P U BLICA ÇÃ O TRIM ES TRA L M A IO 2015 IS S N 2183-1734
Alejandro Jodorowsky
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Alejandro Jodorowsky
Anarquia Venerado por fãs do cinema de culto e ao mesmo tempo rejeitado por grande parte dos críticos, Alejandro Jodorowsky apresenta nos seus filmes visões estranhas, mágicas e violentamente surreais que não são de fácil categorização ou compreensão. Os seus filmes concluídos são em número reduzido (apenas oito até à data, dois dos quais renegou posteriormente) e são tipicamente associados ao movimento de contracultura da década de 1960 e início da década de 1970, sobretudo ao subgénero «head film» (filmes experimentais) e ao fenómeno «midnight movie» (sessões da meia-noite). Enquanto realizadores canónicos como Buñuel e Fellini eram críticos da sociedade celebrados internacionalmente, Jodorowsky (que escreveu, realizou, musicou, e muitas vezes protagonizou os seus filmes) espreitava das margens do mundo do cinema,
trazendo a sua sensibilidade distintamente surreal e esotérica para o ecrã, em filmes polémicos como Fando y Lis (1968), El Topo (1970) ou A Montanha Sagrada (1973). Embora estes filmes não pareçam hoje mais datados do que muitos outros filmes do movimento de «contracultura» da mesma época (como alguns filmes que Godard realizou, por exemplo), os críticos não têm sido lestos na reavaliação das obras de Jodorowsky. Uma razão iminente para tal foi a disponibilidade muito limitada dos seus filmes devido a longas disputas de direitos de propriedade, e durante muitos anos a maior parte deles circulou como cópias piratas de má qualidade, distribuídas por comerciantes de filmes de culto. O tempo dirá se a sobrevalorização do seu cinema resistirá à reavaliação crítica à medida que for redescoberto por uma nova geração de cinéfilos. 4
Alejandro Jodorowsky nasceu a 7 de Fevereiro de 1929, no seio de uma família de emigrantes judeus oriunda da Ucrânia, na pequena cidade mineira costeira de Iquique, nos desertos do norte do Chile. Quando tinha oito anos, sua família mudou-se para a capital, Santiago, onde ele ficou fascinado com o anarquismo e viria a frequentar a universidade durante dois anos, estudando psicologia e filosofia. Abandonou depois os estudos e trabalhou alternadamente como palhaço de circo, ator de teatro e encenador, desenvolvendo uma predileção muito especial por marionetas e mímica devido ao seu intenso fascínio pela expressão física. Aos 23 anos, formou a sua própria companhia de teatro e procurou aprofundar a sua educação em Paris, onde estudou mímica com Etienne Decroux antes de se juntar à trupe do famoso aluno de Decroux, Marcel Marceau. Durante os seis anos seguintes, Jodorowsky escreveu várias das obras mais notáveis de Marceau, como A Jaula e O Fabricante de Máscaras, e embarcou numa turné mundial com o mímico francês. É frequente haver cenas de mímica nos seus filmes, como os números de mendicidade cómicos executados pelo renascido El Topo no filme homónimo, ou o dramático número mãe/filho que ocupa lugar central em Santa Sangre (1989). Existe uma influência teatral na série de imagens, paisagens e quadros que compõem os seus filmes, muitas vezes rodados com uma câmara estacionária (ou que se move lentamente), dependendo da pantomima e da expressividade física, de forma a transmitir a força da ação. O diálogo falado tende a ser usado um pouco mais escassamente, muitas vezes assumindo a forma de aforismos.
e Alquimia
De França, Jodorowsky viajou de seguida para o México, onde viria a encenar mais de cem peças, incluindo muitas peças avant-garde e surrealistas que eram controversas na altura, da autoria de escritores como Beckett, Ionesco, Arrabal, Adamov e Strindberg. Embora algumas dessas peças tenham sido encenadas para o público no Teatro Nacional, outras foram levadas ao palco em zonas rurais mexicanas para as classes mais desfavorecidas; segundo Jodorowsky, era perfeitamente possível manter esses públicos interessados em conteúdo filosófico colocando duas mulheres nuas no palco durante os espetáculos. De certa forma, esta encenação de visuais transgressivos e potencialmente lascivos ao lado de temas filosóficos e artísticos sérios é um sinal indicador dos filmes que ele viria a realizar anos mais tarde. 5
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MENTES PERIGOSAS Não tinha nenhuma experiência quando filmei A Gravata, mas pode-se apreciar que eu já era um realizador. Um artista precisa de ser como Jean Cocteau – esquizofrénico. Necessita de ser muitas pessoas ao mesmo tempo, e não apenas uma.
– Jodorowsky
Em 1957, realizou o seu primeiro filme, A Gravata, uma mímica de 20 minutos baseada na novela As Cabeças Trocadas (1940), de Thomas Mann. O filme conta a história do desejo de um homem de conquistar o amor de uma mulher. Para tal, recorre aos serviços de uma loja que permite aos clientes trocarem de cabeça, mudando assim de personalidade. O jovem troca a sua cabeça por modelos diferentes e, embora o seu corpo continue enamorado pela mulher dos seus sonhos, a proprietária da loja, uma mulher jovem, apaixona-se pela cabeça original do homem e leva-a para casa. A moral do filme é que nunca se deve perder a cabeça por um amor não correspondido e tentar encontrar alguém que nos ame como somos. Jean Cocteau gostou tanto deste filme bizarro e divertido que lhe redigiu uma introdução. A Gravata é digno de nota porque assinala a primeira tentativa de Jodorowsky de integrar no cinema a sua experiência com a mímica e o teatro, um projeto que iria continuar nos seus filmes posteriores.
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Movimento Pânico deus Pã (palavra grega que significa «totalidade»), o conceito de artista «Pânico» também significava alguém cuja produção criativa era polivalente, cruzando muitos meios de comunicação diferentes a fim de evitar uma categorização simples; artistas como Cocteau, Leonardo da Vinci e Pier Paolo Pasolini foram inspirações para Jodorowsky. Nesta época, Jodorowsky escreveu três livros, iniciou uma popular história de BD semanal chamada «Fábulas Pânicas» num jornal mexicano e realizou um happening de quatro horas chamado «Melodrama Sacramental» em maio de 1965, no II Festival de Liberdade de Expressão de Paris. [Filmagens deste happening podem ser vistas no documentário La Constellation Jodorowsky, realizado em 1995 por Louis Mouchet.] Em «Melodrama Sacramental» acontecem todos os tipos de atos caóticos e surreais: vemos o próprio autor torcer as cabeças a dois gansos enquanto a sua indumentária de couro é rasgada por mulheres em topless, usando uma cruz de madeira (com uma galinha crucificada nela) como um falo gigante; vemos a castração simbólica de um rabino e uma enorme vagina de plástico a vomitar tartarugas
Durante a década de 1960, Jodorowsky viajou entre o México e Paris. Grandemente inspirado pelo surrealismo e determinado a revigorar esse movimento artístico, contactou André Breton em Paris, mas ficou consternado ao saber que ele se tinha tornado muito conservador na velhice à medida que o surrealismo era aceite e incorporado na cultura mais elitista. Enquanto Breton continuava interessado num movimento poético e fantástico, Jodorowsky foi mais influenciado por elementos da cultura popular juvenil que Breton não apreciava – como a música rock, a ficção científica, a pornografia e a banda desenhada: tudo aspetos que contribuiriam para o seu trabalho posterior. Juntamente com o dramaturgo do absurdo (e posteriormente cineasta) Fernando Arrabal e o escritor, artista e animador Roland Topor, Jodorowsky fundou o «Movimento Pânico» em 1962 como forma de ir mais além do surrealismo ao abraçar a irracionalidade, o mistério e o absurdo, enfatizando uma sexualidade explosiva, um destemido sentimento de rebelião e o colapso de todos os tempos no momento presente. Batizado em homenagem ao 8
adormecidos no inconsciente do espectador. Citando Erich von Stroheim e Buster Keaton como inspiração, Jodorowsky orgulha-se das qualidades «milagrosas» que se desvendam (quase teatralmente) dentro da própria imagem enquadrada de forma realista: por exemplo, em El Topo, filmou em plena luz do dia, usando alguns close-ups dos atores e abstendo-se de técnicas e efeitos de montagem, a fim de conferir uma sensação imediata de realismo aos elementos imaginários em jogo. Da mesma forma, A Montanha Sagrada começa como um conto de fadas, com planos cuidadosamente trabalhados, mas à medida que as personagens se aproximam do seu objetivo final de alcançar a imortalidade através da iluminação, uma câmara à mão de estilo mais documentarista impõe-se gradualmente, até ao momento em que Jodorowsky termina o filme com uma invocação direta ao espectador para que mude o seu próprio sentimento de realidade. Também filmou muitas cenas em locais reais, muitas vezes utilizando atores não profissionais, como transeuntes que encontrou (por exemplo, as ruas poluídas e cheias de prostitutas da Cidade do México em Santa Sangre)..
vivas e outros objetos para o público – tudo acompanhado pelo som constante de uma banda rock ao vivo. Este espetáculo ilustrava o desejo de Jodorowsky de criar espetáculos teatrais que, na ausência de um texto escrito, não poderiam ser repetidos. As ideias de Jodorowsky sobre teatro e cinema inspiram-se diretamente no escritor surrealista Antonin Artaud – Jodorowsky chegou mesmo a mencionar que O Teatro e o seu Duplo de Artaud era a sua «bíblia», e foram as viagens de Artaud ao México que inspiraram a própria obra de Jodorowsky nesse país. Artaud queria criar um Teatro da Crueldade que abandonasse o texto escrito e a linguagem falada e basear as atuações numa linguagem visual de símbolos violentos e humorísticos (muitas vezes usando marionetas e a mímica para veicular um significado) que afetaria diretamente o inconsciente do espectador e lhe provocaria uma rutura da realidade normativa através da excitação psíquica. Jodorowsky faz eco destes sentimentos quando afirma que seus filmes estão densamente pejados de camadas com símbolos (por exemplo, os símbolos do tarô) a fim de ativar símbolos universais 9
O fundo poรงo do grotesco
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Estes métodos surrealistas encontram a sua expressão na sua primeira longa-metragem, Fando y Lis, baseada na peça de Arrabal sobre dois jovens amantes numa absurda viagem pelo deserto para alcançarem uma cidade mítica chamada Tar. Desejoso de escapar ao texto escrito, Jodorowsky realizou o filme usando apenas a sua memória da produção em palco e uma única página de argumento. Removeu as personagens secundárias existentes na peça, substituindo-as por uma série de encontros surreais e transgressores que dificultam o progresso dos amantes num mundo pós-apocalipse nuclear. Rodado aos fins de semana durante mais de dois anos, o filme beneficiou de uma certa dose de realismo por alegadamente retratar a violência real sobre os atores: segundo o folheto da estreia do filme, «Os atores, suportando uma verdadeira Via Sacra, foram despidos, torturados e espancados. Nunca foi usado sangue artificial.» Embora estas afirmações fossem um pouco exageradas, o produto final continua a ser uma peça de arte perturbadoramente sadomasoquista. Isento da pletora de símbolos religiosos místicos orientais encontrados em filmes subsequentes de Jodorowsky, Fando y Lis foi erroneamente comparado a Satyricon de Fellini (1970), apesar de ter sido feito dois anos antes do filme do realizador italiano. Dividido em cantos numa alusão a A Divina Comédia de Dante, a fábula começa com Fando a empurrar um carrinho onde segue a sua amante paralítica Lis, um tambor e um gramofone através do deserto em busca de Tar, a última cidade que restou no mundo. Ambos são inocentes como crianças, mas essa faceta depressa fica manchada por um encontro com burgueses decadentes que festejam no meio de ruínas ao som de um piano em chamas, alheios ao mundo destruído à sua volta; por mero entretenimento, as mulheres seduzem Fando; Lis, entretanto, recorda como foi atraída por uma figura semelhante a um Deus a manejar marionetas (interpretado pelo próprio Jodorowsky) e violada por três homens quando era criança. Fando maltrata a indefesa Lis como faria a um brinquedo, batendo-lhe e ameaçando deixá-la. Desesperados com aquela demanda absurda, os protagonistas percebem gradualmente que Tar só existe dentro das suas próprias mentes e representa um ideal inatingível: Deus, o paraíso, a felicidade. Depois de Fando espancar Lis até à morte, ela torna-se uma
figura santa não oficial para as gentes locais, que lhe arrancam pedaços da carne para tomarem como a hóstia da comunhão; enlouquecido junto ao túmulo dela, Fando fica recoberto de ervas daninhas enquanto implora repetidamente à amada que fale com ele. Anunciado como um «Filme Pânico», Fando y Lis estreou no Festival de Cinema de Acapulco em 1968, onde quase irrompeu um motim durante a projeção devido às imagens blasfemas, violentas e provocadoras, sendo o realizador alvo de ameaças de morte por uma multidão enfurecida à sua espera no exterior do cinema.
Na época, o México produzia apenas um cinema muito popular; histórias de amor cor-de-rosa, sem nenhuma preocupação metafísica. Quando exibiram Fando y Lis, um filme totalmente realizado fora da estrutura estabelecida, isso provocou um efeito de bomba, pois encararam-no como um insulto. Tentaram linchar-me, e tive que sair da sala de cinema escondido no fundo de um carro com os faróis desligados para poder escapar no escuro. Para eles, eu tinha violado o cinema mexicano. – Jodorowsky
Parte desta reação furiosa do público ao filme devia-se a tensões políticas recentes no México, onde centenas de grevistas e manifestantes estudantis desarmados haviam sido mortos pela polícia e por tropas militares no «Massacre de Tlatelolco», na Cidade do México, no mês anterior. Embora o filme tivesse sido proibido no México, foi encurtado em 13 minutos e remontado para uma breve temporada de projeções em Nova Iorque, onde foi mal recebido antes de sair de circulação. Durante os anos em que o filme foi considerado «extraviado», corria o rumor de que a misteriosa estreia cinematográfica de Jodorowsky teria sido um documentário real sobre o massacre de Tlatelolco. 11
No entanto, o escândalo em torno de Fando y Lis foi suficiente para garantir o financiamento para o filme seguinte de Jodorowsky, filmado no México: o western surrealista El Topo. Ao referir-se a El Topo («A Toupeira»), declarou o seguinte: «Peço ao cinema aquilo que a maior parte dos norte-americanos pede às drogas psicadélicas.» El Topo visa, pois, ser lido não como um produto da própria mente de Jodorowsky, mas como um processo de iluminação espiritual semelhante às sensações religiosas vividas por muitos dos elementos da contracultura que usavam drogas; evidentemente que a reputação do filme como «head film» contribuiu para esta intenção, já que muitos espectadores viam o filme sob a influência dessas substâncias. Contudo, El Topo é, em muitos sentidos, uma demanda pessoal de Jodorowsky por uma identidade iluminada que consiga transcender a morte. O filme abre com o pistoleiro referido no título e o seu filho nu (interpretado por Jodorowsky e pelo seu filho Brontis, respetivamente) a cavalgarem através do deserto, onde o filho é instruído a enterrar o seu primeiro brinquedo e a foto da mãe para se tornar um homem.
Topo a provar seu amor por ela matando os quatro Mestres do deserto e tornando-se o melhor pistoleiro. El Topo tenta esquivar-se a matar os três primeiros mestres, que são todos muito mais espiritualmente iluminados do que ele. O Quarto Mestre opta por se matar para provar a El Topo quão pouco a vida significa. Humilhado por esta vitória desonrosa, El Topo percorre o deserto, destrói a sua arma e assume uma pose de autossacrifício crístico enquanto é morto a tiro por uma Mulher de Preto que se tinha juntado previamente a eles e que sadicamente cobiça Mara. Incapaz de aceitar este homem emasculado, Mara opta por partir com a Mulher de Preto enquanto o corpo de El Topo é arrastado para longe por um grupo de pessoas deformadas. El Topo desperta anos mais tarde, renascido numa caverna subterrânea cheia de pessoas deformadas em resultado de relações incestuosas. Embora seja aí adorado como uma divindade, declara imediatamente que é apenas um homem e não um deus. Sobe à superfície na companhia de uma anã e entram numa cidade fronteiriça profundamente burguesa, onde as
No genérico de abertura, somos informados de que a toupeira vive no subsolo e procura o sol; por vezes, as suas deslocações trazem-na à superfície, onde fica encegueirada. Após esta metáfora central, o filme divide-se em quatro secções bíblicas: Génesis, Profetas, Salmos e Apocalipse. El Topo e o filho chegam a uma cidade banhada de sangue onde bandidos violaram e massacraram centenas de pessoas. El Topo mata-os e de seguida procura o cabecilha numa missão franciscana para o castrar. Anunciando «Eu sou Deus», El Topo deixa o seu filho entregue aos cuidados dos monges sobreviventes da missão e parte com a jovem Mara que resgatou dos bandidos. El Topo consegue viver no deserto invocando milagrosamente comida e água do solo, mas Mara não consegue – pelo menos até que El Topo a viola para libertar o primeiro orgasmo dela. Mara obriga então El
crenças puritanas sectaristas mascaram uma corrente subterrânea de racismo socialmente sancionado, colonização, exploração económica, deboche e violência: por exemplo, os escravos negros estão amarrados e são marcados a ferro quente por mera diversão enquanto não são vendidos, ou então são falsamente acusados de estupro por mulheres lascivas brancas. El Topo e a anã são pagos para terem sexo na presença de uma plateia zombeteira num bordel, após o que se casam, apenas para logo descobrirem que o filho crescido de El Topo, Brontis, é o sacerdote da cidade. Brontis jurou matar o pai por o ter abandonado, mas poupa El Topo até as escavações do túnel para libertar os habitantes da caverna terem terminado. Vestido como El Topo era outrora, Brontis não consegue matar o seu pai quando o túnel fica concluído, enquanto um mar de pessoas
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deformadas avança para a cidade, onde acaba por ser massacrada. Com uma força sobre-humana, El Topo resiste às balas dos pistoleiros citadinos e mata-os a todos, imolando-se de seguida, enquanto Brontis, a anã e o seu bebé recém-nascido cavalgam para longe. El Topo foi projetado em Nova Iorque durante mais de um ano, alegadamente como o primeiro filme das míticas «sessões da meia-noite», arrecadando grandes lucros e um considerável público de culto. (Ainda escandalizado com Fando y Lis, o México recusou deixar El Topo representar o país no Festival de Cannes.) John Lennon ficou tão impressionado com o filme que pediu a Allen Klein, o manager dos Beatles, para comprar os direitos de distribuição e financiar grande parte do orçamento para o próximo filme de
Jodorowsky. Embora alguns críticos da imprensa alternativa tivessem proclamado El Topo como um dos melhores filmes já feitos, os críticos da corrente dominante afirmavam que não passava de uma pretensiosa salgalhada de uma violência excessiva e imagens surreais cruas, sem um objetivo específico que não a exploração da contracultura. O western, como um género cinematográfico fundamentalmente americano (embora os westerns spaghetti de Sergio Leone também tenham sido uma inspiração), fornece uma estrutura narrativa e uma iconografia com que Jodorowsky joga, quase ao ponto de uma paródia descarada. O herói, maior do que a vida, exemplificado por El Topo na primeira metade do filme torna-se o seu oposto ao renascer como um El Topo «iluminado». 13
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O cinema como meio para alcançar a iluminaçãAo espiritual Baseado no romance inacabado O Monte Análogo de René Daumal e n’A Ascensão do Monte Carmelo de São João da Cruz, A Montanha Sagrada (1973) continua a busca de Jodorowsky pela iluminação e é também uma crítica ao consumismo. Um ladrão semelhante a Cristo encontra um anão desfigurado e entram numa cidade onde turistas fotografam alegremente estudantes que estão a ser massacrados por soldados, enquanto homens dançam com a polícia e ícones religiosos são vendidos. Assistem aí a uma reconstituição em miniatura da «Conquista do México», com lagartos e sapos vestidos como astecas e conquistadores; armados com cruzes cristãs, os sapos conquistadores desembarcam das três naus ao som de uma marcha nazi antes que o sangue jorre das pirâmides e todo o cenário expluda. Depois de mais episódios estranhos e blasfemos, o Ladrão sobe um pilar gigantesco e descobre no interior o covil do Alquimista (interpretado por Jodorowsky). Depois de o Alquimista transformar os excrementos do Ladrão em ouro, oferece-se para fazer o mesmo à alma do Ladrão, introduzindo os industriais e políticos mais poderosos do mundo: ladrões de uma espécie maior que irão embarcar juntos numa jornada espiritual. Após estas sequências, o filme torna-se menos abertamente surreal e mais espiritualmente instrutivo (embora esta segunda metade do filme empalideça em comparação com a primeira parte). O Alquimista explica que existe uma montanha sagrada em cada tradição espiritual e que deseja conduzir estas pessoas ao cume de uma tal montanha na ilha de Lótus. Aí, irão combater um grupo de imortais e roubar o segredo da vida eterna. O Alquimista instrui-os a queimar o seu
dinheiro, a destruir as suas autoimagens e a desistir da sua individualidade enquanto participam numa série de cerimónias de iluminação antes de partirem para a ilha. Ao chegarem à ilha, encontram multidões de exploradores falhados, todos eles detentores de teorias sobre a Montanha Sagrada; por exemplo, um deles diz que a Montanha Sagrada se encontra em drogas como o LSD, mas o grupo não faz caso desta ideia, o que indica a crença de Jodorowsky de que as drogas, por si sós, não são suficientes para alcançar a iluminação. Cada um dos membros do grupo deve enfrentar provações estranhas e de pesadelo enquanto sobem a montanha. Perto do cume, o Alquimista deixa-os por conta própria enquanto atacam os imortais e diz ao Ladrão para procurar a eternidade através do amor de uma prostituta que o tem seguido fielmente ao longo da narrativa. O grupo descobre que os «imortais» são meros bonecos sentados à volta de uma mesa com o Alquimista. Este conta-lhes então que alcançaram a realidade em vez da imortalidade – e neste preciso momento, ordena à câmara que recue, revelando assim o equipamento de filmagem e a equipa. A ilusão do filme deve ser quebrada, explica ele, pois a «vida real espera-nos», sugerindo que o filme, como experiência espiritual, tem limites e que os espectadores devem procurar ativamente mudar as suas vidas após a experiência cinematográfica. A Montanha Sagrada estreou no Festival de Cannes de 1973, mas em Nova Iorque o seu lançamento foi mais discreto, pois o produtor Allen Klein receava que o filme não fosse suficientemente comercial para atrair o público.
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O produtor Allen Klein declarou-me guerra, e talvez tivesse razão. El Topo e A Montanha Sagrada arrecadaram muitos lucros nos Estados Unidos. De seguida, ele quis que eu adaptasse História d’O e eu queria fazer o Dune. Na altura de assinar o contrato, bati-lhe com a porta na cara e fugi. Ele decidiu então que mais ninguém no mundo iria ver os meus filmes. Destruiu as cópias que tinha à sua disposição, mas felizmente eu tinha conservado cópias em vídeo. Foi assim que iniciei uma verdadeira guerrilha: aonde eu fosse, distribuía as cópias gratuitamente. Era a minha guerra, e ganhei-a. Sim, eu desafiei o monstro. Ele é muito poderoso: ganhou processos contra os Rolling Stones, os Beatles, Phil Spector, enfim, os maiores e os mais ricos. Eu sabia em que laboratório mexicano podia encontrar os negativos. Entrei em contato com uma pessoa em Inglaterra e disse: «Vou-lhe dar os negativos para os lançar em vídeo. O Allen Klein irá tomar conhecimento disso e irá processálo. Você dirá que foi ideia minha e eu assumirei toda a responsabilidade.» E foi assim que se chegou ao processo judicial. Ao cabo de dois anos de processo, decidimos ter um encontro em Londres, em que eu iria rever uma pessoa que odiava há trinta anos. Quando ele abriu a porta, deparei-me com um senhor de cabelos brancos, como eu. Abraçámo-nos. E, em três, quatro minutos, voltamos a ser amigos. – Jodorowsky
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Carecendo da estrutura genérica de El Topo, A Montanha Sagrada mergulha mais descaradamente na evocação de uma viagem mística. No entanto, Jodorowsky também dirige ataques mais violentamente surreais à religião cristã, à cultura consumista e aos sistemas políticos das Américas do que no seu filme anterior. Independentemente dos seus alvos fáceis, A Montanha Sagrada é, em certos aspetos, um filme mais maduro, porque, apesar de toda a sua espiritualidade, mostra-nos Jodorowsky a atingir os limites das drogas, da violência e do próprio meio fílmico. Em comparação com a violência de Fando y Lis e a carnificina de El Topo ao estilo de Sam Pe-
ckinpah, a artificialidade do banho de sangue estilizado em A Montanha Sagrada é colocada em primeiro plano: por exemplo, quando os manifestantes estudantis são massacrados pela polícia, os agressores lançam baldes de sangue sobre o povo que se contorce, enquanto objetos estranhos (aves, comida, etc.) emergem dos ferimentos dos manifestantes. Jodorowsky mostra claramente os tubos e dispositivos que fornecem o sangue falso, como se abstraísse a brutalidade para ilustrar deliberadamente a incapacidade de a narrativa cinematográfica capturar ou reproduzir com precisão os horrores da violência reacionária. 17
Cary Grant em “Pride and Passion”.
Gloriosa insa Após A Montanha Sagrada, Jodorowsky começou a trabalhar na adaptação cinematográfica da ópera espacial épica de Frank Herbert, Dune. A dispendiosa coprodução internacional contaria com Brontis Jodorowsky como o herói messiânico, e com Orson Welles, Gloria Swanson, David Carradine, Udo Kier, Dalila Di Lazzaro , Mick Jagger e Salvador Dali. Cada um dos planetas do filme seria desenhado por um artista diferente de modo a refletir diferentes culturas e as naves espaciais deveriam parecer criaturas orgânicas semivivas. Jean «Moebius» Giraud, H. R. Giger, Dan O’Bannon e Christopher Foss tornaram-se parte da equipa criativa e os Pink Floyd e os Magma tinham sido contratados para comporem a maior parte das músicas do filme. Após um ano de pré-produção, os produtores de Hollywood recuaram, temendo que o filme não fosse suficientemente comercializável, e o projeto morreu. Viria a ser recupe18
anidade rado num documentário de 2013, realizado por Frank Pavich, que narra a ascensão e queda do «maior filme nunca feito». A própria versão de David Lynch, lançada em 1984, não colheu grande êxito nas bilheterias e quase destruiu a carreira do realizador.
Eu queria transformar o filme [Dune] num profeta: num meio artístico para iniciar a mutação dos seres humanos. Não se trataria de uma revolução política, mas de uma re-evolução poética! Eu queria criar um filme-Messias, tão profundo como um Evangelho, ou um Sutra. Os produtores ficaram assustados porque eu tinha proposto um argumento para um filme que duraria 14 horas.
À semelhança da maior parte das películas sobre a realização de filmes, Dune de Jodorowsky é uma celebração da procura da grandeza cinematográfica numa indústria, ou mesmo num mundo, que não a percebe ou não está preparado para a receber. No entanto, a vantagem deste documentário em comparação com outros do género é que a verdade por trás desta adaptação do romance icónico de Frank Herbert é genuinamente mais estranha do que a ficção, uma tapeçaria de ideias antes do seu tempo. Ao contrário do seu assunto, Dune de Jodorowsky é surpreendentemente convencional como documentário, mas
– Jodorowsky
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acontecido e, mais importante ainda, que teria sido brilhante. Louco, indiscutivelmente, mas brilhante. Dune de Jodorowsky teria precedido o Star Wars de George Lucas e muito provavelmente teria alterado a paisagem de Hollywood como a conhecemos atualmente. Porém, se Dune de Jodorowsky tivesse sido concluído e lançado, o universo Star Wars de Lucas talvez não tivesse existido. E se Jodorowsky não tivesse recrutado o artista suíço Giger como argumentista e Dan O’Bannon para os efeitos visuais, o Alien de Ridley Scott talvez nunca tivesse acontecido. Após a interrupção do projeto Dune, Jodorowsky e Giraud começaram a colaborar em O Incal, uma série de livros de BD que concretizou muitas das ideias do projeto abandonado Dune. Ainda hoje, Jodorowsky continua a escrever em colaboração (sobretudo ficção científica) com muitos dos grandes artistas de BD da Europa, e sua reputação como um dos escritores mais famosos do mundo da BD já ultrapassou a sua reputação como realizador de cinema em muitos círculos.
nenhum dos narradores do filme é tão cativante quanto o próprio Jodorowsky, que aos 85 anos ainda exsuda juventude, uma exuberância contagiosa e uma crença destemida. Complementando o relato do desenvolvimento do projeto do filme, temos entrevistas com críticos e cineastas como Richard Stanley (Hardware) e Nicolas Winding Refn (Drive), que destacam a lenda do projeto que influenciou gerações de realizadores. A paixão de Jodorowsky pelo projeto é manifestamente contagiante. Dune de Jodorowsky é uma homenagem às idiossincrasias de mentes verdadeiramente talentosas, e um lembrete glorioso para que os cineastas sonhem em grande. De certa forma, é totalmente compreensível que o filme de Jodorowsky nunca tenha acontecido, pois nenhum estúdio estava disposto a financiar um filme de 14 horas que, entre muitas outras coisas, apresentava um espermatozoide a navegar através da vagina de uma mulher para conceber o Messias da Humanidade. Mas o entusiasmo coletivo de Jodorowsky e dos seus colaboradores faz-nos acreditar que o filme poderia ter
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O primeiro filme renegado O filme seguinte de Jodorowsky (adaptado de um romance de Reginald Campbell) seria um filme francês, destinado ao público juvenil, chamado Tusk (1980), passado na Índia durante a era da colonização britânica. Anunciado no genérico de abertura como uma «Fábula Pânica», centra-se numa jovem inglesa chamada Elise que nasceu ao mesmo tempo que um elefante chamado Tusk. Elise faz amizade com o paquiderme e salva-o do cativeiro antes de voltar para Inglaterra para a sua educação formal. Ao regressar à Índia como jovem mulher, Elise salva Tusk da morte depois de o animal se insurgir violentamente durante uma cerimónia; mas, depois de Tusk matar outro elefante
para salvar Elise certa noite, é vendido a caçadores de marfim. O pai de Elise acaba por mudar de ideias e tenta localizar Tusk para aplacar a filha. Ao encontrar Tusk, este escapa do cativeiro mas vem a cair na armadilha dos caçadores furtivos. Tusk consegue escapar e faz descarrilar um «Comboio Sagrado» usada por um padre britânico para viajar pelo país e subornar o povo a abraçar o cristianismo dando-lhe arroz. Os caçadores furtivos raptam Elise, mas Tusk salva-a e ela reúne-se com seu interesse amoroso humano. O filme termina com o pai de Elise a queimar o seu uniforme e a juntar-se a uma cerimónia em honra de Xiva enquanto Tusk se afasta para a floresta selvagem. 22
Quando terminei Tusk, o produtor era um ladrão. Disse-me que estava sem dinheiro e que o filme que eu tinha feito era apenas a primeira versão, mas devia ter tido mais meia hora de extensão. E nunca pude montar o filme e retirar as sequências de que eu não gostava. Se puder tirar aquilo de que não gosto, poderia ser um filme muito agradável para o público juvenil. – Jodorowsky
Psicomagia Durante a década de 1980, Jodorowsky desenvolveu uma nova forma de terapia chamada «psicomagia». A psicomagia alia a psicanálise junguiana a formas de superstição e misticismo (por exemplo, o tarô) que abordam o tema do inconsciente. Esta terapia baseia-se na crença numa «família inconsciente», com relações familiares passadas (que se estendem ao longo de várias gerações) que controlam todos os aspetos das relações e conceções do mundo atuais de uma pessoa. «Se quero compreender-me a mim mesmo», diz Jodorowsky, «tenho de compreender a minha árvore genealógica, porque estou permanentemente possuído, como no vudu. Mesmo quando cortamos os laços com a nossa família, continuamos a carregar essa família dentro de nós. No nosso inconsciente, as pessoas estão sempre vivas. Os mortos vivem connosco. [...] Explorar a árvore genealógica significa comprometer-se numa batalha feroz com o monstro, como num pesadelo.»
Jodorowsky reconhece que, como filme infantil, Tusk é «uma história de BD em duas dimensões» com personagens caricaturais, faltando-lhe a intensidade simbólica dos seus filmes anteriores, embora Tusk represente o elefante-deus Ganesh, uma força de «espiritualidade sexual» que não pode ser contida pela colonização e dominação britânicas. Como espécie em via de extinção, usada ao serviço do «progresso» como uma besta de carga, o elefante simboliza a morte de crenças sagradas sob o regime das leis dos colonizadores brancos. Considerando o filme uma deceção, em que foram feitos muitos compromissos criativos devido à falta de recursos, Jodorowsky viria a renegar o filme, que receberia críticas pouco abonatórias. 23
Gore, surrealismo circense As ideias da psicomagia iriam moldar o filme seguinte de Jodorowsky, Santa Sangre (1989), para o qual aceitou honorários mínimos em troca de um controlo criativo total. O filme conta a história de Fenix (Adan Jodorowsky), um menino que cresce no «Circo del Gringo», na Cidade do México, gerido pelo seu pai Orgo, um expatriado americano. Concha, a mãe de Fenix, lidera uma igreja chamada Santa Sangre cujo mártir é uma jovem que foi violada e a quem deceparam os braços e deixaram a morrer numa poça de sangue que nunca secou. Os buldózeres de um empreiteiro destroem a igreja após o cardeal local a declarar uma farsa e uma heresia. Entretanto, Orgo executa um ato de arremesso de facas (com conotações fálicas flagrantes) com a Mulher Tatuada do circo, que adotou uma menina surda-muda que faz amizade com Fenix. Orgo inicia Fenix na idade adulta com uma grande tatuagem de uma águia (como em El Topo, um símbolo retirado do dólar americano) no
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morta. A menina surda-muda vai para a casa de Fenix, mas, em vez de a matar, ele mata a sua mãe – que diz que nunca estará fora da sua vida porque está dentro dele –, apenas para descobrir que ela sempre esteve morta e que ele tem feito a mímica com um manequim em tamanho natural dela. Tendo finalmente recuperado as suas mãos, Fenix e a menina entregam-se à polícia. Santa Sangre é um filme muito mais acessível e menos obscuramente místico do que os seus trabalhos anteriores, em parte devido às convenções do género de terror. Alegadamente inspirado na história verídica de um mexicano chamado Gojo Cardinas que matou dezenas de mulheres sob a aparente influência de sua mãe antes de ser encarcerado e reabilitado, Santa Sangre é, em muitos aspetos, uma releitura inovadora do Psycho de Hitchcock (1960), cujo subtexto psicossexual é aqui plenamente exposto com um simbolismo evidente (por exemplo, Concha, o nome da mãe castradora, é um termo do calão espanhol para vagina). Segundo Jodorowsky, o filme inspirou-se nas suas próprias memórias do circo da sua infância, e da «relação terrível» com a sua mãe, que alegadamente tentou viver através dele e a quem dava pouco afeto. Jodorowsky também descreve o filme (cujo argumento demorou seis anos a escrever) como um processo de psicanálise emocional e de procura da redenção devido ao seu passado misógino (como evidenciado em Fando y Lis), a sua incapacidade de amar, a relação com os seus filhos e o seu regresso ao cinema. Porém, por mais pessoal que o filme seja, Santa Sangre continua a veicular uma certa crítica política, seja por via das estrelas e riscas da bandeira americana que engalanam o circo gringo, dos moradores dos bairros de lata a morrerem à fome e a procurarem comida no lixo do circo gringo, a igreja sincrética de Santa Sangre a ser destruída por autoridades católicas e empreiteiros gananciosos, etc. O filme recebeu críticas mistas, mas muitos elogiaram-no como um regresso válido de Jodorowsky, que há quase duas décadas não lançava um filme.
e catarse peito. Quando Concha descobre Orgo e a Mulher Tatuada em flagrante delito, deita-lhe ácido nos órgãos genitais, mas, em vingança, ele corta os braços da mãe antes de se matar. Anos mais tarde, um Fenix adulto (Axel Jodorowsky) vive como um animal num asilo; depois de ver a Mulher Tatuada na rua durante a noite, escapa do asilo e encontra a sua mãe, agora sem braços. A Mulher Tatuada é violentamente morta por um assaltante invisível, e a menina surda-muda escapa assim da sua abusiva custódia. Entretanto, Fenix tornou-se os braços de sua mãe, e juntos representam o relato bíblico da criação. Ele quer reproduzir o ato fálico de arremesso de facas do seu pai com uma stripper amigável, mas a sua mãe, cheia de ciúmes, obriga-o a matar a mulher. Torturado pelas suas ações, Fenix desaparece e tenta encontrar o amor na figura da Mulher Mais Forte do Mundo, uma lutadora descomunal que ele se convenceu de que consegue combater as suas compulsões homicidas, mas também ela acaba 25
O segundo filme renegado A rodagem de O Ladrão do Arco-íris foi uma verdadeira luta com a pessoa que escreveu o argumento [Berta Dominguez] e com o marido dela, Alex Salkind. Ele já tinha produzido um dos filmes do Super-Homem, ou algo do género. Ela queria um filme de ação e um filme intelectual ao mesmo tempo, e depois, quando terminei as filmagens, ela pegou no filme e pôs-se a cortar todas as cenas de ação e as cenas intelectuais. E, agora, estou à espera que alguém mostre a minha versão. Talvez um dia alguém venha a encontrar a minha versão e as pessoas digam que é um bom filme. – Jodorowsky
O Ladrão do Arco-Íris, realizado em 1990, foi uma mera encomenda que Jodorowsky aceitou realizar. Alexander Salkind alegadamente produziu o filme como um presente para a sua mulher Berta Domínguez D., que escreveu o argumento. Jodorowsky tinha sido convidado na condição de que respeitasse o argumento, não incluísse cenas de violência e não causasse nenhum atrito com o elenco e a equipa de filmagem. Passado numa espécie de cidade moderna dickensiana, o excêntrico príncipe Meleagre (Peter O’Toole) está destinado a herdar uma fortuna do seu tio em coma, Rudolf (Christopher Lee). Enquanto a família de Rudolf briga pela herança, o príncipe decide refugiar-se nos esgotos. Um ladrão chamado Dima (Omar Sharif) torna-se seu servo depois de lhe ter sido prometida uma parte da herança; mas quando Rudolf finalmente morre, lega todo o seu dinheiro a um bordel.
O príncipe estudioso do tarô repudia o dinheiro, alegando que descobriu uma transformação alquímica da alma que consegue transcender a morte. Dima parte a bordo de um navio, mas regressa para resgatar o príncipe durante uma inundação violenta, apercebendo-se finalmente da verdadeira amizade que os une. O príncipe deixa-se afogar, mas Dima, depois de escapar dos esgotos, encontra o cão de peluche do príncipe, repentinamente renascido e a boiar entre os destroços, e ambos partem para longe. Apesar da estranha atmosfera das ruas e de um protagonista messiânico que apregoa o valor do tarô e da alquimia sobre a riqueza material, há pouco que sugira a influência de Jodorowsky neste filme medíocre, e daí que ele o tenha renegado.
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Em 2000, Jodorowsky recebeu o prémio Jack Smith Lifetime Achievement Award no Chicago Underground Film Festival. Foi por via do documentário Dune de Jodorowsky (2013) que Jodorowsky conheceu Michel Seydoux, o homem que viria a financiar-lhe o projeto seguinte, A Dança da Realidade. Trata-se de uma adaptação ao cinema da sua autobiografia surreal homónima e conta uma versão distorcida da sua infância difícil. O filme oferece aos espectadores um olhar semiautobiográfico da sua juventude na remota cidade chilena de Tocopilla no início da década de 1930, com o cineasta servindo tanto de narrador como de guia no ecrã. A primeira metade concentra-se no jovem Alejandro (Jeremias Herskovits) e na relação complicada com o seu pai Jaime (Brontis Jodorowsky), um bruto obcecado com Estaline e determinado a tornar o filho um homem por todos os meios necessários; a mãe, Sara (Pamela Flores), é excessivamente amorosa e pronuncia literalmente cada palavra como uma ária de ópera. Na segunda me-
tade, o filme concentra-se em Jaime e na sua dramática conversão de comunista em radical, abandonando a sua família e partindo numa missão para assassinar o líder militar odioso, Carlos Ibanez (Bastian Bodenhofer), uma missão que ameaça deixá-lo tanto física como espiritualmente estropiado. As críticas internacionais foram quase unânimes na apreciação do filme: «excecional», «brilhante», foram alguns dos adjetivos usados. O seu novo filme, Poesia Sem Fim, anunciado para 2016, irá basear-se na segunda metade do mesmo livro que serviu de base a A Dança da Realidade, que descreve a juventude do autor na animada Santiago de Chile. A vida do realizador tem sido um constante esforço para expandir a sua imaginação e combater os seus próprios limites para apreender a controlar o potencial de libertação que reside dentro de cada um de nós. Para poder financiar este seu projeto mais recente, Alejandro Jodorowsky apelou à ajuda financeira dos seus fãs, como o fizera já no seu filme anterior, A Dança da Realidade.
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Os projetos inaca Para além de continuar o seu trabalho com a psicomagia, o tarô e a BD, Jodorowsky escreveu alegadamente uma espécie de sequela de El Topo, inicialmente intitulada The Sons of El Topo (que iria contar com Marilyn Manson e Johnny Depp) e depois reintitulada The Sons of El Toro e finalmente Abel Cain: após um apocalipse nuclear, toda a paisagem se converteu numa ruína desértica, à exceção de uma pequena ilha paradisíaca onde El Topo está enterrado. Apesar de ser visível e aparentemente acessível, todas as tentativas para entrar na ilha resultaram sempre num desastre. Os filhos de El Topo, Caim e Abel, foram separados em crianças porque El Topo previa que Caim iria matar Abel. Mas quando saqueadores malévolos roubam o corpo da mãe dos jovens para tentarem entrar na ilha, os irmãos unem-se para sepultarem a mãe ao lado do pai. Não só devem superar um inimigo adepto de bruxaria tecnológica, como devem superar a maldição que marca o seu destino. Também chegou a correr o rumor de que Jodorowsky estava a produzir um film noir chamado Tryptych, bem como um filme metafísico de gângsteres que tinha por título King Shot, produzido por David Lynch e que contaria com um casino no meio do deserto na forma
da cabeça de Cristo, um homem do tamanho do King Kong, Marilyn Manson no papel de um papa com 300 anos e Nick Nolte num outro papel. Mas nenhum desses projetos foi concluído até à data. A par da sua carreira cinematográfica, Jodorowsky desenvolveu uma prolífica produção como romancista, ensaísta, dramaturgo, encenador, escritor e desenhador de BD. Desde meados da década de 1970, formou parte do grupo os Humanoides Associados com outros escritores e desenhadores de BD especializados no género fantástico e ficção científica, vinculados à revista Métal Hurlant. Após a realização do seu filme Tusk, iniciou o projeto de BD El Incal, em colaboração com Moebius, que colheu um êxito internacional enorme. Jodorowsky viria a afirmar que a BD foi, durante quase meio século, o seu principal sustento de vida, pois nem o seu cinema nem o teatro lhe tinham trazido benefícios económicos: «Alimentei os meus cinco filhos e ganhei muito dinheiro. A BD é uma arte industrial, uma carreira, um negócio e uma arte maravilhosa.» Considerado o mais importante escritor de BD da Europa durante trinta e quatro anos (entre 1978 e 2012), é autor de mais de quarenta histórias e de mais de cem álbuns. 30
bados da constelaçãao Jodorowsky
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O legado de Jodorowsky A influência do cinema de Jodorowsky estende-se à música moderna, a artistas tão díspares como John Lennon, Peter Gabriel ou Marilyn Manson (os três foram seus amigos em etapas diferentes da sua vida), e à sétima arte: o cinema mexicano dos anos setenta (em especial Juan López Moctezuma e Rafael Corkidi) e cineastas tão diferentes como Dennis Hopper, David Lynch, Federico Fellini ou Darren Aronofsky. Jan Kounen cita-o nos agradecimentos da sua película Coco Chanel & Igor Stravinsky (2009). O realizador Nicolas Winding Refn dedicou-lhe o seu filme Drive e, em maio de 2013, encontrou-se com Jodorowsky no Festival de Cannes e dedicou-lhe também o seu último filme, Só Deus Perdoa, declarando o seguinte ao jornal New York Times: «Tenho-me encontrado com Jodorowsky nestes últimos anos em Paris e tornámo-nos muito próximos. Sinto que, como cineasta, ele é o último dos grandes gigantes de uma era que está a chegar ao fim. Há um ano atrás, batizou-me como seu filho espiritual e quis retribuir-lhe esse gesto.» Nicolas Winding Refn está alegadamente a adaptar a história de BD O Incal de Jodorowsky e Moebius: a série original de seis livros, lançada em 1981, passa-se num futuro distópico e retrata a batalha pela posse do poderoso cristal Incal. A série de BD seguiu-se ao fracasso do desenvolvimento do projeto Dune e utiliza algumas das criações similares que Moebius tinha concebido enquanto trabalhava nesse projeto. Jodorowsky vive hoje em Paris, onde dá aulas de tarô e conferências sobre as suas técnicas de psicomagia e psicogenealogia no café Le Téméraire. Está casado com a pintora e desenhadora francesa Pascale Montandon e têm cinco filhos: um deles já falecido, Teo; o ator e encenador Brontis (que surge em El Topo e A Dança da Realidade), Cristobal, psicoxamã e ator (em Santa Sangre e Quantum Men); o músico Adan Jodorowsky (mais conhecido pelo nome artístico Adanowsky); e uma filha, Eugenia. 33
AsterOide «261.690 Jodorowksy» Alejandro Jodorowsky já tinha o seu nome associado a uma constelação através do documentário A Constelação Jodorowsky (1994), de Louis Mouchet, mas no início do século XXI viria a ter o seu próprio asteroide: «261.690 Jodorowksy» foi o nome escolhido pelo astrónomo amador francês J. C. Merlin, que, a 24 de dezembro de 2005, descobriu um pequeno asteroide e o batizou em homenagem ao realizador, que se tornou assim um «viajante do espaço». O asteróide 261.690 Jodorowsky demora cerca de cinco anos e meio a girar em torno do Sol. Como acontece com muitos filmes de culto, da contracultura e do underground, as obras de Jodorowsky têm sido apelidadas de exóticas e indefiníveis e rotuladas de curiosidades carnavalescas, quase desdenhosamente relegadas para os circuitos das sessões da meia-noite e para os catálogos de filmes de culto. Somente por via de uma reavaliação desses filmes, tanto dentro como fora da tradição do cinema de culto, podemos vê-los como um corpo de trabalho coeso que evoca uma contínua demanda espiritual e um desafio constante do clima político e religioso das Américas. 34
Filmografia 1957
1980
A Gravata
Tusk
França
França/Índia
1968
1989
Fando y Lis
Santa Sangre
1970
1990
México
México
El Topo
1973
México/Estados Unidos
A Montanha Sagrada
México/Itália
Reino Unido
O Ladrão do Arco-Íris
2013
França/Chile
A Dança da Realidade
“Muchos directores hacen películas con sus ojos. Yo hago películas con mis testículos.” Jodorowsky
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FICHA TÉCNICA Edição:
Cineclube de Guimarães
Coordenação Editorial: Paulo Cunha Rui Silva Samuel Silva
Texto:
Alberto Gomes
Design:
Alexandra Xavier
ISSN:
2183-1734 26 de Maio de 2015