ANTOLOGIA Excertos de obras de autores em lĂngua portuguesa
@pnl2027
10 de junho 2020
Antologia - Excertos de obras de autores em lĂngua portuguesa
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ÍNDICE INTRODUÇÃO ………………………………………………………………………………………………………………………. 4 Maria Isabel Barreno; Maria Teresa Horta; Maria Velho da Costa …………................................. 5 José Eduardo Agualusa ………………………………………………………………………………………………………… 6 Agustina Bessa-Luís ………………………………………………………………………………………………….……………7 Alda do Espírito Santo ………………………………………………………………………………………………………….. 8 Aquilino Ribeiro ……………………………………………………………………………………………………………………. 9 Camilo Castelo-Branco ………………………………………………………………………………………………………… 10 Luís de Camões ………………………………………………………………………………………………………………...11/12 Cesário Verde .........…………………………………………………………………………………………….……………... 13 Clarice Lispector ……………………………………………………………………............................................. 14/15 D. Dinis ……………………………………………...................…….............................................................. 16 Eça de Queirós …………………………………………………………………….............................................. 17/18 Eugénio de Andrade ……………………………………………………………………………………………………….... 19 Fernando Pessoa …………………………………………………………………………………………………….……….20/21 Florbela Espanca …………………………………………………………………………………………………….………….22 D. Francisco Manuel de Melo ………………………………………………………………………………….………. 23 Germano de Almeida ………………………………………………………………………………………………..……… 24 Machado de Assis ……………………………………………………………………………………………………..….. 25/26 Maria Judite de Carvalho ……………………………………………………………………………………………….… 27 Mário Cláudio... …………………………………………………………………………………………………………….… 28 Mia Couto …………………………………………………………………………………………………………….………... 29 Nicolau Tolentino ………………………………………………………………………....................................... 30 Padre António Vieira …………………………………………………………………………………………………….31/32 Pepetela ……………………………………………………………………………………………………………………...… 33 Ruben A. …………………………………………………………………………………………..………………………... 34/35 Ruy Belo ……………………………………………,……………………………………………………………..........…... 36 José Saramago …………………………………………………………………………………………………………….. 37/38 Urbano Tavares Rodrigues …………………………………………………………………..........................… 39 Vergílio Ferreira …………………………………………………………………………………………….........……… 40
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INTRODUÇÃO
Para ler com prazer, saborear palavras e sentidos, relembrar escritores e trechos mais esquecidos, escolhemos algumas belas páginas, intemporais, de autores de várias épocas e geografias, que partilhámos no nosso portal e nas redes sociais por ocasião do Dia Mundial da Língua Portuguesa. De D. Dinis até ao prémio Nobel, José Saramago. De S. Tomé e Príncipe, passando por Cabo Verde, Angola, Moçambique… até ao Brasil. Como qualquer outra seleção, deixa de fora muitos nomes e títulos que mereceriam igual ou maior destaque. Mas, também como qualquer outra antologia, esta é uma entre muitas – e cada leitor pode fazer a sua. E partilhar. Nota: A grafia dos textos é a da edição a que acedemos.
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Maria Isabel Barreno, 1939-2016; Maria Teresa Horta, 1937-; Maria Velho da Costa, 1938-
Carta de uma universitária de Lisboa de nome Mariana a seu noivo (?) António em parte incerta […] A mãe, como o eram no século passado nos colégios de padres e freiras da malta de famílias conhecidas (umas
das outras, os podres e as massas, alianças), o artigo definido a defini-los como parte do magma original onde a gente se cristalizava (cristaliza) a este ou a esta, filho/a de e isso bastava (basta). Mas eu não entendo nada, nem a que dizer não, porque hoje até o não lhes cai em caixa. E olho-os e aos manos (porque irmãos é coisa que se esconde) e me parece que o que tenho a ver com eles, com seus ritos e preceitos até de inteligência, tudo está esboroado, face a quê, a quê? À tua ausência, tu que eras um tipo porreiro, mas que mais?, ou ao buraco desta coisa da tua decisão de desertar, provavelmente só porque apanhaste porrada na Cantina naquela sextafeira e disseste à malta que ias, provavelmente por causa de quem és, e no meio desta casa, cousas, de comédia, só se pode saber quem se é safando-se – tu para fora da terra e eu para dentro da tua falta.
Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa (2010). Novas Cartas Portuguesas. Lisboa: D. Quixote
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José Eduardo Agualusa, 1960-
Esta é a história verdadeira do meu amigo Fortunato, que numa madrugada de pouca sorte acordou nu no corredor de um grande hotel londrino. Fortunato, alto funcionário da administração do Estado, em Luanda, tinha
ido
a
Londres
participar
num
encontro
internacional de burocrata. Técnico competente, homem de cultura e de bom gosto, incorruptível por natureza e educação, o meu amigo sofre amargamente com a
situação do país e a imagem de Angola no exterior. Ele acredita, um pouco ingenuamente, que cabe a todos os técnicos honestos a missão de melhorar essa imagem. Nos países da Europa ocidental é fácil a qualquer funcionário manter intacta a integridade moral. O difícil, na verdade, é ser corrupto. Exige, no mínimo, alguma coragem e imaginação. Num país essencialmente corrupto
acontece
o
inverso:
um
funcionário
incorruptível é olhado com suspeita e revolta por toda a gente; com suspeita porque ninguém acredita na sua incorruptibilidade (“alguma coisa aquele tipo deve estar a esconder”); com revolta porque perturba a lucrativa atividade dos outros.
José Eduardo Agualusa (2009). Por que é tão importante ver as estrelas. Fronteiras Perdidas. Lisboa: D. Quixote
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Agustina Bessa-Luís, 1922-2019
O insucesso de Ema com os homens (porque se tratava de insucesso, implicando a calúnia em que a envolviam e que dava um cunho feminino à maledicência deles) situava-se na sombra de corrupção que ela transportava. Eles perguntavam-se que espécie de experiências ela tivera, o que punha em causa a virilidade deles. Os desejos bizarros de comer fora de horas, de beber champanhe sem nada que o justificasse, de deitar fora roupas e objetos que outra teria aproveitado, punham Ema no número das mulheres cuja extravagância denunciam uma passagem de um sexo a outro. Eram vontades de homem e não apetites de grávida o que ela manifestava. Os cheiros violentos do fumeiro que seca nos caibros das cozinhas, como era ainda a cozinha dos trabalhadores no Romesal, trazia-lhe uma memória desnorteada de montarias e caças antiquíssimas; assim como o cheiro do couro molhado e um afiar de facas na pedra dos amoladores que passavam ainda nas cangostas do Vale, trazendo um guarda-chuva meio desmanchado
como
emblema,
o
que
os
fazia
anunciadores do Inverno. Ema sentia-se possuída por essas sobras duma memória que não partilhava como mulher casta e ajustada ao seu meio. Era como se outro
ser a habitasse, um ser sinistro e, no entanto, glorioso, mas que causava medo aos homens.
Agustina Bessa-Luís (1996). Vale Abraão. Lisboa: Guimarães
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Alda do Espírito Santo, 1926-2010
Em torno da minha baía Aqui, na areia, Sentada a beira do cais da minha baía do cais simbólico, dos fardos, das malas e da chuva caindo em torrente sobra o cais desmantelado, caindo em ruínas eu queria ver à volta de mim,
nesta hora morna do entardecer no mormaço tropical desta terra de África à beira do cais a desfazer-se em ruínas, abrigados por um toldo movediço uma legião de cabecinhas pequenas, à roda de mim, num voo magistral em torno do mundo desenhando na areia a senda de todos os destinos pintando na grande tela da vida uma história bela para os homens de todas as terras ciciando em coro, canções melodiosas numa toada universal num cortejo gigante de humana poesia na mais bela de todas as lições HUMANIDADE Alda do Espírito Santo (1978). É nosso o solo sagrado da terra. Lisboa: Ulmeiro
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Aquilino Ribeiro, 1885-1963
Joana, segundo o painel existente na galeria dos retratos na Casa Grande, não era formosa, mas extremamente sedutora. As mulheres, porém, não precisam de ser bonitas para serem amadas até a idolatria. Basta-lhes que possuam o quid magnético que chama o pirilampo para a pirilampa através do escuro incomensurável. Era mediana de corpo, enxuta de carnes, dentes muito brancos e regulares, olhos pretos de que se não via o fundo, e um sorriso brando, destes que, sem jamais se descomporem, variam de suavidade como os dos felinos que reflectem nas pupilas os cambiantes da luz. Da cinta era fina e, no andar, um tudo nada flexuoso, punha um dengue tão involuntário que se quedava, em requebro natural, promissor de temperamento. Pertencia em suma à classe de mulheres que, a começar pelo corpo e acabar pela alma, se tornam amantes perfeitas. Lianças com elas jamais se rompem. Quem as ama, ama-as até a morte. Quando desaparecem, deixam inextinguível
braseiro. É que deram com a sua carne a beber o filtro que não perdoa, onde se concentraram meiguice e enliçamento animal, princípios sumos da voluptuosidade criadora. Aquilino Ribeiro (2013). A Casa Grande de Romarigães. Lisboa: Bertrand
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Camilo Castelo-Branco, 1825-1890
Laura corara até aos lóbulos das orelhas. As faces diziam que lá dentro lavrava lume de amor. Não lavrava nada. O corar é uma cláusula de temperamentos. Tem a mesma origem que a brotoeja, e a herpes, e a impingem. O sangue que acereja a epiderme das faces revela, quando muito, a compleição sanguínea da pessoa. E a filha de Paulo Carvalhais, quanto a temperamento, estremava-se das nervosas e arganazes meninas de casta heráldica. As artérias pulsavam-lhe túmidas. Ali havia regeneração do pujante sangue dos avós godos, ao mesmo passo que seu pai e irmãos provavam com a pele aderente aos ossos o fino e remontado de sua linhagem. E não arguamos de ineptos aos que blasonam de nobilíssimos oferecendo em testemunho de verdade a pequenez do pé, como quem apresenta dez certidões de filhamento e o brasão da casa na sala de Sintra. Nós é que estamos sempre a passar alvarás de patriciato às mãos delgadas com unhas cor-de-rosa afiladas e longas, ao mesmo tempo que inferimos da grandeza duns joanetes o plebeísmo de seu dono. Na verdade, o pé que abusa do máximo da craveira é o trambolho denunciante duma descendência da gleba, do besteiro, da ralé que saltou a quatro pés ao meio das classes, e vingou desordená-las, embaralhá-las, bascolejá-las por feitio que a delicadeza nervosa do pé feminil deixou de ser dote, e veio a suceder apoiar-se complacente sobre as protuberâncias ossificadas dos alicerces em que se firma o representante de uma «fortuna». Assim é; mas que frívolas razões justificam a nossa admiração pela magreza e palidez significativas de raça primorosa? As da plástica, certo que não. Pois que representa esse enfezamento? Serosidade de sangue; pulmões mal arejados; suco gástrico dessorado; digestões morosas, infiltrações, diáteses, enfim, que depuram a raça até vaporizá-la. Daí o anguloso da figura, a cor esfumada, o arcabouço das mãos, o escarnado das espáduas e o escadeado do peito, suspenso das cordoveias do pescoço. Quando topamos disto, exclamamos nos nossos folhetins: «Dona Fulana é sílfide. O mais puro sangue de fidalga raça apenas lhe retinge de leve as aéreas formas. A suave palidez que lhe veste o rosto de poético langor… etc.» De Laura é que não poderia escrever-se tal sem mentir à natureza, à arte e aos assinantes da gazeta. Camilo Castelo-Branco (1981). A Mulher Fatal. Mem Martins: Europa-América 10 de junho 2020
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Luís de Camões, 1524-1580
No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho Destemperada e a voz enrouquecida, E não do canto, mas de ver que venho Cantar a gente surda e endurecida. O favor com que mais se acende o engenho Não no dá a pátria, não, que está metida No gosto da cobiça e na rudeza Dhũa austera, apagada e vil tristeza.
E não sei por que influxo do Destino Não tem um ledo orgulho e geral gosto, Que os ânimos levanta de contino
A ter pera trabalhos ledo o rosto. Por isso vós, ó Rei, que por divino Conselho estais no régio sólio posto, Olhai que sois (e vede as outras gentes) Senhor só de vassalos excelentes.
Olhai que ledos vão, por várias vias, Quais rompentes leões e bravos touros,
Dando os corpos a fomes e vigias, A ferro, a fogo, a setas e pilouros, A quentes regiões, a plagas frias, A golpes de Idolatras e de Mouros, A perigos incógnitos do mundo, A naufrágios, a pexes, ao profundo!
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Por vos servir, a tudo aparelhados; De vós tão longe, sempre obedientes A quaisquer vossos ásperos mandados, Sem dar reposta, prontos e contentes.
Só com saber que são de vós olhados, Demónios infernais, negros e ardentes, Cometerão convosco, e não duvido Que vencedor vos façam, não vencido.
Luís de Camões (2014). Os Lusíadas. Org. Emanuel Paulo Ramos. Canto X, est. 145-148. Porto: Porto Editora
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Cesário Verde, 1855-1886
DE TARDE
Naquele pic-nic de burguesas, Houve uma coisa simplesmente bela, E que, sem ter história nem grandezas, Em todo o caso dava uma aguarela.
Foi quando tu, descendo do burrico, Foste colher, sem imposturas tolas, A um granzoal azul de grão-de-bico Um ramalhete rubro de papoulas.
Pouco depois, em cima duns penhascos, Nós acampámos, inda o Sol se via; E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.
Mas, todo púrpuro a sair da renda Dos teus dois seios como duas rolas, Era o supremo encanto da merenda O ramalhete rubro das papoulas!
Cesário Verde (1993). O Livro de Cesário Verde. Aveiro: Estante
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Clarice Lispector, 1920-1977
A mulher e a mãe acomodaram-se finalmente no táxi que as levaria à Estação. A mãe contava e recontava as duas malas tentando convencer-se de que ambas estavam no carro. A filha, com seus olhos escuros, a que um ligeiro estrabismo dava um contínuo brilho de zombaria e frieza assistia. — Não esqueci de nada? perguntava pela terceira vez a mãe. — Não, não, não esqueceu de nada, respondia a filha divertida, com paciência. Ainda estava sob a impressão da cena meio cômica entre sua mãe e seu marido, na hora da despedida. Durante as duas semanas da visita da velha, os dois mal se haviam suportado; os bons-dias e as boas-tardes soavam a cada momento com uma delicadeza cautelosa que a fazia querer rir. Mas eis que na hora da despedida, antes de entrarem no táxi, a mãe se transformara em sogra exemplar e o marido se tornara o bom genro. "Perdoe alguma palavra mal dita", dissera a velha senhora, e Catarina, com alguma alegria, vira Antônio não saber o que fazer das malas nas mãos, a gaguejar - perturbado em ser o bom genro. "Se eu rio, eles pensam que estou louca", pensara Catarina franzindo as sobrancelhas. "Quem casa um filho perde um filho, quem casa uma filha ganha mais um", acrescentara a mãe, e Antônio aproveitara sua gripe para tossir. Catarina, de pé, observava com malícia o marido, cuja segurança se desvanecera para dar lugar a um homem moreno e miúdo, forçado a ser filho daquela mulherzinha grisalha... Foi então que a vontade de rir tornou-se mais forte. Felizmente nunca precisava rir de fato quando tinha vontade de rir: seus olhos tomavam uma expressão esperta e contida, tornavam-se mais estrábicos - e o riso saía pelos olhos. Sempre doía um pouco ser capaz de rir. Mas nada podia fazer contra: desde pequena rira pelos olhos, desde sempre fora estrábica.
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— Continuo a dizer que o menino está magro, disse a mãe resistindo aos solavancos do carro. E apesar de Antônio não estar presente, ela usava o mesmo tom de desafio e acusação que empregava diante dele. Tanto que uma noite Antônio se agitara: não é por culpa minha, Severina! Ele chamava a sogra de Severina, pois antes do casamento projetava serem sogra e genro modernos. Logo à primeira visita da mãe ao casal, a palavra Severina tornara-se difícil na boca do marido, e agora, então, o fato de chamá-la pelo nome não impedira que... - Catarina olhava-os e ria. — O menino sempre foi magro, mamãe, respondeu-lhe. O táxi avançava monótono.
— Magro e nervoso, acrescentou a senhora com decisão. — Magro e nervoso, assentiu Catarina paciente. Era um menino nervoso, distraído. Durante a visita da avó tornara-se ainda mais distante, dormira mal, perturbado pelos carinhos excessivos e pelos beliscões de amor da velha. Antônio, que nunca se preocupara especialmente com a sensibilidade do filho, passara a dar indiretas à sogra, "a proteger uma criança” ... — Não esqueci de nada..., recomeçou a mãe, quando uma freada súbita do carro lançou-as uma contra a outra e fez despencarem as malas. — Ah! ah! - exclamou a mãe como a um desastre irremediável, ah! dizia balançando a cabeça em surpresa, de repente envelhecida e pobre. E Catarina? Catarina olhava a mãe, e a mãe olhava a filha, e também a Catarina acontecera um desastre? seus olhos piscaram surpreendidos, ela ajeitava depressa as malas, a bolsa, procurando o mais rapidamente possível remediar a catástrofe. Porque de fato sucedera alguma coisa, seria inútil esconder: Catarina fora lançada contra Severina, numa intimidade de corpo há muito esquecida, vinda do tempo em que se tem pai e mãe. Apesar de que nunca se haviam realmente abraçado ou beijado. Do pai, sim. Catarina sempre fora mais amiga. Quando a mãe enchialhes os pratos obrigando-os a comer demais, os dois se olhavam piscando em cumplicidade e a mãe nem notava. Mas depois do choque no táxi e depois de se ajeitarem, não tinham o que falar - por que não chegavam logo à Estação? Clarice Lispector (1998). Laços de Família. Rio de Janeiro: Rocco
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D. Dinis: 1261-1325
Ai flores do verde pino Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai flores, ai flores do verde ramo, se sabedes novas do meu amado! Ai Deus, e u é? Se sabedes novas do meu amigo, aquel que mentiu do que pôs comigo! Ai Deus, e u é? Se sabedes novas do meu amado, aquel que mentiu do que mi 'á jurado! Ai Deus, e u é? Vós me preguntades polo voss'amigo, e eu bem vos digo que é san'e vivo: Ai Deus, e u é? Vós me preguntades polo voss'amado, e eu bem vos digo que é viv'e sano: Ai Deus, e u é? E eu bem vos digo que é san'e vivo E seera vosc'ant'o prazo saído: Ai Deus, e u é? E eu bem vos digo que é viv'e sano e seerá vosc'ant'o prazo passado: Ai Deus, e u é? D. Dinis (CV 171, CBN 533)
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Eça de Queirós, 1845-1900
Ao fundo, e como um altar-mor, era o gabinete de trabalho de Jacinto. A sua cadeira, grave e abacial, de couro, com brasões, datava do século XIV, e em torno dela pendiam numerosos tubos acústicos, que, sobre os panejamentos de seda cor de musgo e cor de hera, pareciam serpentes adormecidas e suspensas num velho muro de quinta. Nunca recordo sem assombro a sua mesa, recoberta toda de sagazes e sutis instrumentos para cortar papel, numerar páginas, colar estampilhas, aguçar lápis, raspar emendas, imprimir datas, derreter lacre, cintar documentos, carimbar contas! Uns de níquel, outros de aço, rebrilhantes e frios, todos eram de um manejo laborioso e lento: alguns, com as molas rígidas, as pontas vivas, trilhavam e feriam: e nas largas folhas de papel Whatman em que ele escrevia, e que custavam 500 réis, eu por vezes surpreendi gotas de sangue do meu amigo. Mas a todos eles considerava indispensáveis para compor as suas cartas (Jacinto não compunha obras), assim como os trinta e cinco dicionários, e os manuais, e as enciclopédias, e os guias, e os diretórios, atulhando uma estante isolada, esguia, em forma de torre, que silenciosamente girava sobre o seu pedestal, e que eu denominara o Farol. O que, porém, mais completamente imprimia àquele gabinete um portentoso carácter de civilização eram, sobre as suas peanhas de carvalho, os grandes aparelhos, facilitadores do pensamento, a máquina de escrever, os autocopistas, o telégrafo Morse, o fonógrafo, o telefone, o teatrofone, outros ainda, todos com metais luzidios, todos com longos fios. Constantemente sons curtos e secos retiniam no ar morno daquele santuário. Tique, tique, tique! Dlim, dlim, dlim! Craque, craque, craque! Trrre, trrre, trrre!... Era o meu amigo comunicando. Todos esses fios mergulhados em forças universais transmitiam forças universais. E elas nem sempre, desgraçadamente, se conservavam domadas e disciplinadas!
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Jacinto recolhera no fonógrafo a voz do conselheiro Pinto Porto, uma voz oracular e rotunda, no momento de exclamar com respeito, com autoridade: “Maravilhosa invenção! Quem não admirará os progressos deste século? todos eles considerava indispensáveis para compor as suas cartas (Jacinto não compunha obras), assim como os trinta e cinco dicionários, e os manuais, e as enciclopédias, e os guias, e os diretórios, atulhando uma estante isolada, esguia, em forma de torre, que silenciosamente girava sobre o seu pedestal, e que eu denominara o Farol. O que, porém, mais completamente imprimia àquele gabinete um portentoso carácter de civilização eram, sobre as suas peanhas de carvalho, os grandes aparelhos, facilitadores do pensamento, a máquina de escrever, os autocopistas, o telégrafo Morse, o fonógrafo, o telefone, o teatrofone, outros ainda, todos com metais luzidios, todos com longos fios. Constantemente sons curtos e secos retiniam no ar morno daquele santuário. Tique, tique, tique! Dlim, dlim, dlim! Craque, craque, craque! Trrre, trrre, trrre!... Era o meu amigo comunicando. Todos esses fios mergulhados em forças universais transmitiam forças universais. E elas nem sempre, desgraçadamente, se conservavam domadas e disciplinadas! Jacinto recolhera no fonógrafo a voz do conselheiro Pinto Porto, uma voz oracular e rotunda, no momento de exclamar com respeito, com autoridade: “Maravilhosa invenção! Quem não admirará os progressos deste século?” Pois, numa doce noite de S. João, o meu supercivilizado amigo, desejando que umas senhoras parentas de Pinto Porto (as amáveis Gouveias) admirassem o fonógrafo, fez romper do bocarrão do aparelho, que parece uma trompa, a conhecida voz rotunda e oracular: Quem não admirará os progressos deste século? Mas, inábil ou brusco, certamente desconcertou alguma mola vital - porque de repente o fonógrafo começa a redizer, sem descontinuação, interminàvelmente, com uma sonoridade cada vez mais rotunda, a sentença do conselheiro: Quem não admirará os progressos deste século? Debalde Jacinto, pálido, com os dedos trêmulos, torturava o aparelho. A exclamação recomeçava, rolava, oracular e majestosa: Quem não admirará os progressos deste século? Enervados, retiramos para uma sala distante, pesadamente revestida de panos de Arrás. Em vão! A voz de Pinto Porto lá estava, entre os panos de Arras, implacável e rotunda: Quem não admirará os progressos deste século? Furiosos, enterramos uma almofada na boca do fonógrafo, atiramos por cima mantas, cobertores espessos, para sufocar a voz abominável. Em vão! sob a mordaça, sob as grossas lãs, a voz rouquejava, surda mas oracular: Quem não admirará os progressos deste século? As amáveis Gouveias tinham abalado, apertando desesperadamente os xales sobre a cabeça. Mesmo à cozinha, onde nos refugiamos, a voz descia, engasgada e gosmosa: Quem não admirará os progressos deste século? Fugimos espavoridos para a rua. Eça de Queirós (1991) Civilização. Contos. Lisboa: Livros do Brasil
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Eugénio de Andrade, 1923-2005
CANÇÃO
Tinha um cravo no meu balcão; Veio um rapaz e pediu-mo - mãe, dou-lho ou não?
Sentada, bordava um lenço de mão;
Veio um rapaz e pediu-mo - mãe, dou-lho ou não?
Dei um cravo e dei um lenço, só não dei o coração; mas se o rapaz mo pedir - mãe, dou-lho ou não?
Eugénio de Andrade (1987). Poesia e Prosa, vol. I. Lisboa: Círculo de Leitores
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Fernando Pessoa, 1888-1935
Eros e Psique
Conta a lenda que dormia Uma Princesa encantada A quem só despertaria Um Infante, que viria De além do muro da estrada
Ele tinha que, tentado, Vencer o mal e o bem, Antes que, já libertado, Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
A Princesa Adormecida, Se espera, dormindo espera. Sonha em morte a sua vida, E orna-lhe a fronte esquecida, Verde, uma grinalda de hera.
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Longe o Infante, esforçado, Sem saber que intuito tem, Rompe o caminho fadado. Ele dela é ignorado. Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino — Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino Pelo processo divino Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro Tudo pela estrada fora, E falso, ele vem seguro, E, vencendo estrada e muro, Chega onde em sono ela mora.
E, inda tonto do que houvera, À cabeça, em maresia, Ergue a mão, e encontra hera, E vê que ele mesmo era A Princesa que dormia.
Fernando Pessoa (1995). Poesias. Lisboa: Ática
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Florbela Espanca, 1894-1930
Ser Poeta Ser poeta é ser mais alto, é ser maior Do que os homens! Morder como quem beija! É ser mendigo e dar como quem seja Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
É ter de mil desejos o esplendor E não saber sequer que se deseja! É ter cá dentro um astro que flameja, É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede de Infinito! Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim... É condensar o mundo num só grito!
E é amar-te, assim, perdidamente... É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!
Florbela Espanca (1984). Sonetos. Porto: Anagrama
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Francisco Manuel de Melo, 1608-1666
Persuado-me, Senhor N., que esta coisa a que o mundo chama amor, não é só uma coisa, porém muitas com um próprio nome. Poderá bem ser que por isto os antigos fingissem haver tantos amores no mundo, a que davam diversos nascimentos; e também pode ser venha daqui, que ao que chamamos amores; pois, se ele fora um só, grande impropriedade fora esta. Eu considero dois amores entre a gente: o primeiro é aquele comum afecto com que, sem mais causa que a sua própria violência, nos movemos a amar, não sabendo o que, nem o por que amamos; o segundo é aquele com que prosseguimos em amar o que tratamos e conhecemos. O primeiro acaba na posse do que se desejou; o segundo começa nela, mas de tal sorte, que nem sempre o primeiro engendra o segundo, nem sempre o segundo procede do primeiro. De onde infiro que o amor que se produz do trato, familiaridade e fé dos casados, para ser seguro e excelente, em nada depende do outro amor que se produziu do desejo do apetite, e desordem dos que se amaram antes desconcertadamente; a que, não sem erro, chamamos amores, que a muitos mais empeceram que aproveitaram. Parecerá dificultoso o considerar como à pessoa que não havemos visto poderemos amar com perfeição. Larga é a disputa, e não daqui. Digo eu que façamos, Senhor N., neste caso, como os que cortam madeira e a lançam ao rio, para que sua corrente lha leve (sem algum trabalho) ao porto. Eles não sabem por onde vai sua mercadoria, mas basta-lhes saber que ela chega a salvamento, por outras que já tem chegado, para que lha entreguem às águas com muita confiança. Francisco Manuel de Melo (1971). Carta de Guia de Casados. Lisboa: Verbo
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Germano de Almeida, 1945-
A leitura do testamento cerrado do Sr. Napomuceno da Silva Araújo consumiu uma tarde inteira. Ao chegar à 150.ª página o notário confessava-se já cansado e interrompeu mesmo para pedir que lhe levassem um copo d’água. E enquanto bebia pequenos golinhos, desabafou que de facto o falecido, pensando que fazia um testamento, escrevera antes um livro de memórias. Então, o Sr. Américo Fonseca, dizendo estar habituado a longas leituras em voz alta, ofereceu-se para continuar a ler e o notário aceitou de bom grado porque a sua voz, de princípio forte e sonora a impor solenidade ao acto, fora enfraquecendo a pouco e pouco e tanto Carlos Araújo como as próprias testemunhas já faziam um grande esforço de ouvido para perceberem os murmúrios que lhe saíam da garganta. Mas Carlos sorrindo olhava o notário. Logo de início, quando vira a enormidade do documento lacrado, sugerira não valer a pena perder tempo a ler todo aquele calhamaço, afinal estava-se quase em família, de qualquer modo entre
gente que merecia toda a confiança, propunha por isso dar-se o testamento como conhecido, ele em casa faria calmamente uma leitura atenta e cuidada até porque era sua intenção respeitar escrupulosamente todas as vontades do defunto. Porém, o notário opusera-se firmemente a esta facilidade, a lei é a lei, existe para ser cumprida e se ela manda ler tudo há que ler tudo do princípio ao fim na presença de testemunhas e só por esta razão estariam presentes os Srs. António Fonseca e
Armando Lima que a final testificariam com as suas assinaturas terem acompanhado toda a leitura do documento. Germano de Almeida (2007). O Testamento do Sr. Napomuceno da Silva Araújo. Lisboa: Caminho.
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Machado de Assis, 1839-1908
Vai então, empacou o jumento em que eu vinha montado; fustiguei-o, ele deu dous corcovos, depois mais três, enfim mais um, que me sacudiu fora da sela, e com tal desastre, que o pé esquerdo me ficou preso no estribo; tento agarrar-me ao ventre do animal, mas já então, espantado, disparou pela estrada afora. Digo mal: tentou disparar, e efectivamente deu dous saltos, mas um almocreve, que ali estava, acudiu a tempo de lhe pegar na rédea e detê-lo, não sem esforço nem perigo. Dominado o bruto, desvencilhei-me do estribo e pus-me de pé. -- Olhe do que vosmecê escapou, disse o almocreve. E era verdade; se o jumento corre por ali fora, contundia-me deveras, e não sei se a morte não estaria no fim do desastre; cabeça partida, uma congestão, qualquer transtorno cá dentro, lá se me ia a ciência em flor. O almocreve salvara-me talvez a vida; era positivo; eu sentia-o no sangue que me agitava o coração. Bom almocreve! enquanto eu tornava à consciência de mim mesmo, ele cuidava de consertar os arreios do jumento, com muito zelo e arte. Resolvi dar-lhe três moedas de ouro das cinco que trazia comigo; não porque tal fosse o preço da minha vida, -- essa era inestimável; mas porque era uma recompensa digna da dedicação com que ele me salvou. Está dito, dou-lhe as três moedas. -- Pronto, disse ele, apresentando-me a rédea da cavalgadura. -- Daqui a nada, respondi; deixa-me, que ainda não estou em mim... -- Ora qual!
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-- Pois não é certo que ia morrendo? -- Se o jumento corre por aí fora, é possível; mas, com a ajuda do Senhor, viu vosmecê que não aconteceu nada. Fui aos alforjes, tirei um colete velho, em cujo bolso trazia as cinco moedas de ouro, e durante esse tempo cogitei se não era excessiva a gratificação, se não bastavam duas moedas. Talvez uma. Com efeito, uma moeda era bastante para lhe dar estremeções de alegria. Examinei-lhe a roupa; era um pobre diabo, que nunca jamais vira uma moeda de ouro. Portanto, uma moeda. Tirei-a, via-a reluzir à luz do sol; não a viu o almocreve, porque eu tinha-lhe voltado as costas; mas suspeitou-o talvez, entrou a falar ao jumento de um modo significativo; dava-lhe conselhos, dizia-lhe que tomasse juízo, que o «senhor doutor» podia castigá-lo; um monólogo paternal. Valha-me Deus! até ouvi estalar um beijo: era o almocreve que lhe beijava a testa. -- Olé! exclamei. -- Queira vosmecê perdoar, mas o diabo do bicho está a olhar para a gente com tanta graça...
Ri-me, hesitei, meti-lhe na mão um cruzado em prata, cavalguei o jumento, e segui a trote largo, um pouco vexado, melhor direi um pouco incerto do efeito da pratinha. Mas a algumas braças de distância, olhei para trás, o almocreve fazia-me grandes cortesias, com evidentes mostras de contentamento. Adverti que devia ser assim mesmo; eu pagara-lhe bem, pagara-lhe talvez demais. Meti os dedos no bolso do colete que trazia no corpo e senti umas moedas de cobre; eram os vinténs que eu devera ter dado ao almocreve, em logar do cruzado em prata. Porque, enfim, ele não levou em mira nenhuma recompensa ou virtude, cedeu a um impulso natural, ao temperamento, aos hábitos do ofício; acresce que a circunstância de estar, não mais adeante nem mais atrás, mas justamente no ponto do desastre, parecia constituí-lo simples instrumento de Providência; e de um ou de outro modo, o mérito do ato era positivamente nenhum. Fiquei desconsolado com esta reflexão, chamei-me pródigo, lancei o cruzado à conta das minhas dissipações antigas; tive (por que não direi tudo?), tive remorsos.
Machado de Assis (2016). Memórias Póstumas de Brás Cubas. Lisboa: Guerra e Paz
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Maria Judite de Carvalho, 1921-1998
Uma noite dos meus quinze anos dei comigo a chorar. Não sei já qual foi o caminho que me conduziu às lágrimas, tudo vai tão longe, perdido na fita branca do passado. Só me recordo de que o pai me ouviu e se levantou. Sentou-se ao de leve na borda da minha cama, pôs-se a acariciar-me os cabelos, quis saber o que eu tinha. – Estou só, pai. Não é mais nada. Dei porque estava só e isso pareceu-me... Que parvoíce, não é? Estou agora só! E tu então? Tentei rir a tapar-me, já arrependida da franqueza, mas ele não colaborou e isso salvou-o da raiva que eu havia de lhe ter na manhã seguinte. Não se riu e a sua voz, quando veio, era muito doce, quase triste. – Também deste por isso – disse brandamente. – Também deste por isso. Há gente que vive setenta e oitenta anos, até mais, sem nunca se dar conta. Tu aos quinze... Todos estamos sozinhos, Mariana. Sozinhos e muita gente à nossa volta. Tanta gente, Mariana! E ninguém vai fazer nada por nós. Ninguém pode. Ninguém queria, se pudesse. Nem uma esperança. – Mas tu, pai... – Eu... As pessoas que enchem o teu mundo são diferentes das do meu... No fundo é muito provável que algumas delas sejam as mesmas, mas aí está, se fosse possível encontrarem-se não se reconheciam nem mesmo fisicamente... Como havemos de nos ajudar? Ninguém pode, filha, ninguém pode... Ninguém pôde.
Maria Judite de Carvalho (2010). Tanta gente, Mariana! Lisboa: Ulisseia
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Mário Cláudio, 1941-
Estremeciam as vidraças, os cabelos ficavam riços de Guilhermina, o corpo do Mundo sentindo na caixa que ao corpo encostava. [...] Era a aventura primeira, conjugada com o mar estendido para além, aos bichos se misturando que nele se viam, manuseado tesouro por certa sereia que detinha o abre-te-Sésamo do reino submerso, longamente cantava entre um luxo de algas. E
o instrumento se calava, susceptível todavia de despertar a um impulso, companheiro da taça-de-pé onde os pêssegos amadureciam. O arco se aquietava que o vinha tocar, retendo em seu descanso encantamentos e
maldições,
inconsciente
de
tanto
que
sabia.
Desgrenhava o vento a corrida pelo jardim, uma rã sobrevivia no espelho-de-água, de inútil amor coaxando sem tréguas. Meditaria Guilhermina no percurso das nuvens, suas formas e tintas, as figuras que levam,
aladas e semi-nuas, seus ceptros e tridentes, seus escudos e cítaras? E o violoncelo, que passos conheceria do discurso dos dias, que astúcias e que vitórias?
Mário Cláudio (1986). Guilhermina. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda
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Mia Couto, 1955-
Estou sentado junto da janela olhando a chuva que cai há três dias. Que saudade me fazia o molhado tintintinar do chuvisco. A terra perfumegante semelha a mulher em véspera de carícia. Há quantos anos não chovia assim? De tanto durar, a seca foi emudecendo a nossa miséria. O céu olhava o sucessivo falecimento da terra, e em espelho, se via morrer. A gente se indaguava: será que ainda podemos recomeçar, será que a alegria ainda tem cabimento? Agora, a chuva cai, cantarosa, abençoada. O chão, esse indigente indígena, vai ganhando variedades de belezas. Estou espreitando a rua como se estivesse à janela do meu inteiro país. Enquanto, lá fora, se repletam os charcos a velha Tristereza vai arrumando o quarto. Para Tia Tristereza a chuva não é assunto de clima mas recado dos espíritos. E a velha se atribui amplos sorrisos: desta vez é que eu envergarei o fato que ela tanto me insiste. Indumentária tão exibível e eu envergando mangas e gangas. Tristereza sacode em sua cabeça a minha teimosia: haverá razoável argumento para eu me apresentar assim tão descortinado, sem me sujeitar às devidas aparências? Ela não entende. Enquanto alisa os lençóis, vai puxando outros assuntos. A idosa senhora não tem dúvida: a chuva está a acontecer devido das rezas, cerimónias oferecidas aos antepassados. Em todo o Moçambique a guerra está parar. Sim, agora já as chuvas podem recomeçar. Todos estes anos, os deuses nos castigaram com a seca. Os mortos, mesmo os mais veteranos, já se ressequiam lá nas profundezas. Tristereza vai escovando o casaco que eu nunca hei-de-usar e profere suas certezas: – Nossa terra estava cheia do sangue. Hoje, está ser limpa, faz conta é essa roupa que lavei. Mas nem agora, desculpe o favor, nem agora o senhor dá vez a este seu fato? – Mas, Tia Tristereza: não está chover de mais? De mais? Não, a chuva não esqueceu os modos de tombar, diz a velha. E me explica: a água sabe quantos grãos tem a areia. Para cada grão ela faz uma gota. Tal igual a mãe que tricota o agasalho de um ausente filho. Para Tristereza a natureza tem seus serviços, decorridos em simples modos como os dela. As chuvadas foram no justo tempo encomendadas: os deslocados que regressam a seus lugares já encontrarão o chão molhado, conforme o gosto das sementes. A Paz tem outros governos que não passam pela vontade dos políticos. Mia Couto (1997). Estórias Abensonhadas. Lisboa: Caminho
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Nicolau Tolentino de Almeida, 1740-1811
Chaves na mão, melena desgrenhada, Batendo o pé na casa, a mãe ordena Que o furtado colchão, fofo, e de pena, A filha o ponha ali, ou a criada.
A filha, moça esbelta e aparatada, Lhe diz co’a doce voz, que o ar serena: “Sumiu-se-lhe um colchão, é forte pena; Olhe não fique a casa arruinada”.
“Tu respondes assim? Tu zombas disto? Tu cuidas que por ter pai embarcado Já a mãe não tem mãos?” E dizendo isto,
Arremete-lhe à cara e ao penteado; Eis senão quando (caso nunca visto!) Sai-lhe o colchão de dentro do toucado. Nicolau Tolentino de Almeida (1969). Obras. Lisboa: Estúdios Cor
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Padre António Vieira, 1608-1697
Vos estis sal terrae Vós, diz Cristo, senhor nosso, falando com os prègadores, sois o sal da terra; e chama-lhe sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os prègadores não pregam a verdadeira doutrina, ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhe dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os prègadores dizem ũa cousa e fazem outra, ou porque a terra não se deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem que fazer o que dizem; ou é porque o sal não salga, e os prègadores se pregam a si e não a Cristo, ou porque a terra não se deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem os seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal. Suposto pois que ou o sal não salgue ou a terra se não deixe salgar, que se há-de fazer a este sal e que se há-de fazer a esta terra? O que se há-de fazer ao sal que não salga, Cristo o disse logo: Quod si sal evanuerit, in quo salietur? Ad nihilum valet ultra, nisi ut mittatur foras, et conculcetur ab hominibus. Se o sal perder a substância e a virtude, e o prègador faltar à doutrina e ao exemplo, o que se lhe há-de fazer é lança-lo fora como inútil para que seja pisado de todos. Quem se atrevera a dizer tal cousa, se o mesmo Cristo a não pronunciara? Assi como não há quem seja mais digno de reverência e de ser posto sobre a cabeça que o prègador que ensina e faz o que deve, assim é merecedor de todo o desprezo e de ser metido debaixo dos pés o que com a palavra ou com a vida prega o contrário.
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Isto é o que se deve fazer ao sal que não salga. E à terra, que se não deixa salgar, que se lhe há-de fazer? Este ponto não resolveu Cristo, senhor nosso, no evangelho; mas temos sobre ele a resolução do nosso grande português Santo António, que hoje celebramos, e a mais galharda e gloriosa resolução que nenhum santo tomou. Prègava Santo António em Itália, na cidade de Arimino, contra os hereges, que nela eram muitos; e como erros de entendimento são dificultosos de arrancar, não só não fazia fruto o Santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele, e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida. Que faria neste caso o ânimo generoso do grande António? Sacudiria o pó dos sapatos, como Cristo aconselha em outro lugar? Mas António, com os pés descalços, não podia fazer esta protestação; e uns pés, a que se não pegou nada da terra, não tinham que sacudir. Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo? Isso ensinaria porventura a prudência ou a covardia humana; mas o zelo da glória divina, que ardia naquele peito, não se rendeu a semelhantes partidos. Pois que fez? Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: “Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes!” Oh! maravilhas do Altíssimo! Oh poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos; e, postos todos por sua ordem com as cabeças fora da água, António prègava, e eles ouviam. Se a Igreja quer que prèguemos de Santo António sobre o Evangelho, dê-nos outro. Vos estis sal terrae: é muito bom texto para os outros santos doutores; mas para Santo António vem-lhe muito curto. Os outros doutores da Igreja foram sal da terra, Santo António foi sal da terra e sal do mar. Este é o assunto que eu tinha para tomar hoje. Mas há muitos dias que tenho metido no pensamento que nas festas dos santos é melhor prègar como eles que prègar deles. Quanto mais que o sal da minha doutrina, qualquer que ele seja, tem tido nesta terra uma fortuna tão parecida à de Santo António em Arimino, que é força segui-la em tudo. Muitas vezes vos tenho prègado nesta igreja e noutras, de manhã e de tarde, de dia e de noite, sempre com doutrina muito clara, muito sólida, muito verdadeira, e a que mais necessária e importante é a esta terra, para emenda e reforma dos vícios que a corrompem. O fruto que tenho colhido desta doutrina, e se a terra tem tomado o sal, ou se tem tomado dele, vós o sabeis, e eu por vós o sinto. Isto suposto, quero hoje, à imitação de Santo António, voltar-me da terra para o mar; e, já que os homens não se não aproveitam, prègar aos peixes. O mar está tão perto, que bem me ouvirão. Os demais podem deixar o sermão, pois não é para eles. Maria quer dizer Domina maris: Senhora do mar. E posto que o assunto seja tão desusado, espero que me não falte com a costumada graça. Ave Maria. Padre António Vieira (1978). Sermão de Santo António aos Peixes. Lisboa: Sá da Costa
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Pepetela, 1941-
Não falaria em nenhuma circunstância, pois todos estavam a repetir o que ele conhecia, embora também soubesse que o importante da fala não era dar a conhecer a alguém algo de novo, mas apenas falar para estar junto com pessoas que têm os mesmos problemas e as mesmas inquietações. E porque se está ali, e se fala, os problemas parecem menores. Os problemas parecem menores mas é só depois, porque na altura de falar não há nada mais dramático e atemorizador do que aquilo nesse momento descrito e por isso os inevitáveis gritos e lamentos a pontuarem as falas, a lhes darem credibilidade. Ulume calado e cego, mas embrenhado nestes pensamentos, e Munakazi a olhar para ele, pensando também ela. As pessoas falavam e era o horror das suas vidas futuras que descreviam. O mundo era fogo e ódio. As palavras eram balas disparadas ao futuro de cada um. Felizes dos que tinham vivido muito, esses ao menos teriam um passado, que é a única coisa segura nos tempos que correm. Pepetela (2016). Parábola do Cágado Velho. Lisboa: D. Quixote
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Ruben A., 1920-1975
- Podíamos ir à praia. O tempo melhorou, depois do Inverno, temos agora dias lindos, azuis, não mexe uma
folha, olha lá para fora, tudo tranquilo, vamos pela manhã, consegue arranjar isso, cedo, na praia quanto mais cedo melhor, cheiros de maresia, praia com rochas perto, gaivotas, musgo, água limpa, praia aberta sobre o mar, vamos a uma praia virada para o Atlântico, escolhemos o dia, dia sem vento. É tão raro, exactamente por ser tão raro é que é tão extraordinário. Água verde transparente, areia de pisar, pés que se enterram pouco mais pouco, procura de sombra,
acolhimento de pedra, infância nascendo aos pedaços, ali e mais além búzios, conchas de bichos que foram, que não voltam, algas secas, escuras, algas molhadas no açúcar da espuma, ondas sem medo, lavadas, ondas à pancada nas rochas, barco ao longe que passa, muito devagar, deixando fumo pendurado nas lunetas do céu, barco de um cano, à moda antiga, barco de carga, passa, passa ao largo, longe, de casco preto, fumo no fresco
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da parede azul do céu, sem ir embora, pássaros rentes,
rentes quase a debruçarem-se na queda, pássaros rápidos, aos quatro, três ou dois, pássaros escondidos mesmo atrás, de bico a servir de antena, assustados, voltam, revoltam, passam longe e fogem, nem uma brisa, o som fica pendurado, faz mesmo parte do fumo do navio que longe quase já se não vê, deixa rastro na pincelada negra que custa a desaparecer, já lá vai o barco e ainda está negro o horizonte, dia de férias para o peixe, dia transparente, peixe esconde-se, não vem à babugem, mete-se nas rochas com medo de tanta luz, a falésia cheia de buracos, repara agora, não há ninguém, cavernas cheias de sargaço, terra do sonho, muito longe outro barco, vem não se sabe de onde, deve ter cruzado com o cargueiro, navio branco, de passageiros é. Cano amarelo, deve ser, dois canos pelo menos, muito grande, enrodilhado na neblina, água que bate nas pedras, recorte do infinito sobre o finito. Ruben A. (1973). Silêncio para 4. [S.l.]: Moraes
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Ruy Belo, 1933-1978
A mão no arado Feliz aquele que administra sabiamente a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará Oh! como é triste envelhecer à porta entretecer nas mãos um coração tardio Oh como é triste arriscar em humanos regressos o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão ao longo do mar transbordante de nós no demorado adeus da nossa condição É triste no jardim a solidão do sol vê-lo desde o rumor e as casas da cidade até uma vaga promessa de rio e a pequenina vida que se concede às unhas Mais triste é termos de nascer e morrer e haver árvores ao fim da rua É triste ir pela vida como quem regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro É triste no outono concluir que era o verão a única estação Passou o solitário vento e não o conhecemos e não soubemos ir até ao fundo da verdura como rios que sabem onde encontrar o mar e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver através de palavras de uma água para sempre dita Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã Triste é comprar castanhas depois da tourada entre o fumo e o domingo na tarde de novembro e ter como futuro o asfalto e muita gente e atrás a vida sem nenhuma infância revendo tudo isto algum tempo depois A tarde morre pelos dias fora É muito triste andar por entre Deus ausente Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente.
Ruy Belo (2013). O Problema da Habitação. Lisboa: Assírio & Alvim
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José Saramago, 1922-2010
Ricardo Reis dissera ao gerente, Mande-me o pequenoalmoço ao quarto, às nove e meia, não que pensasse dormir até tão tarde, era para não ter de saltar da cama estremunhado, a procurar enfiar os braços nas mangas do roupão, a tentear os chinelos, com a impressão pânica de não ser capaz de mexer-se tão depressa quanto era merecedora a paciência de quem lá fora sustentasse nos braços ajoujados a grande bandeja com o café e o leite, as torradas, o açucareiro, talvez uma compota de cereja ou laranja, ou uma fatia de marmelada escura, granulosa, ou pão de ló, ou vianinhas de côdea fina, ou arrufadas, ou fatias paridas, essas sumptuosas prodigalidades de hotel, se o Bragança as usa, a ver vamos, que este é o primeiro pequeno-almoço de Ricardo Reis desde que chegou. Em ponto, garantira Salvador, e não garantira em vão, que pontualmente está Lídia batendo à porta, dirá o bom observador que é isso impossível para quem ambos os braços tem ocupados, muito mal estaríamos nós de servos se os não escolhêssemos entre os que têm três braços ou mais, é o caso desta vossa criada, que sem entornar uma gota de leite consegue bater suavemente com os nós dos dedos na porta, continuando a mão desses dedos a segurar a bandeja, será preciso ver para acreditar, e ouvi-la, O pequeno-almoço do senhor doutor, foi ensinada a dizer assim, e, embora mulher nascida do povo, tão inteligente é que não esqueceu até hoje. Se esta Lídia não fosse criada, e competente, poderia ser, pela amostra, não
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menos excelente funâmbula, malabarista ou prestidigitadora, génio adequado tem ela para a profissão, o que é incongruente, sendo criada, é chamarse Lídia, e não Maria. Está já composto Ricardo Reis de vestuário e modos, barba feita, roupão cingido, abriu mesmo meia janela para arejar o quarto, aborrece os odores noturnos, aquelas expansões do corpo a que nem poetas escapam. Entrou enfim a criada, Bom dia, senhor doutor, e foi pousar a bandeja, menos prodigamente oferecendo do que se imaginara, mas mesmo assim merece o Bragança nota de distinção, não admira que tenha tão constantes hóspedes, alguns não querem outro hotel quando vêm a Lisboa. Ricardo Reis retribui a salvação, agora diz, Não, muito obrigado, não quero mais nada, é a resposta à pergunta que uma boa criada sempre fará, Deseja mais alguma coisa, e, se lhe dizem que não, deve retirar-se discretamente, se possível recuando, voltar as costas seria faltar ao respeito a quem nos paga e faz viver, mas Lídia, instruída para duplicar as atenções, diz, Não sei se o senhor doutor já reparou que há cheia no Cais do Sodré, os homens são assim, têm um dilúvio ao pé da porta e não dão por ele, dormiram a noite toda de um sono, se acordaram e ouviram cair a chuva foi como quem apenas sonha que está chovendo e no próprio sonho duvida do que sonha, quando o certo certo foi ter chovido tanto que está o Cais do Sodré alagado, dá a água pelo joelho daquele que por necessidade atravessa de um lado para outro, descalço e arregaçado até às virilhas, levando às costas na passagem do vau uma senhora idosa, bem mais leve que a saca de feijão entre a carroça e o armazém. José Saramago (2016). O Ano da Morte de Ricardo Reis. Porto: Porto Editora
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Urbano Tavares Rodrigues, 1923-2013
Algures, numa cidade de granito, no Norte de Portugal, num bairro de santo-e-senha, vi à beira do rio titubeante, entre sol e nuvens, tanta roupa estendida que parecia uma feira. Larguinhos, praias fluviais de roupa estendida. E os casebres, paupérrimos, com moscas e crianças loiras e água (admitamos
que potável), manando das bicas e torneiras, tinham um segredo, uma luz misteriosa, ainda longe de amadurecer, mas curiosamente livre, rufando no meio da tarde. Esta gente, disseram-me, passa metade do ano (ou mais) na Terra Nova e até por essa costa da Europa ̶ França, Holanda, Inglaterra, Dinamarca… São homens sanguíneos, difíceis de entender, às vezes com faces duras de metal brunido e mãos de estrafegar o destino. Senão, era um ar que lhes deu. O odor do rio vai correndo bravo e, pronto, eis a escada que encosto a uma barraca e por onde subo até à lua diurna, para cair, logo após, sobre as cascas apodrecidas desta vida que ainda pulsa e luta por mim. “Quer levar consigo esta menina?” Fala a sério, a brincar? A criança, de olhos muito verdes (“É ruim como a peste”, diz a mãe), deve ter uns cinco, seis anos. Quase não sabem o que é fruta. E a carne, o bacalhau, claro, também não o vêem com frequência. Então como têm, alguns,
pelo menos, este porte vertical, sustendo o vento com as mãos? Roupas de tanta cor, enfunadas como velas, desfilando pelos cais, que o carro, mesmo sem buzina, dá a impressão de assaltar.
Urbano Tavares Rodrigues (1981). Dissolução. Lisboa: Círculo de Leitores
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Vergílio Ferreira, 1916-1996
Tu és livre e deves portanto libertar-te. A liberdade começa em saberes o que te oprime. Não bem em haver opressão, mas em reconhecê-la como tal. Porque pode haver opressão e tu julgá-la uma fatalidade; porque pode haver opressão e convencerem-te de que é necessária para a liberdade que te prometem. Só a liberdade absoluta é um perpétuo horizonte, para lá de todos os horizontes, que é o horizonte do impossível. Mas é nos limites humanos que tu hás-de querer ser livre e esses são os limites do homem, ou seja, do possível. Por isso não aceites que te inventem a liberdade mas apenas que te ajudem na tua libertação. Não admitas que ninguém seja livre por ti, mas assume tu próprio essa difícil dignidade. Reduz ao máximo o baldio para os outros, para que sejas tu ao máximo em tudo aquilo que fores. Não consintas que alguém seja a tua própria voz e chame à sua vontade a vontade que é tua. Ninguém é livre sozinho, porque o é apenas com os outros. Assim, só com os outros tu o poderás ser. Mas ser livre com os outros não é serem-no os outros por ti. Que a fronteira da tua liberdade te não seja a porta da casa para que tu sejas livre dentro e fora dela. Que a tua liberdade comece no pão que te espera à mesa e persista no desconhecido que te espera na rua; na palavra que pensaste e naquela que disseste; na paz do teu sono e na agitação da vigília; naquilo que és para ti e no que houveres de ser para os outros; naquilo que és tu e naquilo que mostras ser. Constrói a tua alegria, mesmo a tua amargura, e não esperes que te digam se o estar triste ou alegre está previsto num programa. Que a distância de ti a ti seja por ti preenchida e nunca pela polícia ou um director de consciência - seu irmão. Tu és livre. É portanto do teu dever libertares-te.
Vergílio Ferreira (1980). Conta-Corrente 1. Lisboa: Livraria Bertrand
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