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Coluna Vida
Vida
CELSO GUTFREIND
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O CULPADO NÃO É O MORDOMO
Quando morei em Paris, um de meus empregos foi ser terapeuta em um hospital-dia, ligado ao Centro Alfred Binet, no décimo terceiro distrito. Trabalhávamos com adolescentes muito sofridos, alguns deles infratores. Acompanhavam-me na difícil tarefa Raphael Rojas, um colombiano forte, que tinha sido zagueiro na várzea de Bogotá, e Brigitte Demorest, uma bretona tão querida quanto braba. Tornei-me amigo dos dois.
Ficava encafifado sobre o quanto respeitavam a autoridade do Raphael e da Brigitte, e não a minha. Nos momentos de maior agitação, quando ela aumentava o tom de voz, eles se encolhiam. E bastava um olhar do colombiano para que a gurizada recuperasse a calma. Quanto a mim, de pouco adiantava olhar ou aumentar a voz, que eles riam.
Todos eram filhos de imigrantes, vindo do Mahgreb. Seguido, enquanto eu voltava, percorrendo a Avenida dos Gobellins até chegar em minha casa, perto do Jardim Botânico, ficava refletindo sobre a escassez da minha autoridade. Minhas hipóteses giravam em torno de uma falta de compleição física, como o colombiano, ou de brabeza, como a bretona.
Um dia, levamos os meninos para uma partida, no Parc de Princes. Um grande evento para aqueles jovens excluídos socialmente, e também para nós. O PSG recebia o Marselha, mas o jogo não conseguia superar o sabor da pipoca, que estava incluída no nosso orçamento. Foi quando o Ahmed, um dos que mais riam de mim, pegou o pacote e, depois de amassá-lo muito bem, jogou-o três fileiras adiante, na direção de um careca.
Felizmente, a pontaria não era boa, mas, infelizmente, havia fiscais (e câmeras) muito atentos e fomos levados a um Posto de Atendimento policial. Raphael só olhava para os meninos, Brigitte passava uma carraspana em todos nós, e eu não entendia muito bem o que estava acontecendo.
Só me lembrava dos jogos em que levei sacos de xixi na cabeça, o que era bastante raro, pois eu sempre fui muito atento, pelo menos na geral. Nunca cheguei a atirá-los, embora não o evitasse com um ou outro amendoim. Entendendo ou não, aquilo era considerado muito grave pela polícia francesa e tivemos de assinar um termo de responsabilidade, deixando telefone e tudo. Caso o incidente “delituoso” se repetisse, poderíamos ser indiciados como irresponsáveis.
No dia seguinte, quando Ahmed, Sanguê e Abdel estavam no limite do insuportável e riram novamente da minha intervenção, eu compreendi que o principal responsável pela ineficácia da minha autoridade era o Brasil.
CELSO GUTFREIND É PSICANALISTA DE CRIANÇAS E ADULTOS E ESCRITOR