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CRONICONTO | O escritor Rogério Manjate

Rogério Manjate

Gumende

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Calado

Aqui estamos nós no Bazuca, à espera do machibombo para Manhiça. Aqui no Bazuca, Xiphàmanìne, todos os caminhos te levam os pés para casa; no dia que te perderes vem parar aqui, vais encontrar o teu caminho.

Manuel Gumende está aqui comigo todos os dias das mãos; nosso suor mora aqui na cidade, mas usufruto é lá na povoação. Trabalhar aqui na cidade nos afasta dos nossos fi lhos, porque já não molhamos de mesma chuva, diz ele. Ele me conta muitas histórias, só que ultimamente anda muito triste. Muito calado. Demasiado silêncio para uma boca.

Nós não sabemos fi car calados.

Novos tempos. Difíceis. E ainda por cima temos estas máscaras como mordaças. Não sei quem lucra com isto. Hoje nossos pés dançam novos ritmos que a poeira desconhece, sempre ouvi esta sentença do meu velho Manuel Gumende – na boca, usa sempre um cigarro, que até parece uma fl or esquecida na barba farta que esconde os lábios, fuma em comboio, um após outro. — Fumo muito sim, para não comer muito. Se calhar também bebe muito para me contar muitas histórias. Até hoje procuro acrédito nessa história que ele me contou, de porquê Deus não tem fi lhos. Nesse dia, estávamos sentados aqui mesmo na paragem do Bazuca, sem alpendre para a chuva, e ela caía mesmo, era chuva forte. Molhou-se tudo que tínhamos, menos esta história que o mais velho me contava. Minhas orelhas eram guarda-chuva. Xiphàmanìne já era rio de matope. E nós próprios virámos sopa. A chuva regou o lixo de hortaliças e cresceu um cheiro que nauseabundou de repente e parecia estacionar-se nas nossas narinas, nós nem não podíamos sair dali; na mesma não havia outro aonde.

Nesse dia, começou por me atirar a pergunta do enigma divino e como sempre, se auto-respondeu: Eu não acredito essa história de Jesus e Virgem Maria — disse Manuel Gumende em primeiro lugar, para esclarecer as confusões. Eu passei a vida toda a perguntar isso directamente ao Nosso Senhor.

“Nosso Senhor, porquê não tens Tu fi lhos?” Foi num feio dia, eu tinha muitos caminhos na cabeça, me meti no mato e apanhei num ninho dois ovos de uma ave que desconheço.

Eram grandes e lindos como a lua. Mas o meu fi lho mais novo estragou meu almoço. Pediu-me um dos ovos e agarrou como bola: deu em claras e gemas, omeleta crua no chão. E ainda chorou pelo outro... ah, é um inocente dos brinquedos. Eu como me negava de lhe dar chorou quase a se enterrar no chão. Igual fi m para o segundo ovo. Nessa noite Deus não me deixou dormir. No escuro, apareceu colado no tecto cheio de sorrisos e me perguntou: “Já sabes porquê não tenho fi lhos?”

Se calhar eu devia acreditar nessa história, ele é um homem de muitos ontens. Suas poucas palavras sempre chamaram o silêncio no meu ouvido, como a concha chama o vento.

O nosso machibombo já estava maningue atrasado. Continuávamos com a espera, velho Gumende, completamente animado, avançava com a história, mordendo nos lábios o cigarro que a chuva apagou. Na mesma, ele não parava, nada, até que a chuva parou de cair dentro da história que ele me contava.

Mas hoje ele está calado. Muito calado. Demasiado silêncio para uma boca. A sua máscara de pano já está a desparecer no ar. Os tempos são outros. Sim outros. E nós não temos nada que ver com isto tudo.

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