Enquadramento #21: Mercedes Álvarez

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PUBLICAÇÃO TRIMESTRAL SETEMBRO 2022 ISSN 2183-1734 Mercedes Álvarez 21
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O cinema das geografias humanas

No cinema, o tempo não é uma variável constante. Podem caber décadas dentro um filme de uma hora e meia, assim como o contrário, num filme de uma hora e meia pode contar-se uma história que acontece em dez minutos. Esta capacidade elástica do cinema e como ela é utilizada de forma diferente por vários realizadores sempre foi algo que fascinou.

Vi a primeira longa metragem de Mercedes Álverez, “El Cielo Gira”, numa sessão do Cineclube de Guimarães, num momento muito particular em que começava sensibilizar-me por questões como o envelhecimento da população, a de sertificação do interior de Portugal e a perda do vasto e rico património imaterial. Com o desaparecimento das últimas pessoas de um território desaparecem também as memórias.

Entre “El Cielo Gira” e “Mercado de Futuros”, as duas longas metragens de Mercedes Álvarez, passa mais de uma década. São filmes que, de facto, precisam de tem po, mas ao revê-los parece que o tempo não passa por eles, por manterem atuais as questões de fundo que le vantam. Ambos se relacionam, na acutilância como na poesia, sobre a transformações dos lugares. Se em “El Cielo Gira” algo nos surge por defeito, em “Mercado de Futuros” conseguimos perceber que, em contraponto, há uma série de excessos na nossa contemporaneidade. Em ambos os filmes há um denominador comum que aponta para o que está em risco de desaparecer.

Mercedes Álvarez nasceu em 1966 em Aldealseñor, uma aldeia da região de Castela e Leão. Procurou sempre o cinema desde cedo. Em 1997 aventurou-se na criação de

uma curta-metragem a que chamou “El Viento Africa no”. No decorrer deste processo de rodagem percebeu o que procurava no cinema - a liberdade de pensar além do guião, o experimentalismo formal, o questionamento constante. O aparecimento, em 1998, do Mestrado em Cinema Documental Creativo, na Universidade Pom peu Fabra, em Barcelona, permitiu-lhe explorar as vá rias hipóteses que levantava. Começou por fazê-lo par ticipando como montadora no filme “En Construcción”, de José Luis Guerín.

Como projeto do mestrado decide regressar à sua aldeia natal para fazer “El Cielo Gira”, em 2004. Este filme faz uma longa e frutífera carreira por vários festivais de cinema na Europa e na América do Sul. A sua ligação ao cinema faz-se maioritariamente através da academia e da participação em Festivais de Cinema. O constante contacto com o trabalho criativo de outros cineastas é a matéria que mais a estimula na relação com o cine ma. Entre 2008 e 2011 trabalha na sua última longa até à data, a que chamou “Mercado de Futuros”.

Para este número de Enquadramento fomos ao encon tro da cineasta. Pareceu-nos a direção certa a tomar, por se tratar de uma realizadora viva e que visita Portugal com frequência. Infelizmente, ao contrário dos planos iniciais, não foi possível reunir condições para que a conversa fosse presencial. Conversámos por vídeo cha mada durante mais de duas horas, numa tarde de mea dos do mês de junho de 2022.

Paulo Dumas
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Mercedes Álvarez mede o tempo e peso de cada imagem. Não é uma cineasta com uma vasta filmografia, mas cada filme seu é um convite à contemplação, como se observássemos demoradamente uma pintura ou uma paisagem. São filmes que distorcem o tempo. A Mercedes interessou desde logo a permanente inquie tação do processo de filmar e com o tempo percebeu que cada imagem teria de ter o peso certo, desenvolvendo uma ideia de imagem essencial, num tempo em que a imagem se tornou fácil, barata e descartável. Nesta conversa abordamos as matérias sobre as quais são feitos os seus filmes - a memória, o tempo e espaço.

Mercedes Álvarez: a busca do cinema essencial

O princípio das coisas

Começa por estudar Filosofia e depois como se faz a sua aproximação ao cinema, até à altura em que realiza “El Viento Africano” (1997)?

Eu queria estudar cinema ou fotografia. Mas em Espanha, na altura, não havia escolas nessas áreas. Havia cursos relacionados com jornalismo e audiovisual, mas não cursos de cinema. O mais próximo que conseguia era ver muitos filmes, ir ao cinema que havia em Pamplona e também na universidade. Na altura em que rodei “El Viento Africano”, nunca tinha estado num ambiente de trabalho como aquele. Nunca tinha acom panhado nenhum processo de realização de um filme, não sabia como fazer direção de atores. Este é um filme rodado em 35mm, com uma equipa muito reduzida e com atores não profissionais. Fizemos o filme em três ou quatro dias, foi muito rápido. Nessa altura, tive a sensação de que não tinha tempo para ir pensando no filme enquanto filmávamos. O processo de rodagem não era de descoberta. Não foi uma experiência muito satisfatória para mim, na medida em que me tinha de cingir ao guião. Havia um produtor que me dizia que a única forma de fazer filmes era espeitando aquilo que estava escrito. Eu pensava de uma forma diferente.

A dada altura começa a pensar-se na criação de um mestrado em cinema documental [Máster de Docu mental de Creación, na Universidad Pompeu Fabra, em Barcelona]. O desafio passava por encontrar uma fi losofia de cinema, de pensar o cinema. Tudo isto estava mais relacionado com aquilo que eu sentia que devia ser o cinema, desde o processo de pesquisa e reconhe cimento, a rodagem, a montagem, tudo. Fiquei bastan te entusiasmada com tudo aquilo e com os professo res que foram envolvidos logo na primeira edição, em 1998 - José Luis Guerín (Barcelona, 1960)1, Jean-Louis

1 Autor, entre outros, de “Tren de Sombras”, 1997

Comollí2 (Paris, 1941-2022), Joaquín Jordà (Barcelona, 1935-2006)3“. Nessa primeira edição tivemos também o Frederick Wiseman (Boston, 1930)4. Uma das propostas do curso era fazer um filme com os alunos, com mui to daquilo que eu andava à procura, que era aprender mais sobre todo o processo de trabalho, encontrando o filme e o guião durante o processo. Este era o desafio e era uma aventura. Todo o contrário daquela que havia sido a minha primeira experiência. Poder ter esta ex periência foi um momento fundamental para mim. Eu fiquei com o José Luis Guerín.

É durante o mestrado na Universidad Pompeu Fabra que se começa a formar o seu ponto de vista artístico como realizadora?

Sim. Sobretudo foi uma aprendizagem sobre a grande variedade de formas de fazer cinema e de ter contacto com cineastas que eu não conhecia. Eu conhecia Wise man e outros, mas havia muitos cineastas que eu não conhecia. Fui descobrindo, nas retrospetivas que havia na Filmoteca.. Nessa altura forma-se a ideia na minha mente que, quando se filma algo, como uma parte da vida, do quotidiano, a única forma de o captar através de uma câmara é questionando constantemente o nos so ponto de vista. Isso consegue-se pela experiência.

Para mim, foi fundamental perceber que não havia um único modelo para fazer as coisas. Na grande parte do cinema que mais me interessava, que realmente inves tigava a forma de juntar as coisas, não existia um mo delo, nenhuma norma a que tivesse de me vincular. O que existia era uma grande liberdade de linguagem ci nematográfica. Além dos filmes que descobri neste pe ríodo, também acompanhei José Luis Guerín durante

2 Autor, entre outros, de“La Cecilia”, 1975

3 Autor, entre outros, de “Un Cos al Bosc”, 1996

4 Autor, entre outros, de “National Gallery”, 2014

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dois anos, na rodagem de “En Construción” (2001). Ele mostrou-me como enfrentar cada dia sem um guião no bolso, como observar e como filmar as coisas. Como converter o processo de observação em cinema. Esse trabalho de rodagem foi fundamental para mim. É du rante o processo do mestrado que surge a ideia de fa zer “El Cielo Gira” (2004).

Os seus dois filmes de longa metragem são peças muito concentradas, na medida em que convidam a um olhar demorado, a que vejamos o filme uma e outra vez. Por que razão não filma com mais regularidade? Não sente essa necessidade?

Depois de “El Cielo Gira” passei muito tempo a acom panhar o filme em festivais. Faço questão de dedicar o tempo necessário aos filmes. Em 2008, comecei a pensar o filme “Mercado de Futuros” com Arturo Redin [guio nista], que trabalhou comigo em ambos os filmes. De tivemo-nos muito na pesquisa, na procura de espaços para filmar, fotografar. Em 2009 e 2010 estivemos em ro dagem do filme, que acabou por sair em 2011. O último trabalho que fiz foi para o Pavilhão da Catalunha, na Bienal de Veneza [no projeto “25% Catalonia at Venice”, com Jordi Balló e Francesc Torres]. Pelo meio, vamo -nos dedicando a outras coisas. Na verdade, eu nunca pensei em fazer um filme a seguir ao outro. Gosto de me deter na reflexão acerca daquilo que quero mostrar, de limitar o espaço para mostrar as coisas através das imagens. Não contribuir para o ruído das imagens, mas apresentar algo que seja considerado essencial. No caso de “Mercado de Futuros” quisemos abordar o tema da especulação imobiliária, sobre os espaços das nossas ci dades que acabam por ficar muito parecidos uns com os outros. Intencionalmente não queremos que os nossos

olhares, as nossas imagens, contribuam para um ruído generalizado. Não nos quisemos substituir aos jornais, por exemplo, que dão atenção diária aos temas. Creio que nos esquecemos frequentemente da relação entre o espaço e a memória. Nas cidades, as memórias estão em espaços como os mercados. Talvez haja interesse em deixar isso registado, não numa ideia de comunicação, mas com um ponto de vista aprofundado.

Nesse mundo ultrassaturado de informação, numa era de desinformação e da pós-verdade, onde o subjetivo se sobrepõe muitas vezes ao objetivo, qual de verá ser o posicionamento do cinema documental?

Eu estou a trabalhar numa ideia, que talvez acabe sendo uma curta ou média metragem, que trata de um assun to que eu creio que é muito atual, que é sobre o ruído das imagens e a saturação da informação que nos chega. Tenho a sensação que nunca como hoje tivemos acesso a tantas imagens, mas também me parece que estamos mais cegos do que nunca. Progredimos em muitas coi sas, nunca antes tivemos tantos meios para produzir imagens, mas continua a haver assuntos no mundo so bre os quais sabemos muito pouco. Ficamos cegos, por que não nos detemos sobre as imagens, não procuramos suficientemente o sentido das imagens. Esta cegueira é precisamente provocada pelo ruído, porque pode mos aceder a qualquer tipo de imagens em qualquer momento. Precisamos de nos lembrar como fazíamos quando os filmes eram mudos e reencontrar a força das imagens. No entanto, creio que uma das tarefas dos nos sos dias é conseguir algum silêncio e que consigamos criar alguma memória no meio do turbilhão de imagens que produzimos. É algo que me estimula neste momen to, encontrar a força das imagens.

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Rodagem do filme “El Cielo Gira”, 2004.

Território, a memória e o tempo

Voltando a “En Construcción”, de José Luis Guerín, há uma atenção especial sobre a geografia humana e as suas transformações. Este é um tema que aparece sistematicamente no seu percurso. De onde vem essa sensibilidade para olhar para a transformação do território e em particular do espaço onde vivem pessoas?

No primeiro filme, “El Cielo Gira”, já estão refletidas to das as relações entre o espaço, lugar e memória. Há algo muito concreto, que são as pessoas que vivem na aldeia e que aparecem no filme. O filme recorda também as paisagens de Pello Azteca, o pintor que perdeu a vista e que surge também no filme. Havia uma necessidade e uma urgência de salvaguardar a memória daquelas pessoas e de conservar os lugares. Eu creio que essa urgência advém do facto de aquela ser a minha aldeia, o lugar onde eu nasci. Esse lugar e essas pessoas são únicas para mim. Tudo tem um nome e uma memória. A partir do momento em que tal desaparece, o mesmo acontece à história dos lugares. Uma forma de conser var a memória é recordar o espaço. Quando as pessoas mudam de lugar, há uma imensidão de recordações que

estão associados a estes espaços que tendem a despa recer. Essas recordações formam a memória que temos dos espaços, que está associada às relações entre as pes soas e das pessoas com os espaços que habitam - com as praças, os caminhos, as fontes, as casas. Cada aldeia tem as suas. A nossa relação é sempre com o espaço e a memória. Entre a minha família sempre se fez questão de recordar a aldeia. Isso era muito importante, porque enquanto se contavam as histórias, elas não desapare ciam. As ruas, os lugares, as árvores tinham nomes e estas designações são carregadas com as pessoas que habitam os lugares. Se essas pessoas desaparecem sem que a memória seja preservada, então tudo desaparece quando desaparecem as pessoas.

Eu sinto que o meu trabalho está muito próximo do traba lho dos geógrafos, na forma como investiga as questões do espaço. Há um geógrafo da paisagem cujo trabalho eu admiro muito e que tem feito algumas apresentações comigo, que se chama Joan Nogué (Girona, 1958). Ele diz que há um mapa de Espanha que não tem cartografia, porque os nomes dos caminhos, das fontes, dos lugares perderam-se por se ter perdido a memória que existia deles. Agora, as designações que aparecem no mapa são

“Eu sinto que o meu trabalho está muito próximo do trabalho dos geógrafos, na forma como investiga as questões do espaço.”
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Rodagem do filme “El Cielo Gira”, 2004.

parques industriais, alguns deles nem têm topónimo e são caracterizados apenas por um número ou uma letra. A paisagem tornou-se incógnita. Todo o território está num processo de apagamento, na medida em que as me mórias que existiam desapareceram. Esse é um processo que vem desde há alguns anos, mas só agora estamos a dar conta do desaparecimento dessas memórias, por realmente sentirmos que elas nos fazem falta.

O projeto em que estou a trabalhar agora está relaciona do com tudo isto, com um grupo de alunos do mestrado na Universidad Pompeu Fabra e vamos até esses lugares, um território que ficou incógnito por ter sido abandona do entre os anos 1960 e 1970, para onde não há caminhos. São precisas horas para lá chegar. Há um grupo de jovens que decidiu juntar-se para viver numa dessas aldeias e estão a encontrar formas de recuperar a vida desse lugar.

O filme “El Cielo Gira” retrata esse processo de território esvaziado, com pessoas velhas que ficam para trás, enquanto outras deixam esse lugar em busca de uma vida com mais oportunidades. Tem regressado à aldeia? Está muito diferente daquilo que vemos retratado no filme?

Sobretudo, não estão as pessoas que aparecem nas ima gens do filme. Eram aquelas as pessoas que recordavam. O filme capta uma forma de estar, como as pessoas se re lacionavam entre elas e com os espaços da aldeia. Algu mas pouco terão saído daquele lugar. Uns dedicavam -se à transumância, outras a outro tipo de trabalhos, não eram pessoas isoladas. Mas eram pessoas que tinham uma consciência da finitude. Do final de algo coletivo, mais do que o desaparecimento de cada um deles indi vidualmente. Creio que isso não acontece nas cidades. A consciência da memória coletiva é mais estável nas ci dades, porventura por haver mais a quem delegar essa memória coletiva. Creio que essa é uma das diferenças que podemos encontrar entre as cidades e as pequenas povoações envelhecidas, que têm necessidade constante de recordar episódios singulares, por forma a manter a sua própria história através dos relatos. As cidades têm mais presente a ideia de progresso, de seguir em frente. Não é uma questão fundamental saber de onde viemos e olhamos unicamente em frente como se tivéssemos palas no olhos, como os burros.

Imagens do filme “El Cielo Gira”, 2004.
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O passar do tempo mostra como os recursos dos lugares esvaziados são explorados por agentes exteriores. Vemos isso no filme, com a instalação dos aerogeradores de energia eólica ou o início da construção do que seria um hotel. Nestes casos, a riqueza que é ali gerada não é distribuída pelos respetivos territórios. O problema do interior é de otimização de recursos ou distribuição de riqueza?

A situação do interior da região de Castela e Soria é muito diferente da de Lérida ou da do sul de Espanha, de Alicante, por exemplo. No centro de Espanha, correspondente ao território de Castela, e particularmente Soria, que é a região mais despovoada de Espanhatem a mesma densidade populacional que o norte da Finlândia - o processo de despovoamento foi muito forte e rápido, porque não havia forma de as pessoas permanecerem naqueles lugares. As infraestruturas que havia foram abandonadas e as pessoas deixadas numa espécie de isolamento. Todas as relações que existiam foram desaparecendo. A sensação de aban dono é terrível. Em Espanha o comércio e a indústria fixaram-se nas regiões do norte, no País Basco, na Ca talunha. No centro está Madrid e a duas horas há uma área enorme de território com poucos habitantes. Os projetos que aparecem, como os parques eólicos, são uma invasão. No filme captamos o momento em que se instalam os primeiros aerogeradores. Nessa altura havia promessas de desenvolvimento e riqueza, de trabalho, para o território. Mas aquele dinheiro que é investido não serve as povoações, antes criou mais di ficuldades e fez com que o território ficasse ainda mais despovoado. São poucas as pessoas que beneficiam di

retamente com a indústria da energia eólica e dos par ques eólicos. Parece que os decisores foram ao Google Maps e pensaram: bem, aqui não há nada, vamos criar o maior parque de energia solar ou de energia eólica, ocupando todo o tipo de montanhas e de paisagens, com um grande valor histórico. Estes megaprojetos não oferecem nada a estas povoações. No caso do pa lácio [Palácio de Los Salcedo, que aparece no filme], foi convertido de um hotel numa propriedade privada. É importante que se criem apoios diretos às pessoas que vivem nestas aldeias e às que querem voltar. Fazem falta as casas, como fazem falta os médicos ou as lojas. Criar as condições mínimas para que as pessoas pos sam viver nestes lugares.

A cena de “El Cielo Gira” em que os delegados de campanha eleitoral entram pela aldeia, colam dois cartazes e voltam a sair, é muito política. Qual a sua opinião acerca de como o poder político tem tratado os habitantes dos territórios esvaziados? Têm tratado estas pessoas com uma total indiferença, porque os seus votos não contam. Tem surgido nos úl timos anos o tema da Espanha Esvaziada e isso está nas agendas dos partidos políticos e os responsáveis políticos falam disso. Mas nenhum deles vai às aldeias falar com as pessoas que ainda lá estão e comunicar quais são os projetos que existem para estes lugares. Não vão porque há pouca gente ali. O que há são manadas de vacas e um pastor. Foi interessante perceber como funciona o espetáculo, a parte mais ignóbil da política, e percebemos isso quando estávamos a rodar o filme. Entrar por uma aldeia adentro, com os megafones a criar ruído, importunando o sossego e despertando os

animais. Entram e saem sem falar com ninguém. Não será, certamente, desta forma que os partidos políticos se devem abeirar das povoações, nem tampouco intei rar-se dos problemas que ali existem e que precisam de ser resolvidos. Não podemos dissociar as políticas públicas, com impacto no território, das pessoas que habitam esses territórios. O que temos visto é o oposto.

É alguém, a partir de um gabinete, a tomar decisões sobre um território, esquecendo-se que há gente que vive ali. Isto é o contrário do que se passava na época da República, quando havia missões que se desloca vam às aldeias e faziam sessões de cinema, sessões de leitura, levavam reproduções de obras de arte. Há ima gens que mostram o impacto impressionante que estas ações tinham junto das populações. Tudo isto é muito diferente de entrar por uma aldeia fazendo ruído.

Tem acompanhado o movimento Espanha Esvaziada? Que influência poderão ter movimentos como esse?

É algo que me interessa muito e colaboro sempre que posso. Mas creio que não se presta muita atenção àquilo que estes movimentos estão a defender, que são coisas muito concretas, como a instalação de cuidados médi cos e infraestruturas. São questões que, de alguma for ma, conseguem ter algum impacto nas agendas políti cas, especialmente em altura de eleições. Além desses movimentos políticos, há plataformas informais de ci dadãos que procuram fazer o trabalho que os políticos não fazem, que é perceber quais são as necessidades dos habitantes dos territórios desertificados e procurar fazer algo para as resolver. O que vemos acontecer tan to em Espanha como em Portugal é esta colonização por grandes grupos económicos para a instalação de parques eólicos gigantes.

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Imagens do filme “El Cielo Gira”, 2004.

Há pouco tempo tivemos oportunidade de redescobrir um filme belíssimo chamado “O Movimento das Coisas” (1985), de Manuela Serra, em que se faz um exercício de recuperação da memória numa aldeia do norte de Portugal. Qual poderá ser o papel do cinema na documentação do tempo, para que as me mórias não se percam?

Entre todas as artes, o cinema é a que melhor conse gue conservar a memória. Seja a memória dos espaços, dos rostos das pessoas que habitam esses espaços, da palavra, da forma de falar das pessoas, das tradições orais. Nas séries que vemos na televisão todos falam da mesma forma e com os mesmos gestos. O cinema tem uma força documental muito forte. Essa é uma das razões por que gosto tanto de descobrir cineastas de todo o mundo. Quando descubro alguns filmes destes cineastas, que desenvolvem esta força documental do cinema, como os filmes de Fumio Kamei (Haramachi, Japão, 1908-1987), entre outros cineastas, tenho a sen sação de que o cinema é um grande museu da memó ria. As memórias dos lugares, dos rostos e também da palavra. O contributo do cinema é precioso e não tem preço. Há formas de falar e de pensar que são únicas, sejam dos camponeses, dos habitantes da Catalunha ou de Trás-os-Montes. Por exemplo, as pessoas da mi nha aldeia têm um discurso muito lacónico. Utilizam muito poucas palavras e medem o peso de cada pa lavra. Comunicam com muitos silêncios. O filme que fiz na minha aldeia conservou tudo isso, as formas de falar e de pensar. De uma forma geral o cinema do cumental tem esse poder de cristalizar algo antes que desapareça.

Tanto em “O Movimento das Coisas” como em “El Cielo Gira” é evidente um grande carinho com que as pessoas que aparecem no filme são tratadas e retratadas nos filmes. São dois filmes que se complementam, pela forma de filmar o tempo lento, que

é contrário ao tempo da modernidade, em que tudo acontece ao mesmo tempo e muito rápido. Qual a importância da escala do tempo dentro do cinema e em particular destes dois que referi?

Quando vi “O Movimento das Coisas” fiquei com inve ja por ela ter conseguido captar algo que eu não conse gui. Manuela Serra (1948) filma quando não se vislum brava um fim daquelas coisas tal como existiam. Ela filmou quando todas as coisas existiam. Em “El Cielo Gira”, as pessoas estavam conscientes da decadência e percebiam que caminhavam para o fim das coisas. Mais do que o seu fim pessoal, do fim do seu mundo, que é algo muito mais terrível. Apesar disso, manti nham um sentido de humor, havia uma certa aceitação da sua condição e do seu fim. Quando eu vi o filme da Manuela Serra, imaginei como teria feito “El Cie lo Gira” uns quarenta anos antes. Fez-me lembrar de quando, na minha aldeia, havia trabalho nas casas e no campo, havia famílias e crianças, algo que já não exis tia quando fiz o filme. O trabalho da Manuela pareceu -me muito experimental. Ela era muito jovem quando rodou o filme. Era preciso ter uma grande confiança e muita fé nas imagens para filmar daquela forma, sem perder a noção de que se tratava de um filme. Manuela Serra filma sem obedecer a qualquer regra cinemato gráfica, seja um plano de uma senhora a varrer ou a tomar o pequeno almoço. É um feito impressionante, porque conta apenas com as coisas essenciais. Quando estava a fazer “El Cielo Gira” não me saía da cabeça que aquilo não era um filme, mas estava convicta de que era aquilo que eu devia fazer. Em “O Movimento das Coisas” tudo me parece muito bonito e muito cora joso. Uma reflexão que eu fazia era como poderíamos converter todas estas imagens em algo antropológico. Por exemplo, quando estão todos a cantar numa roda, como é que isso pode ser considerado um documento antropológico. Fiquei com muita inveja e emociono -me ao ver o filme da Manuela Serra, porque na minha aldeia também se cantava assim.

Equipa do filme “El Cielo Gira”, 2004.
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Mercado de Futuros

Inicialmente, as pessoas fugiam dos territórios do interior porque aí não encontravam oportunidades de trabalho e qualidade de vida. Mas, agora, as cidades são ocupadas por quem tem muito dinheiro ou por residências de curta duração para o turismo. A rea lidade retratada em “Mercado de Futuros” descreve um novo ciclo da nossa relação com o território? Quando começamos a pensar no filme “Mercado de Futuros”, o tema da especulação imobiliária fazia parte da atualidade, no sentido em que havia muita gente a ganhar muito dinheiro ocupando e construindo no ter ritório. Nessa altura, em Espanha, estava a construir-se tanto quanto França, Itália e Portugal juntos. O motor da economia em Espanha era a construção. A mim to cava-me sobretudo a facilidade com que se transfor maram os espaços. Hoje, a Costa do Sol é um bloco de cimento. O mesmo acontece em qualquer costa, porque não parou de se construir. Naquele momento, a cons trução fazia-se nas cidades, que iam sendo alargadas

continuamente, sem que houvesse uma correspondên cia com as necessidades sentidas. Construía-se com o propósito de especular. A ideia original do filme pas sava por tratar esta insensibilidade na transformação dos espaços, como estávamos a destruir os espaços das cidades. Este foi o primeiro impulso para o filme e em vez de imaginar imagens, começamos a ler muitas coi sas. Perceber como outros trataram do assunto, através de textos de geógrafos, economistas, fotógrafos e tam bém cineastas. O cinema consegue antecipar muitas coisas. Quando pensamos em espaços sem alma nas ci dades, lembramo-nos de como Fritz Lang (1890-1976) imaginou tudo isso em “Metrópolis” (1927). O cinema foi muitas vezes visionário no que respeita à transfor mação das cidades. Então, entendemos que qualquer imagem das cidades que mostrássemos, dos espaços novos das cidades, já tinha sido mostrado de alguma forma no cinema. Foi mostrado pelo Jacques Tati (19071982), pelo Antonioni (1912-2007)… O desafio passou por captar imagens essenciais sobre a transformação

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Rodagem do filme “Mercado de Futuros”, 2011.

do espaço, mas sob uma nova perspetiva. Vimos uma notícia num jornal de que se preparava uma grande intervenção urbanística em Barcelona. Percebemos que se tratava de um bom sítio para filmar. Quando fomos a uma feira do setor imobiliário, percebemos que havia ali uma espécie de encenação, de algo espetacular, com montras e cartazes, visões do paraíso. Ali não se trata va de perceber quais seriam as necessidades da popu lação, construía-se apenas com o intuito de criar opor tunidades de negócio, construções que são iguais em todo o lado. Aquela era a ideia de cidade do futuro - a cidade ao serviço do mercado em vez das pessoas. An tes existiam as associações de moradores que faziam a defesa do espaço público, essa força social perdeu-se.

Há muita ironia em “Mercado de Futuros”. Sim. Nessa feira era tudo encenado e falso. Imagens criadas digitalmente, grandes cartazes, maquetes, si mulações, espaços para jogar golf virtualmente. En fim, a virtualização completa do espaço e a promessa de criação de um espaço, precisamente, sem memória nenhuma. Era curioso perceber como se descreviam aquelas maquetes, dizendo que ali não havia nada. Como é possível? Em qualquer sítio há sempre algu ma coisa. É uma ideia colonizadora - “aqui não havia nada, agora há um paraíso”.

Estas transformações fazem-se com um custo social mas também ambiental. Em “El Viento Africa no”, recorrendo à ironia e ao humor, alertava para as questões do aquecimento do planeta. Faço-lhe a pergunta que se ouve logo no início do filme: “De que forma o aquecimento global interfere no com-

portamento humano?” Como nos iremos relacionar num planeta em crise?

Essa é uma pergunta muito complicada. Enquanto fil mávamos o “Mercado de Futuros” estávamos muito influenciados pelas teorias do decrescimento, em que se defende que é impossível que possamos consumir cada vez mais. Creio que hoje já é evidente que não pode ser assim. Creio que isso está bem patente quan do filmamos nas feiras do setor imobiliário, em Madrid e em Barcelona. Estivemos num grande encontro, que se chamava Forum de La Gestion de Las Personas, para os quais estavam convidados os maiores conferencis tas americanos, como Bill Clinton e outros. Queríamos sobretudo perceber do que se falava nestes encontros, que pareciam manifestações religiosas. A ideia que de fendiam era que se alguém não tem sucesso na vida é porque não se esforçou o suficiente. Como o mercado se guia não pelo que precisamos, mas pelas necessi dades que continuamente são criadas. Nós quisemos muito filmar isto porque se tratava de como aquelas pessoas estavam a criar mecanismos para criar neces sidades. Uma ideologia de mercado que é defendida neste tipo de congressos e que é muito agressiva.

Poderíamos fechar os olhos e perceberíamos toda a narrativa do filme. Como é tratado o som nos seus filmes? Que importância é atribuída ao som? Dou tanta importância ao som quanto à imagem, ao nível dos significados. O som tem o poder de fazer um contraponto com as imagens. Nos dois filmes que fiz, há sequências que são construídas a partir de uma ideia do som. Muitas vezes, o que une as imagens é o som, na forma como é feita uma narração e se cria uma

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Rodagem do filme “Mercado de Futuros”, 2011.

ordem. Em ambos os filmes trabalhei com Amanda Vi llavieja (Barcelona, 1975). Já havíamos trabalhado jun tas no filme “Em Construción”, de José Luis Guerín. Sempre prestei muita atenção à escuta, ao som. Muitas vezes, Amanda ia antes do resto da equipa para os lo cais onde iríamos filmar, para captar sons. Deixamos que estes sons comuniquem à sua maneira, de forma a que as imagens e a narrativa saiam mais fortes. Por exemplo, em “Mercado de Futuros”, quando filmamos a casa que está a ser desocupada, ouve-se o som das bonecas. Ou quando filmamos as maquetes, também havia som distorcidos do mar, que se relacionavam com o mar real. No final do filme voltamos a ouvir o som das bonecas. Este som surge várias vezes ao longo do filme, associado a coisas diferentes. O som é uma ferramenta de expressão plena. Trata-se de fazer com que as imagens comuniquem através deste contrapon to que é o som.

Atualmente, qual o espaço que o cinema ocupa na sua vida, seja como espectadora, seja como artista ou como investigadora?

Para mim, o cinema é uma forma de pensamento. Gos to de refletir sobre o cinema de outros cineastas. Gosto muito da ideia de descobrir cineastas em festivais. Tra balho muito com festivais de cinema, onde tento parti lhar as minhas descobertas, faço muitas retrospetivas. No festival Punto de Vista, de Pamplona, trabalhei numa retrospetiva de Ermanno Olmi (Bergamo, 19312018). Estive com Manuela Serra, a realizadora de “O Movimento das Coisas”, na edição de 2022 do festival Punto de Vista. Portanto, além da ação de filmar, para mim o cinema é também o processo de descoberta, a possibilidade de entrar na obra de outros cineastas.

“O cinema consegue antecipar muitas coisas. Quando pensamos em espaços sem alma nas cidades, lembramo-nos de como Fritz Lang imaginou tudo isso em “Metrópolis” (1927). O cinema foi muitas vezes visionário no que respeita à transformação das cidades.”
Rodagem do filme “Mercado de Futuros”, 2011. Imagem do filme “Mercado de Futuros”, 2011.
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FILMOGRAFIA

Filmografia de Mercedes Álvarez

El Viento Africano (1998)

El Cielo Gira (2004)

Mercado de Futuros (2011)

TÉCNICA

Filmografia complementar

O Movimento das Coisas Manuela Serra (1985)

El Disputado Voto Del Señor Cayo Antonio Gimenez Rico (1986)

En Construcción

José Luis Guerín (2001)

Uma Montanha do Tamanho do Homem

João Nuno Brochado (reportagem, 2014)

Degrowth - from the Myth of Abundance to Voluntary Simplicity

FICHA Luis Picazo Casariego, Manu Picazo Casariego (2016)

Texto Design ISSN

29 de Setembro de 2022

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