P U BLICA ÇÃ O TRIM ES TRA L M A IO 2014 IS S N 2183-1734
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“Porque esta noite aprendi, querida irmã, que neste mundo tudo é possível”. É com a citação desta fala do General Lowenhielm, um dos personagens-chave do seu filme A festa de Babette (Babettes gæstebud), que Gabriel Axel, prestes a completar 70 anos, recebe em 1988 o Óscar para o Melhor Filme Estrangeiro, destronando o favorito Adeus, Rapazes (Au revoir les enfants) de Louis Malle. Resultante da adaptação do conto homónimo de Karen Blixen, A festa de Babette viria a tornar-se no filme mais conhecido do realizador dinamarquês, estranho fruto de uma carreira dedicada em grande medida à televisão e ao cinema erótico. A ênfase que este filme coloca na arte culinária mais requintada, transformando-a num “objeto cinemático”, antecedeu uma série de filmes que, nos anos seguintes, tratariam com fulgor o tema da comida e da gastronomia, entre os quais O Cozinheiro, o Ladrão, a sua Mulher e o Amante dela (1989), de Peter Greenaway, Como Água para Chocolate (1992), de Alfonso Arau, Belle Époque (1992), de Fernando Trueba, ou Comer, Beber, Homem, Mulher (1994), de Ang Lee. Sob o pretexto de A Festa de Babette, o quarto número do Enquadramento aborda a carreira cinematográfica de Gabriel Axel, falecido em Fevereiro passado, aos 95 anos.
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Copenhaga e Paris A primeira fase da carreira cinematográfica de Gabriel Axel como realizador é muito influenciada pelas cinematografias nórdicas e francesa, reflectindo o seu próprio percurso pessoal. Axel nasceu na Dinamarca, em 1918, mas cresceu em Paris, França, até aos 18 anos, voltando à sua terra natal para receber a sua formação de actor na escola do Royal Danish Theatre. Logo depois, voltou a França para iniciar uma carreira de actor, que prosseguiu na Dinamarca, interpretando geralmente pequenos papéis bastante estereotipados. Em 1951 estreou-se na televisão dinamarquesa como realizador, tendo produzido diversos programas, algumas curtas e, sobretudo, transmissões de teatro (transmitiu 50 peças de teatro na televisão dinamarquesa entre 1951 e 1968). Em 1955, Axel realizou a sua primeira longa-metragem para cinema, com produção da histórica Nordisk: Nothing but Trouble (Altid ballade) é um drama realista sobre uma família de classe média dinamarquesa. Pouco habitual no contexto do cinema dinamarquês dos anos 50 — essencialmente pelo tom sentimental, realista e pouco moralista —, Axel assume influências do cinema neo-realista italiano, especificamente de Vittorio De Sica, num filme que pretende sensibilizar para a necessidade da solidariedade e fraternidade para superar um momento histórico delicado na história recente dinamarquesa.
Por outro lado, apesar de se distanciar no essencial, Axel reconhece também que o cinema de Carl Th. Dreyer foi uma influência fundamental no que ele designa por “atmosfera”: o filme foi rodado fora dos estúdios, num apartamento próximo da central ferroviária, para que actores pudessem sentir o ambiente e permitir que isso influenciasse as suas interpretações; segundo o Axel, essa presença fora do plano de elementos invisíveis ao espectador contribui de forma decisiva para compor a “atmosfera” e para não distrair ou desviar a atenção dos espectadores. Depois de uma segunda-longa algo ignorada — A Woman not Wanted (En kvinde er overflødig) —, Axel conheceria o sucesso junto do público com Golden Mountains (Guld og grønne skove), uma sátira social sobre o confronto do mundo rural dinamarquês e a modernidade durante a Segunda Guerra Mundial. Situada no que se convencionou chamar como comédia popular dinamarquesa, muito depreciada no meio crítico, esta comédia retrata a revolução vivida numa pequena e isolada ilha dinamarquesa quando os norte-americanos descobrem petróleo e assumem o controlo. Produzido durante os anos do Plano Marshall, apesar da aparente leveza própria da comédia popular, o filme criticava, de forma pertinente e satírica, a situação política e social da Dinamarca e de grande parte da Europa ocidental.
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Mas, apesar do registo cómico, este filme de Gabriel Axel mantém a mesma ideia de “atmosfera” conseguida no primeiro filme, que agora se afasta de Dreyer e se aproxima de alguns filmes da nova vaga checa, particularmente os trabalhos iniciais de Milos Forman. Por outro lado, esta divertida comédia antecipava e influenciava um fenómeno de commedia dell’arte muito popular na Dinamarca na transição para a década de 70, The Olsen Gang, que também conquistaria muita popularidade nos outros países nórdicos. Apesar de pouco consensual junto da crítica do seu próprio país, Axel foi uma figura fundamental na internacionalização que o cinema dinamarquês conheceu no final dos anos 40 e sobretudo na década seguinte, a par de outros realizadores como Johan Jacobsen (1912-72), Ole Palsbo (1909-52), Bodil Ipsen (1899-1964) e Erik Balling (1924-2005). Gabriel Axel, muito particularmente, acreditava que a aposta na singularidade do cinema dinamarquês poderia ser compatível com o sucesso do público e a internacionalização. As primeiras obras de Gabriel Axel foram produzidas num contexto de desconfiança e desvalorização por parte das autoridades estatais, que rejeitavam apoio financeiro a esse tipo de produções por considerar que não se enquadravam na política cultural pública e na longa tradição artísticas do cinema dinamarquês. No entanto, o sucesso comercial na Dinamarca e em alguns países vizinhos, nomeadamente Alemanha, garantiam as condições financeiras necessárias para a produção dessas comédias populares.
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Soft porn ou uma stao de mentalidade? Os países nórdicos que hoje olhamos como exemplos de abertura e liberdade de costumes estavam, há pouco mais de 50 anos, debaixo de leis repressoras que pressupunham a existência de censura prévia nas artes e na imprensa. Só no início da década de 1970 é que países como a Dinamarca se tornaram exemplos de uma experiência social que mudou completamente uma sociedade então ainda muito marcada pela moral protestante. Gabriel Axel esteve no centro deste movimento conhecido pela palavra dinamarquesa Frigjorthed – um termo de difícil tradução, mas que se classifica por algo como emancipação, comportamento livre em relação às normas convencionais, sobretudo em termos sexuais. O cinema contribuiu para acelerar um debate na sociedade dinamarquesa que culminou na abolição da censura da palavra escrita em 1967 e no fim da censura da imagem e da proibição de filmes e revistas pornográficas, dois anos depois. É preciso recuar, porém, até ao início de 1960 para começar a compreender a dimensão deste movimento. Fixemo-nos em 1962, ano essencial em que são estreados três filmes que muram radicalmente a forma de fazer cinema e projetar a imagem na sociedade dinamarquesa. Knud Leif Thomsen estreia-se com The Duel (Duellen), Palle Kjærulff-Schmidt lança Weekend e Gabriel Axel produz Crazy Paradise (Det tossede paradis).
No mesmo ano, Stanley Kubrick choca Hollywood com a sua adaptação de Lolita, mas olhando para a produção americana daquele tempo, os estúdios estavam ainda mais entusiasmados com filmes que passam uma imagem estereotipada das relações amorosas e sobretudo das mulheres – Elvis é a estrela e o macho-alfa de Girls, Girls, Girls e Folow That Dream que estrearam no mesmo ano; Lawrence da Arábia é a grande produção de 1962 e nele, não por acaso, não há nenhuma mulher num papel relevante. E seria preciso esperar mais uma década para que Linda Lovelace se deixasse ver pela América em Garganta Funda. Na Europa, 1962 é um ano histórico em que estrearam alguns dos mais belos filmes da década, onde os papeis de género começavam a ser revistos: O Eclipse (Antonioni), O Anjo Exterminador (Buñuel), Viver a sua vida (Godard), Jules e Jim (Truffaut). Mas é na Dinamarca que estão as experiências mais arrojadas. Os três filmes dinamarqueses têm em comum o facto de abordarem a sexualidade sem entraves, recorrendo a cenas de nudez. A obra de Axel era uma sátira – que deu origem a um género, a comédia sexual –, passada numa ilha mítica que decida declarar a independência da Dinamarca, mas não foi pensado para suscitar o debate. A obra nem era propriamente escandaloso, mas a forma des-
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visto, ao lado da batalha de Falstaff de Orson Welles. O filme era a produção dinamarquesa mais cara até então e no elenco incluía Gunnar Björnstrand e Eva Dahlbeck (estrelas de filmes de Bergman), mas também os jovens Oleg Vidov e Gitte Hænning – antiga princesa da pop dinamarquesa – que aparecem nus numa das cenas finais do filme. Acaba por ser essa cena (hoje aparentemente banal) a causar escândalo mais uma vez, arrastando Axel para o centro do debate público sobre o erotismo e a pornografia na sociedade dinamarquesa. O realizador acaba por dar resposta a essa questão, lançando, um ano depois, o documentário Danish Blue (Det kære legetøj), onde investiga a natureza da pornografia e ataca as posições da autoridade e a lei da censura, conhecida simplesmente como Parágrafo 234, criada em 1930 para proteger a moralidade pública. Mesmo que tenha sido atacado por vários sectores da sociedade dinamarquesa, está uma vez mais longe de poder ser considerado escandaloso nos nossos dias. Há várias cenas de nudez integral e muita insinuação, mas não há actos sexuais explícitos. De resto, todo o documentário é atravessado por algum humor e por uma visão divertida sobre o sexo, sendo considerado um precursor do que os suecos viriam a classificar “pornografia feliz”. O documentário combina entrevistas, reconstruções e ficção. Axel conhecia muito pouco sobre o mundo da pornografia e começa por ver vários filmes eróticos em 16 milímetros an-
contraída como filmava os actores nus acabou por contribuir para o debate e foi um dos ingredientes que o tornaram um sucesso na Dinamarca – a par da participação de dois dos actores mais populares do país naquele tempo, Ove Sproge e Dirch Passer. Sexo e pornografia não são necessariamente sinónimos, mas isso estava longe de ser óbvio em 1962. Os EUA inventaram os termos pornografia hard-core e soft core, separando os diferentes graus de nudez, mas dando a entender que qualquer grau de nudez constituía pornografia. Todavia, se virmos hoje qualquer um dos filmes de Gabriel Axel, facilmente se percebe que ele está longe de ser um realizador porno e dificilmente vemos nele um exemplo de erotismo. O que o realizador dinamarquês faz é incluir cenas de nudez onde elas fazem sentido para o guião, sem nunca ser provocador ou gratuito. O melhor exemplo da forma como a nudez é usada como mais um recurso narrativo é a obra lançada cinco anos depois de Crazy Paradise, A Manta Vermelha (Den Rode Kappe), um épico passado no século XII, no tempo dos vikings. A película é toda rodada na Islândia em cenários belíssimos, muito bem fotografados por Henning Bendtsen, um dos mais consagrados directores de fotografia escandinavos daquele tempo. O filme apresentava montagens dramáticas de grande quantidade, incluindo lutas a cavalo (a inspiração em Kurosawa parece evidente) que o crítico Robert Ebert considerou “uma das cenas de batalha mais perfeitas e brutais” que já tinha
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O primeiro ato passa-se numa aldeia Viking recuperada do universo de A Manta Vermelha, com um triângulo amoroso entre o casal composto por um homem mais velho e uma rapariga jovem e o seu amante da mesma idade, onde são mais impressionantes as cenas de lutas com espadas do que as curtas cenas com nudez. O erotismo era, porém, o ponto forte do segundo capítulo, uma farsa filmado ao estilo do cinema mudo, uma espécie de filme-dentro-do-filme, que já tinha surgido em Danish Blue, cujo argumento de desenvolve novamente em trono de um triângulo amoroso. A terceira parte é filmada em Paris, situado algures na década de 1840 e os momentos de nudez são mais evidentes. Axel transmite neste capítulo uma concepção romântica da sexualidade que exalta a sensualidade, mas sem situações explícitas. Os últimos filmes desta fase da carreira de Axel são talvez os menos interessantes. Love Me Darling (Med kaerlig hilsen), de 1971, é uma antologia do flerte sexual através dos tempos em que um casal chamado Adão e Eva se envolve em várias aventuras eróticas: num castelo em 1740, numa casa de banho pública em 1900, num pub em 1932. No ano seguinte, a sua última incursão Soft Shoulders, Sharp Curves (Die Auto-Nummer - Sex auf Rädern), filmado na Alemanha, não teve grande aceitação da crítica nem do público.
tes de preparar a produção. Depois, contactou Leo Madsen, o “rei do porno” na Dinamarca na década de 60, filmando uma espécie de making of da sua nova produção, ao mesmo tempo que convenceu a modelo Gurli Taschner – condenada um ano antes a quatro meses de pena suspensa pela participação em filmes pornográficos – para ser a sua “estrela”. Taschner surgia nos filmes como dispositivo de ligação entre os vários episódios como um inventário de obras de arte eróticas de várias civilizações ou o retrato familiar (com o marido e os filhos) de uma das actrizes de Madsen). A sensibilidade do tema fez com que o Fundo de Cinema Dinamarquês tivesse recusado conceder a Danish Blue qualquer apoio, mas o filme acabou por ser um sucesso, sendo convidado a passar em Cannes e Berlim em 1969. Mas não foram só os sectores mais conversadores dinamarqueses que atacaram Axel. Entre os defensores de uma maior abertura na sociedade local, o realizador também foi alvo de críticas, apontando-lhe, por um lado, o facto de o filme chegar “tarde” – a lei da censura já tinha então os dias contados – e também uma visão algo moralista da pornografia apresentada em Danish Blue, onde se deixava antever que a pornografia não era para as pessoas “normais”, mas apenas para solitários, velhos e doentes. A carreira de Axel prossegue em 1970 com Amour, um filme composto por três capítulos autónomos em que o realizador dinamarquês retoma alguns dos temas dos filmes anteriores.
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O culminar de uma
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carreira num museu ao ar livre, num ambiente que mais parecia o de uma brochura turística. É assim que decide mudar as gravações para a Jutlândia, de forma a que a atmosfera sombria e cinzenta da aldeia contrastasse com as cores e exuberância do festim. O filme seria apresentado em Cannes com enorme sucesso, tendo ganho uma menção especial. Meses depois tornar-se-ia o primeiro filme dinamarquês a vencer um Oscar de Melhor Filme de Língua Estrangeira.
Na década de 70, Gabriel Axel vira-se novamente para a comédia popular nórdica, muito em voga na altura com o sucesso do bando Olsen (The Olsen Gang), uma série de filmes satíricos sobre um grupo de criminosos que se assemelhava aos célebres Irmãos Metralha, pelo grau de incompetência e falhanços nos seus golpes. Filma duas comédias sobre a família Gyldenkål (Familien Gyldenkål e Familien Gyldenkål sprænger banken), com alguns dos actores do bando. Sendo de certa forma um regresso à commedia del’arte de Golden Mountains, Axel percebe no entanto que a popularidade de The Olsen Gang estabeleceu um cânone a nível de interpretação, que produtores e público pretendiam ver correspondido em filmes do género. O seu papel limita-se, por isso, à componente técnica.
Gabriel Axel realiza ainda três filmes, todos eles recebidos com indiferença pelos críticos e público: Christian, um road-movie sobre a viagem de um jovem músico pela Europa; O Príncipe de Jutland, um drama histórico sobre a lenda de Amled (preservada pelo historiador dinamarquês Saxo Grammaticus no século XII e que serviria de inspiração para Shakespeare escrever Hamlet, quatro séculos depois); e Leïla, uma história trágica de amor entre uma berbere marroquina e um jovem carpinteiro do norte da Europa, filmada nas ruas de Marraqueche.
Quando em 1977 as portas do Instituto de Cinema da Dinamarca (DFI) e da televisão nacional se fecham, Gabriel Axel decide mudar-se para França, onde inicia uma carreira interessante como realizador de filmes para televisão, tendo inclusivamente ganho o prestigiado Prémio Balzac, pelo telefilme La Ronde de Nuit. O exílio dura dez anos e termina com o regresso à sua terra natal para realizar aquela que se viria a tornar a sua obra mais bem sucedida, e um dos mais importantes filmes da história cinematográfica dinamarquesa: A Festa de Babette.
Recebe em 2003 o Prémio Carreira no Festival Internacional de Cinema de Copenhaga. Tem, finalmente, o reconhecimento público da crítica do seu país, que quase não lhe perdoara os seus desvios pelas comédias populares e o soft-porn. Segundo Morten Piil, um dos mais conceituados críticos dinamarqueses, Gabriel Axel será recordado não só pelo seu Oscar e por A Festa de Babette, mas também pelo espírito de luta indomável, numa longa e sinuosa carreira em que nunca se deixou abater, apesar das grandes adversidades que teve de enfrentar.
O projecto tinha começado 15 anos antes quando a sua mulher o convenceu a ler o conto de Karen Blixen, numas férias de verão. No início, o filme seria rodado na cidade norueguesa de Kjerringöy, descrita por Blixen como uma cidade de brincar, repleta de casinhas de madeira coloridas. Mas quando Axel fez algumas filmagens na cidade sentiu-se como
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GRAFIA 1
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Altid ballade
A Woman not wanted (En kvinde er overflødig)
Golden Mountains (Guld og grønne skove) 3
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Helle for Helene
Flemming og Kvik
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Crazy Paradise (Det tossede paradis) Oskar
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Vi har det jo dejligt 3 Raparigas em Paris (Tre piger i Paris)
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1968
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Paradise and Back (Paradis retour)
A Manta Vermelha (Den røde kappe)
Danish Blue (Det kære legetøj) 6
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Amour
With Love (Med kærlig hilsen)
Familien Gyldenkål
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Going for Broke (Alt på et bræt)
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A Festa de Babette (Babettes gæstebud)
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O Príncipe de Jutland (Prince of Jutland)
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Os Verdes Anos, de Paulo Rocha, 1963.
A FESTA DE BABETTE MENÚ DE DEGUSTAÇAO PARA CINÉFILOS E LEITORES GOURMET por Manuel Miranda Fernandes
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UV APERITIVO
um cálice de amontillado «Isto é estranhíssimo», pensou ele. «Amontillado! É o melhor amontillado que eu já bebi». Ouvi falar pela primeira vez de Gabriel Axel quando A Festa de Babette estreou em Portugal, em 1989, distinguida no ano anterior com o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro. Nessa altura eu começava a descobrir o cinema, através das sessões organizadas por um cineclube universitário, no salão dos bombeiros de uma cidade do interior, tão memorável quanto desconfortável. Quando passou A Festa de Babette, por um motivo que não consigo recordar (uma distracção fatal?), não fui nessa noite ao cinema. Porém, os comentários entusiastas dos amigos que viram o filme deixaram-me acometido por um inesperado jejum, uma falta de alimento cinematográfico que se prolongaria por um tempo que me pareceu não ter fim.
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UV ENTRADA
sopa de tartaruga «Que coisa extraordinária!», disse para consigo. «Porque eu só posso estar a comer sopa de tartaruga. E que óptima sopa de tartaruga!» Vivi depois numa vila perdida entre montanhas, verdadeira meca do cinema nulo, apesar do seu cineteatro modernista, que estava então encerrado. Redimi-me do isolamento cinematográfico com a ajuda da televisão: os ciclos temáticos Cinco Noites, Cinco Filmes, na RTP 2, e o cinema sem dobragem do Fantascine, na TVE 2, que ali se captava perfeitamente, fizeram de mim uma espécie de cinéfilo em lista de espera, sonhando com futuras sessões em grande ecrã. Uma noite vi finalmente A Festa de Babette, que aguardei como um grande acontecimento: fui conduzido por Gabriel Axel até aos confins da Dinamarca do séc. XIX, onde me sentei à mesa de um inédito jantar francês, cujo desfecho tem uma dimensão profunda. A reconstituição do ambiente da aldeia costeira e da sua comunidade puritana, envelhecendo entre quezílias; a chegada de Babette, refugiada de uma Paris em convulsão, disposta a servir sem exigências duas anciãs luteranas; a preparação do jantar em honra do fundador da comunidade e o aturdimento de um general em uniforme de gala, sentado ao centro da mesa; a indiferença concertada dos convivas perante a comida e o poder redentor dos pratos confeccionados por Babette; e, claro, uma inesperada revelação após o jantar, tudo suscitou em mim uma misteriosa forma de emoção que só raros filmes têm o poder de convocar, e que desde então perdura.
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UV PRIMEIRO PRATO blinis Demidoff
Olhou em volta para os convivas. Todos comiam sossegadamente os seus blinis Demidoff sem revelar qualquer surpresa, como se os tivessem comido todos os dias daqueles trinta anos. Encontrei um dia uma edição portuguesa do livro de contos de Karen Blixen Anecdotes of Destiny (publicado originalmente em 1958 sob o pseudónimo Isak Dinesen) e li com avidez o pequeno conto que deu origem ao filme. Descobri diferenças subtis entre conto e filme, começando pelo lugar onde a acção decorre, junto a um fiorde norueguês, no sopé de altas montanhas, que no filme é transposto para uma paisagem de dunas junto ao mar, num local remoto da Dinamarca. No conto, as casas da pequena cidade de Berlevaag são pintadas em várias cores (cinzento, amarelo, rosa e outras), mas surgem no filme com cores indefinidas, como se refletissem a roupa pardacenta que os habitantes usam, acentuando a desolação da aldeia no meio de nenhures, que um dia se verá invadida por estranhas iguarias vindas de Paris. No conto, decorrem apenas 15 anos entre a juventude das irmãs Martine e Philippa, filhas do deão luterano que fundou a congregação aldeã, e o momento em que Babette é por elas acolhida; no filme, esse tempo é substancialmente maior, e as irmãs são já duas anciãs quando Babette chega. Apesar das diferenças resultantes da adaptação do conto a um guião cinematográfico, a minha perplexidade foi de outra ordem: como foi possível, a partir dum conto tão simples, tão enxuto até, nascer um filme como o que Gabriel Axel realizou? Esta dúvida permanece por resolver, mas suspeito que é mais fecunda se assim se mantiver.
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UV UMA ESPÉCIE DE LIMONADA Veuve Cliquot de 1860
O General Loewenhielm pousou o copo, voltou-se para o seu vizinho da direita e disse: - Mas isto é um Veuve Cliquot de 1860! O vizinho olhou-o com bonomia, sorriu e respondeu com uma qualquer observação sobre o tempo que fazia. Recentemente, revi o filme graças a uma edição em DVD, reparando em pequenas cenas que estão ausentes do conto, como a do tenor Achille Papin, apaixonado por uma das jovens filhas do deão, dançando alegremente com uma cadeira; ou a reflexão de Babette junto ao mar, após ter recebido uma certa carta de França, que ocasionará uma reviravolta na narrativa. Especificamente cinematográficos são os sublimes planos dos rostos dos convivas que juraram não saborear a comida que seria servida no banquete; e o colorido pantagruélico dos pratos requintados confeccionados por Babette, em flagrante contraste com o peixe seco e a sopa de cerveja e pão, que até então preparara sem queixume. É, contudo, o recurso à analepse que dá especial intensidade à narrativa cinematográfica, atribuindo uma significação mais densa à ação aparentemente simples que decorre no filme, tornando presente numa aldeia remota o mundo que está para além do horizonte. Nada disto consegue resolver, ainda assim, o título algo impróprio com que o filme (e o livro) foi traduzido para português: trata-se de um festim, um verdadeiro festim com contornos dionisíacos, e não uma mera festa de homenagem a um austero deão luterano.
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UV UM PRATO RECHERCHÉ cailles en sarcophage
O General Loewenhielm voltou-se para o seu vizinho da esquerda e disse: - Mas isto são cailles en sarcophage! O vizinho, que estivera ouvindo a descrição de um milagre, encarou-o com um olhar ausente, assentiu num aceno e retorquiu: - Sim, sim, claro. E que outra coisa poderia ser? Sob a influência da primeira vez em que vi o filme, mencionei-o a um amigo que, na ocasião, vivia num mosteiro em França. Supus que a narrativa pudesse ser interessante para alguém que deveria ver muito menos cinema do que eu, mas a resposta deixou-me estupefacto: “Tu também viste A Festa de Babette?!”, redarguiu. “O nosso professor de Teologia passou-nos o filme, sobre o qual fizemos um trabalho de análise.” E descreveu-mo como uma espécie de parábola espiritual, cujo banquete é comparado à Última Ceia, um ritual litúrgico, por assim dizer, no qual o general Loewenhielm desempenha o papel de celebrante. “E Babette?” Respondeu-me: “Não estás a ver quem é Babette? Foi ela quem deu tudo.” Confesso que fiquei um bocado perplexo com esta inesperada conotação, mas não pude deixar de reconhecê-la como uma leitura possível, que estimula um debate mais aprofundado.
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UV SOBREMESA
fruta fresca em pleno dezembro O General Loewenhielm já não se maravilhava de nada. Quando, momentos depois, viu as uvas, os pêssegos e os figos frescos diante de si, riu para o conviva do outro lado da mesa e observou: - Que belas uvas! Babette é, na verdade, uma grande artista, a quem um bilhete de lotaria permite reencontrar a sua superlativa arte culinária e que, através do paladar, redime uma comunidade envelhecida que renuncia voluntariamente aos prazeres do mundo. Comungo a dimensão pagã deste ancestral poder culinário, que reconciliou consigo própria uma congregação austera e puritana, cujas práticas religiosas haviam perdido eficácia redentora. Através deste filme, Gabriel Axel aproxima o espectador do estado de graça que os convivas encontram no final do banquete, suscitado por uma benévola embriaguez. Imune ao frio da noite, a recuperação colectiva de uma inocência perdida faz sentir as estrelas mais próximas. Talvez nisto resida a grandeza deste filme.
As citações em epígrafe foram retiradas da obra de Karen Blixen, A Festa de Babette e Outras Histórias do Destino, Edições Asa, 1995.
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Também é possível que um filme tenha simplesmente que
aparecer na altura certa. A Festa de Babette apareceu na altura certa, logo depois de Pollack ter chamado a atenção
para Blixen com o seu África Minha. A Festa de Babette foi simplesmente a história certa com as pessoas certas na altura certa. Não se pode prever nada disto em cinema.
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Ficha técnica Edição:
Cineclube de Guimarães
Coordenação Editorial: Paulo Cunha Rui Silva Samuel Silva
Textos:
Manuel Miranda Fernandes Paulo Cunha Rui Silva Samuel Silva
Design:
Alexandra Xavier
ISSN:
2183-1734 6 de Maio de 2014 35