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recompor e reverter essa tendência ao igualitarismo econômico . E o que os marxistas descobriram . depois como capitalismo, fruto de revolução industrial e burguesa. Isso para mostrar a independência de vistas que eles têm - mas também não são primários na divergência. Nesse quadro de referências, é o Arrighi que me interessa. Ele rastreou a noção de hegemonia. Ele fez o caminho inverso do Gramsci. Ele é italiano, tinha sido marxista como todo mundo da nossa geração, gramsciano ,portanto, e ele disse: "Vocês já repararam que a idéia de hegemonia que o Gramsci foi buscar no Maquiavel, em O Piincipe - na verdade é um conceito cuja origem, cuja raiz está na política internacional e o Gramsci o transpôs para a política nacional?" É daí que vem a idéia de hegemonia, tanto é que o termo grego llegemon é o Estado hegemônico nu...'TI sistema de cooperação e ao mesmo tempo de rivalidade e de competição até a guerra entre Estados relativamente soberanos entre si. A primeira guerra de hegemonia foi a guerra do Peloponeso. Essa é a pista para nós desprovincianizarmos, no caso do Brasil, a querela e a discussão sobre a idéia de dominação incontrastável de . um bloco histórico hegemônico que f.ü.1almente se constit uiu no Brasil e que substituiu à altura a falecida e nefasta Era Vargas e assim por diante. Vamos desprovincianizar a discussão remontando à matriz real do tenno histórico hegemonia, que é internacional. Isso o Giovanni

Arri~~i

fez pelo seguinte (vou trocar em miúdos, vou atalhar demais uma

teoria que é uma relojoaria perfeita que eles montaram): t rata-se de explicar a crise contemporânea na qual estamos todos mais ou menos interessados. Trata-se de mna ruptura de época. O que está acontecendo no mundo há vinte e cinco anos? A literatura sobre isso é abundante e completamente desencontrada. Trata-se de explicar o que aconteceu a partir dos anos 70. Por que a economia mundial, num detenninado momento, passou a declinar? Passou a declinar, a lucratividade diminuiu e ao mesmo tempo houve uma espécie de ascensão aos céus do dinheiro. É uma apoteose ideológica, por assim dizer, do dinheiro na expressão financeira da riqueza. Fi.'"lanceirização da riqueza e portanto a predominância do famoso capital fmanceiro, cujas devastações nós estan10s vendo aí. Não é porque que ele seja maldoso, é porque ele funciona dessa maneira e alguma coisa fez com que ele fosse deflagrado nesse seniido. Há 25 anos nós temos um declínio da lucratividade. Os anos 70 foi uma década de crise e depois que foi enquadrada por essa preponderância, essa fínanceirização da riqueza -isto é, o fato de que o capital prefere sempre a forma-dinheiro em todas as suas transformações-, não há nenhum lucro em nenhuma atividade empresarial que não seja bombeado para a aplicação, entre outras coisas, fmanceira, que roda o mlmdo. Essa acmnulação financeira é a mãe de todas as acumulações. O que isso significa? Por que ele entrou em crise? Por que ele funcionava tão bem até um certo momento e depois entrou em crise? Esse é o problema de todos aqueles autores. Esse enfoque é um dos cenários da globalização apresentados no interior da coleção. Há outros: a do alemão Robert Kurz é inteiramente diferente, a do Paul Hirst, idem. Vamos publicar uma coletânea de ensaios do Chesnais, que também é inteiramente diferente. Há uma outra hipótese que


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acabou de sair, ta.ubém de um dos escritores na contrâillão do ma.instn:â111, o historiador da economia americano chamado Robert Brenner. Publicou há dois meses atrás, na Inglaterra, e nós já estamos traduzindo. Vamos publicar no ano que vem. Chama-se Economia da. Turóulência Gloóa.l. Para dar um cheirinho ...

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... para a crise dos anos 70 para cá e que está na origem da mitologia da globalização. Mitologia e em parte realidade obviamente. Não estou tentando dizer que isso não existe. Isso é bobagem. A mitologia da globalização que está na origem disso, o que significa? É um diagnóstico conservador da Supply Science Economics. O que diz ele, que se conft.mde com a rea.ga.nomics, com Reagan, Thatcher e cia.?

O problema está na oferta e não na demanda, porque a lucratividade começa a baixar, o Estado entra em crise fiscal, o welfare sta.te europeu e americano entram em crise, vem a inflação. Aí o Milton Friedman diz: "Não, olha só! Eu já dizia isso desde as nossas sociedades do Mont Pêlerin. O principal motor da acumulação e do dinamismo do capitalismo, temos que dizer com todas as letras, é a desigualdade social". Pelo menos ele tem a coragem de dizer. "No momento em que você tenta anular por razões artificiais macro-econômicas, o sistema deixa de funcionar." Tem toda a razão. Até então, tinha toda a razão. Foi isso o que aconteceu. Portanto o Estado vai entrar em crise fiscal aguda, vai gerar inflação, a produtividade vai cair, a lucratividade idem. No fim dos anos 60, início dos anos 70, não deu outra, sem o quê, a vitória ideológica deles seria uma vitória de Pirro no fuu dos anos 70, início dos anos 80. Portanto, foi o avanço da massa salarial e de todos os salários diretos - tudo aquilo que o Chico de Oliveira chama de antivalor - que corroeu pela base a pedonnance do sistema capitalista. É necessário reverter esse famoso acordo ou consenso keynesiano entre capital e trabalho. Diz o Brenner: "Não, não foi o caso . Não foi a força de trabaiho que abocanhou um quinhão que não lhe competia e portanto comprometeu a acumulação, mas foi a competição, a rivalidade, a concorrência dos vários capitais em função da nova revolução tecnológica. Eles são os responsáveis pelo longo down

tum, pelo longo declínio, pelo longo giro em direção abaixo e portanto a classe operária ou a força de trabalho foi caluniada." Até então, nada demais. A função da direita é caluniar o outro lado. Acontece que a esquerda vestiu essa carapuça e disse que de fato havia wu grande confronto e que foi aquilo que se arrancou- sobretudo na Europa depois de 68 -do capital que enfiou areia na máquina. Triste ilusão.

É claro que, em ft.mção disso e corroborado pelo aval ideológico da esquerda, o capital descontou - e descontou rijo - e principiou uma corrida ao corte de custos - de que padecemos até agora - tentando recuperar alguma coisa que não lhe era devido, porque não foi isso que provocou o longo descenso. Fechando o parêntese, esse é o outro cenário que nós vamos publicar no ano que vem. Voltamos então ao nosso amigo Arrighi e seus companheiros.


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Ele àiz o seguinte: o que aconteceu nos anos 70 para haver essa queda de lucratividade? . Pm que a economia mundial perdeu o dinamismo? Diz ele: "Em última instância, porque nós começamos a viver uma crise de hegemonia propriamente àita no plano munàial - crise da hegemonia americana'' Não é primário - eu estou enunciando de maneira brutal e é disso mesmo que se trata - e não se trata de tirar o imperialismo do fundo do baú. O imperialismo existe. Só que ele é uma coisa funcional, deve ser analiticamente descrito e nós tivemos grandes ciclos imperialistas. Tivemos o ciclo britânico, o chamado imperialismo do livre comércio; o imperialismo americano propriamente dito, do fim da II Guerra Mtmdial até o fim do sistema de Bretton Woods, quando eles implodiram, sobretudo a

partir de Nixon em 71, 72, 73, que é o imperialismo do consumo de massa. Em poucas palavras, só para eu poder localizar e, como eu tentei sugerir, desprovincianizar o nosso debate: não se trata de uma invasão de ostrogodos nacionais que estão nos infernizando a vida e nos impingindo uma falsa hegemonia. Não é que o buraco seJa mais embaixo, ele é muito maior, muito mais vasto e ele é planetário. A teoria deles é mais ou menos a seguinte: o que eles consideram capitalismo, veja só, é uma coisa muito curiosa. Essa teoria remonta ao Braudel. Há três camadas, três andares do sistema das trocas materiais e econômicas mundiais: o andar de baixo é onde, nos termos do velho barbudo, o proprietário dos meios de produção encontra o proprietário da força de trabalho. É o tmiverso da civilização material, como diria o Braudel. Há uma segunda camada intermediária, a do mercado. O mercado, para eles, não é sinônimo de capitalismo. Sociedade não existe sem troca. Sociedade é mna troca. É um sistema - isso qualquer antropólogo sabe, é o bê-a-bá. Essa segtmda camada é a do mercado, das trocas, que são internacionais desde sempre. Foi o comércio internacional que gerou o mercado, o comércio de longa distância. Portanto, esse sistema é mundial e global desde sempre. Globalização para eles não faz sentido. O que nós estamos chamando de globalização é essa crise do

hegemon E há a camada superior, que é aquilo que eles chamam propriamente de capitalismo. É ali que se dá o capitalismo. É ali que estão as grandes feras selvagens. Ali é que impera a lei da selva e é onde o dono do dinheiro encontra o dono do poder. Toda a reconstituição histórica que eles vão fazer é uma espécie de - vou àizer um palavrão - dialética entre poder político territorial e capital, fluxos de capital, entre espaço enquanto lugar e espaço enquanto fluxo de capital. E um não existe sem o outro. Eles retomam uma velha tese esquecida do Max Weber que diz que se não houvesse Estado nacional não haveria capitalismo. Mais exatamente, se não houvesse Estados nacionais que competem entre si pelo capital circulante - e que portanto tem uma preferência estmtural pela liquidez - não haveria acumulação capitalista, que acontece sempre no plano mundial. O capitalismo é justamente esse plano da al!â finança internacional e da política de Estado - Estados que competem entre si nwu sistema de soberania relativa pelo menos desde a Paz de Westphalia, que terminou com a guerra de 30 anos em 1648. E é esse sistema que está em vigor até hoje. Se a economia mtmdial, que é uma economia de um arco só, que tem uma única divisão mundial do trabalho- flexível, claro -, não atravessasse jurisdições


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políticas destes espaços econômicos, não havena acumulação, porque esta depende dos diferenciais . entre essas várias jurisdições políticas que atravessam a economia. Portanto, essa história de que não existe mais Estado nacional é uma bobagem. Porque é uma ficção ontológica também, metafisica. Nós temos como modelo de Estado soberano nacional o da Revolução francesa. Na verdade, nós temos de fato alguns Estados centrais, que estão no núcleo orgânico do sistema, e o resto são quase Estados. Nós somos um quase Estado desde a origem. O México, a nação mais nacionalista da América Latina, é um quase Estado. E como. É mais quase do que Estado. Que história é essa de soberania? Não é por aí. O debate está inteiramente deslocado. Portanto, não há acumulação sem esse diferencial em que as cadeias de mercadorias têm que atravessar esses vários espaços políticos. Ela sempre foi :intemac:ional. E é nesse momento que existe a pLmção financeira dos vários Estados. O Marx, para ficarmos em casa, escreveu isso direitinho na acumulação primitiva. Só que isso vem antes do capitalismo.

''l~ão,

querido

Marx. Não, Karl, começou lá e é sempre assim." Quando é que começou o capital? Quando é que começou a acumulação, o mercado, as transações entre as moedas? Quando o Estado, que vinha de antes, se endividou. A origem do capitalismo, do mercado, é a dívida pública, o gasto público. Por isso é que há essa briga de foice mtmdial. É isso. Até hoje. Isso posto, eles dizem que existem ciclos de acumulação sistêmica. E esses ciclos são sempre liderados por uma potência hegemônica que, ao perseguir os seus próprios interesses, atende relativamente o interesse dos demais de modo a transformar a competição, que seria destrutiva e mortal, em cooperação - ou cooperação competitiva, como nós quisermos - entre firmas e entre Estados. Para não ir até Gênova, Veneza e Holanda, fiquemos na Inglaterra: nosso quase Estado é fruto da hegemonia britânica. Isso é coisa de manual de escola primária? Sim e não. Porque o Estado hegemônico deve legitimar o poder dos governantes em relação aos seus próprios governados, sem o quê, ele não é hegemônico. E é por isso que, sob a hegemonia britânica, nós tivemos um sistema de economias nacionais que concorriam no mercado, um sistema de quase Estados nacionais que competiam entre si articulados, por assim dizer, pelo coração londrino, que atendia aos interesses de todas as classes proprietárias, portanto dos antigos colonos do velho sistema colonial. Não é à toa . Portanto, atenàia aos interesses do escravismo brasileiro e legitimava o seu mando, tanto do ponto de vista nacional quanto do internacional. Facultava o reconhecimento internacional e assim por diante. Ora, esta hegemonia britânica (Eles a chamam de livre comércio, porque a Inglaterra sempre manteve o livre comércio. Podia entrar tudo, porque ela comandava toda a rede. Ela sugava tudo. E não tinha protecionismo.), entre outras coisas, pôde, no coração do sistema, acomodar os interesses das novas classes sociais - no caso a força de trabalho - alargando seus direitos, inclusive o direito político de voto, o sufrágio tmiversal. Isto é, há hegemonia não só legitimando o poder dos governantes, mas na medida em que também atende os interesses daqueles que empurram lá embaixo. Portanto, inventa-se o sufrágio tmiversal. Foi imposto de baixo, mas foi reconhecido lá em cima. Você alarga isso. Em plena hegemonia britânica, a nova maneira de organização do capital alemã, concorrendo com a americana e


84 com os ingleses e que depois vai desembocar na Primeira Guerra Mundial, permite que o Bismarck · forme o primeiro Estado social. Hegemonia é isso. Vou poupar-lhes de toda a história de como a hegemonia inglesa é corroída, como eles são financiados - nessa disputa pela hegemonia mundial - pelos Estados Unidos, que tomam-se a nova potência hegemônica depois da Segtmda Guerra Mtmdial. Essa nova hegemonia americana - ou imperialismo americano, como se dizia vulgarmente, mas é disso que se trata - é tal, porque alarga o guarda-chuva. Ele abarca mais. De onde é que surge essa hegemonia? Da clarividência da elite de poder americana que, ao sair da Segunda Guerra Mundial, viu que a mitologia do mercado autoregulado, do padrão-amo, do comércio internacional desregulado - como era antes e que os ingleses não souberam amarrar- os levou à destruição e praticamente à vitória da Revolução. Em 1944, mesmo nos Estados Unidos, ninguém, nem economistas como o Schumpeter, tinha dúvidas de que o comtmismo havia vencido, de que o capitalismo estava com os seus dias contados. Só não sabiam como e quando exatamente - mês e ano - seria, mas eram favas contadas . Sobretudo porque o capitalismo havia desencadeado essas forças reacionárias - no sentido exato, é uma reação da natureza - como o nazismo. Ele levou à barbárie. E, por isso, ou nós mudamos radicalmente ou o socialismo tem razão e é questão de tempo eles ganharem. Diante dessa hecatombe, desse apocalipse, provocado não pelos carrascos nazistas, mas pela sandice, pela demência do padrão-ouro, do mercado auto-regulado, do Estado que não interfere na economia e assim por diante. Tudo a que a hegemonia britânica levou. Os americanos reordenaram - no sentido dos regulacionistas, digamos, fordistas - a economia nesse sentido que está aí - de fato, nós podemos chamar imperialismo do consumo de massa, isto é, por cima das fronteiras econôrcticas é crucial, inclusive para se conter a União Soviética, que as massas cheguem ao consumo tal como nós o encontramos na regulação dos regulacionistas fordistas dos Estados Unidos. Isto é, automóvel, geladeira, televisão, salários dignos, linhas de montagem para todos. A Europa está destruída pela guerra. O que eles fazem? Vejam só o que é uma potência hegemônica. E aí começamos a notar o que é a crise contemporânea. Ao invés de fazerem o que fizeram com a Rússia agora (Destmíram-na como numa guerra. A Guerra Fria fmalmente aconteceu. Ela foi, em sete anos, destruída. Por isso nós não somos a Rússia? É claro que não somos a Rússia. Ela foi simplesmente demolida. Acabou. É wn arsenal de dinamite.), que era o que uma contra-elite an1ericana queria fazer, eles disseram: "Não, não. Nós vamos reconstmir a Europa, o mercado europeu, inclusive negociar com a força de trabalho mn weífm-e state, um pacto entre capital e trabalho. Nesses termos nós os financiaremos. É o Plano Marshall. A Europa será reconstruída nesses termos." Inclusive porque, claro, havia a ameaça soviética. Sem ela, possivelmente essa clarividência da elite do poder americano não aconteceria. Eles iriam barbarizar do mesmo jeito- é da natureza do capital. Reconstrói-se a Europa. Reconstrói-se o Japão, que foi convidado a entrar finalmente no clube do núcleo orgânico do capitalismo. Foi um desenvolvimento à convite. Eles foram lá e fizeram


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reforma agrária . O general MacArthur fez a reforma agrária no Japão. Precisaríamos de wn aqui para fazer isso. Vamos aproveitar essa chance histórica. Já estamos sendo engolidos, já não temos mais moeda, já não temos mais nada, então, venham os ma.niles e façam a reforma agrária no Brasil. Parece humor negro, mas não é. Esse é o drama. Daqui há cinco minutos eu dou o desfecho do meu continha.

É que eles não se interessam mais em fazer refunna agrária aqui, como no Japão, como fizeram o welfare state na Europa. O que mais eles fizeram? Nós. Fizeram vistas grossas para o nosso modelo

cepalino de substituição de importações e penriltiram que a periferia latino-americana - sabiamente conduzida por líderes mais ou menos clarividentes e um pouquinho de maneira pragmática, desde o Getúlio - se industrializasse. Isso é hegemonia. Ao mesmo tempo em que eles cresciam adoidadamente, toda a economia mw1dial crescia junto com eles - Europa, reconstruída; Japão, reconstruído e nW11 certo momento começando a rivalizar com eles; e a periferia, industrializada de uma maneira diferente, subalterna, é claro. Tanto é que o Getúlio queria W11 Plano Marshall para a América Latina e para o Brasil. Tanto é que a virada que ele deu para os americanos foi em função disso. E eles disseram: ''Não, não. Plano Marshall é para os emopeus. Lá dá para recomeçar de zero. Eles vão longe, serão nossos partners. Nós precisamos do mercado deles, como eles precisam da gente. Vocês, ao invés do Plano Marshall, vão ter Volkswagen, Ford, Chrysler, General Motors e assim por diante. As multinacionais serão o Plano Marshall de vocês." Não deu outra. Eles vieram para cá, enquanto nós esbravejávamos "Yankees, go home!". Eles vieram justamente transformar isso aqui nW11a economia i.t1dustrial, só que capenga, subalterna, periférica, baseada no endividamento do Estado, no impulso das multinacionais e na esmola que era distribuída, subsidiando o atraso que era a empresa nacional. De modo que o modelo nacionaldesenvolvimentista mmca teve absolutamente nada a ver com a esquerda. Sem nenhum ganho, a esquerda enfiou o ônus, a carapuça de wna coisa que ela não fez . O Estado desenvolvimentista brasileiro é uma criação da classe dominante brasileira para subsidiar os setores atrasados da sua própria economia que se encostavam no Estado, que por sua vez se valia do apoio das multinacionais. Foi esse o tripé, que não tem absolutamente nada a ver com a esquerda. É um erro histórico a esquerda dizer que está defendendo este patrimônio. Que patrimônio? Ela simplesmente capitalizou essa c01ja. Voltemos ao tom acadêmico. Esses foram os trinta anos dourados do capitalismo - uma exceção na sua história que já tem cmco ou seis séculos. E essa exceção, não só nos driblou, mas driblou também pessoas da envergadura do Celso Furtado. Ele, quando pensou o desenvolvimento econômico no Brasil, tomou como base esse compromisso ke:ynesiano que foi apenas um comprorr1isso e, como todo compromisso, se desfaz quando não interessa mais. Ele pensou: "O capitalismo é assim. Ele é naturalmente desenvolvimentista. Ele tende à homogeneidade social. Ele funciona na base da luta de classes. A luta de classes distribui. Ela pode gerar progresso técnico, que vai se difundindo na sociedade, que vai se


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tornando caàa vez mais homogênea. Essa é a essência do capitalismo. O resto é desvio." Ao contrário. '-·

Esse é o desvio. O resto é a natureza do bicho. Isso perdurou até fim dos anos 60, início dos anos 70. Eu estou economizando. Essa e uma história absolutamente fantástica que eu estou atalhando a golpes de machado.

Aí, começa a ficar claro o que significa a crise do nosso tempo. Nós podemos imaginar que essa liderança hegemônica - no sentido de máquina de crescimento - americana, que inclui o consumo de massa, direitos sociaiS, CIVIS, até os civil rights americanos (até o movin1ento negro entrou lá), começou a ratear um pouquinho com a guerra do Vietnam (eu já vou contar umas peculiaridades àa guerra do Vietnam que nós não sabemos). Começou a se endividar (inflação, crise fiscal do Estado), começou a perder potência em todos os sentidos. Os anos 70, vocês devem se lembrar, foi o momento em que começou a se falar na decadência do 1mpeno amencano. Era o papo de todos os anos 70. Inclusive, foi em função desta decadência - começou a dD.uinuir a lucratividade da economia americana - que as grandes multinacionais americanas inventaram um mercado oÍÍ shore: tiraram dinheiro dos Estados Unidos e começaram a investir na periferia. O nosso milagrezinho a 13% ao ano foi isso. Durou cinco anos. Depois voltamos à nossa média histórica de um século. Foi esse o milagre brasileiro: sÍluplesmente uma disfunção na máquina americana, quando ela estava começando a ratear. l\1ilagre propriamente dito dos militares, porque nós vivemos de milagre em milagre. Pnmeiro o açúcar, depois o ouro, o café, esse milagre do fordismo periférico e agora o milagre da moeda estável, que durou quatro anos. Forte como o dólar, mercado emergente. Acabou. Não tem mais. Ano que vem vai começar outra coisa e aí vamos ver para que lado nós iremos. Nos anos 70, portanto, todo mu11do dizia "perderam a guerra do Vietnam, perderam, em 78, o Irã, uma peça fundamental na Guerra Fria". Os Estados Unidos desmoralizados em todos os campos . Inflação. Luta de classes adoidado na Europa. O dólar não substitui mais o padrão-ouro e inclusive é desvalorizado. Essa é a crise dos anos 70. Não vou entrar no que houve de ideologia nesse momento. A partir do fim dos anos 70, há uma reversão nesse processo. E nos anos 70 que se fonna toda a ideologia que nós chamávamos naquela época de neoconservadora. Não se falava em neoliberalismo. Era neoconservadora - um diagnóstico, esse criticado pelo Brenner, da crise fiscal do Estado, que em princípio seria um Estado do desenvolvimento (tanto na periferia quanto na Europa e assD.11 por diã11te). No fim dos ãnos 70, esse processo de decomposição, de declínio- os Estãdos Unidos começam inclusive a perder a primazia na corrida tecnológica para a Alemanha e para o Japão - faz com que haja uma brutal reversão. Nós poderíamos chamar de contra-revolução liberal-conservadora do sr. Reagan e da sra. Tnatcher. Há uma brutal reversão nesse processo. Um processo de valorização do dólãr,

â

famosâ diplomãciã do dólãr forte. Eu não vou entrãr em todos esses

detãh~es,

senão nós

iríamos longe. Mas há uma reversão desse processo- eles retomam o pulso. Todos diziam nos anos 80 que eles haviam perdido a paraàa para o Japão. (A nova forma de organização da produção do toyotismo, desde a planta da fábrica, o sistema de subcontratação múltipla, terceirização, tecnologias


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de operação do trabalho que os japoneses haviam aproveitado da traàição comercial àas redes ·familiares do Sudeste Asiático.) Eles revertem isso nos anos 80. Os vários acordos desmantelam-se, como Bretton Woods. As moedas flutuam. Tudo que se àiscute hoje foi de certa maneira induzido, produzido, imposto ... Bom, saiu a palavTa. Mas, enfuu, foi imposto. Eles impuseram a valorização do ien. A famosa indaca, que uma década depois fez com que o Japão submergisse. Está estagnado há sete anos. Então, o Japão estagnado há sete anos, a Europa com desemprego de massa como nunca conheceu na sua história e com u1na nova pobreza e a ímica nação do mundo que há sete âllOs cresce sem parar são os Estados Unidos. Estranha coincidência. Inventaram os mercados emergentes, nos entupiram de dólares. Abriram nossa boca e foram enfiando, enfiando. E com esses mercados emergentes, começa-se a surfar na liquidez e estabiliza-se a moeda. Toda essa história que está aí. Não vou fazer conjUt1turalismo de fim-de-semâlla, nem é o caso de se fazer na tmiversidade. :Mas dá para perceber mais ou menos qual é o quadro. Há 25 anos, a economia mtmàial não cresce. Fala-se em revolução tecnológica, mas não há dinamismo. Simplesmente, desde a crise da dívida externa na periferia - aqui, na mais subalterna possível - nós perdemos tmla década, a de 90 já está perdida e estamos inaugurando a terceira década perdida. O welfàre state desmantelado, de joelhos na Europa. Nós somos um país que foi moderno alguma vez. Tomamo-nos uma economia primário-importadora. Sem demagogia. Foi em cascata. Primeiro, a América Latina desde a dívida foi para o brejo. Depois, a União Soviética não agüentou a concorrência, porque até então, na hegemonia americana, ela sustentava a convivência. Quem disse "vamos destruir a União Soviética" foi o Reagan quando falou em guerra nas estrelas. Nesse momento, os russos murcharam. Acabou a União Soviética. Não tinham condições. Foram destruídos pela guerra nas estrelas. Depois, desemprego e a nova pobreza européia o desmonte que eles es+...ão tentando recauchutar com essa União Européia, que é simplesmente uma maneira de se consagrar a supremacia alemã e mesmo assim não vai longe. E agora a Ásia. Veja só o que é hegemonia fraudulenta. Â

Ásia era a última região em que havia um capitalismo organizado - não que eu esteja

fazendo um elogio ao capitalismo organizado - e um Estado "desenvolvimentista", entre aspas. Eles abriram, fmanceirizaram as economias do Sudeste Asiático e em menos de uma década elas explodiram -como nós aqui. Então, veja só: eles estão fazendo toda a tri1~a de destruições. E o mUt1do, de joelhos, pede: "por favor, mr. Greenspan, baixe os juros, dá um dinheirinho". Até o Clinton fez discurso dizendo: "Por que? Nós estamos nos beneficiando dessa fmanceirização global até agora". Esses ciclos de acumulação sistêmica que se sucederam - e o último deles, hegemônico propriamente dito, foi o americano - foran1, depois de um interregno de caos sistêmico, substituídos por uma falsa hegemonia, feita -diria o Maquiavel- na base da fraude, que podemos entender em muitos sentidos, e da violência. É essa crise de hegemonia e, portanto, essa falsa hegemonia. Hegemonia que


88 não é hegemonia. Não dá mais. Eles nem escondem isso para alegar que ao crescerem eles atendem os .interesses de toda a economia mundial. Não atendem. Estão só destruindo. Isso não é complô, é uma constatação. O modelo é esse: acumulações sistêmicas, economias hegemônicas. Se não houver essa articulação, não há acumulação. A teoria diz isso desde o início . E, portanto, nós estamos há 25 anos na mediocridade econôrnica. Revolução tecnológica é conversa para boi donnir, não quer dizer nada. Há um período de depressão, de concorrência e de corte de custos, onde entra o emprego. A explicação para o desemprego está aí. Não é ontológico, nem inaptidão para a tecnologia. É corte de custos. Feminiza-se, sexiza-se, etniza-se a força de trabalho, desloca-se a indústria, corta-se empregos, cor+..a-se custos via tecnologia. É isso. Para atender essa crise, porque ninguém cresce. E a concorrência se exacerba. Você globalizou as finanças, depois se refugia no dólar. Pronto. O maior devedor do mundo é a única potência -falsamente hegemônica. Ora, é isso que aparece em tem1os provincianos como falta de espaço para que floresça o sentimento de op ...

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.. .ter atualmente no Brasil. Não por razões locais, porque eles se aliaram às oligarquias retardatárias, serviçais, da ditadura e assim por diante. Não tem nada a ver com isso. É uma explicação sociológica caipira, num certo sentido. Não é isso. É si..'11plesmente a manifestação local desta tendência mundiaL Eu vou dar um último exemplo e com isso eu encerro para que a gente possa discutir. Uma outra leitura dessa mesma hipótese -que talvez vocês tenham tido como tresloucada. Mas não é tresloucada. Tanto é que qualquer pessoa que lê jornal reconhece - pelo menos é uma grade de leitura.

É um outro autor, também nosso, um historiador, e que não está a par dessas elucubrações aqui. Não é o ramo dele. Ele entra naquela categoria que nós poderíamos chamar de socialistas republicanos, de origem francesa - ele é brasileiro, mas viveu 25 anos na França. O apelido dele é "o francês". Vocês devem conhecê-lo, é tml grande historiador, jovem ainda, e faz história colonial e do império, Luiz Felipe de Alencastro. O livro chamado Desorganizando o Consenso traz várias entrevistas e uma delas é com ele. Lá ele diz algumas coisas que eu vou contar agora, mas ele diz mais num artigo que ele publicou recentemente na revista lvovos Estudos, n° 50, chamado "O Ocaso dos Bacharéis". O que para mim é o mais interessante e importante é que ele não tem idéia do que eu acabei de falar agora no que diz respeito a ciclos sistêmicos de actmmlação, hegemonia intemacional, competição entre Estados, entre firmas, quando há divergência entre elas nós entramos num período de crise -é o que está acontecendo agora (Por isso que no plano jornalístico se diz: "não temos lideranças mundiais". Isso é bobagem. Os Estados Unidos não precisam do Clinton. Não é o Clinton, é crise de hegemonia mesmo. É isso. Parece que não tem liderança mundial. As pessoas ficam: "um é maníaco sexual, o outro é alcoólatra, o outro é insiguificante, o outro é imbecil, medíocre". Não é nada disso. Crise de hegemonia é isso. Quando ela


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aparece, o mtmdo parece sem líder. Da turma dos trinta anos dourados, o Eisenhower era uma anta, o · Kennedy- todo mLmdo está descobrindo os podres dele- era racista, invadiu Cuba, deflagrou a guerra do Vietnam e assim por diante. Não é questão de líderes mundiais. O nosso aqui quer ser secretário do Conselho de Segurança da ONU- tem paciência. ''Não é à toa que ele falou disso há quatro anos". Mas como é que ele pode falar há quatro anos que tem que regulamentar o fluxo de capital internacional? Se esse fluxo se regulamentasse, ele não estaria eleito, não haveria Real, não haveria estabilização monetária, não haveria âncora cambial. Porque existe uma globalização excludente e não solidária, é que pode haver âncora cambial e, portanto, estabilização monetária -fictícia, fajuta -, eleição no braço do povo porque terminou com a hiperinflação e assim por diante. São minhocas que saem por aí e a gente lê no jornal.) Voltamos, então, ao nosso amigo Luiz Felipe. E o que ele está dizendo é justamente isso. Ele não tem idéias dessas coisas. Essa literatura lhe é estranha. Mas, por um outro ângulo, ele está dizendo a mesma coisa que eu tenho tentado até agora - espero que com algum sucesso - sugerir como plausível. Ele - que é um crítico competente da atualidade - faz história colonial e notou o seguinte fenômeno. Como ele está terminando um enorme livro, de vida inteira, que ele prepara há 20 anos, sobre história colonial brasileira, ele notou - é especialista internacional, viaja pra burro - o seguinte (uma coisa trivial no ramo dele, que eu não conheço): na literatura especializada sobre o antigo regime colonial e também sobre o sistema colonial moderno- que começa mais ou menos em 1850, 1870 e vai até a Segunda Guerra Mundial - começou a aparecer um certo tipo de revisionismo, que se chama revisionismo historiográfico. Vários autores ingleses, americanos, europeus, geralmente conservadores, mas não muito, começam a calcular (é um debate que rola por aí - eu, muito ignorante, não sabia sobre a rentabilidade ou não das duas colonizações, a pruTieira e a segw1da), a fazer pesquisa de arquivos, de contabilidade de comércio internacional, de preços relativos, curvas e tal. E eles se perguntam se a colonização direta - os dois sistemas históricos clássicos - não teria sido desperdício de dinheiro. Lost ofmoney, como diz um desses artigos. É uma revisão, digamos, aristocrática. Âchavam que isso era perder tempo, dinheiro, era coisa de burguês, era desperdício nas colônias com essa bugrada. O Luiz Felipe começou a jUtJ.tar as coisas e viu que essa literatura revisionista sobre a história àas duas colonizações é rigorosamente contemporânea - isso que eu comecei a chamar de crise de hegemonia -da ascensão, prestígio, fastígio da reaganomÍcs, da sra. Thatcher e assim por diante. Ele começou a jtmtar peças e fez descobertas do arco da velha que nos dizem respeito. Entre parênteses: uma das fontes sublinhada por esses autores e que logo vocês vão reconhecer são os livros de um escritor de origem polonesa, mas radicado na Inglaterra, que escreveu no fim do século passado e início desse, chamado Joseph Conrad. Seu tema foi justamente o grande império britânico, o segundo ciclo da colonização. Um de seus contos chama-se lvo Coração áas

Trevas- que fornece o argumento de Apocalipse 1'/ow!, do Coppola. Nesse conto do Conrad, percebe-


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se como ele participava dessa tendência anticolonial no coração do império britânico: "isso é uma perda de tempo, de dinheiro e é uma barbaridade" - porque ele era um homem de bom coração. Grande escritor. Nesse conto ele descreve como um agente colonial, :inglês, ensandece, enlouquece, no meio dessa empresa colonial, que para ele já era uma coisa insana, e toma-se um ídolo cultivado por tribos selvagens, que se transformam numa espécie de gangues pré-Somália, por assim dizer, e que devastam as regiões à volta. Então, vai lá uma expedição que vai trazer de volta, caçar ou resgatar o Kurtz - no fiLue, o Marlon Brando. Só que, veja só, o Coppola - sempre um sexto sentido guia o artista - foi lá e viu que alguma coisa mudou no colonialismo antigo e na guerra do Vietnam. Ele pegou o conto do Conrad e transpôs para alguma patologia que estava acontecendo no Vietnam. Para fechar esse parêntese: num determinado momento da novela do Conrad, ele descreve um navio francês na África colonial margeando o litoral africano ocidental e despejando fogo de canhão na mata. Para nada. Para ninguém. Ele vai navegando devagarinho e dando tiro de canhão no mato. Isto foi a colonização, na cabeça do Conrad. Ora, essa opinião mudou de registro e agora exprime uma outra coisa. E é isso que o Luiz Felipe descobriu - e que está presente no uso que o Coppola faz do livrinho no Apocalipse Now!. Ele lembrou do seguinte detalhe, veja só. Coisa que todo mtmdo que lê jornal deve saber. É só

ler o jornal e pensar um pouco - contra o jornal, evidentemente. Os mais jovens não se lembram: na guerra do Vietnam, o govemo americano, na pessoa do embaixador transmitindo congratulações, medalha, faixas, homenageou Nguyen Van Thieu, o ditador do Vietnam do Sul - um fantoche, como se dizia no nosso jargão dos anos 60. Era uma espécie de excrescência humana. Era como um Churchill da Ásia - sem cinismo. Havia um pouquinho de ideologia nisso. Hoje seria cinismo escrachado. Mas era o Churchill da Ásia - aquele boneco de engonço dos americanos no sul do Vietnam, sustentando aquela guerra sujíssima. Era como se a guerra do Viet.J.am ainda parecesse com uma guerra análoga à conduzida pelo Churchill contra a barbárie nazi. A fronteira da civilização ocidental chegava até o Vietnam do Norte. Portanto, nós tínhamos lá um Churchill. Ora, o Coppola faz o filme do ângulo do Kurtz, da sua loucura e da loucura que foi a guerra do Vietnam como um esforço colonizador de modo tal a il11plantar estadistas ocidentais na selva. O Coppola já está virando o eixo, dizendo que aquilo foi é claro que todo mundo vê o fihne como progressista -uma loucura. Acontece que eles estão dizendo que agora isso é uma loucura. Jamais ocorreria a nenhum de nós vendo Cl"'"'N ou lendo jornais durante a guerra do Golfo, nem estava na cabeça -por mais fundamentalista que ele fosse, no sentido americano do nosso amigo George Bush, converter os generais iraquianos ou o próprio Sadam à ordem civilizada da democracia liberal representativa americana. Pouco se lixaram para a desestabilização ou não do regime gótico-feudal do Kuwait, da Arábia Saudita e por aí afora. Não tinha absolutamente nada mais a ver com isso que ainda tinha na guerra do Vietnam. Veja só como nós estamos nos últimos degraus da vida, como diria o Nelson Cavaquinho. "A luz negra se acende à nossa frente". Nós chegamos ao ponto de dizer que, de um certo ponto de vista, a guerra do Vietnam foi mais civilizada que a do Golfo. É isto. Pelo menos havia malucos ideólogos que diziam: "Tem um Churchill aqui". Os generais


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iraquianos não impor..am. Desvicunlou-se. O Coppola já está fazendo isso, já está desvinculando. Só que para nós é progressista, quando já não é mais num certo sentido. Há então o diagnóstico do Luiz Felipe: pela primeira vez - se nós comparannos Vietnam e guerra do Golfo - a missão civilizadora que os países centrais do ocidente se impuseram nas duas ex-pansões coloniais acabou. Eles renunciaram a essa missão civilizadora. Era isso que nós estávamos dizendo há pouco. Lá em cima, crise de hegemonia global; e aqui, a burguesia renuncia à universalidade de seus valores. Outra prova (fico até envergonhado de dizer para vocês lerem jornal com atenção): o que o Clinton foi fazer agora na Rússia (Depois dizem que os russos são por natureza corruptos. Acontece que as reformas radicais na ex-União Soviética foram patrocinadas não só pelo FMI, mas pelo próprio Jeffrey Sachs, que está falando abobrinhas sobre o Brasil, a Rússia e que embolsou dinheiro. E tem mais essa: foi pilhagem de parte a parte. Não só para a máfia russa, mas para os grandes consultores, assessores americanos contratados com dinheiro do FMI para implantar as refonnas voltadas para o mercado na ex-União Soviética.)? O que o Clinton diz para o alcoólatra? Que o capitalismo é como a lei da gravidade. O capitalismo. Comércio, indústria. Não a civilização ocidental, a democracia, o liberalismo. Não falam contra a máfia, não falam para não roubar muito, para se civilizar, beber menos vodca. Não tem nada disso. O capitalismo. O resto façam como vocês qwserem. Ora, é isso. Essa crise de hegemonia significa o seguinte: pela primeira vez, a idéia de missão civilizadora do ocidente em relação à periferia mundial acabou. Outra contraprova: o que está dizendo o Samuel Huntington, o primeiro grande teórico dos regimes autoritários periféricos na época das ditaduras dos

at!OS

60 e 70 no Cone Sul? "O próximo choque será

tm1

choque de civilizações e,

portanto, a economia de mercado é uma forma de vida cultural como as outras - mas superior, evidentemente. Portanto, elas entrarão em choque porque são culturas e civilizações diferentes". A idéia de civilizar, espalhando democracia de mercado, desapareceu. Isso é uma coisa idiossincrática do Ocidente, portanto nós renunciamos a impor pela força. Isto é, o único vinculo do Ocidente com o resto do mundo, sobretudo periférico, é comercial. E com esse VÚ1culo, nós voltamos ao velho sistema colonial dos portos de comércio, ports of trade, em que se tinha comércio de longa distância e não era necessário que nos nós desse comércio

se formassem mercados regionais que dessem origem a wna sociedade assentada sobre a idéia de mercado com intercâmbio próprio, uma sociedade civil e assim por diante. De modo que nós voltamos a essa concepção comercial da missão civilizadora do branco ocidental macho e assim por diante. Isso posto, nós podemos dar mais um segundo passo junto com o Luiz Felipe e reencontrar a nossa história \...

provinciana- e com isso nós chegamos ao coração do nosso problema. (Um outro exemplo, lendo jornais: de 25 anos para cá, desde que o Nixon foi à China, as relações comerciais preferenciais com a China não têm nada a ver com a gerontocracia que anda por lá


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-partido {mico e assim por diante. Há uma completa dissociação. Por isso que, hoje, nós não somos . mais uma sociedade nacional, somos um mercado emergente - e quebrados.) O Luiz Felipe diz para nós prestarmos atenção na simultaneidade. Há um refluxo do ímpeto civilizatório do Ocidente, que coincide com o encolhimento do Estado social e com o desemprego em massa e a alegação tecnológica que culpabiliza aqueles que foram considerados supérfluos ou inúteis para o mundo, como diz um grande sociólogo francês. Há uma retração geral do Estado na economia, no emprego e da missão civilizadora do Ocidente no resto àa periferia nãoocidental. Eles se retiram. Não compartilhamos mais da mesma cultura e dos mesmos valores . O que acontece no plano nacional?- pergui1ta o Luiz Felipe. Há w11a retração semelhante em nome da modernidade e de toda a fraseologia correspondente a que se tem direito. Completa-se, diz ele, um ciclo em que nós vamos largando o lastro social que impede o suposto país - que nós não conhecemos - chamado Brasil de decolar e ascender aos céus da modernidade. Essa renúncia que nós vimos em plano intemacional de dois ângulos distintos se ex-prime na renimcia àquilo que ele chamou de missão civilizadora dos bacharéis brasileiros . Assim como as antigas metrópoles coloniais -primeiro a ibérica e depois a britânica - e depois os Estados Unidos imaginavam alguma coisa como uma difusão da colonização ilustrada ou iluminista, a idéia de colonização - você tem primeiro evangelização, colonização, integração e assiin por diante, como se entendia antigamente - pautou a noção de civilização que as nossas elites intelectuais - que eram sobretudo bacharéis - sempre tiveram em relação a seu próprio povo: é necessário colonizá-lo nesse sentido, isto é, civilizá-lo para que ele possa ascender à condição de cidadania e assim por diante. O Luiz Felipe dá exemplos e.x1:raordh1ários. Ele põe em paralelo textos da ad.11inistração pombalina com textos da época do Geisel. O que dizia a administração pombalina quando eles enxotaram pela primeira vez os Jesuítas? "Ah, esses padres missionários que de maneira imprevidente, precipitada, irresponsável e leviana querem trazer essa população selvagem para os mistérios da igreja, do evangelho, da doutrina sem antes iniciá-los noutros rrtistérios como o da sociabilidade civil". A evangelização vem como uma espécie de ápice para entrar no corpo místico da igreja, da civilização '--

ocidental, mas era preciso primeiro civilizá-los no sentido civil. Esse motivo condutor atravessa toda a nossa elite intelectual administrativa que sempre se superpôs às oligarquias regionais divididas, à heterogeneidade do nosso mercado de traball10, que era uma economia bipolar - a força de traball1o se reproduzia na África, vinha de lá. Depois, a imigração de força de trabaiho, que nunca foi socialmente ou culturalmente homogênea, portanto era necessário integrá-la - para chegar à cidadania, a força de trabalho precisa fazer um longo percurso. Ele pega wn discurso do Geisel e nós vemos exatamente a mesma coisa. O Geisel diz, no fim da ditadura: "Cidadania política só depois que tiverem saúde, saneamento, alfabetização, consciência social, participação nisso e naquilo". Onde tinha a igreja, vem a cidadania; onde tinha a sociedade civil do antigo regime do ministro Pombal, tem essa espécie de desasnar bugre que têm as


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nossas elites. Você tem que pnme1w aprender a pôr calçado, vacmar-se, saber usar banheiro, .alfabetizar-se, agir de maneira racional e consciente- quando tiverem demonstrado tudo isso aí virão os santos olhos da igreja, no caso, a democracia liberal à maneira anglo-saxã e assim por diante. Para se ver a que ponto nós chegamos, isso parece uma coisa progressista em relação a hoje. É exatamente disso que eu estou lhes falando. Contrato coletivo de trabalho? Sindicato? O que é isso? Não tem mais. Mudou . Não há mais coisas compartilhadas. É essa retração que o nosso amigo Luiz Felipe começa a constatar pela primeira vez. E há uma continuidade colonial- o mais inacreditável é isso. Ele cita um texto do Joaquim Manuel de Macedo- o nosso romancista, muito simpático, muito sentimental, muito amigo das senhoras, das famílias. Ele escreveu um livro chamado vitimas

Algozes. Num determinado momento, uns 15 anos antes da Abolição, por ocasião da publicação da lei do ventre livre, que diz que daqui para a frente quem nascer poderá vir a ser cidadão brasileiro, ele diz: "Isso é meio inviável. Isso não tem solução. Eu acho - nós estamos caminhando na direção da Abolição, gradualmente - que nós devíamos pemlitir que eles, os africanos, voltassem para o mato". Está lá com todas as letras. Cidadão prestante do Império. " ... voltassem para o mato". Era disso que se tratava quando Nabuco entrou na campa..1ha abolicionista. "A Abolição não será nada - ela é estrutural, corrói a sociedade por inteiro como uma estrutura carcomida- se os ex-escravo não se tomar cidadão, não for integrado na sociedade brasileira. Isso porque - Nabuco sabia disso - a segunda revolução industrial já está aí e nós vamos perdê-la, se nós não integrarmos o resto da população a essa nova configuração mundial." Não deu outra. Com a Abolição, os escravos foram entregues à própria sorte. Então, você entregue à própria sorte, os negros, os africanos escravizados, os pobres, os desempregados incompetentes e assim por diante. E assin1 por diante. As nossas elites - do Euclides, do Nabuco - falavam sempre em "como nós poderíamos civilizar", isto é, nós éramos os nossos próprios colonizadores. Nós, a elite, todos aqui. Nós éramos os nossos próprios colonizadores e entendíamos de maneira esclarecida essa colonização, como difusão das luzes européias. Então, nós tínhamos que colonizar para civilizar a nossa própria população. Por isso que um grande crítico literário e de cinema, Paulo Emílio Salles Gomes, nos escritos dos anos 60 até os anos 70, ainda se referia à nossa classe dominante como ocupante. O ocupante no sentido colonial. Só que as pessoas não entendiam: ''Nós não somos mais urna Colônia. Por que chamar de ocupantes? Dizer que a Metrópole dos ocupantes é móvel, uma hora está em Lisboa, outra em Madri, em Londres, em Washington?" Digamos que era urna idéia ainda otimista do Paulo Emílio nos anos 60 e 70, porque o ocupante se ocupava dos ocupados, como ocupante, como e:x-pressão de wua Metrópole colonial. Ora, pela primeira vez, a idéia de ocupante do Paulo Emílio, que era uma espécie de demasia retórica, começa a fazer sentido. Só que o ocupante se desinteressou do território ocupado, território que quando muito é apenas uma plataforma comercial ou circuito auxiliar de valorização patrimonial do capital que gira pelo mundo. Porta..1to, somos um mercado emergente. De modo que esse capital do qual os nossos ocupantes atuais


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94 sao sócios menores não tem mais nenhum interesse civilizatório em formar tecido a volta dos seus . enclaves econômicos.

É isto que o Chico de Oliveira percebeu. Que hegemonia é essa que exclui ao invés de incluir? Hegemonia que ele chamou de crise da hegemonia americana - uma retomada fraudulenta da hegemonia americana. Vocês não percebem que estamos há 25 anos estagnados? É um crescimento medíocre em relação aos 30 anos passados. Foram desastres em cima de desastres no mlUldo inteiro, o que tem a ver com essa retirada, digamos, cultural, por assim dizer - portanto tudo se transforma em cultura -, dessa missão civilizadora do Ocidente e que se reflete nessa verdadeira secessão - como disse um critico, um outro autor nosso, José Luís Fiori, que também está publicado na coleção - da nossa elite que se rebelou e se descolou do território da sua ocupação. São ocupantes, portanto fazem parte de um sistema imperial, isto é, de um Estado internacionalizado. Negociam como é que vão tapar o buraco lá na Metrópole. E nós aqui ficamos torcendo e elege-se isso, elege-se aquilo, espera-se não sei mais o que.

É isso aí. Agora, nós podemos discutir.

José Jorge de Carvalho - Quet·ia cumprimentá-lo. Realmente um panorama maravilhosamente rico e detalhado, de uma lucidez que eu poucas vezes escutei. Gostaria que você incluísse nesse quadro, que já está de uma riqueza extraordinária, a questão militar. Num certo momento crucial do seu panorama, os Estados Unidos perdiam, de cet·ta maneira, para o Japão e para a Alemanha. Há uma recuperação nos anos 80 e nem o Japão, nem a Alemanha puderam ser opositores no campo militar. E o Reagan foi- você pode imaginar- a figura mais importante do século. Ele decidiu o século. A Rússia não pôde acompanhar a guerra nas estrelas. Como fica a questão militar? A idéia do Kurz de que os Estados Unidos são os maiores dos devedores, então todo mundo aposta que o dólar, etc ••. Sim, mas vai haver um momento em que o Japão como credor vai cobrar esse dinheiro dos Estados Unidos. Ou os Estados Unidos mandam as armas ou man.dant o Japão fazer o Harakiri - aquela equação que o Kurz faz. Então, como fica a equação atmas: os podetosos Estados Unidos versus a falta de atmas do Japão? Qual é o lugar que tem o poderio militar nesse quadro?

Eu quero lembrar que eu sou apenas um professor de filosofia , não sou estrategista de geopolítica. (Risos) A sua pergw1ta é perfeitamente pertinente e de fato é disso que se trata.

* No esquema do Arrighi - que eu estava apresentando - e de todo esse pessoal da teoria dos sistemas mundiais, que vem do Braudel, eles notam - não que eles raciocinem por analogia - sempre uma coisa análoga que é o seguinte: há ciclos sistêmicos de acumulação, que são comandados, articulados por um

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Estado hegemônico que ao mesmo tempo evita a àisjunção entre a competição entre as fimms e a entre . os Estados. Por isso, ele coordena tudo. A competição entre firmas sempre existiu, sempre foi intemacional e atravessa fronteiras. Portanto, você tem que ter wna hegemonia política que assegure o direito dos p roprietários de mercadorias através das fronteiras. Daí, civilizar a guerra no Antigo Regime e a Paz de Westphalia é isso. No momento da passagem de um ciclo para o outro, ela se dá sempre por uma disputa de hegemonia entre os Estados. Porque aí há 1.m1a dissociação entre a concorrência entre Estados e a concorrência entre empresas. Quando há essa disjunção, pode haver uma guerra. Então, sempre houve uma guerra. Por exemplo, a disputa entre a França e a Inglaterra pela hegemonia no fim da hegemonia holandesa. Ganlwu a Inglaterra. E aí começa o grande ciclo de acumulação dito britânico, vitoriano, concorrencial, liberal. Foi o capitalismo que o Marx conheceu. Num determinado ponto, começa a declinar a lucratividade e awnenta a competição entre as empresas. Aí, você tem wn declínio. No esquema schumpeteriano, também o progresso técnico se diflUlde. Há uma concorrência acirrada entre as empresas e há w11a disjunção, porque os Estados não conseguem mais coordenar concorrência e, portanto, você tem um declínio. E há uma disputa entre eles. O que eles descrevem é mais ou menos o seguinte: no fim do terceiro Kondratieff, quando ele começa a declinar, há uma disputa pela hegemonia e portanto uma concorrência interfirmas nãoarticulada entre Estados entre o modelo britânico, o neo-mercantilista alemão e o das co1 porações verticalizadas americanas. Ganha, do ponto de vista econômico, o das corporações verticalizadas an1ericanas, que vêm desde o século XIX. Mas a essa nova hegemonia econômica americana não correspondia nenhum poder militar ou político de articulação entre os vários Estados que estavam acirradamente disputando o poder e, portanto, o regime de acwnulação. Ora, nesse momento, eles observam uma regularidade. Essa jurisdição política de um espaço econômico chamado Estados Unidos começa a financiar a Inglaterra na sua àisputa com a Alemanha. Daí, a financeirização da riqueza. São necessárias duas guerras mundiais na disputa dessa mesma hegemonia . Há um período de concorrência exacerbada e de disjtmção entre o econômico e o político. São duas guerras mundiais - e quase o fim da sociabilidade moderna, humana em geral - para que finalmente os Estados Unidos, que venceram a guerra - e ao mesmo tempo financiaram a Inglaterra -, desponte como o novo espaço que vai hegemonizar e permitir a acumulação mundial. Toda a encrenca vem daí. Para eles há um outro pressuposto que é o seguinte: o capitalismo- é w11 teorema do \Veber- só existe com Estado nacional, porque sem Estado nós temos um império mundial e sem concorrência não há capitalismo. Nwn império munàial não tem. Nós entraríamos nwn outro sistema histórico. Por isso que sempre as guerras começam com as potências terrestres -que não são potências capitalistas, são territoriais -para constituir u.~.u império mül1àial, no caso da

Aleman.~.~a.

A Inglaterra renunciou a isso, articulou o sistema

de Estados, atendeu a todos. Os Estados Unidos, a mesma coisa depois da Segunda Guerra Mundial.


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Então, no esquema deles - não estou comprando esse peixe, estou dizendo que é assim porque eu puxei . esse fio que toma o meu quadro mais inteligível e vou até o fim - toda a encrenca - de maneira coloquial -, o drama, o desastre que nós estamos vivendo, foi o seguinte: na época do declínio da hegemonia americana, por razões estruturais, começou a financeirização da riqueza, o declínio da produtividade, o declínio da hegemonia política americana - começou a perder guerra, batalhas diplomáticas. Os Estados Unidos VIraram casa da mãe Joana:

degradação das cidades,

empobrecimento, inflação. Nesse momento, o Japão desafiava economicamente, estava organizando o espaço econômico do Sudeste Asiático, era potência ascendente, havia ganho a concorrência em termos organizacionais entre as finnas - era o toyotismo - e estavam suplantando os Estados Unidos. E ao mesmo tempo em que ele fazia isso, com a política de valorização do ien, ele passou a ser o fmanciador da guerra nas estrelas. Ele fmanciou a guerra, que existiu, só que foi fria. Mas União Soviética está destruída. Foi uma guerra, só que ela sendo fria, o Japão não se tomou potência militar. Toda a encrenca é essa. Os Estados Unidos revertem esse processo e arruínam o Japão, esperando a grande batalha econômica com a China, que é a fronteira da desestabiiização da Ásia.

Â

China tem ainda o

controle da sua moeda e da sua economia. Os outros foram para o brejo. Essa é a encrenca. O natural para eles seria que tivéssemos um outro Kondratieff, que seria do Sudeste Asiático, que puxaria novamente a economia em termos hegemônicos - todos cresceriam juntos e se acomodariam os vários interesses, inclusive os das classes subalternas. Como isso não aconteceu, houve novamente mna disjtmção entre os dois. Os Estados Unidos retomaram isso na marra. Ganharam a guerra fmanciados pelo Japão e retomaram tudo. E o Japão está estagnado há dez anos. Eles não sabem o que fazer. E nem podem fazer, porque eles têm 25% dos títulos da dívida americana. Se eles liquidam isso, o mundo vem abaixo. Isso não interessa ninguém. Os Estados Unidos contam com que o Japão não faça esse tipo de retaliação. Na verdade, a força das armas e do dinheiro se jlllltaram mais uma vez. Só que foi uma guerra fria. Não houve bomba atômica, mas houve um sistema que foi totalmente destruído, entregue à Máfia. Esse o impasse contemporâneo. E qualquer bom leitor de jornal vê que é uma rodada de destruição de mercados o que faz esse capital :fi.1anceiro volátil, que depois se refugia, se ancora nos títulos do tesouro dos Estados Unidos - o grande devedor mundial. Onde entram as am1as? Como não há mais hegemonia, há ditadura e coerção. Os Estados Unidos são polícia. Eles só ficam preocupados com as nações párias, bandidas, com quem tem arma nuclear. Eles vão lá, retaliam, conflagram tudo e voltam. Não tem mais nada de expansão de civilização, de sociedade, de democracia liberal representativa, de valores da ética protestante, do trabalho. Acabou isso. Acabou. Eles são uma civilização. A sociedade civil, diz o Gellner, é uma forma cult ural. Portanto, eles não vão impor isso ao mundo. Ela é superior e eles vão defendê-la. As relações com o resto da periferia bárbara são estritamente comerciais, como eram no tempo da primeira colonização: fazem linhas de comércio, instalam uma GM aqui, outra acolá e assim por diante.


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Estou vendendo o peixe dos meus autores publicados. Eu sou um modesto explicador de textos de filosofia clássica alemã e filosofia contemporânea.

Rita Carvalho - É uma pergunta autêntica, no sentido de que é reaimente sobre um tema com que eu trabalho e que não consigo completamente resolver. Existe um consenso entre aiguns setores de que os Estados Unidos estão exportando cidadania através da exportação da politização das identidades - a política das minorias, a política do reconhecimento. Isso, a principio, deveria contestar a sua afirmação de que não há mais exportação de civilização. Nós vemos um lado positivo nessa exportação de cidadania, em alguns aspectos. Mas, por exemplo, quando vem o Jesse Jackson ao Brasil, nós não o vemos como ativista negro que vem ensinar (como viu a senadüra Benedita, ajüelhandü-se e pedindü bênçãü - o que me doeu profundw-nente, pm·que nãü via que ele tinha que dar bênção a ela, talvez o contrário.), mas como embaixador, tentando trazer mais franchising, vendendo. Acho que um dos aspectos interessantes da sua crítica é também desmanchar a idéia dessa nova missão civilizatória e das políticas das minorias como importação de um pacote inteiro - que na verdade é uma expw1são do mercado. Apesar de escrever e achar que nós não podemos comprar esse pacote completo - tevista Raça e cia. -, não posso deixa•· de reconhecer que há um elemento civilizador também. Como você vê esse dilema, que é terrível, né? Ah, sim. Não tem dúvida. Também te agradeço pela pergunta. Eu também penso nessas coisas, é claro. Espero que a minha resposta seja autêntica, como a sua perg-lillta. Como eu estava muito aflito com o tempo - o Hermenegildo tinha me dado uma hora e eu falei por duas horas -, talvez eu não tenha me explicado por extenso. Vou voltar e explicar com mais calma, de maneira mais analítica, os tennos que eu estava empregando na argumentação - o que vai confirmar a sua dúvida, que eu partilho. Quando eu falei desse refluxo do ímpeto civilizador dos pa1ses centrais ocidentais em relação à periferia do capitalismo é claro que eu estava falando cun grano salis. Não me passa pela cabeça chamar de civilização o que os espanhóis fizeram no México ou no Peru. O problema é o seguinte: é que na ideologia, digamos, ocidental burguesa moderna existe uma espécie de dimensão de tmiversalidade possível ou virtual. E, portanto, ela é essencialmente assimilacionista. Ela integra. Tanto é assim que o socialismo, num certo sentido, é tributário do liberalismo. A hegemonia ideológica do ocidente é do liberalismo no sentido mais amplo, que implica desde cultura política até Romantismo literário - o individuo no sentido liberal do termo. Sendo assim, os socialistas no século XIX - por isso

é que começam a haver divergências e eu citei aqueles autores do início da era imperialista européia do fim do século passado -tomaram ao pé da letra a fraseologia ideológica burguesa a respeito de justiça, igualdade, liberdade e assim por diante dizendo o seguinte: não é que a justiça ou a liberdade ou a igualdade da cultura burg-uesa vencedora - que é uma espécie de geocultura de legitimação, como diz o Wallerstein- seja falsa- um teorema do socialismo do século XIX- em si mesma, ela é falsa na medida


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em que pretende já estar realizada, porque a favor da igualdade, da justiça, da liberdade nós também ·somos. Mas queremos realizá-las. É uma fulsa universalidade. Isso é a concepção intelectual da ideologia enquanto espírito objetivo, como diria o meu objeto de estudo, o Hegel. É uma ilusão que está na cabeça das pessoas, mas que a gente pode ajeitar. A crítica social é essa. Então, nós estamos no mesmo mainstream da sociedade burguesa, que é progressista- os marxistas diziam isso. Diziam que é uma etapa em relação ao Antigo Regime da qual a conclusão será o socialismo. Havia uma wüversalidade na ideologia burguesa nesses tennos intelectuais. E, portanto, essa falsa consciência ideológica, de certa maneira, foi o ingrediente decisivo na expansão do capitalismo nos séculos da colonização. Então, junto com o comércio vinha isso. E na falsa consciência dos colonizadores tinha isso - reformistas, iluministas, como no nosso caso brasileiro os pombalinos no fim do antigo sistema colonial brasileiro e por isso expulsaram os jesuítas. É justamente nessa crise de hegemonia que isso refluiu. É por isso que os socialistas, a esquerda parece estar falando sozinha e ser arcaica, porque ela continua fiel à antiga ideologia burguesa. E os burgueses, que foram para frente, dizem: "Vocês são jurássicos. Vocês são uns dinossauros. Nós é que somos a força dinâmica da história. Nós é que estamos empurrando isso para cima, com força . Essa história de direitos adquiridos, proteção social são formas bastardas das nossas antigas idéias sobre justiça, igualdade, liberdade. Isso acabou. Vamos ·~

pensar novas formas de sociabilidade compatíveis com o impulso tecnológico das forças produtivas e trololó, trololó." Isso desapareceu e ficou apenas o comércio. No sentido colonial, há linhas de comércio que são a estruturação em rede das grandes firmas transnacionais. São nós puramente mercantis. Neles não chega mais ideologia no sentido do panfleto do Stuart Mill - que perto do que acontece hoje é um luminar da civilização. Essas coisas não chegam mais. O que chega? Chega a mercadoria em estado bruto, que não é apenas o microchip, é também o Big Mac, a Coca-Cola, o vídeo-clipe e assim por diante. Isso chega. Isso gera mercado emergente. Mas sem o invólucro ideológico que envolvia a forma-mercadoria enquanto taL Então a ideologia não está mais no discurso, na consciência das pessoas. Ela está nos objetos, nas coisas. Então, é isso que interessa. Você abre um negócio na China e enfia a dout rina dos iouding fàthers dos Estados Unidos? Não, você enfia McDonald's, video-clipe, Nintendo, avião, usina e assim por diante. Ora, voltando ao caso da nossa periferia, essas mercadorias têm uma espécie de suplemento de alma, por assim dizer, um suplemént d'â.me, dessa ideologia encarnada que é o Big Mac, a televisão, a Net e assim por diante. Com essas mercadorias vêm uma forma de cultura- que vai negociar com outras - que é a americana. Que vai negociar com as culturas locais . No local, não há mais sociedade, Estado, direito, cidadania, sociedade civiL Há mercado - emergente, de preferência, porque consome mais. Financiado por eles. Depois, quando quebra, vê-se como renegocia-se em condições mais vantajosas para eles. Então, jm1to com o Big Mac, o Hollywood, toda a forma - é ali que está a ideologia. Ela não está mais em discurso. Não tem mais um Primeiro Ministro inglês do século XIX falando alguma


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coisa e um Machado de Assis aqui tentando decifrar o que ele está dizendo. Quem presta atenção no .que diz Clinton, Blair? Ninguém. São bonecos - eles verbalizam um sujeito-automático chamado capital. A idelogia está no objeto, está na coisa, na realidade, elas se confundem. A realidade virou U.i'Tia publicidade dela mesma e fala a favor dela mesma: "Sou isso que está aí, ó. Consuma. E como é bom". Essa civilização material é que funciona como ideologia e que se contrapõe e negocia com toàas as demais do mundo inteiro e que fornece matéria-prima para ser reciclada nesse mesmo processo industrial de produção de novas mercadorias, no caso culturais. Então, as identidades que aparecem que são identidades culturais construídas, algumas historicamente enraizadas - são construídas para negociarem num mercado em tomo dessas mesmas mercadorias. "Que tal um Big Mac afro-jamaicano? Que tal um Big Mac baiano? Que tal um Big Mac com sushi?" A idéia do ocupante, do descolamento e da secessão entre sociedade e economia - sociedade não existe mais, existe um mercado emergente que se conftmde com sociedade. Há, portanto, identidades cult urais e culturas que são vendidas, comercializadas, industrializaàas como um produto qualquer que não tem mais nenhuma base material. Não corresponde a nada, a nenhuma sociedade nacional que está se reproduzindo materialmente de maneira mais ou menos consistente e coerente. Então, pode-se perfeitan1ente pegar um Carlinhos Brown da vida e reexportar. Entra-se no circuito das redes. Então, há comércio entre as várias sociedades que se desmancham. Você começa a ter saudades da burguesia do século XIX da qual os socialistas eram inimigos fraternos, num certo sentido. Por isso que nós hoje somos jurássicos. Porque eles sucatearam a nossa matriz. Então, nós estamos sem o que falar. Falar em justiça, igualdade? Isso é coisa sentimental. Reivindicação moral. Talvez você entre na Comunidade Solidária, já que você está com a consciência tão pesada. Vai programar sanduíche, cadastrar para o Banco Mtmdial quantos sanduíches comeram, quantas cestas básicas .. . É isso. E, de certa maneira, eles incentivam os estudos culturais capazes de suscitar identidades que vão entrar nesse mercado em que tudo se negocia: a minha identidade, a sua, "eu sou afro", "eu sou gay", sou não sei mais o que, entra um Big Mac aqui, um vídeo-clipe acolá, fazemos o CD que vendemos lá, fotografamos sem-terra aqui e fazemos uma exposição iá e depois você vem pra cá, patrocinam isso e assim por diante. É um fluxo de marcas entre elas estão as identidades culturais. E os caras ficam satisfeitos porque fazem um CD deles e eles acham que são cidadãos. Cidadãos do que? Cidadãos do que?

Terceiro sujeito - Eu vou me permitir fazer uma pequena colocação antes de fazer a pergunta. Eu achei a exposição interessante, mas claro que numa exposição não se pode deixar de ser um pouco esquemático. Afinai, o tempo é limitado. Alguma coisa foi respondida já de uma certa inquietação em que eu fiquei nas respostas, ao contrário um pouco de na exposição. Mas ainda resta alguma inquietação. Que racionalidade é essa desse novo mundo, dessa nova ordem mundial? Como é que nos anos 70, ou antes, nos anos 40, Schumpeter acha que o comunismo vai ser vitorioso e aquela Comissão Trilaterai também tinha essa visão das dificuldades do mundo ocidentai. E eles também


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tinham a perspectiva de que o mundo ocidental estava numa situação de muita dificuldade. Eles . não anteviram de forma alguma a queda de 1989 do regime soviético - eies que eram grandes especialistas. Mas a fótmula deles, de cetto modo, está em andamento: pata diminuit tanto quanto possível a pressão das demandas, que o sistema estatal diminua a pat·ticipação política despolitizar, diminuir a democracia. No entanto, na sua exposição, embora eu ache que não foi essa a sua intenção, ficou parecendo que sempre a iniciativa está com a elite. Esta ora residente nas multinacionais, ota nos Estados nacionais, embota já bem depaupetada, destmída, desmoralizada, mas ainda joga um certo papei. Afinai de contas, as forças armadas são construídas por armas do complexo industrial militar, mas são comandadas por esse Estado, para não falar de uma série de outras instituições que ainda existem. Então, de todo o modo, não existe metcado sem Estado. Acho que Weber ainda está certo. Quem é que vai fazet cumprit os contratos? Que não exista vontade gerai, que não exista pacto social, mas algum arremedo dele ainda tem que existir, senão nós vamos marchar para Blade Runner muito rapidamente - pior talvez do que a situação do Apocalipse Now!. Porque aí, não vai ser uma coisa isolada. Então, é isso que eu não consigo ver com muita clateza. Se pot um lado essa hegemonia é falsa, está se repetindo em farsa, agora, como é que ao mesmo tempo as visões do socialismo, que eu acho que são caudatárias desse iluminismo, como elas ficam tão a depender da chancela desses valores que os liberais também levantavam, mas no discurso - eles não levavam a democtacia, a liberdade, a igualdade à prática, que eta o mote então do socialismo? Como é que agota, substituindo isso tudo por um mercado, parece eles estão com a iniciativa, mas ao mesmo tempo têm os pés tão sujos de barro assim. Como é que eles vão conseguir controlar esta mágica que parece um aprendiz de feiticeiro? Fez-se um mercado e não se sabe mais como controlá-lo. Ele pode destmir tudo em volta. Então é uma vitória, mas também é uma denota. Como é que os cdticos, que poderiam estar numa posição de muito mais fortaleza, estão nessa fraqueza? Só se existisse essa racionalidade maligna, esse demônio e isso eu acho que não é bem a sua concepção, não é? Eu fico muito contente. Você fez uma pequena exposição paralela com a qual eu concordo, num certo sentido. Mas vou tentar explicar a origem da sua perplexidade, até onde eu a entendi. Como o meu tema é hegemonia - hegemonia global e como ela se reflete na local, como uma espe11.a a outra, como a local é manifestação da global - eu fui obrigado a tratar em tempo i.1tegral na minha exposição, mesmo sendo esquemática e acelerada, do pólo dominante. Não podia tratar dos outros, dos hegemonizados. Os hegemonizados seria talvez o tema de uma segtmda parte de mais duas horas de exposição: como é que nesse momento a idéia de oposição vai renascer -tem que renascer, senão vamos desistir de tudo - e em que tem1os ela vai renascei. Então, a impressão que eu te dei de que sempre as iniciativas cabem a elites mundiais é meia-verdade. Ela só entra no foco, porque eu estava tratando da reprodução dessa hegemonia mtmdial. Como é que mun detenninado momento a posição do ponto de vista dito das classes subalternas entrou nesse enredo, talvez tenha ficado mais


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claro nas respostas, porque nós fomos num afluente dessa geocultura de legitimação que foi chamada . de liberalismo e que assegurou um lugar para conservadores e socialistas, imaginando alguma coisa como uma reforma racional permanente da sociedade assentada numa espécie de legitimidade popular excluídas duas coisas dessa hegemonia liberal: de um lado, a democracia, isto é, a participação crescente das classes perigosas no poder político e social e, de outro lado, a reação brutal que desmancha esse jogo e que aparece com o fascismo, com o nazismo. Por isso que eles se juntam todos e dizem: "Não, esses caras não podem. Esses acabam com tudo, explodem o planeta. Eles estão defmitivamente fora." Se a minha exposição fosse mais completa, eu poderia dizer o seguinte (por isso que essa crise também nos afeta, não estamos aqui de inocentes): desta hegemonia global -como no caso foi a americana e que hoje está sendo retomada de forma fraudulenta para usar os termos do Gramsci - essas forças anti-sistêmicas que vêm de baixo do sistema e que tentam rompê-lo fazem parte. Elas se compuseram com ele. Então, num determinado momento, quando a hegemonia americana - a verdadeira, a antiga - começa a desmoronar e a ser corroída, em todos os lugares havia participação no poder de tendências ou anti-sistêmicas ou verd ...

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... e o grande poder das centrais sindicais americanas . Nunca houve tanta luta de classes e tanta luta sindical nos Estados Unidos quanto nos anos 30 e no imediato pós-guerra. Eles chegaram lá- não para a conquista do poder central, que isso nunca esteve na estratégia do movimento trabalhista operário americano. Mas todos os seus i.iJ.teresses foram praticamente atendidos, num certo sentido. O poder social de uma central sindical americana é brutal. Então, num certo momento, quando houve essa crise de hegemonia, toda a velha esquerda estava envolvida na sinfonia . Quando começou a de 68 para cá, eles foram contestados igualmente. Por isso que nós nos encontramos também encalacrados. Justamente porque, nesse sistema mllildial, a estratégia dos movimentos anti-sistêmicos foi também a de tomada do poder central, mas num detenninado momento compartilhado. Houve un1 consenso keynesiano, um consenso fordista, se nós quisermos, entre capital e trabalho. De modo que quando veio uma vaga insurrecional de baixo, atingiu a todos. Nós podemos dizer que a outra elite foi mais rápida em se reestrutrar, ao passo que os seus sócios afu11.daram. Esse é o drama, num certo sentido. Isso posto, o máximo que eu posso dizer é que eu teria que contar tudo isso de um outro ponto de vista, daqueles que são objeto da hegemonia. Os que participaram num certo momento e que padeceram dessa hegemonia nos seus vários ciclos. Então, o que são esses movimentos sistêrrt.icos e o que significa essa possível ressurreição ou reconstrução do sentimento histórico de oposição, já que o antigo foi sócio dessa geocultura liberal que alimentou dois ciclos sistêmicos de acumulação, o britânico e o americano? Só que a nossa força é


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o nosso ponto fraco: nós não temos o ímpeto cínico que eles têm, porque eles estão por cima da camiça . .Nós não. Nós não podemos dizer: "Não, tudo isso passou, vamos procurar aquilo que deve corresponder socialmente a essa nova configuração mundial do capitalismo." Aí, estaremos fritos. Esse é o impasse.

Terceiro sujeito - Mas eles também estão fritos. Eles estão fritos, porque pode-se imaginar o seguinte: a hegemonia imperfeita é justamente aquilo que pode ser chamado de programa suicida da economia. Sendo imperfeita, sendo fraudulenta, sendo excludente, ela exclui algo que é ft.mdamental, inclusive a govemância, sem o quê, ela não vai para a frente. Então, há um divórcio e, portanto, uma autonomização do capital que provoca essa esquizofrenia: os caras estão vendo que isso vai para o abismo, mas ninguém cede wn ponto. Não cede um ponto, porque não pode ceder. Se ceder, é liquidado. E a ida ao abismo aparece como uma miragem. Nós ficamos associados à antiga luta de classes em que se negociavam direitos e este motor que organizava a economia mundial foi desativado. Ela enlouqueceu -não é que enlouqueceu. Ela não é tão louca assim, porque ela não toma água quente, nem rasga dinheiro, que sempre cai em bolsos certos. Mas os riscos sistêmicos estão aumentando. Quanto a isso, não há dúvida. Os mais pessiinistas dizem que eles só se reformam quando chegar uma hecatombe mundial, como foram as duas guerras, 29, nazismo e assim por diante. Mas a coisa é mais complicada, porque não tem mais 29, não tem mais colapso. Esse é o drama. Esse programa é suicida do ponto de vista social, do econômico ele não é. Ele fica nesse stop and go, em que não há nem colapso, crash global, nem desenvolvimento. Há uma mediocridade

generalizada e, portanto, instabilidade generalizada, incerteza generalizada, porque você não tem crescimento, não tem desenvolvimento, mas tampouco há um colapso global que destrua e reorganize tudo. Não há mais isso. Você só fica nisso. E nisso, só um está ganhando e eu acho que a Europa unificada vai ganhar um pouco. Então, o drama é esse, se é que se pode falar em drama. O que poderia se tomar movimentos anti-sistêmicos não apareceram e quando aparecem são cooptados por políticas de identidade - entram no reino da mercadoria. Não se sabe se essas forças anti-sistêmicas podem wn dia constituir uma estrutura social ou se vai naufragar no tribalismo. Se o modelo da luta sindical do século XXI não será a Bósnia. Se as renúncias fiscais, também no plano da força de trabalho, não se darão como luta armada entre tribos . GM contra Toyota disputam o Caribe. Pronto. Isso eu digo dos empregados, dos assalariados.


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