Enquadramento #3: Paulo Rocha

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P U BLICA ÇÃ O TRIM ES TRA L FEVEREIRO 2014 IS S N 2183-1734

Paulo Rocha

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Paulo Rocha 3


Paulo Rocha, 1977.

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Não há uma narrativa linear, não, nada disso. No cinema de Paulo Rocha, e muito claramente a partir do seu segundo (e maravilhoso) filme, Mudar de Vida, a narrativa quebra-se, desdobra-se, estilhaça-se, cria núcleos a que poderíamos chamar gânglios, nós apertados que não conseguimos deslindar, corpos compactos. E aqui, parte e volta, fantasmática, abre-se, fecha-se. Jorge Silva Melo

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Mudar de Vida, de Paulo Rocha, 1966.

Furadour

Rodagem de Mudar de Vida, de Paulo Rocha, 1966.


o, 2011 por se envolver com Albertina (Isabel Ruth), na esperança de uma possível redenção. Se Eu Fosse Ladrão... Roubava é outro drama centrado memórias familiares: nos anos vinte, um pequeno lavrador de S. Vicente vê o seu pai morrer com a peste que dizima o País; alguns anos mais tarde, sentindo-se enclausurado na pequena aldeia, decide rumar ao Brasil deixando as suas irmãs encarregues dos trabalhos da casa. A ideia da partida — fuga ou oportunidade de mudar de vida — é uma obsessão no cinema de Paulo Rocha: já estava presente em Os Verdes Anos, quando o protagonista Júlio (Rui Gomes) queria emigrar para o estrangeiro para recomeçar a sua vida ao lado da sua amada Ilda (Isabel Ruth); A Ilha dos Amores acompanha a errância existencial e fantasmática de Wenceslau de Moraes (Luís Miguel Cintra) pelo Extremo Oriente, para onde fugiu de Portugal nos fins do século XIX para buscar uma “arte de viver” que conciliasse o material e o espiritual. A ideia da partida e a memória familiar também seria o tema central do filme que pretendia rodar logo a seguir a Os Verdes Anos. Rio do Ouro era um drama que centrava a sua narrati-

Quarenta e cinco anos depois da rodagem de Mudar de Vida (1966), Paulo Rocha voltou ao Furadouro para rodar Se Eu Fosse Ladrão... Roubava (2011), aquela que seria a última obra do realizador, com estreia mundial em Locarno, alguns meses após a sua morte. E A viagem de Inverno, o primeiro argumento cinematográfico do jovem realizador, que nunca se concretizaria em filme, também se ambientava no Furadouro e prestava homenagem aos seus pais e às personagens, histórias e locais que conhecera na sua infância. A ligação do realizador àquela comunidade piscatória era uma herança paterna. O seu pai nascera ali perto e vários dos seus familiares ancestrais morreram também ali. As férias de infância familiarizaram-no com essa comunidade e com esse espaço que revisitaria em dois dos seus principais filmes. O primeiro foi Mudar de Vida, um drama de amores impossíveis separados pelos caprichos da vida: Adelino (Geraldo del Rey) regressa a casa depois de cumprir o serviço militar em África e reencontra a sua amada, Júlia (Maria Barroso), casada com o seu irmão; luta pela sobrevivência, física e anímica, mas as lesões trazidas da guerra impossibilitam-no de trabalhar na pesca ou na fábrica; pensa em emigrar, mas acabará

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Mudar de Vida, de Paulo Rocha, 1966.

va precisamente no fenómeno da emigração portuguesa: um grupo de amigos que atraiçoam uma amizade que parecia indestrutível. As dificuldades da vida levam-nos à emigração e a tragédia avoluma-se pela miséria e pelos instintos revelados, até à morte de quase todos. O filme não seria produzido na época, por falta de financiamento, mas trinta e cinco anos mais tarde o cineasta concluiria um mesmo filme com o mesmo título e uma trama semelhante: António (Lima Duarte), um emigrante “torna-viagem” que se dedica à pesca no Douro, é assassinado de forma sanguinária pela esposa Carolina (Isabel Ruth), crime movido por ciúmes infundados. É por demais evidente como as memórias familiares — no Furadouro e no Douro — e a experiência migratória do seu pai marcou a vida e a própria obra de Paulo Rocha. Em 2009, quando voltou ao Furadouro para iniciar mais uma rodagem, talvez Paulo Rocha não o tivesse concebido como a sua última

obra, mas o teor marcadamente auto-biográfico que o filme e as complicações que afectaram a saúde do realizador fizeram com que se tornasse gradualmente no seu “filme-testamento”. O final do filme — à semelhança do que aconteceu em Vai e Vem, de João César Monteiro (2003) — é mesmo marcado pela morte: dois vultos transportam um cadáver através das árvores, e uma voz sussurra algo como “não tenha medo”. Luís Miguel Oliveira reconhece que este filme revisita “a obra de Rocha como um só longo filme, harmonioso mesmo nos choques e nas contradições”. Para além da presença de Isabel Ruth, o rosto mais marcante em quatro dos seus filmes, esta obra final contém uma montagem de excertos que “vêm ligar e ligar-se, ligar-se uns aos outros e ligar a própria narrativa à restante obra de Rocha, ligando-a por sua vez, de maneira mais enigmática ou mais evidente, à questão biográfica.”

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9 Rodagem de Mudar de Vida, de Paulo Rocha, 1966.


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Rodagem de Os Verdes Anos, de Paulo Rocha, 1963.

BRAÇO DE


PRATA, 1962 Paulo Rocha mudou-se para Lisboa em 1955, para cursar Direito na Universidade de Lisboa. Permaneceria na capital até 1959 quando, sem concluir o curso, decidiu mudar de rumo. Mudou-se novamente, agora para Paris, para frequentar um curso de realização de cinema no IDHEC (Institut des Hautes Études Cinématographiques), onde conheceria o madeirense António da Cunha Telles. No fim do curso de dois anos e meio, estagiaria na rodagem do filme O Cabo de Guerra (Le caporal épinglé), de Jean Renoir, um dos seus mestres a quem dedicaria décadas mais tarde a sua longa-metragem A Raiz do Coração (2000). Quando voltaram de Paris, Rocha e Cunha Telles começaram a colaborar num argumento para o madeirense realizar. Diversas circunstâncias trocaram-lhes as voltas e acabariam a trabalhar juntos na produção d’Os Verdes Anos. O mote foi uma notícia que Rocha leu no jornal e que dizia respeito a um crime passional ocorrido ali mesmo nas Avenidas Novas, o território deles. Paulo Rocha vivia num apartamento no cruzamento da Av. dos Estados Unidos da América com a Av. de Roma, no mesmo prédio onde funcionava o Vá-Vá, um café importante para a juventude intelectual lisboeta que ali

animava uma tertúlia frequentada por outros cinéfilos como Alberto Seixas Santos, João César Monteiro ou António-Pedro Vasconcelos. Também integrou os meios cinéfilos e progressistas católicos que se reuniam em torno do Cineclube Católico e da revista O Tempo e o Modo. Marcadamente influenciado pela Nouvelle Vague francesa, Paulo Rocha procurava contrariar uma tendência no cinema português que privilegiava o argumento. Os Verdes Anos é um filme que valoriza mais a mise-en-scène, que a sobrepõe ao argumento: “A mesma história pode ser contada de duas maneiras: uma boa e outra má, e no entanto a história é exactamente igual. O eu sobre-valorizar a mise-en-scène é portanto uma questão de guerra contra a preguiça, contra a preguiça mental, e contra a preguiça moral. (...) Nos Verdes Anos tentei ir contra isso. O que mais me interessava era a relação entre o décor e a personagem, o tratamento da ‘matéria’ cinematográfica. Num plano, eram as linhas de força que lhe davam peso e importância.” A banda sonora do filme também foi outra novidade. Estava destinada a ser marcada pela música jazz, por ser a música da Nouvelle Vague, como aconteceria com Belarmino, mas o pro-

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Os Verdes Anos, de Paulo Rocha, 1963.

Muito se falou, à época, de resquícios neo-realistas ou prenúncios de um cinema social em Os Verdes Anos: os protagonistas são dois assalariados, as dificuldades sócio-económicas, o drama da emigração, entre outros. Paulo Rocha rejeitou esses rótulos e, de facto, apesar da presença desses elementos, o filme é formal e essencialmente moderno: a construção das personagens segue uma lógica muito subjectiva, a narrativa assume-se demasiado abstracta e existe um distanciamento consciente e propositado entre o indivíduo e o meio social circundante. O filme teve uma excelente recepção crítica internacional, ainda mais considerando-se que se tratava para uma obra produzida num país periférico e sem grande presença nos circuitos cinéfilos internacionais. Isabel Ruth recorda que Bernardo Bertolucci gostou de Os Verdes Anos e ficou tão impressionado ao ponto de a querer conhecer pessoalmente; o filme venceu o prémio para primeiras obras no Festival de Locarno e percorreu outros festivais internacionais de prestígios, merecendo palavras elogiosas. Esta recepção seria importante tanto para Paulo Rocha como para o próprio cinema português, que pas-

dutor Cunha Telles convenceu o jovem Rocha a assistir a uma actuação de Carlos Paredes, de quem apenas ouvira falar e de quem não conhecia a sua música: “Ele leu um tratamento com umas doze páginas e apareceu com uma cassete com os temas de Os Verdes Anos. Foi como um choque eléctrico, o principal das emoções do filme, aquele lado adolescente e desesperado estava muito melhor na música dele do que no nosso projecto.” Mas mais do que ficcionar sobre o drama do tal sapateiro que cometera o crime passional na sua rua, Paulo Rocha também queria falar da sua própria experiência com a cidade de Lisboa. Tal como fará Júlio em vários momentos d’Os Verdes Anos, Paulo Rocha também gostava de passear diariamente nos arrabaldes da cidade, nos descampados de Braço de Prata e dos Olivais, para se refugiar e isolar, para “imaginar histórias”. Os Verdes Anos é sobretudo um testemunho geracional da decadência e derrota que afligia a juventude portuguesa da sua época, um retrato da cidade de Lisboa claustrofóbica enquanto símbolo da decadência de um império outrora majestoso e que se encontra em estado de desagregação.

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Os Verdes Anos, de Paulo Rocha, 1963.

sou a olhar a internacionalização como uma hipótese possível de afirmação e reconhecimento. Em 2000, Paulo Rocha voltaria a rodar a cidade de Lisboa como personagem principal. A Raiz do Coração é uma fábula urbana, o filme, que decorre em 2010, mostra uma cidade futurista, mágica e colorida, virada para o futuro mas ao mesmo tempo enraizada no passado. A trama apresenta uma sátira sobre o poder: durante as festas de Santo António, um grupo de travestis trajados de noivas virginais desce à rua para participar nas marchas da cidade, parodiando a moral e os bons costumes; por obra do santo casamenteiro, Catão (Luís Miguel Cintra), um político nacionalista, carismático e sem escrúpulos, apaixona-se por Sílvia (Joana Bárcia), um jovem travesti de tendência mística que mudou de sexo na infância; no final, uma cassete comprometedora de Catão com Sílvia irá destruir a prometedora carreira do político. A visão de Lisboa, quase quarenta anos depois de Os Verdes Anos, é marcadamente simbólica e alegórica, sarcástica e corrosiva, quase à moda de Gil Vicente.

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A Pousada das Chagas, de Paulo Rocha, 1971.

óBIDoS, 1971

Encomenda para a Fundação Calouste Gulbenkian, A Pousada das Chagas (1971) é uma pequena curta-metragem de apenas 20 minutos mas com enorme importância na carreira do cineasta. Apesar da encomenda ser para realizar um filme promocional da colecção de arte do museu de arte sacra de Óbidos, Rocha constrói um complexo processo de reflexão sobre as fronteiras do documentário e da ficção que constituiria o início de um processo de mudança na cinematografia do cineasta. Rocha, confessando alguma desilusão e descrença no cinema clássico após a realização de Mudar de Vida, iniciou as suas experiências com Sever do Vouga... Uma Experiência (1970), um projecto que contou com a colaboração de Fernando Lopes e Manoel de Oliveira. Encomenda da Shell Portuguesa, o documentário deveria retratar uma cooperativa agrícola local, mas Rocha interessa-se mais por uma abordagem etnográfica e antropológica sobre o quotidiano, os gestos e as palavras dos locais. Mas A Pousada das Chagas é uma experiência mais radical: “Enchi os bolsos com bocados de papel — citações de Rimbaud, Légende Dorée, Camões, Lao-Tse — e fui para Óbidos filmar conjuntamente com Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo, pessoas de talento quase insolente. O que emergiu foi

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ção com Paulo Rocha: foi seu actor em A Ilha dos Amores e co-argumentista de O Desejado; convidou Rocha para ser figurante na sua primeira obra pra cinema, Passagem ou a Meio Caminho (1980). Da Cornucópia, Rocha ainda contaria com a colaboração de Cristina Reis (cenografia e guarda-roupa em A Ilha dos Amores) e de Paulo Brandão (compositor em A Ilha dos Amores, A Ilha de Moraes e Máscara de Aço Contra Abismo Azul). Esta presença de pessoas ligadas à Cornucópia marca também uma aproximação do cinema de Rocha às formas de representação teatral que seria mais visível a partir d’A Pousada das Chagas e nos filmes “japoneses”. De certa forma, apesar de algumas experiências formais tentadas nos filmes da sua fase japonesa, Paulo Rocha retomaria as experiências mais radicais na sua cinematografia com Máscara de Aço contra Abismo Azul (1989). Complexo e falso documentário sobre a obra do artista modernista Amadeo de Souza Cardoso (1887-1918), Rocha prossegue as suas experiência de fusão (ou de “colagem”) envolvendo diversos registos artísticos, nomeadamente a pintura, a poesia e a performance. Rocha explora os diversos materiais artísticos e pessoais (cartas, diários, fotografias) de Amadeo — um pouco à semelhança do que António Reis fizera em Jaime (1974) — mas cruza-os com momentos ficcionais (“documentários culturais faz-me pavor, eu gosto é de actores...”), livremente inspirados em alguns desses materiais, num trabalho interessante de reterritorialização da obra modernista de Amadeo de Souza Cardoso, estabelecendo novas leituras e relações entre o homem, a obra e o meio. Encomenda da RTP, o filme de Paulo Rocha é ainda mais surpreendente por se tratar de uma produção supostamente destinada para televisão, quando o seu lugar natural mais parecia ser uma galeria de arte. O cineasta subverte as formas da narrativa televisiva convencional — recusa liminarmente a “tentação didáctica”: “sem psicologia nem análise histórica, sem fio condutor, vital e irreverente como o foram futuristas e dadaístas” — e propõe uma linguagem para esse intermediada pelo cinema e pelas artes plásticas, procurando uma verdadeira polifonia: “E eu tentei, no estilo, filmar cada série de quadros com o equivalente na mise-en-scène, e na cor, e na banda sonora, ao próprio quadro.”

um ‘drama sacro’ modernista, uma colagem de vozes, textos, objectos, espaços, pulsações. Corpos que ardem, que sofrem, que irradiam energia”. A desilusão com o cinema narrativo clássico fez de A Pousadas das Chagas uma complexa experiência em termos formais: Rocha optou por fundir (o termo que ele usou foi “processo de colagem”) inúmeras referências artísticas e culturais que interessavam ao cineasta e que ele também explorava em termos visuais e performativos. Uma das particularidades do filme é a colaboração de Jorge Peixinho na banda sonora, também contribuindo como elemento importante nas “colagens” que o filme experimenta. Depois da guitarra virtuosa de Carlos Paredes, Paulo Rocha assegurou a colaboração do compositor vanguardista que, com o seu percurso experimental, também oferecia novas formas sonoras para o seu cinema. O cineasta confessa mesmo que Stockhausen e as suas “colagens” foram umas das principais influências na concepção do projecto. Este filme marcaria também o primeiro encontro entre Paulo Rocha e Luís Miguel Cintra, um actor que se tornaria uma referência máxima do cinema de Manoel de Oliveira, João César Monteiro e do próprio Paulo Rocha. Ao longo de quatro décadas, Cintra protagonizou cinco filmes do cineasta portuense, interpretando diversas personagens memoráveis: Wenceslau de Moraes em A Ilha dos Amores; o maquiavélico João de O Desejado; quatro personagens em A Raíz do Coração, entre os quais o ambicioso Catão; e Vitalino, uma espécie de alter-ego do pai do próprio cineasta em Se Eu Fosse Ladrão... Roubava. Figura tutelar do grupo independente Teatro da Cornucópia, que fundaria com Jorge Silva Melo em 1973, Luís Miguel Cintra era, à data da rodagem d’A Pousada das Chagas, um jovem actor de teatro com reduzida experiência cinematográfica (contava apenas com a presença apenas na curta Quem espera por sapatos de defunto morre descalço (1970), realizada por João César Monteiro). Apesar dos seus 22 anos de idade, Cintra acumulava já uma interessante experiência em teatro, desde dos tempos dos grupos de teatro universitário até à frequência da Bristol Old Vic Theatre School, uma prestigiada escola britânica de formação teatral. Quanto a Jorge Silva Melo, o outro fundador da Cornucópia, participou no filme como assistente de realização. E tal como Cintra, Silva Melo também manteria uma prolífica colabora-

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Rodagem de A Ilha dos Amores, de Paulo Rocha, 1982.

Tokus

Paulo Rocha, Tokushima, 1982.


Em 1996, em resposta a uma carta-branca da Cinemateca Portuguesa, Paulo Rocha escolheu 11 filmes de outros realizadores para acompanhar uma integral dedicada à sua obra. Dessas 11 escolhas, quatro eram de produção japonesa: Elegia de Osaka (1936), de Kenji Mizoguchi; A Encruzilhada (1928), de Teinosuke Kinugasa; O Outono da Família Khoyagawa (1961), de Yasujiro Ozu; e A História do Japão contada por uma Dona de Bar (1970), de Shohei Imamura. Este número é revelador da importância que o próprio cineastas reconhecia ao cinema japonês no conjunto da sua obra. A obsessão de Paulo Rocha pela cultura japonesa terá começado em Paris, enquanto frequentava o IDHEC, quando começou a descobrir o cinema, o teatro, a pintura e as gravuras chinesas e japonesas e até começou a aprender a falar japonês. Antes disso, em 1955, enquanto espectador, ficara muito impressionado com o filme Amores de Samurai (Jigokumon, 1953), de Teinosuke Kinugasa. Esteticamente, a influência do cinema de Kenji Mizoguchi (1898-1956) é visível sobretudo em Mudar de Vida (1966). Isabel Ruth lembra que, durante as pausas na rodagem desse filme, Paulo Rocha contava imensas histórias sobre o Japão. Mas já Os Verdes Anos, segundo o próprio, tinha enquadramentos muito influenciados pela gravura japonesa. A primeira vez que visitou o Japão foi em 1966, acompanhado por Takano Etsuko, uma amiga que também frequentara o IDHEC e com quem partilhava um projecto de fazer um filme sobre a história da introdução de armas de fogo no Japão pelos portugueses, inspirado num episódio da História Trágico-Marítima de Fernão Mendes Pinto intitulado Naufrágio de Sepúlveda. O filme acabaria por não ser feito, mas Rocha aproveitou a oportunidade para conhecer a aldeia onde Wenceslau de Moraes viveu os seus últimos anos e onde faleceria. Em 1975, em pleno fulgor revolucionário, Paulo Rocha muda-se para o Japão, onde permaneceria até 1983. Em terra nipó-

shima, 1981

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nicas, Rocha desempenharia as unções de Adido Cultural da Embaixada Portuguesa em Tóquio e prosseguiria a sua carreira cinematográfica com a produção de A Ilha dos Amores (1982) e A Ilha de Moraes (1984). A Ilha dos Amores é, muito provavelmente, o filme da vida de Paulo Rocha. Este projecto megalómano surgiu em 1969 e só estrearia, durante o importante Festival de Cannes, em 1982. A obsessão pelo projecto ocupou-lhe 13 anos da vida e foi a principal razão para a sua mudança de residência para o Japão. Mesmo depois de concluído, só teria estreia comercial nas salas portuguesas em 1991. O filme ocupava-se do estudo da vida e da obra do escritor português Wenceslau de Moraes (1854-1929) e da sua relação com o Extremo Oriente: viveu décadas em Macau e no Japão, manteve três relações amorosas com a esposa chinesa e as amantes japonesas e aproximou as literaturas portuguesa e japonesa como ninguém o fizera antes. O fascínio pelo Oriente já havia marcado as obras literárias de Fernão Mendes Pinto (1509-83), Eça de Queiroz (1845-1900) e Camilo Peçanha (1867-1926), e tal como Moraes, Paulo Rocha também se deixou enfeitiçar pelo exotismo oriental. A experiência do filme foi tão intensa e marcante na carreira de Rocha que motivaria um novo projecto: A Ilha de Moraes é um filme em forma de documentário que mistura uma biografia de Wenceslau de Moraes com uma materiais do seu filme anterior. Mais do uma sequela, A Ilha de Moraes funciona como uma espécie de prequela de A Ilha dos Amores, reve-

lando e desenvolvendo ideias e formas que foram usadas na longa-metragem ficcional anterior. Mesmo depois de regressar à Europa, a influência da cultura japonesa manteve-se visível em diversos filmes de Paulo Rocha realizados posteriormente: O Desejado ou as Montanhas da Lua (1987) é uma adaptação para o Ocidente do Romance de Genji, de Shikobu Murasaki, o maior dos clássicos japoneses escrito entre 1005 e 1014, uma história misteriosa de um príncipe que seduz irresistivelmente toda a gente, mulheres e inimigos sem fazer esforço; Portugaru San — O Sr. Portugal em Tokushima (1993) é um registo videográfico do espectáculo de teatro homónimo encenado por Silvana Pereira a partir de uma colagem de textos de Wenceslau de Moraes; e o documentário para televisão Shohei Imamura — Le libre penseur (1995), que retrata a vida e obra do célebre cineasta japonês. Segundo o próprio Rocha, a vontade de filmar o Romance de Genji surgiu-lhe em Paris enquanto frequentava o IDHEC. Mas após quase três décadas de espera, O Desejado também há muitas influências da obra fílmica entretanto produzida: “O personagem da Antónia é o da Isabel Ruth nos Verdes e no Mudar, e a Ko-Haru da Ilha, a jovem revoltada e frágil. O tom melodramático, o pulsional, vem do Mudar. Da Ilha vem o Oriente, o operático, a sensualidade e os planos-sequência.” As culturas orientais — a escrita e a visual, particularmente a chinesa e a japonesa — marcaram visivelmente a obra de Paulo Rocha. No entanto, o cineasta portuense não se limitou a reproduzir essas formas escritas e visuais, propondo fusões

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Rodagem de A Ilha de Moraes, de Paulo Rocha, 1984.

O Desejado, de Paulo Rocha, 1987.

e relações dessas matrizes culturais com as suas, a ocidental e a portuguesa. Se o lado literário é mais visível, o visual também não é descurado, com Rocha a escolher trabalhar com directores de fotografia japoneses em três dos seus filmes: Kôzô Okazaki em A Ilha dos Amores e O Desejado; Yoshihiro Kono e Ryoichi Sakai em A Ilha de Moraes. Rocha acreditava que os japoneses tem uma capacidade de concentração inigualável e que vários dos planos-sequência d’A Ilha dos Amores seriam impossíveis de rodar por equipas técnicas europeias. A Ilha dos Amores resulta do cruzamento de várias obras das literaturas oriental e ocidental: o épico Nove Canções, escrito no Século IV a.C. pelo poeta chinês Chu Yuan; os Cantos do norte-americano Ezra Pound, também muito influenciado pela poesia chinesa; o poema épico Os Lusíadas, de Luís de Camões; e Bon-Odori de Tokushima, de Wenceslau de Moraes.

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Paulo Rocha conheceu Glauber Rocha em Cannes (1964) e voltariam a encontrar-se em Acapulco (1965) e Montreal (1967). Tal como conheceu Glauber, Paulo Rocha conhecera dezenas de outros jovens cineastas de vários pontos do mundo, mas com o baiano houve uma atração recíproca. Os constantes encontros aproximam-nos, mas o encontro em Acapulco foi, decisivamente, o mais intenso: “A vinda do Geraldo del Rey para fazer o papel de Adelino vinha da minha amizade com o Glauber Rocha, o chefe de fila do cinema novo brasileiro. Tínhamos muitas preocupações comuns, e volta e meia encontrávamo-nos, ora em Paris, ora em festivais. Eu estava em Acapulco com os Verdes quando lá apareceu como produtor dos Fuzis. Ficou no meu quarto, discutíamos a noite inteira.” Paulo Rocha gostara de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) por causa da semelhança entre o final do filme e o teatro japonês clássico, mas também o lado literário do filme e a sua beleza e intensidade visual, que Paulo Rocha achava próxima de Acto da Primavera (1962) de Manoel de Oliveira. Mas o jovem cineasta português apreciava sobre tudo o lirismo anti-racional que impunha às suas representações populares e do mundo rural de onde era originário. Paulo Rocha ficara fascinado e identificava-se com muitas dessas ideias.

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Paulo Rocha e Geraldo del Rey, Furadouro, 1966.

Acapulco, 1965


Paulo Rocha e Glauber Rocha, Acapulco, 1965.

Em Acapulco passaram dez dias juntos e acabaram a partilhar o quarto, enquanto Glauber estava a preparar Terra em Transe e partilhava todo o tipo de pensamento com Paulo Rocha. Mudar de Vida iria ser influenciado por essas conversas, desde logo com a escolha de Geraldo del Rey, o actor glauberiano que encarnava toda a violência e visualidade do nordeste brasileiro, para protagonista da história de amores trágicos no meio dos pescadores do Furadouro. Antes de Mudar de Vida, Paulo Rocha pensara em rodar um filme na Bahia, aproveitando os contactos de Glauber e as condições de produção mais favoráveis do que as que tinha na Europa. Glauber seria o seu produtor — “Queria que o Cinema Novo brasileiro fosse fraterno, expansionista” — se o projecto tivesse avançado. Devido ao seu “exílio” no Japão, Paulo Rocha voltaria a ver Glauber apenas quando este se “auto-exilou” em Portugal, no início de 1981. Ainda pensaram trabalhar em conjunto mas, apesar dos vários projectos de co-produção pensados com vários cineastas portugueses (Fernando Lopes, Cunha Telles, Fonseca e Costa e o próprio Paulo Rocha), o agravamento do estado de saúde e a morte precoce de Glauber não permitiu conhecer nenhum desses potenciais projectos.

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Manoel de Oliveira e Paulo Rocha, Porto, 1993.

Manoel de Oliveira e Paulo Rocha, Porto, 1956.

Porto, 1993


Suma Filmes seria o produtora executiva de Lisboa Cultural (1983). Como reconhecem vários dos seus colegas de geração, Paulo Rocha sempre gostou de se imaginar como um herdeiro de Manoel de Oliveira, não só pelo facto de terem nascido no seio da burguesia portuense mas também pela relação que ambos mantinham com a cultura literária portuguesa. Em 1972, num célebre texto a propósito do filme de Manoel de Oliveira O Passado e o Presente, João César Monteiro incluía-se, com Paulo Rocha e Manoel de Oliveira, na “pequena minoria de cineastas católicos (...) para quem o acto de filmar implica a consciência de uma transgressão”. Paulo Rocha começara a compreender o cinema de Oliveira através do dinamarquês Carl Th. Dreyer, outro ponto em comum com estes três cineastas católicos portugueses, e do seu cinema austero e ascético. O Rio do Ouro (1998) é, seguramente, o filme mais oliveirinao da cinematografia de Paulo Rocha, sem que seja uma mera cópia. Desde logo o Douro, território de Oliveira e de Agustina Bessa-Luís, mas também o lado irremediavelmente trágico das relações humanas. Mas Rocha é mais exuberante, mais barroco, mais eufórico, mais delirante, mais melodramático e leva o seu cinema aos extremos. Apesar de tudo, a figura tutelar de Oliveira está sempre presente. Como sugere em Oliveira, o Aquitecto, Paulo Rocha acredita que o Porto teve influência na obra de vários cineastas, nomeadamnte Manoel de Oliveira, António Reis e ele próprio: “O Porto, apesar de ser mais pequeno, mais provinciano, industrial e comercial, é a cidade por onde entrarma no pais as diversas modernidades económicas, culturais e políticas.” E se até foi no Porto que o cinema português nasceu e cresceu, pela acção pioneira de Aurélio Paz dos Reis (1862-1931) e pela megalomania da Invicta Film (1918-24), o Estado Novo tratou de centralizar a produção cinematográfica em Lisboa e obrigou diversos portuenses — Manoel de Oliveira, Manuel Guimarães, Paulo Rocha, António Reis, entre outros — a prosseguir as suas carreiras na capital portuguesa. Ainda assim, Rocha acreditava, e assumia orgulhosamente, essa matriz cultural e artística portuense.

Paulo Rocha conheceu Manoel de Oliveira no Porto, cidade natal de ambos, muito tempo antes de pensar sequer tornar-se realizador, apesar de ser apaixonado pelo cinema enquanto espectador e imaginar constantemente filmes que gostaria de fazer. Em 1993, quando o canal ARTE o desafiou para fazer um documentário sobre o Oliveira não hesitou: “Tinha contas antigas a ajustar comigo e com ele, ocasião para procurar as raízes portuenses do nosso cinema, mal estimadas cá e lá.” O filme chamar-se-ia Oliveira, o Arquitecto (1993) e procurava estabelecer relações entre filmes — feitos e por fazer — de Oliveira, a sua biografia e o seu quotidiano, mas também o Porto e o Douro. Não se trata propriamente de uma biografia convencional, procurando pontos de contacto entre a obra, o homem e a sua época, ainda que esteja longe do exercício feito a propósito de Amadeo de Souza Cardoso, mas há imensos elementos quase psicanalíticos (a sequência na adega entre Leonor Silveira e a esposa de Manoel de Oliveira, por exemplo) que permitem leituras eminentemente não-verbais e subliminares. Mas a colaboração entre os dois cineastas portuenses já tinha um histórico considerável. Paulo Rocha está creditado como assistente de realização em O Pão (1959) e A Caça (1964) e foi o responsável pela sequência final apocalíptica de Acto da Primavera (1963), composta por imagens de arquivo que Rocha colou a partir de jornais de actualidades. O projecto Rio do Ouro, que deveria ter sido o seu segundo filme mas , foi pensado como uma espécie de sequela de um filme de Oliveira: “Imagine-se que os miúdos de Aniki-Bóbó cresciam e chegavam aos 25 anos sempre amigos. Trabalhavam e tinham uma vida difícil. (...) Será um filme violento, duro, que, aparentemente, acabará mal. (...) Do lado de cá será uma homenagem aos lugares de Manoel de Oliveira, (o Rio Douro — a amizade).” Em 1970, seria a vez de Oliveira secundar Rocha. Na curta-metragem Sever do Vouga... Uma Experiência (1970), realizada por Paulo Rocha, Manoel de Oliveira surge creditado como “supervisor”. Na década de 80, as relações de colaboração intensificar-se-iam: Rocha faria pequenas participações como actor e figurante em Francisca (1980) e O Sapato de Cetim (1985) e a sua produtora

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Rio do Ouro, de Paulo Rocha, 1998.


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Os Verdes Anos, de Paulo Rocha, 1963.


Corte de Cabelo, de Joaquim Sapinho, 1995.

Lis

26 Os Verdes Anos, de Paulo Rocha, 1963.


boa, 1988 mim e da minha actividade e logo se deslocou a Leiria. Em 1968, foi ele que me falou de Vilarinho: Vilarinho das Furnas, vá filmar aquilo que é uma coisa para o seu género. Parti no dia seguinte...” Nos anos 80, depois de regressar do Japão, Paulo Rocha reocupou o seu lugar de professor na Escola Superior de Cinema de Lisboa, uma instituição que ajudou a fundar e a definir as linhas programáticas — apesar de acreditar que o cinema não se poderia ensinar em escolas. Com Alberto Seixas Santos e António Reis, Paulo Rocha integra um triunvirato que influenciou sucessivas gerações de aspirantes a cineastas que passaram por aquela instituição pública de ensino. Muitos, como Manuel Mozos, Daniel Del-Negro, Joaquim Pinto ou Luís Alvarães, colaborariam nos seus filmes em diversas funções. Ao longo da sua carreira, Paulo Rocha levava em consideração os contributos dos seus colaboradores, quer fossem técnicos ou actores: “O filme é uma espécie de mesa onde toda a gente traz aquilo de que for capaz e onde depois fica o melhor. Não tenho qualquer ciúmes neste campo. Há muitas boas de montagem nos Verdes Anos que vieram dos jovens cineastas portugueses Fernando Lopes e Fonseca e Costa. Há até ideias do Manoel de Oliveira, não na montagem, na mise-en-scène, ideias de que ele evidentemente jás e esqueceu. (...) Eu aceitei tudo de toda a gente. Fico até muito contente que as pes-

Meses após a conclusão de O Desejado, Paulo Rocha decidiu retomar Naufrágio de Sepúlveda, um velho projecto nunca concretizado e que remontava a 1966. Para o ajudar a actualizar o projecto, Rocha contou com a colaboração de Joaquim Sapinho, um jovem com vinte e poucos anos que fora seu aluno na Escola Superior de Cinema. Trabalharam juntos cerca de três anos no projecto, inclusive em repérages na África do Sul e no Golfo Pérsico, mas o filme nunca se concretizaria por falta de financiamento. No auge da sua carreira internacional — O Desejado tinha sido nomeado ao Leão de Ouro em Veneza e A Ilha dos Amores tinha merecido igual honra em Cannes poucos anos antes — , Paulo Rocha não hesitou em envolver-se num dos mais ambiciosos projectos da sua carreira com um ex-aluno sem experiência significativa em cinema. Mas para além de Joaquim Sapinho, muitos outros jovens aspirantes beneficiaram da confiança do veterano Paulo Rocha. Décadas antes, Paulo Rocha já tinha sido determinantes no reconhecimento de novos valores para o cinema português: António Campos e António Reis. António Reis foi seu colaborador em Mudar de Vida e seria ajudado por Rocha na aproximação ao Centro Português de Cinema e à produção da sua primeira curta-metragem (Jaime, 1974). Quanto a António Campos, o cineasta amador de Leiria, também beneficiou da curiosidade e dos incentivos do portuense: “Falaram-lhe de

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a produtora de Paulo Rocha — Suma Filmes — começou também a apostar em filmes de outros realizadores: Xavier (1992), de Manuel Mozos; O Guardador de Rebanhos (1999) e Querença (2004), ambos de Edgar Feldman; A Piscina (2004) e A Verdade Inventada (2008), de Iana Viana e João Viana; A Conquista de Faro (2005), de Rita Azevedo Gomes. Para além destes nomes, nos últimos anos também ajudou a lançar a carreira de duas promissoras jovens realizadoras portuguesas: Cláudia Tomaz foi co-argumentista e co-editora de O Rio do Ouro (1998) e directora de fotografia do vídeo Camões — Tanta Guerra, Tanto Engano (1998); Raquel Freire foi sua assistente de realização em O Rio do Ouro (1998), foi co-argumentista em A Raiz do Coração (2000) e Rocha foi seu figurante em Rasganço (2001). A par de Fernando Lopes e João César Monteiro, Paulo Rocha é um dos melhores exemplos da rede de genealogias, filiações e afinidades no cinema português desde os anos 60 até à actualidade. De forma mais ou menos consciente ou visível, existem ausências e presenças – linhas temáticas, referências estéticas, métodos produtivos – que se vão reproduzindo ou replicando no cinema português de geração em geração. Sobre a influência do veterano cineasta nas gerações mais jovens, Raquel Freire não tem dúvidas: “Todos os filmes pós-Paulo Rocha são uma repetição d’ Os Verdes Anos. Os filmes do Sapinho, da Teresa Villaverde... São sempre sobre um jovem cheio de sonhos confrontado pelo sistema. São sempre um retrato social e político do país a partir das personagens, das suas histórias.”

soas achem uma ideia minha suficientemente interessante para fazerem um pequeno esforço para a melhorar. Fico extremamente feliz quando alguém pensa que esse esforço vale a pena.” Manuel Mozos, que foi seu aluno na Escola, assistente de edição em O Desejado, e editor em Máscara de Aço contra Abismo Azul, actor em A Raiz do Coração, sublinha precisamente sobre a importância do antigo professor na sua carreira: “Mas o que mais me marcou foi algo já fora da escola — a minha experiência de montador no Máscara de Aço contra Abismo Azul (1989), que fica como uma das coisas que me deu mais prazer. Julgo que é quase incontornável para quem privou com ele que ele seja uma das nossas grandes referências.” João Pedro Rodrigues também foi seu aluno e também se sentiu influenciado pela obra cinematográfica do cineasta portuense: “O cinema de Paulo Rocha fala de coisas que estão perto e eu sinto isso no meu trabalho. Filmou aqueles lugares entre o campo e a cidade. Quando começou, fez cinema moderno, os filmes falam de nós, de estar perto do que nos é próximo, das nossas emoções – e isso foi o que o Paulo Rocha me deixou. E depois virei-me para o Oriente [a curta China China, de 2007, a recente longa A Última Vez Que Vi Macau, co-realizada em 2012 com João Rui Guerra da Mata] e ele obviamente tinha-o feito. Deu-me a conhecer o Yasujiro Ozu, Kenji Mizoguchi, Shohei Imamura. Sinto como se as histórias que eu tinha para contar em Lisboa se tivessem esgotado e a abertura ao Oriente permitiu-me continuar e acho que o Paulo Rocha também sentiu isso.” Nas últimas décadas, para além dos seus próprios filmes,

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Os Verdes Anos, de Paulo Rocha, 1963. Arena, de João Salaviza, 2009.

Todos os filmes é manifesto exagero, mas pelo valor simbólico desse filme — por ter materializado uma mudança estética na história do cinema português —, não é difícil encontrar vários filmes no cinema português das décadas seguintes que respiram o mesmo ar d’Os Verdes Anos, citando-lhe situações, personagens ou cenas em concreto. Começando pelos exemplos que Raquel Freire cita, não é difícil identificar, no filme Corte de Cabelo (1995) de Joaquim Sapinho, a relação neurótica de Rita (Carla Bolito) e Paulo (Marco Delgado) como uma espécie de sequela do que poderia ser a vida de Júlio (Rui Gomes) e Ilda (Isabel Ruth) noutro tempo e noutras circunstâncias. Tal como Os Verdes Anos, a primeira obra de Sapinho é um retrato geracional da juventude lisboeta em processo de mudança social e política. Outro exemplo é Pedro Costa. Para além das influências do cinema de António Reis, de John Ford, de Jacques Tourneur e do film-noir visíveis em O Sangue (1989), a primeira longa-metragem de Pedro Costa, é também clara a presença do filme que marcou a década de 60: os protagonistas Vicente (Pedro Hestnes) e Clara (Inês de Medeiros) são parentes próximos, física e psicologicamente, do casal de protagonistas do primeiro filme de Rocha, assim como a mesma ingenuidade

e orfandade que os atormenta e os condena. Para os mais cépticos, existe uma sequência n’O Sangue — Vicente e Clara no bosque à procura de Nino (Nuno Ferreira) — que é meticulosamente decalcada d’Os Verdes Anos, o que só pode ser lido como uma homenagem de Costa ao seu ex-professor. João Salaviza, o jovem realizador já premiado com uma Palma de Ouro de Cannes e um Urso de Ouro de Berlim: “Há um único momento do cinema português em relação ao qual sinto uma filiação: Mudar de Vida, Os Verdes Anos, Belarmino [1964] e Uma Abelha na Chuva [ambos de Fernando Lopes, este de 1972]. Deles retirei a ideia de que o cinema é um veículo de observação da realidade, apaixonado e comprometido. É algo a que o cinema português nunca mais conseguiu na atenção e comprometimento com a realidade, um lado sensorial e na forma como as coisas são vistas.” O que se vê em Arena (2009) ou Rafa (2012), são, segundo o próprio, “uma espécie de influência directa no meu trabalho: a ideia do cinema como máquina de registo da cidade de Lisboa e suas mudanças. Há um reencontro entre gerações e filmes sobre lugares fantasmagóricos, como os bairros que eram campo, Chelas, por exemplo, porque estão sempre a mudar e é aí que eu e outros cineastas estamos a filmar agora.” 29


30 O Sangue, de Pedro Costa, 1989.


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Os Verdes Anos, de Paulo Rocha, 1963.


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Paulo Rocha, 1963.

GUIMARテウS,


2014 antes e depois de tudo, a obra cinematográfica de Paulo Rocha é uma complexa reflexão sobre Portugal, as suas raízes culturais e matrizes identitárias, com múltiplas possibilidade de aproximação e hipóteses de leitura. O cinema de Rocha olhou para Portugal, como espaço “real” e imagético, durante cinco décadas, antecipando, acompanhando, denunciando e reflectindo as mutações que se foram sucedendo. Como qualquer autor, Paulo Rocha esboça a sua própria visão do que o rodeia, mas o seu cinema também se abre-se outras leituras e interpretações de críticos e espectadores. O propósito deste texto — como de todo o projecto Enquadramento e do próprio Cineclube de Guimarães — é dar um modesto contributo para que se possa (re) descobrir (um pouco mais) a importante obra cinematográfica de um cineasta fundamental mas esquecido.

Apesar da sua imensa influência no cinema português da segunda metade do séc. XX e da enorme popularidade dos seus Os Verdes Anos, a obra cinematográfica de Paulo Rocha continua a ser ignorada pela generalidade das gerações cinéfilas mais jovens. Falecido em Dezembro de 2012, com 77 anos de idade, Paulo Rocha é sobretudo valorizado pelo meio cinematográfico português e pelos circuitos cinéfilos e críticos internacionais. A falta de acessibilidade à sua obra — nenhum dos seus filmes está editado em DVD [a Cinemateca Portuguesa promete novidades nesta capítulo para breve] nem é das mais divulgadas pela televisão — é a principal causa para o insensível desconhecimento de uma das mais importantes produções artísticas em língua portuguesa e que ajudou a definir nacional e internacionalmente o próprio cinema português. Mais incompreensível se torna este desconhecimento porque,

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Paulo Rocha e Jean Renoir, Viena, 1962.

Gosto muito de autores antigos. Um Jean Renoir, por exemplo, tanto eu gosto dele, é quase como se fosse meu pai. Gosto também de certo cinema de germânicos na América, o Stroheim, o Murnau, o Lang. As obras americanas desses homens parecem-me geniais. E ainda de Vigo, que considero talvez o maior cineasta francês. E Rosselini, o Rosselini de Paisá e da Viagem a Itália. (...) Pelas pessoas de que acabo de falar eu tenho uma verdadeira veneração. Era capaz de varrer o estúdio onde estivessem a trabalhar, só por amor ao trabalho que fazem. Paulo Rocha 34


Ficha técnica Edição:

Cineclube de Guimarães

Coordenação Editorial: Paulo Cunha Rui Silva Samuel Silva

Texto:

Paulo Cunha

Design:

Alexandra Xavier

ISSN:

2183-1734 11 de Fevereiro de 2014

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