Jorge de Sena

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Jorge Sena O Século de um Intelectual Indispensável

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Jorge de Sena

O século de um intelectual indispensável Uma série de trabalhos que reflectem a diversidade da obra e a riqueza do pensamento de um dos mais influentes intelectuais portugueses do século XX 2


Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

ÍNDICE A política em Sena António Araújo LER ARTIGO

Jorge de Sena e o Brasil Osvaldo Manuel Silvestre LER ARTIGO

Jorge de Sena, antologista Ricardo Vasconcelos LER ARTIGO

O crítico prodigioso Joana Meirim LER ARTIGO

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Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

Um “realismo que não recua”: a ficção de Jorge de Sena Paulo Alexandre Pereira LER ARTIGO

O poeta não é um fingidor Fernando Cabral Martins LER ARTIGO

O poeta em Sena Joana Matos Frias LER ARTIGO

Jorge de Sena: o gigante indigesto da cultura portuguesa Luís Miguel Queirós LER ARTIGO

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Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

A política em Sena Apesar de ter dedicado ensaios eruditos a figuras como Maquiavel, Rousseau ou o admirado Marx, Jorge de Sena não desenvolveu propriamente um “pensamento político” sistemático e estruturado nem articulou uma concepção ideológica singular ou especialmente original. Ensaio de: António Araújo

Espólio de Jorge de Sena na Biblioteca Nacional PEDRO CUNHA/ARQUIVO

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“N

ão sou prostituta, nem pederasta público, nem chefe comunista, nem director de editorial, nem seareiro, nem vértice, nem o diabo”, escreveu Jorge de Sena a Eduardo Lourenço, em Junho de 1967, numa recorrente e quase obsessiva proclamação da sua independência de carácter, que era, segundo ele, a causa maior para que a pátria tardasse em reconhecer-lhe o talento, genial e imenso. Na ausência de louvores alheios, o próprio se encarregaria da solitária tarefa de cuidar do ego, informando Lourenço: “Eu não preciso que ninguém me diga que sou um dos maiores poetas de língua portuguesa, um dos contistas mais originais, um dos críticos mais importantes, autor de algum do teatro mais significativo do século.” A conturbada relação do poeta com o seu país, agravada por um longo exílio de quase duas décadas no Brasil e nos Estados Unidos, dominou por completo o modo como Sena encarava a realidade política, a nacional e mesmo a estrangeira. Todos ou quase todos os seus “textos políticos” versam sobre Portugal, desde os artigos contra o “rato” Salazar, saídos nas páginas do Portugal Democrático, jornal da oposição portuguesa publicado em São Paulo, ao discurso proferido na Guarda em 1977, nas comemorações do 10 de Junho. Apesar de ter dedicado ensaios eruditos a figuras como Maquiavel, Rousseau ou o admirado Marx, Jorge de Sena não desenvolveu propriamente um “pensamento político” sistemático e estruturado nem articulou uma concepção ideológica singular ou especialmente original. O que dele existe nesse domínio são considerações avulsas e textos esparsos sobre questões da actualidade, redigidos após ter-se exilado no Brasil em 1959, na sequência de um convite para ensinar em São Paulo, feito aquando da sua participação num congresso de estudos luso-brasileiros na Bahia. Tomada aos 40 anos, a decisão de viver no estrangeiro com a numerosa família foi indissociável do seu envolvimento, em Março de 1959, no falhado “golpe da Sé”. Antes disso, Sena viu o seu livro As Evidências ser apreendido pela PIDE em 1955, sob a acusação de “subversivo e pornográfico”, 6


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Em Julho de 1968, escrevendo a partir de Madison, perguntou-se: “Gosto de viver na América?”. “É difícil a resposta”, concluiu, “porque eu não gosto de viver em parte nenhuma.”

e participou, no ano seguinte, na fundação da Sociedade Portuguesa de Escritores. Apesar de lamentar mais tarde que a política lhe tinha roubado o tempo imprescindível à criação literária, Jorge de Sena não teve actividade oposicionista de monta, e não é por acaso que, antes e depois do 25 de Abril, se sentiu na obrigação de invocar reiteradamente credenciais antifascistas contra os que o acusavam de ser um intelectual “burguês” que nunca conhecera a prisão e a tortura e que, naturalizado brasileiro em 1963, levava uma existência confortável a ensinar em universidades do Brasil (Assis e Araraquara) e, a partir de 1965, dos Estados Unidos: primeiro em Madison, no Wisconsin (1965-1970), depois em Santa Barbara, na Califórnia (1970-1978). Em carta a Sophia, escrita não muito depois de se instalar em Madison, duvidou que os Estados Unidos o prendessem por muito tempo e, em 1972, confessou à amiga estar farto “desta América que perdeu o último comboio da decência e da dignidade”. De resto, já antes lhe confidenciara o sonho de se fixar em Itália, na Grécia ou até mesmo no Japão. A Eduardo Lourenço falaria de outros lugares apetecíveis, em Inglaterra ou em França. Simplesmente, a América oferecera-lhe emprego para a vida, promoveu-o ao que chamou “o generalato máximo” e de Lisboa e de outras paragens os convites teimavam em não aparecer. Em Julho de 1968, escrevendo a partir de Madison, perguntou-se: “Gosto de viver na América?”. “É difícil a resposta”, concluiu, “porque eu não gosto de viver em parte nenhuma.” À época, a humanidade surgia-lhe “monstruosa e bestial”, e a vida uma “monumental chatice”. Este desalento, contudo, 7


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Num autor infatigável e prolífico que, em carta a Luís Amaro, chegou a dizer que “o meu mal é que eu precisava de ter três editoras só publicando obra minha”, a escassez ou a incipiência de textos políticos e de intervenção cívica é ponto que merece ser assinalado não era novo. Dez anos antes, em carta a José-Augusto França, afirmara, no mesmo registo: “Acho a Europa irremediavelmente reles; e as Américas irremediavelmente reles.” Com este estado de espírito, o convívio nem sempre era fácil e já em 1959 António José Saraiva tinha de acalmar Óscar Lopes, cunhado do poeta, dizendo-lhe: “Estou quase a concordar contigo, no que respeita ao Jorge […] O que não obsta a que seja um homem imensamente lido, de prodigiosa memória e muito inteligente”. Para além de ter escolhido a América como lugar de exílio, Sena piorou o seu caso perante a intelectualidade da “resistência” por nunca na vida ter sido afecto ou militante do PCP ou navegado sequer nas águas do neo-realismo. Em 1961, com a bravata habitual, declarou que iria processar por difamação todos os que lhe chamassem comunista. E, na correspondência com Sophia, são frequentes as alusões à “comunistada” e aos “comunistóides”. Numa carta para a poetisa, datada de 1964, avisou que não se convertera ao “anticomunismo de indústria”, mas tinha chegado à conclusão de que aos comunistas faltava “o mínimo de ética para lidarem com as pessoas decentes”. Acrescentou: “Sempre os achei assim: mas, às vezes, as conveniências forçam uma certa honestidade… e já lhes passou a oportunidade ou, melhor dizendo, esse oportunismo.” Se o seu declarado anticomunismo era um handicap no panorama intelectual da altura, Sena enfrentava também o facto de ter tido uma longa e ininterrupta carreira de engenheiro ao serviço do Estado e dos 8


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poderes públicos (Câmara Municipal de Lisboa, Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização, Junta Autónoma das Estradas). Talvez por isso, o seu envolvimento activo no oposicionismo foi relativamente tardio, sendo sintomático que Rever Portugal (Guimarães Editores, 2011), a colectânea dos seus textos políticos e afins, comece apenas com os artigos do Portugal Democrático, escritos na segurança do Brasil, com um oceano de permeio. Neles, Jorge de Sena não faz concessões ao regime e mostrase impiedoso para com Salazar: “Some-te, rato!”, é um dos seus textos mais conhecidos da altura, época em que também assumiu fugazmente a vice-presidência da Unidade Democrática Portuguesa, de finais de 1961 a Fevereiro de 1962; no ano seguinte, demitir-se-ia da redacção do Portugal Democrático. Em carta a José-Augusto França, explicitou o motivo daquelas demissões, dizendo-se “farto de andar com políticos de merda.” Além destes cargos efémeros, não lhe são conhecidas participações em grupos organizados ou em partidos políticos e o que de mais substancial existe no período do exílio brasileiro, de 1959 a meados dos anos 60, são textos a assinalar o cinquentenário da instauração da República, diatribes contra o Presidente do Conselho e as farsas eleitorais, inflamadas denúncias do assassinato do capitão Almeida Santos, homenagens a Humberto Delgado e ao embaixador brasileiro Álvaro Lins, prosa de circunstância. Num autor infatigável e prolífico que, em carta a Luís Amaro, chegou a dizer que “o meu mal é que eu precisava de ter três editoras só publicando obra minha”, a escassez ou a incipiência de textos políticos e de intervenção cívica é ponto que merece ser assinalado. Nesta fase, deve realçar-se apenas o texto que escreveu em Agosto de 1959 a pedido de Ruy Cinatti, e em que Sena avançou o projecto de uma Comunidade de Estados Portugueses, implantada faseadamente seguindo o modelo da Commonwealth, com vista a encontrar uma solução pacífica para o “problema ultramarino” que salvaguardasse a presença dos brancos em África, um tema que continuará a abordar em intervenções subsequentes, como uma entrevista concedida a um jornal 9


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A propósito do Maio de 68 em Paris, confessara a [Eduardo] Lourenço: “Tenho grande receio em acreditar na revolução dos estudantes…”

de Belo Horizonte, em Agosto de 1961, onde disse que Portugal teria de resolver o problema da população branca de Angola, “que, até há pouco, vivia em boa paz com os negros.” Em meados desse ano de 1961, e acompanhando a trajectória da oposição não comunista, defenderá abertamente o direito dos povos africanos à autodeterminação, continuando todavia a referir a necessidade de acautelar o destino da minoria branca e a salientar que Portugal nunca praticara uma política semelhante ao apartheid sulafricano, como escreveria em finais de 1973, no regresso da sua viagem por África: “O paternalismo português, com todas as suas limitações (…), nada é, a comparar com a atmosfera opressiva do famoso apartheid”. Após o 25 de Abril, aquele texto de 1959 em que gizou uma Commonwealth lusitana servir-lhe-ia para afirmar que fora pioneiro no pensamento autonomista quanto ao futuro das colónias africanas e que, se acaso lhe tivessem dado ouvidos e posto em prática o seu plano, muitas e graves tragédias teriam sido evitadas. “Eu fui das primeiras pessoas que falou na descolonização quando apresentei em 1958 um plano nesse sentido”, recordará, em Junho de 1977, numa entrevista concedida a Fernando Dacosta. E dois antes, logo em Maio de 1974, diria a José-Augusto França que o seu plano tinha sido um dos esteios políticos do “golpe da Sé” e que também Spínola se baseara nele para o projecto que apresentara nas páginas de Portugal e o Futuro.

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Na América Curiosamente, não se lhe conhecem — ou, pelo menos, não se encontram na citada resenha dos seus textos políticos — intervenções escritas, públicas e de vulto, sobre a ditadura militar brasileira, cujo advento presenciou. E Jorge de Sena, que no passado não se inibira de criticar asperamente governantes norte-americanos (por exemplo, chamou “Deão Pão Doce” a Dean Rusk), absteve-se também de se pronunciar sobre a política interna dos Estados Unidos após ter ido para lá viver. Sobre a eleição de Nixon – e após esclarecer que, como residente americano, não tinha o direito de a comentar —, disse que ela resultara de um desejo de estabilidade de “toda uma massa central da sociedade americana”. Saudou as manifestações contra a guerra do Vietname, mas congratulou-se igualmente com o facto de as forças da ordem terem, “com energia”, restaurado a tranquilidade nos campuses das universidades norte-americanas (a propósito do Maio de 68 em Paris, confessara a Lourenço: “Tenho grande receio em acreditar na revolução dos estudantes…”). Sobre os protestos cívicos dos afro-americanos, mencionou o desejo que os “negros extremistas” tinham de instaurar um regime de apartheid no país e culpabilizou pelo racismo os imigrantes que haviam chegado à América depois dos negros (“as pessoas mais racistas são os imigrantes”, disse ao

Republicano e laico, dizendo não ter recebido qualquer educação religiosa da sua família “de tradição liberal, voltairiana”, afirmou-se socialista e defensor da democracia representativa, mas nunca militou em partidos nem se deixou seduzir por uma intervenção política activa 11


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República, em 1968). Afirmou ainda, repetidas vezes, que a questão racial no Brasil era incomparavelmente menos grave do que os “problemas terríveis” que a mesma suscitava nos Estados Unidos. Não obstante, continuou a apreciar a Califórnia e o seu clima ameno, dizendo numa entrevista a Nuno Rocha, em 1971, que viver lá era como “viver no Estoril todo o ano.” O “equívoco de fronteira” Com o advento da “Primavera marcelista”, Jorge de Sena alegou “falta de dinheiro” para não voltar ao seu país, como disse em Abril de 1968 a Arnaldo Saraiva, em entrevista saída num número especial de O Tempo e o Modo dedicado à sua obra. Em Dezembro desse ano, veio a Portugal, mas foi detido pela PIDE quando se preparava para entrar de comboio por Marvão. Expulso para Espanha, de Valência de Alcântara conseguiu estabelecer contacto telefónico directo com o Presidente do Conselho, que autorizou a sua vinda, tendo a Censura permitido que os jornais relatassem o sucedido como um “equívoco de fronteira”. Numa carta a Eduardo Lourenço, de Junho de 1969, afirmou, com exagero, que o caso gerara um “escândalo internacional” e que, pessoalmente, aquelas horas de detenção fronteiriça o tinham libertado do velho complexo de nunca ter sido preso durante o salazarismo, tornando-o, pois, um antifascista de pleno direito. Depois do 25 de Abril, no entanto, desvalorizou o gesto do Presidente do Conselho, sustentando que era “o que convinha às aparências de “reconciliação” dos primeiros tempos do governo de Marcelo Caetano”. No Verão de 1973, e a convite da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra, formulado por ocasião das comemorações do IV centenário da publicação do Os Lusíadas, Jorge de Sena deslocou-se a Moçambique e a Angola. Nas entrevistas então concedidas, e apesar de revelar mais 12


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tarde que a viagem fora paga pela oposição e pela clandestinidade moçambicanas, teve a compreensível cautela de nunca abordar questões ligadas à guerra travada em África ou ao destino dos territórios ultramarinos. Em pleno consulado marcelista, não deixaria também de ser responsável pela edição das obras de Camões por encomenda da editora do Estado, a Imprensa Nacional, e, no âmbito das comemorações camonianas, em 1973 proferiu uma palestra no Centro Cultural Português de Paris, da Gulbenkian, na altura dirigido por Joaquim Veríssimo Serrão, o qual, segundo Sena, teve de travar uma árdua luta para vencer as pressões contra o seu nome, oriundas dos sectores situacionistas. Após o 25 de Abril, contudo, Jorge de Sena apoiou os saneamentos no ensino; disse que correspondiam a uma “decisão inevitável” e argumentou que “a educação, para ser democrática, não pode estar confiada aos próceres do antigo regime”, ignorando decerto que Veríssimo Serrão, que um ano antes o protegera, fora afastado do cargo de reitor da Universidade de Lisboa logo em 29 de Abril de 1974 e saneado da Faculdade de Letras no mês seguinte. Um “esquerdismo lúcido” Assumindo-se sempre como de esquerda, de um “esquerdismo lúcido”, Sena encarou com vibrante entusiasmo o 25 de Abril, revelando até bastante compreensão para com alguma turbulência revolucionária, que entendeu ser normal em conjunturas convulsas (“houve uma euforia da liberdade que era perfeitamente natural que existisse”, observou em 1976, acrescentando, dois anos depois, que “era inevitável que no momento em que abrissem as comportas houvesse uma explosão”). Contudo, em Outubro de 1974 já confessava a Eugénio de Andrade a sua desilusão, motivada, como sempre, pela ingratidão nacional: “quanto ao país, só pelos jornais que escassos me chegam, e pela imprensa internacional rara, é que sei dele. […] Não 13


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fosse eu esquerdista e democrata de velha cepa, e o comportamento do país para comigo justificaria que eu estivesse de mal com a revolução, que cada vez me parece mais um conluio de continuistas e de arranjistas, com alguns revolucionários de parvos pelo meio, e muitos demagogos a agarrar os tachos com muita pressa. Que lhes preste a todos, e divirtam-se.” Republicano e laico, dizendo não ter recebido qualquer educação religiosa da sua família “de tradição liberal, voltairiana”, afirmou-se socialista e defensor da democracia representativa, mas nunca militou em partidos nem se deixou seduzir por uma intervenção política activa. Ideologicamente, definiu-se a partir da sua “crença e filosofia

Espólio de Jorge de Sena na Biblioteca Nacional ENRIC VIVES-RUBIO/ARQUIVO

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marxistas sem pitada de socialismo de ida e volta” e salientou a sua “inabalável consciência democrática em que todos têm um papel efectivo a desempenhar”. Em Maio de 1974, no imediato pós-revolução, proclamou ser um defensor da democracia pluralista mas, de igual modo, um “marxista de extrema-esquerda”, caracterização que em breve iria abandonar, em benefício de registos mais centristas e moderados. Do ponto de vista político, Sena questionou o imperialismo da política externa dos Estados Unidos, para logo confessar a sua admiração pela sua “tradição democrática interna, no melhor sentido da palavra”, a par da meritocracia da sociedade e do sistema de ensino norteamericanos, em flagrante contraste com Portugal ou o Brasil (“aqui, uma pessoa qualquer da working class pode pensar que o seu filho vai para a universidade”). Aos que criticavam a sua permanência nesse país, respondia com questões práticas, profissionais, alegando ter carreira e lugar de catedrático, família para sustentar. E justificou-se a Lourenço por não ter vindo a Lisboa logo a seguir à revolução, como tantos outros, com o argumento de que a Universidade da Califórnia não concedia “licenças súbitas”, pelo que a viagem só seria possível se “loucamente pedisse a demissão” da cátedra americana. Lamentou, porém, não ter sido chamado pelos novos governantes a ocupar cargos de relevo ou exercer funções condizentes com o altíssimo mérito que tinha e, sobretudo, que proclamava ter (“a única razão pela qual parece que eu proclamo a cada instante o meu talento é porque, até muito recentemente, se eu não o fizesse, ninguém o faria”, disse em 1968). Naturalmente, apreciou ter sido feito comendador da Ordem do Infante, em Abril de 1977 (mesmo que em privado dissesse a Lourenço que “a comenda foi uma piada da burrice lusitana”), e, mais ainda, ter sido convidado a discursar na Guarda, nas primeiras grandes celebrações democráticas do 10 de Junho (não por acaso, num texto de 1978, apelidou o Presidente Eanes de “símbolo vivo da democracia e das instituições”). No seu discurso da Guarda, contudo, não se alongou em considerações 15


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políticas nem expôs um pensamento estruturado sobre os desígnios pátrios. Existem, em todo o caso, alguns tópicos recorrentes nas suas intervenções que permitem descortinar uma certa coerência de ideias, firmada ao longo dos anos, em prol do socialismo e do pluralismo democráticos. Após o 25 de Abril, e colocando-se ao lado das forças que pugnavam pela democracia representativa e plural que sempre considerou ser o seu modelo político, Jorge de Sena defendeu, logo em Junho de 1974, ser imprescindível realizar eleições, até para conferir aos grupos então emergentes “a qualidade de partidos dotados de representatividade e de significação nacional”. E, em Dezembro desse ano, retomou a ideia, na altura contestada pelos sectores mais radicais do MFA e da extrema-esquerda, da necessidade de realizar eleições para “uma Constituinte que elabore o estatuto fundamental do país”. O avanço do processo revolucionário iria parecer-lhe excessivo e, em Janeiro de 1975, já se queixava a Eduardo Lourenço que não existia lugar para “independentes de esquerda” como ele, “num país aonde a esquerda se fez chantagem no caminho de um poder mal ganho.” Mais tarde, em 1976, considerou que era urgente uma “estabilização política e económica” e, no ano seguinte, falaria, inclusive, da necessidade de respeitar “a autoridade do governo, pois sem ela não há país, não há nada.” Ao dirigir-se, mais do que uma vez, à diáspora portuguesa na Califórnia, teve palavras agrestes contra quaisquer veleidades independentistas nos Açores, a ponto de mais tarde ter dito a Eduardo Lourenço que a ele se deveu o facto de nas cerimónias do 10 de Junho se comemorarem “as comunidades portuguesas” e, acima de tudo, que também a ele se deveu o facto de os arquipélagos atlânticos se manterem integrados na terra-mãe. Sendo um adversário da independência dos Açores (insistiu, vezes sem conta, que as ilhas nunca tinham sido colónias de Portugal), confessou, porém, que, quando essa independência se desse e um governo soberano fosse instalado no arquipélago, iria pedir a cidadania 16


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insular, pois tinha lá ancestrais raízes, que remontavam ao século XVIII (uma vez, Jorge de Sena instruiu José-Augusto França para não deixar de colocar “de” no seu nome). O “reino da estupidez” E Portugal, afinal? As ambivalências costumeiras da nossa intelectualidade. O “reino da estupidez” parecia-lhe “uma coisa medíocre, mesquinha, reles”, como dirá a Eduardo Lourenço, em carta de 1968, onde também confessou: “São muito poucas as pessoas que, em Portugal, eu admiro, e menos ainda as que, admirando, respeito.” Numa missiva de 1977, igualmente dirigida ao ensaísta de O Labirinto da Saudade, descreveu o país como “aquela caca que a Providência nos deu para nascer e amar.” A José-Augusto França declarara, anos antes, que Portugal não passava de “uma fantasia apenas, muito triste” e de “um Carnaval sangrento e malcheiroso.” Ou ainda, como afirmou noutro escrito: “Portugal é um país de amadores.” Jorge de Sena entendia que os portugueses, contrariamente a certos mitos, não eram um povo que se adaptava facilmente a outros meios nem eram gente de brandos costumes (“os portugueses podem ser tão bons a matar como qualquer povo”). A Sena orgulhava-se de sua concepção da portugalidade ser um exilado (nunca era profundamente historicizada, um “emigrante”) e um impregnada por uma visão do “estrangeirado notório”, passado que, com laivos de algum mas manteve até ao fim nacionalismo, não deixava de render culto às grandes figuras e, entre o a ligação umbilical à mais, defendia Camões dos que o pátria, vil e ingrata atacavam por imperialista e o Infante 17


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D. Henrique das acusações de colonialista (ainda que Sena, em privado, dissesse a José-Augusto França que o Infante tinha sido “o primeiro colonialista português”). Além das grandes figuras, o discurso historicista de Sena prestava particular atenção aos momentos emblemáticos do passado luso, com natural destaque para os “feitos extraordinários” da gesta dos Descobrimentos, que “deram aos Portugueses uma específica dimensão na História Universal”, bem como a outros lugares de memória escolhidos pelo seu especial significado político e simbólico, como a crise de 1383 (“um putsch lisboeta”) ou a revolução de 1910. Sena orgulhava-se de ser um exilado (nunca um “emigrante”) e um “estrangeirado notório”, mas manteve até ao fim a ligação umbilical à pátria, vil e ingrata. Em 1973, quando questionado por Baptista-Bastos sobre se mantinha o contacto com a cultura portuguesa, respondeu de imediato que achava essa pergunta sumamente estranha, sendo óbvio que sim. Maldizendo uma entidade abstracta designada Portugal, reservava os seus raros elogios para outra entidade não menos abstracta, o povo português: “podem acusar-me do que quiserem, mas sempre tive confiança no povo português, nunca tive foi confiança nas chamadas classes altas portuguesas”, disse em 1978, para logo confessar, desconfiado, que receava o “emburguesamento” das nossas camadas populares. No mesmo registo de enaltecimento do povo, escrevera a Sophia de Mello Breyner que, na “pátria vil”, “tirando o povo e uns raros, é vil canalha, e mesquinha…” e que, “salvo o povo e algumas excepções honrosas”, Portugal e o Brasil tinham o que mereciam. Quase recuperando uma velha máxima da propaganda colonial do Estado Novo, cunhada por Henrique Galvão, Sena disse ao Diário de Lisboa, em 1969, que “o povo português não é um povo de um país pequeno”. Mais tarde, e a propósito das conturbações do processo revolucionário e do risco de uma guerra civil, salientaria a necessidade de “ter esperança no bom senso do povo português”. Em seu entender, mesmo nos tempos da ditadura os portugueses 18


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Do ponto de vista cultural, Jorge de Sena sustentou que “toda a cultura é de esquerda, pelo que representa de contestação da injustiça, da desigualdade, da opressão”. “Cultura de direita” nunca haveria, portanto

sempre foram um povo genuína e esmagadoramente democrata, ficando então por esclarecer a razão pela qual o regime durara tantas décadas e, pior ainda, porque escrevera Sena, em 1956, que “a maioria dos portugueses não tem aquilo que se designa por cultura.” Afirmação tanto mais estranha quanto Jorge de Sena iria sustentar mais tarde, e recorrentemente, que a ideia da imaturidade cívica do povo português era falaciosa, porquanto “a imaturidade de um povo é sempre o espelho da imaturidade dos seus governantes.” Em contrapartida, a tese, propalada após a revolução, de uma “via portuguesa para o socialismo” não passava, segundo ele, de um resquício da “retórica do passado” e de “velhas ideias nacionalistas”. Nunca renegou o 25 de Abril (“durante toda a vida esperei por um acontecimento assim”), ainda que algumas vicissitudes do PREC lhe tenham merecido as maiores reservas, a ponto de ter falado, em poema e prosa, da “Revolução dos Cravos e dos Cravas”. Em 1975, referiuse ao “oportunismo trágico” do PCP e classificou o MDP como “a Ordem Terceira de São Álvaro Cunhal”. Também nesse ano, numa carta conjunta a Alexandre O’Neill e a João Palma-Ferreira, aludiu a “clamores de guerra civil” e mostrou-se alarmado com a possibilidade de se repetir “em pior” o desastre de Alcácer-Quibir, observando que a crise portuguesa da altura era “mais complexa e perigosa do que 1580”. Pouco depois, porém, aparentava estar mais tranquilo, afirmando que “não é a primeira vez que Portugal passa por acontecimentos que parecem pôr tudo em causa”. A dada altura, queixou-se que Abril se aburguesara, não sendo, 19


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pois, “a revolução que nós desejávamos” (entrevista ao Diário Popular, Setembro de 1976). E chegou a referir, noutra ocasião, que no processo revolucionário português se tinham cometido “erros tremendos” e que a revolução almejada e necessária “não se fez”, “provavelmente não se fará nunca” e até, em boa verdade, “nunca teria sido possível” em Portugal, o que sempre levará a perguntar porque acolheu com tanto entusiasmo o 25 de Abril e os tempos subsequentes. Talvez a explicação esteja em palavras do próprio Jorge de Sena, que um dia proclamou que “passar a vida a fazer proclamações é uma actividade literária como outra qualquer.” Em qualquer caso, a revolução de Abril representou, para ele, um passo na aproximação ao poder – e ao que este poderia dar. Em Maio de 1974, Jorge de Sena e José-Augusto França já trocavam correspondência sobre possíveis lugares na Universidade ou mesmo na política, com o primeiro a aventar – e descartar – a hipótese de uma pasta ministerial: “não serei ministro de nenhuma Cultura, embora fosse capaz de sê-lo”. Mais tarde, em 1977, com França colocado na presidência do Instituto de Cultura Portuguesa e tendo surgido a possibilidade de abertura de um leitorado na Universidade da Califórnia, onde Sena leccionava, este escreveu ao amigo para combinarem entre ambos como se iria processar o respectivo concurso. Sena falou de “cláusulas secretas”, nos termos das quais não seriam admitidos nomes de “fascistas ou fascistóides”, não convindo também nomear alguém demasiado à esquerda, por causa do atávico conservadorismo da diáspora portuguesa na América. Além disso, Sena exigia, como “patriarca dos estudos portugueses por estas bandas” e como titular da “mais alta categoria de catedrático”, que não fosse apresentado alguém que não o respeitasse: “Não admito que venha uma pessoa que me não respeite” (itálico no original). Havia ainda que ultrapassar o escolho das entrevistas pessoais aos candidatos, uma peculiaridade meritocrática das academias americanas, mas para isso Sena impôs outra “cláusula secreta” ao amigo França: “A gente joga com 20


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as cartas marcadas”. No final, tudo acabou bem, e foi escolhido um nome a contento de ambos. Cultura e costumes Do ponto de vista cultural, Jorge de Sena sustentou que “toda a cultura é de esquerda, pelo que representa de contestação da injustiça, da desigualdade, da opressão”. “Cultura de direita” nunca haveria, portanto. Existiria, quando muito, uma “cultura conservadora”, cujos contornos, porém, Sena não especificou. Referiu, noutro lugar, que “a “esquerda” é por necessidade uma forma superior de inteligência”, razão pela qual se mostrava impressionado por muita da esquerda portuguesa “ser tão boçal”, e, mais grave ainda, por faltar à verdade aos cidadãos, preocupando-se tão-só em “vender o seu peixe”, “sem escrúpulo nem rebuço”. Em matéria de costumes, revelou-se um liberal radical, alguém que entendia que “numa sociedade equilibrada e livre, a “moral” não deve exceder o nível de apenas regulamentar a eficiência das relações sociais no âmbito da estrutura do Estado”. Contudo, e no que parecia ser uma atitude antifeminista, considerou que o “caso das Três Marias” fora mal apresentado na imprensa internacional, como se o livro tivesse sido atacado por apoiar o movimento das mulheres, quando tais ataques se dirigiram, isso sim, à obra em si, não ao tema nela versado. Afirmou-se, na ocasião, um defensor dos direitos das mulheres, um denunciante da “síndrome do machismo” patente na sociedade portuguesa (num verbete de dicionário dedicado ao amor, assinalou que “a mulher portuguesa sabe a que ponto os homens vivem no seu esófago ou no seu útero”). Quanto ao mais, advogou a causa da pornografia e da prostituição, apoiando também a abertura de sex-shops em Portugal, que considerou serem “uma indústria como as outras”. Em entrevista a Fernando Dacosta, fustigou o erotismo, que classificou como uma espécie 21


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de “masturbação mental” por nele as coisas serem meramente sugeridas, insinuadas, “mas não acontece nada”, havendo o risco de as pessoas ficarem a imaginar coisas. Ao invés, os filmes pornográficos, mais salutares, tinham “tudo visível” e neles “não fica nada para a imaginação”. Mostrou-se igualmente a favor da prostituição, regulamentada e organizada pelo Estado, por haver pessoas que não têm “vocação para outra coisa” (aduziu o exemplo dos docentes universitários, onde “a percentagem das “prostitutas” é a mais elevada”) e, avançou, a propósito, uma inquietante pergunta: sem prostituição e prostitutas, “como é que os tímidos, os feios, os aleijados, as pessoas sem graça, etc., etc., se governavam?” Em Fevereiro de 1978, poucos meses antes de morrer, regressou ao tema. Discorreu novamente sobre a “alta percentagem de prostitutas” nos meios académicos e, também de novo, observou que “as prostitutas sempre alegraram a vida de muito solitário, e ensinaram a fazer amor como deve ser a muito rapaz sem talento para isso.” Uma casa portuguesa “Portugal nunca precisou de mim para nada…”, queixou-se amargamente, numa entrevista que em 1976 concedeu ao Diário Popular. Jorge de Sena, no entanto, precisou de Portugal para muito, quanto mais não fosse como objecto de estudo, saco de pancada e, acima de tudo, como muro de lamentações por falta de convites oficiais, ofertas de emprego ou gestos aclamatórios. Nos últimos anos de vida, declarou em várias entrevistas que o seu regresso à pátria não dependia dele, colocando sobre os outros o ónus de o resgatarem de um prolongado, mas voluntário, exílio. Interpelado sobre a possibilidade de voltar, respondeu que “esse problema não me compete a mim”; noutra ocasião, avisou: “o meu regresso a Portugal nunca esteve condicionado por mim mesmo.” Dito isto, esperou. Numa entrevista 22


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publicada poucos meses antes de morrer, o dramaturgo de O Indesejado foi mais longe, explicando a falta de convites por uma conjura de circunstâncias adversas: a morte, num acidente automóvel em Coimbra, do amigo que tivera a ideia da sua vinda para Portugal; o silenciamento, por parte do poder político de Lisboa, dos que ousaram propor o seu regresso; um convite exploratório, mas nunca concretizado, formulado na cidade do Porto. Assim, e como o chamamento tardasse, morreu de cancro em Santa Barbara, na Espólio de Jorge de Sena na Biblioteca Nacional ENRIC VIVESCalifórnia, a 4 de Junho de RUBIO / ARQUIVO 1978, com 59 anos. Meses depois, foi condecorado, a título póstumo, com a Grã-Cruz da Ordem de Sant’Iago, e a Câmara Municipal de Lisboa reconheceu o seu valor e homenageou-lhe o talento dando o seu nome a uma pequena rua da freguesia da Ameixoeira, numa zona limítrofe e pouco conhecida da capital, nas imediações da Calçada de Carriche. Também no Bairro Codivel, em Odivelas, há uma artéria com o nome Jorge de Sena, perpendicular à Alves Redol. O poeta manteve até à morte a sua casa portuguesa, a moradia nº. 225 do Bairro do Restelo, em Lisboa. Em 1968, o ministro Gonçalves 23


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Proença proferiu um despacho a retirar-lhe o uso dessa casa, uma habitação económica do Estado Novo, propriedade do Ministério das Corporações, destinada a fins sociais. A mãe do poeta morrera no ano anterior, ele saíra de Portugal há quase uma década, a casa estava vaga, até fora ocupada entretanto. Em face disto, Jorge de Sena, que em vários escritos se manifestara contra a prática do compadrio, das cunhas e dos favores, considerando-os um inequívoco indício do atraso mental lusitano, resolveu pedir auxílio a Eduardo Lourenço, outro pensador da portugalidade, sabendo que este era amigo do ministro Proença há muitos e muitos anos. Forneceu-lhe, inclusivamente, instruções precisas sobre como deveria endereçar o pedido ao Gabinete do Ministro, em envelope discreto, com a indicação de “pessoal”. Segundo Sena, as circunstâncias políticas eram então favoráveis à sua causa imobiliária: “Com o alarido, o facto de o Marcelo ter dado ordem para eu entrar livremente, etc., acho que é ocasião propícia para atacar o problema”. Lourenço atacou o problema, e em força. Na carta para o Gabinete, chegou a ameaçar o seu amigo ministro, dizendo-lhe que, se acaso ele não resolvesse aquela questão vital para o poeta, este poderia “voltar as costas à Pátria” e até mesmo fazer escândalo, gritando aos quatro ventos que ficaria para sempre do lado de lá do Atlântico (onde morreu). Não se invocaram fundamentos jurídicos nem razões legais, até porque, segundo Lourenço, “na lei se deve basear o Ministério para lhe recusar o direito à casa.” Passados alguns meses, o autor de Arte de Música agradeceulhe o empenho: por causa da contundente missiva, o ministro alterara o despacho, a casa ficava sua. Logo a ofereceu a Lourenço, louvandolhe as comodidades (“uma casa grande e habitável, ao seu dispor”). Por meios informais e outras amizades, Sena soubera anteriormente que a carta de Eduardo Lourenço tivera “grande influência” junto do ministro de Marcello Caetano, e que o despacho fora anulado, mas só com a confirmação oficial da notícia, recebida com grande júbilo, agradeceu ao amigo. De Santa Barbara, pediu-lhe ainda que, em nova carta, 24


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agradecesse ao ministro, e disse que ele próprio também iria escrever ao governante, em preito de gratidão. E assim, graças à diligência de um filósofo e à benevolência de um ministro, o poeta de Metamorfoses conseguiu manter a sua residência de Lisboa, e dizer, em entrevista ao Jornal de Notícias, que ela era “património dos meus filhos – o único que possuem, além da minha própria pessoa.” António Araújo é historiador e jurista

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Jorge de Sena e o Brasil O problema da literatura no Brasil, dirá Sena, é “o medo que os brasileiros têm de que a sua literatura possa não ser suficientemente brasileira”, razão pela qual tendem a expulsar a literatura portuguesa de qualquer tipo de relação com ela, tornando-a, “paradoxalmente, mais estrangeira do que [as outras literaturas estrangeiras]”. Ensaio de: Osvaldo Manuel Silvestre

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Jorge de Sena gostava de recordar que o seu primeiro contacto físico com o Brasil ocorrera na juventude, mais exactamente em 1937-38, na qualidade de primeiro cadete da Marinha, em viagem de instrução no navio-escola Sagres. Para alguém sempre tão empenhado na arqueologia dos processos histórico-culturais, o que o fazia traçar vastos e minuciosos panoramas em que cada camada se sedimenta sobre a anterior sem quase nunca resolver os conflitos de que se fazem história e cultura, o episódio juvenil funcionava como uma espécie de prova de que o contacto de Sena com o Brasil não nascera em 1959, ano em que se muda, com armas e bagagens, para esse país, mas mais de 20 anos antes. Ou seja, a mudança não fora um evento circunstancialmente motivado, havendo pelo contrário toda uma história pessoal que longamente a preparara ou mesmo pré-figurara. No texto inacabado que prefacia o volume de Estudos de Cultura e Literatura Brasileira (1988), Sena evoca o episódio mas faz recuar à infância a sua ligação literária ao 26


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Brasil: “Quando era criança e já devorava livros, havia em estante de família livros brasileiros, publicados em Portugal no séc. XIX. Mas um primeiro contacto com a literatura brasileira, menos romântica e mais moderna, tive-o quando adolescente cheguei ao Brasil, e nele estive, cadete de Marinha, por escassas semanas em Santos e S. Paulo”. Nesse mesmo texto, Sena recorda que nos anos 30 e 40, “a literatura brasileira moderna, e muito em especial a poesia, teve para os poetas portugueses uma importância enorme, e poetas como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Ribeiro Couto, etc. eram a imagem complementar de uma modernidade que, em Portugal, se manifestara quase só em Pessoa, Sá-Carneiro e Almada Negreiros, cujas obras, até aos fins dos anos 30 e princípios de 40, eram mais mitológicas e menos acessíveis do que a daqueles poetas brasileiros”. Esta questão regressará em vários dos textos que Sena dedicará aos grandes modernistas brasileiros, sobretudo Cecília Meireles e Manuel Bandeira, sugerindo que a formação dos poetas portugueses da geração de Sena, numa altura em que Pessoa mal começava a surgir em livro, se ficara a dever pelo menos em igual grau aos poetas brasileiros modernos (para não falar já dos romancistas portugueses de 30 e 40, cuja dívida aos romancistas “nordestinos” seria ainda superior — a ponto de, como numa das suas típicas charges dirá, em texto sobre Manuel Bandeira, “os camponeses do lusitano Alentejo fala[re]m como bahianos”). Num acrescento significativo, Sena dirá que os modernistas brasileiros “foram um exemplo de libertação poética, na nossa própria língua, de um valor inestimável”. A viagem de 1937-38 ganha, assim, uma redobrada pertinência, pois coloca o jovem Sena em S. Paulo e no arco temporal (as décadas de 20 e 30) emblematicamente aberto pelo movimento modernista brasileiro com a Semana de Arte Moderna de 1922, na mesma capital paulista. O episódio “brasileiro” seguinte, na vida e obra de Sena, como o próprio o apresentou, terá sido a edição, por Cecília Meireles, da (excepcional) 27


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Sena descreve repetidamente uma situação em que o Brasil funciona em Portugal como um mito, em articulação estreita com o do “mundo que o português criou”, e Portugal funciona no Brasil como o colonizador responsável por uma série de erros

antologia Poetas Novos de Portugal, em 1944, que incluiu poemas do então muito jovem poeta Jorge de Sena, na altura com apenas o seu livro de estreia, Perseguição (1942), no currículo. Em texto de 1964, por ocasião da morte de Cecília, Sena confessaria a sua “dívida de gratidão” para com a antologiadora, poeta que gozara em Portugal de um grande prestígio e influência, sendo “sempre equiparada a grandes nomes como Pessoa ou Rilke, quando talvez o Brasil não reconhecesse todo, nela, o grande poeta que tinha”. Esta ressalva é fundamental para percebermos que se o Brasil, desde o episódio juvenil de 1937-38, permite a Sena a experiência desdobrada do cosmopolitismo modernista, dentro do mesmo idioma, a verdade é que as suas portas de entrada nesse modernismo, Cecília e Bandeira, representam nele uma variante minoritária, ou renitente, não apenas por se tratar dos chamados “modernistas do Rio de Janeiro”, quando o foco do movimento fora S. Paulo, mas porque uma e outro resistem ao anti-portuguesismo que define, do plano da língua ao da literatura e da cultura, o modernismo brasileiro de 22, basicamente paulista. O tópico, nos seus vários planos, percorrerá toda a obra de Sena, com particular ênfase após a deslocação para o Brasil. No mais importante texto que dedicou a Bandeira, “O Manuel Bandeira que eu conheci e que admiro”, Sena chamará a atenção para que “o caso da língua, há que analisá-lo do lado português”, uma vez que também os modernistas lusos tiveram de enfrentar “A tirania 28


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do gramatiquismo académico, do pernosticismo da frase, da rareza do vocábulo, etc.”, pondo assim em causa um dos cavalos de batalha do modernismo brasileiro. Os estudos e ensaios que, a partir de 1963, dedica ao “mundo luso-brasileiro”, escritos no Brasil ou já nos EUA, exploram todos os problemas e equívocos da relação luso-brasileira (para a correspondência Sena reservou o desgaste psicológico, mas também académico, de tudo isso ao longo dos anos). Recorrendo a um repertório histórico, cultural e literário esmagador, Sena elabora longamente sobre a natureza da relação entre os dois países e as duas culturas, elegendo uma heurística comparatista pois, como justifica no final do grande ensaio “Literatura Brasileira Comparada com as Literaturas da HispanoAmérica”, “Comparar é o único meio de conhecer sem correr o risco de acreditar demasiado nos outros e em nós mesmos”. Este ponto é decisivo e deve ser lido em regime alargado, pois sempre que Sena se exprime sobre a literatura brasileira fá-lo num quadro comparatista cujo outro polo é, à partida, a literatura portuguesa, embora não apenas. Ao fazê-lo, Sena põe em causa o devir da própria literatura brasileira, que se autonomiza progressivamente da portuguesa, desde o romantismo, até que, com o modernismo, a silencia enquanto parceiro de um diálogo declarado extinto. Por outras palavras, para escritores e críticos brasileiros, a literatura portuguesa passa a ser absorvida pela brasileira “não como portuguesa, mas como ante-brasileira”, o que significa que a literatura portuguesa só é pertinente até ao advento da independência do Brasil, em 1822 (Portugal, dirá Sena, “só interessa até ao ponto em que é pré-história do Brasil”), uma independência que o romantismo desejaria transpor também para o plano de uma independência literária, então mais suposta que efectiva. O problema da literatura no Brasil, dirá Sena, é “o medo que os brasileiros têm de que a sua literatura possa não ser suficientemente brasileira”, razão pela qual tendem a expulsar a literatura portuguesa de 29


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qualquer tipo de relação com ela, tornando-a, “paradoxalmente, mais estrangeira do que [as outras literaturas estrangeiras]”. A esta “obsessão da brasilidade” da crítica brasileira, Sena contraporá uma concepção não-romântica de literatura, já que, a seu ver, o Romantismo foi inventado “para colocar dificuldades no caminho de um claro entendimento do carácter internacional da literatura em si mesma”. Como pano de fundo deste combate crítico, Sena descreve repetidamente uma situação em que o Brasil funciona em Portugal como um mito, em articulação estreita com o do “mundo que o português criou”, e Portugal funciona no Brasil como o colonizador responsável por uma série de erros (a não criação de universidades, por exemplo) e desastres que não terminam porque, como não se esquece de notar, as classes dirigentes brasileiras desenvolveram desde a independência uma arte particular, que consiste “em mudar as coisas para que elas continuem a ser como eram dantes”. Uma e outra vez, Sena proporá programas de acção que aproximem os dois países, combatendo, desde a escola, o mútuo preconceito e desconhecimento. Não temos qualquer razão para duvidar das suas muitas declarações de amor ao Brasil, à cultura brasileira e aos brasileiros, ainda que entremeadas de constatações como “O Brasil é um país muito estranho”, tanto mais que o Brasil na obra de Sena não se confina à sua abordagem temática ou explícita: a produtividade de Sena na fase brasileira é assombrosa e percorre todas as áreas do seu trabalho literário ou ensaístico, neste último caso justificada pela dedicação exclusiva ao trabalho académico que a universidade brasileira lhe permitiu. Mas o seu brasilianismo, que se manifesta plena e livremente quando se muda para os EUA, tanto mais que só aí começa a leccionar literatura brasileira, nunca abandona um comparatismo que é, em si mesmo, uma crítica ao fundamento nacionalista da cultura e literatura brasileira, desmistificando-o e evidenciando todos os nós cegos que ele gera ou deixa para trás, 30


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encolhendo os ombros. Como se Jorge de Sena revivesse in mente a experiência daquele jovem modernista, português e anglófilo, que em 1937-38 visita a capital em que o modernismo brasileiro se prepara para proclamar a chegada da Idade de Ouro da literatura brasileira – para achar que, afinal, algo ali não batia certo. Osvaldo Manuel Silvestre é professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Tem dividido o seu trabalho pela área de Teoria da Literatura e Literaturas de Língua Portuguesa. Dirige actualmente o Instituto de Estudos Brasileiros da sua Faculdade.

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Jorge de Sena, antologista Qualquer autor tem de se confrontar com os caprichos da memória ou da amnésia colectiva e o tempo dirá qual o papel que a história reserva para Jorge de Sena. Contudo, eu sugeriria desde já que o silêncio acerca de Sena ao longo de 2019 é sobretudo um sintoma do quanto a sociedade portuguesa tem evoluído desde a sua redemocratização em 1974, já que se tem afastado cada vez mais, felizmente, de realidades que muita da escrita de Sena tantas vezes denunciou. Ensaio de: Ricardo Vasconcelos

Tantos morreram de opressão ou de amargura, tantos se exilaram ou foram exilados, tantos viveram um dia-a-dia cínico e magoado, tantos se calaram, tantos deixaram de escrever, tantos desaprenderam que a liberdade existe — E agora, povo português? Nunca Pensei Viver..., 27 de Abril de 1974

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centenário do nascimento de Jorge de Sena é uma óptima oportunidade para lembrarmos o papel único que este poeta, romancista, contista, dramaturgo, crítico e ensaísta ocupou na cultura portuguesa. E a genialidade da sua obra deve impedirnos de sentir excessivamente o facto de ser a efeméride a sugerir que 32


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revisitemos essa mesma obra, já que esta fala por si e sempre nos convidará a estudá-la, independentemente do quão presos à espuma dos nossos dias possamos andar. Por outro lado, o silêncio em relação a Jorge de Sena ao longo deste centenário do seu nascimento — até por comparação com as celebrações, justas, do centenário do nascimento de Sophia, ou do cinquentenário da morte de Régio —, quebrado praticamente apenas em Novembro, indicia uma evolução na forma como o escritor tem vindo a ser percebido. Qualquer autor tem de se confrontar com os caprichos da memória ou da amnésia colectiva e o tempo dirá qual o papel que a história reserva para Jorge de Sena. Contudo, eu sugeriria desde já que o silêncio acerca de Sena ao longo de 2019 é sobretudo um sintoma do quanto a sociedade portuguesa tem evoluído desde a sua redemocratização em 1974, já que se tem afastado cada vez mais, felizmente, de realidades que muita da escrita de Sena tantas vezes denunciou. Não é de todo o caso que a literatura de Sena apenas faça sentido se lida contra o pano de fundo da ditadura, já que a leitura de livros como Metamorfoses e Sinais de Fogo, entre outros, certamente não está presa a esse período. Contudo, é inevitável reconhecer que a própria existência de Sena coincidiu quase totalmente com o longo período de supressão das liberdades mais básicas em Portugal, já que a Ditadura Militar se instalou quando Sena tinha ainda seis anos (Maio de 1926), e a Revolução dos Cravos chegou quatro anos antes de o autor falecer. Não é sem consequência que durante toda a juventude e vida adulta se vê o país de origem debaixo de uma ditadura. No essencial, a vida de Jorge de Sena coincidiu cronologicamente com o fascismo português, e mesmo à distância a sua obra foi erigida contra esse regime. Foi sobretudo escrita contra todas as limitações à liberdade de pensamento, criação e expressão, e contra a castração dos desejos — do desejo amoroso e sexual, ao desejo de conhecer o pensamento e a arte de várias partes do mundo, para lá das fronteiras de um Portugal orgulhosamente só. Importa continuar a assinalá-lo até porque, passados 33


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mais de quarenta anos desde a sua morte, é possível ouvir enfatizar, paradoxalmente aqui na Califórnia, onde o escritor morreu, que Sena terá escrito vários textos desinteressantes e que a sua romagem ao Brasil e aos EUA não terá correspondido exactamente a um exílio — esquecendo-se mesmo essa diferença entre ser exilado e exilar-se, de que fala Sena em Nunca Pensei Viver.... Apetece perguntar quantos ensaístas não dariam o braço direito para escreverem algo tão original quanto as páginas mais medianas que Sena escreveu. E, por outro lado, quanto ao hipotético não exílio, o escritor, artista gráfico e fotógrafo Fernando Lemos diziame, há alguns anos, em São Paulo, numa entrevista, que partira para o Brasil na década de 50 já que Portugal, à época, era essencialmente “um nojo”. É uma síntese que demonstra bem o país que a geração de Sena suportou. Esquecer isto à distância de mais de meio século, e no conforto da Sena procura democracia, é no mínimo um erro de valorizar as traduções perspectiva. Assim, recorde-se Jorge de Sena e a feitas por poetas, sua vasta produção, notando facetas salientando menos escrutinadas, de que é exemplo um conhecimento o seu trabalho como antologista. A este em primeira mão: respeito, Sena sofre, aliás, a mesma “Se o poeta que traduz relativa indiferença crítica que tantos é levado a ver a mais, outros antologistas, já que o mais habitual em Portugal é uma antologia quando o espírito causar alguma polémica no meio crítico o não detém, literário, para depois progressivamente o não-poeta vê sempre ir sendo ignorada, sobretudo pelo meio académico, que tradicionalmente de menos, e não há considera as antologias como objectos ciência crítica particularmente transparentes e que o salve” irrelevantes. 34


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Ao longo da sua vida literária, Jorge de Sena organizou a antologia Líricas Portuguesas — 3.ª Série e os volumes de poesias traduzidas Poesia de 26 Séculos (inicialmente vol. I, De Arquíloco a Calderón, e vol. II, De Nietzsche a Bashô; mais tarde reunidos num só) e Poesia do Século XX (De Thomas Hardy a Carlo Vittorio Cattaneo), considerando estas colectâneas duas partes de um mesmo projecto. Publicou ainda dois volumes com traduções de Emily Dickinson e Constantino Cavafy, e por fim a antologia da sua própria obra Trinta Anos de Poesia. As antologias de traduções avulsas de Jorge de Sena, em que essencialmente reúne centenas de poemas que foi vertendo para o português ao longo da sua vida, apresentam vários motivos de interesse, de que destacaria três. Em primeiro lugar, Sena assinala a diversidade das suas recolhas de poesia internacional, que ilustrava a variedade dos seus próprios interesses, já que os títulos nestas antologias não obedeciam a uma selecção prévia de autores baseada em critérios de representatividade, mas simplesmente correspondiam a poemas que ao editor tinha dado prazer traduzir. Sena chega a fazer análises estatísticas sobre a idade média da morte dos poetas reunidos, e a reflectir sobre a presença de mulheres ou de escritores homossexuais, para notar que, por exemplo, a Poesia de 26 Séculos reúne poemas de autores que foram ricos, pobres, novos e velhos, de diferentes estados civis e orientação sexual, “tal como na vida dos que não são poetas”. Sena procura ainda valorizar as traduções feitas por poetas, salientando um conhecimento em primeira mão: “se o poeta que traduz é levado a ver a mais, quando o espírito crítico o não detém, o não-poeta vê sempre de menos, e não há ciência crítica que o salve”. Finalmente, Jorge de Sena reporta-se à velha questão da pretensa intraduzibilidade da poesia, para dizer que rejeita agir “como se a tradução fosse um pecado”, isto é, uma “infrutífera tentativa de comunicação”. Diga-se, aliás, que a maior crítica que estas antologias de poesia traduzida por Sena receberam foi precisamente a não indicação das fontes, já que incluíam escritores cujas línguas originais 35


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Sena não dominava; o escritor, porém, nunca respondeu a esta crítica — em rigor essa recusa de se sentir coagido a não traduzir foi sempre a sua única resposta. No que diz respeito às Líricas Portuguesas de Sena, esta antologia ganhou um relevo incontornável e foi sendo recordada por sucessivas gerações de escritores. Diga-se que as Líricas Portuguesas correspondem não tanto a um plano editorial organizado previamente, mas a uma sequência de “Antologias Universais” da Portugália Editora cujos formatos foram sendo modificados ao longo de décadas. O volume publicado por Régio, As Melhores Líricas Portuguesas (1944), em edições subsequentes intitulado apenas Líricas Portuguesas, é uma antologia do cânone da poesia portuguesa até ao Modernismo, incluindo as figuras de Pessoa e Sá-Carneiro. A segunda série, organizada por Cabral do Nascimento (1946), visa apresentar um panorama do fim do século XIX e da primeira metade do século XX, excluindo os autores coligidos por Régio — e assim, em boa verdade, condenando-se ao esquecimento. Em contrapartida, a terceira série, organizada por Jorge de Sena (1958), apresenta um objectivo radicalmente diferente, já que visa organizar o próprio meio literário contemporâneo à edição, contrariamente às duas séries anteriores. Assim, a antologia apresenta duas partes: a primeira correspondente a sete poetas que no entender de Sena deveriam ter feito parte da série organizada por Cabral do Nascimento, e a segunda a poetas nascidos entre 1909 (ano em que Cabral do Nascimento se detivera) e 1929, havendo assim o critério de os poetas coligidos terem entre os trinta e os cinquenta anos de idade. O próprio Jorge de Sena nascera exactamente a meio desse intervalo, em 1919. Haverá ainda uma quarta série (1969) dedicada à década de 60, organizada por António Ramos Rosa, volume que começa com poetas nascidos em 1930 e que termina com Gastão Cruz, então com 28 anos. As Líricas Portuguesas de Sena destacaram-se e são recordadas ainda hoje pela originalidade da metodologia, pela argúcia crítica das notas 36


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biobliográficas de Sena, e pela riqueza do prefácio. Neste texto, Sena discorre sobre o conceito de poeta-crítico e a natureza das antologias panorâmicas, caracteriza extensivamente a sociedade portuguesa no período entre guerras e até à Guerra Fria, ensaia uma classificação estética dos poetas coligidos e problematiza o próprio conceito de lirismo, fundamental ao título. É um tour de force crítico e teórico riquíssimo. A metodologia do livro, por sua vez, surpreende o meio literário pela tentativa concreta de reduzir a subjectividade e integrar opiniões divergentes. De facto, o antologista faz uma primeira selecção de autores com estéticas diversas e solicita a estes que indiquem outros autores que em seu entender devem também estar presentes, acabando Sena por seleccionar os mais votados. O resultado é um amplo friso que inclui neorealistas, surrealistas, autores dos Cadernos de Poesia, poetas ligados a publicações como Távola Redonda, Graal, Árvore, Serpente, e ainda outros autores menos alinhados. O que justifica esta antologia, contudo? Como motivação para a organizar, Sena sugere que esta geração tão diversificada estava a cair no esquecimento, o que aos nossos olhos, hoje, parece até surpreendente. A razão para tal, contudo, é clara e é não tanto uma questão de esquecimento, mas antes de pura sombra: “É certo que não contamos entre nós um Fernando Pessoa ou um Sá-Carneiro”, diz-nos Sena, mas “nem qualquer época é menos importante ou significativa pelo facto de não ter produzido um Camões ou um Fernando Pessoa”. De facto, é

“É certo que não contamos entre nós um Fernando Pessoa ou um Sá-Carneiro”, diz-nos Sena, mas “nem qualquer época é menos importante ou significativa pelo facto de não ter produzido um Camões ou um Fernando Pessoa” 37


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sobretudo a sombra projectada por Orpheu e a Presença que leva Sena não tanto a enveredar por uma teorização sobre um qualquer supraCamões que haveria de vir, em defesa dos méritos da geração, como antes fizera Pessoa, mas pela organização de um formato de antologia radicalmente diferente das anteriores, com os objectivos últimos de criar um espaço para a contemporaneidade e, ao mesmo tempo, de organizá-la. É um modelo que, como se percebe, acabará por fazer escola até final do século XX em Portugal. Acresce que, apesar de noutro lugar ter criticado a auto-exclusão dos antologistas (“acho idiota esse preconceito”), o facto é que o formato escolhido permite a Sena incluir-se a si mesmo apenas por ter sido “o mais votado dos que não figuravam na lista inicial”. A terceira série das Líricas Portuguesas causa um forte impacto no meio literário, de Dezembro de 1958 até o fim do primeiro semestre de 1959, suscitando múltiplos elogios, de que é exemplo o de Casais Monteiro, que a qualificou como “a melhor antologia, em qualquer género, que até hoje se fez em Portugal”, e críticas à inclusão de autores vários, como por exemplo Raul Leal. Décadas depois, à medida que a antologia vai sendo reeditada, é descrita como uma obra de absoluta referência, por autores e críticos tão argutos como Fernando Guimarães ou Assis Pacheco, que lhe reconhecem o mérito de ter aglutinado vozes díspares de uma mesma geração. Quanto ao talento de Sena, e à forma como se plasmou na recolha, e à relação que o poeta estabeleceu com o cânone a partir deste meio, a antologia, talvez as palavras mais sensatas tenham sido as de Herberto Helder, poeta que não integrou o volume em virtude dos critérios etários da edição (acabaria por entrar na quarta série). Numa entrevista ao Diário Ilustrado, Herberto Helder afirma que essa “antologia representa efectivamente o panorama da poesia portuguesa actual com todas as suas inibições, falhas e impropriedades.” Para Herberto, Sena estava mesmo “acima do período cuja representação organizou. [...] 38


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O melhor daquela obra julgo ser o prefácio, inteligente esforço para salvar algumas daquelas gerações irremediavelmente frustradas. Deste prefácio poder-se-á dizer que é a peça ensaística mais arguta, sólida e informada que se escreveu em Portugal nos últimos anos”. Em suma, na opinião de Helder, como “crítico-antologiador, Jorge de Sena tinha direito a outra época da poesia nacional.” Tenha ou não sido o caso, é também à capacidade de Jorge de Sena de organizar o seu meio literário, com recurso a uma antologia, que devemos grande parte da nossa visão dessa geração. E a ideia de que as antologias podem ajudar a definir um cânone literário nunca mais foi esquecida pelos nossos poetas, que a elas constantemente continuarão a recorrer. Quanto ao resto, meses depois, Jorge de Sena fazia as malas e partia. Ricardo Vasconcelos, completou em 2010 o seu doutoramento na Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, instituição onde o escritor Jorge de Sena leccionou até morrer, em 1978. É actualmente professor associado na Universidade Estadual de San Diego, também na Califórnia. Publicou em 2009 o primeiro estudo de fundo sobre todas as antologias organizadas por Jorge de Sena, intitulado “Como Vingar-se de Antologias (segundo Jorge de Sena)”.

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O crítico prodigioso Como escritor temerário que sempre foi, e sentindo-se “outcast de grupos literários e profissionais”, Sena falou de tudo, de todos e da maneira que entendeu ser a certa, mesmo que por vezes tenha sido desagradável ou agressivo. Ensaio de: Joana Meirim

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a obra crítica de Jorge de Sena, e apesar da vastidão do tópico, que abrange inúmeros estudos de história, de cultura e muitos outros de literatura, é possível reconhecer a prática persistente de quatro verbos: “elucidar”, “corrigir”, “desmentir” e “analisar”. Ainda que recorrentes ao longo da sua produção ensaística, surgem enunciados por esta ordem na introdução a Estudos de História e de Cultura (1967), um volume monumental que faz o escrutínio genealógico do primeiro rei de Portugal e termina com um extenso ensaio dedicado à evolução do mito de Inês de Castro, comentando autores e épocas diferentes. Os quatro verbos em causa podem aplicar-se ao espírito crítico deste autor, e julgo que são também os princípios orientadores e, ao mesmo tempo, os objectivos da actividade crítica de Sena: a vontade de esclarecer (a si e aos outros), de corrigir (eventuais equívocos), de desmentir (repor a verdade) e de fazer a análise e “observação concreta” do que são as obras e as personalidades que as criaram, procurando provas cabais de que as suas intuições eram realmente certeiras e não se reduziam a meras opiniões. Várias vezes, Sena defendeu a necessidade de uma ciência da literatura contra o chamado impressionismo crítico, e certamente também como 40


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reacção àqueles que o julgavam como alguém que, sem licenciatura na área de letras, vinha meter foice em seara alheia. Num texto de O Reino da Estupidez (1961), “Sobre a liberdade do dislate ou dos fundamentos da crítica”, Jorge de Sena fala da necessidade de aplicar aos estudos literários as noções básicas dos estudos jurídicos, nomeadamente o discernimento crítico para saber distinguir entre matéria de facto, de direito e de opinião. Neste mesmo ensaio censura o desfasamento “entre as pretensões críticas e a modéstia dos conhecimentos factuais”. Este volume é, aliás, pródigo em ensaios breves e sem aparato citacional, nos quais Sena reflecte sobre a postura do crítico e o papel do poeta (chamando a atenção para a importância da independência da crítica, a procura da verdade, e censurando o academismo supérfluo, o cinismo intelectual, etc.) e faz ainda um retrato bem-humorado da vida intelectual e do “Panorama da literatura portuguesa”: “Goza esta (...) da fama de transbordar de poetas. E, com efeito, nos manuais, o número de senhores que fizeram versos só tem par com o número, também elevado, de senhores que não fizeram nada”. Em todos os seus textos críticos, e não só nos de cariz pretensamente mais polémico e satírico, existe um tom dominante, que ecoa também na sua não menos vasta correspondência, e que consiste no “admirável impudor de não poupar precisamente as palavras que mais riscos comportassem”, como diz José Saramago no obituário que lhe dedica no Diário de Lisboa. Como escritor temerário que sempre foi, e sentindo-se “outcast de grupos literários e profissionais”, Sena falou de tudo, de todos e da maneira que entendeu ser a certa, mesmo que por vezes tenha sido desagradável ou agressivo. A estreia como crítico dá-se em 1939, usando o pseudónimo de Teles de Abreu, com um ensaio intitulado “Em prol da poesia chamada moderna”, e desde então que a sua crítica revela um leitor “omnímodo” e “omnicompreensivo”, nos termos de Eduardo Lourenço ao falar de Jorge de Sena. O prefixo latino é, aliás, justíssimo para caracterizar não só a 41


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actividade crítica, mas também para classificar a personalidade literária de Jorge de Sena no seu todo. Embora a sua obra crítica contemple uma diversidade significativa de tópicos — a teoria da literatura, a história da literatura, autores como Camões e Pessoa, as literaturas de língua inglesa, a literatura e cultura brasileiras, a história de Portugal, entre outros, — é aos estudos portugueses que sempre deu especial atenção. Dos Estados Unidos da América escreve a Eduardo Lourenço em Janeiro de 1968: “Todos os meus estudos e o meu ensino são dirigidos para esse fito – rever e estabelecer uma teoria geral da literatura portuguesa, não segundo as Embora a sua obra ideias que eu tenha, mas segundo os factos e os textos.” A procura dos factos crítica contemple e a fidelidade aos textos são orientações uma diversidade ético-literárias que sempre privilegiou significativa de no seu trabalho. tópicos — a teoria da Se nos estudos sobre Camões, nomeadamente nas obras que lhe literatura, a história da literatura, autores valeram a consagração académica e a entrada na Universidade, no estrangeiro, como Camões e temos de lidar com a por vezes excessiva Pessoa, as literaturas numerologia (e.g. Uma Canção de Camões ou Os Sonetos de Camões e o de língua inglesa, a Soneto Quinhentista Peninsular), há literatura e cultura em vários outros textos camonianos brasileiras, a história (incluindo os poemas, a ficção que de Portugal, entre lhe dedicou e o próprio “Discurso da outros, — é aos estudos Guarda”) momentos de grande agudeza crítica. Um dos mais significativos é portugueses que a tentativa reiterada de devolver a sempre deu especial Portugal um Camões que deve ser lido e atenção. estudado pela sua obra e não por aquilo 42


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que queriam que ele simbolizasse. São vários os textos que questionam o eterno silogismo, conveniente a um certo tipo de discurso oficial sobre Camões, de que falar d’Os Lusíadas é igual a falar de pátria enquanto discurso laudatório. Num estudo publicado em Dialécticas Aplicadas da Literatura (1978), Sena defende que a análise da estrutura d’Os Lusíadas lhe permitiu provar que o poema de Camões “pode ser tido por belo, fascinante, e atraente para espíritos modernos, por essas intenções serem muito mais ambiciosas e universais do que se depreenderia da concepção tradicional de o poema ter sido escrito apenas para celebrar a História de Portugal”. Ainda sobre os estudos camonianos, Sena defendeu, contrariando o espartilho da periodização literária, o maneirismo da sua poesia lírica. Em “O Fantasma de Camões (uma entrevista sensacional)”, texto publicado originalmente no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, em 1962, Sena tenta convencer Camões das vantagens do seu método crítico e revela-lhe, entre outros achados, a descoberta de “que ele era um ‘maneirista’ e dos maiores da época, e como era uma falácia de caixeiros-viajantes da literatura, que, apesar de aposentados, ainda continuam tendo circulação, aquela de ele ser um homem do Renascimento”. Para além da diversidade dos temas, das suas ideias e intuições, do seu método crítico, há também uma atitude geral como investigador, como pessoa que estuda os autores, que merece especial menção. Como crítico, e mais tarde como professor universitário, Jorge de Sena deixou sempre bem marcado o seu apreço pela liberdade intelectual, pela liberdade de poder estudar os autores que entendia, sem ter de prestar vassalagem ou pedir permissão (que não teria) à “indústria camoniana”, aos “donos encartados de Pessoa” ou aos cafés literários do seu tempo. No fundo, como crítico revela frequentemente “a coragem de pensar e sentido das responsabilidades quanto ao que se pensou”, definição de pessoa culta, que não é mero repositório de informação acumulada, dada no texto “Citar ou não citar – eis a questão”, de O Reino da Estupidez. 43


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A actividade crítica de Jorge de Sena estende-se a outras áreas do seu trabalho, sendo a tradução uma delas. É sobretudo nos prefácios e notas introdutórias às antologias de poesia que traduziu — 90 e mais Quatro Poemas de Constantino Cavafy (1970), Poesia de 26 Séculos (1972), Poesia do Século XX (1978) e 80 Poemas de Emily Dickinson (1979) — que encontramos várias reflexões teóricas sobre o que é a literatura e o lugar dos poetas na tradição literária. Na introdução a Poesia de 26 Séculos, Sena revela a principal motivação para o exercício de tradução: representar “toda a grande poesia deste mundo”, “em que Arquíloco, um poeta sânscrito e Nietzsche se dão as mãos, no mesmo saber essencial de que a poesia é tudo”. Esta tentativa de conciliação do passado de toda a literatura com aquilo que é feito pelos seus contemporâneos evoca, evidentemente, a tese central do ensaio “Tradition and the Individual Talent”, de T. S. Eliot, de cuja poesia e crítica Sena foi leitor assíduo. A sua actividade como tradutor tem assim implicações de ordem crítica, não só na questão do diálogo e convívio com toda a literatura do passado, actualizando a tradição por via da tradução, mas também nas suas preocupações correctivas, nomeadamente no que diz respeito à historiografia literária. Como em vários ensaios de Dialécticas da Literatura, também os textos que antecedem as antologias de poesia traduzida dão conta da necessidade de rever a história da literatura, sobretudo a visão dominante, que tende a separar autores por movimentos estéticos ou a submetê-los à rigorosa periodização literária, não permitindo que Sá de Miranda seja tão ou mais moderno que Sá-Carneiro. Também a tradução possibilita o desejo seniano de uma literatura universal, não confinada a um país ou a uma língua. É contra o paroquialismo literário que Jorge de Sena diz traduzir profusamente os grandes autores, “homens do seu tempo e de sempre”. A tradução, para Sena, tem ainda uma importância significativa do ponto de vista biográfico. Deve a Esorcismi, uma antologia italiana da sua poesia, organizada por Carlo Vittorio Cattaneo, poeta, tradutor e autor 44


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do primeiro trabalho académico sobre Jorge de Sena, a sua consagração poética. É graças à publicação deste volume que ganha o único prémio literário atribuído à sua obra poética, o Prémio Internacional de Poesia Etna-Taormina, em 1977. No discurso de recepção deste prémio, Sena assinala que por via da tradução também entrou no “panteão da poesia” e, como qualquer grande autor, sempre se quis e se fez um cidadão do mundo, no tempo e no espaço. Joana Meirim é professora na Universidade Católica Portuguesa e investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Cultura (CECC) da mesma universidade. Fez o seu doutoramento no Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa com uma tese sobre Jorge de Sena e Alexandre O’Neill. Tem dedicado a sua investigação a estes dois autores, tendo coeditado a correspondência entre Jorge de Sena e Carlo Vittorio Cattaneo e publicado um livro coletivo de ensaios sobre Alexandre O’Neill. Coedita o site de poesia e crítica Jogos Florais.

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Um “realismo que não recua”: a ficção de Jorge de Sena A obra de Jorge de Sena, que consabidamente se reconhecia (e, sobretudo, queria ser reconhecido) como poeta, dá testemunho de que o engenho versátil do autor não resistiu à tentação da narrativa. Ensaio de: Paulo Alexandre Pereira

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a sua desmesura quase inabarcável, a obra de Jorge de Sena, que consabidamente se reconhecia (e, sobretudo, queria ser reconhecido) como poeta, dá testemunho de que o engenho versátil do autor não resistiu à tentação da narrativa, como atestam as suas reincidentes experimentações ficcionais sob vários formatos: conto, novela, romance. Num escritor culturalmente omnívoro e criativamente proteico como Sena, essa vontade efabulatória – remota, visto que surge em concomitância com as suas primeiras tentativas líricas e dramáticas – inscreve-se, coerentemente, num programa crítico e criativo, em que se tornam indivisas estética e ética (ou, para retomar palavras dilectas do autor, testemunho e linguagem) e que se desdobra em inúmeros registos expressivos, irmanando o poeta, o narrador, o dramaturgo ou o ensaísta 46


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nas suas compartilhadas obsessões, sempre reconduzíveis, contudo, a um obstinado desígnio interrogativo do homem como ser-no-mundo. Remontam, assim, a 1936 as primeiras incursões ficcionais de Sena e, até 1940, esboçará o autor vários projectos de narrativas que nem sempre levará a termo. Datam desse período os contos de juventude “Paraíso Perdido” e “Caim”, compostos em 1937-38 e posteriormente reunidos em Génesis (1983), mas também as primeiras prosas, coligidas no volume póstumo Monte Cativo e outros projectos de ficção (1994), onde se incluem uma narrativa histórica de ambientação medieval – Século XII (D. Fuas Roupinho) –, um ciclo de narrativas breves (Clarões), além de um romance embrionário (A Personagem Total). Embora permita escrutinar os bastidores da oficina literária de Sena, esta narrativa de juvenília não é, como bem se compreende, comparável em audácia temática e processual com a ficção de maturidade que, entre 1959 e 1965, no decurso de um muito fecundo exílio brasileiro, o autor irá compor: as colectâneas de contos Andanças do Demónio (1960) e Novas Andanças do Demónio (1966) – agrupadas, em 1978, em edição conjunta no volume Antigas e Novas Andanças do Demónio –, Os Grão-Capitães (volume concebido em 1961-62, mas dado à estampa apenas em 1976, por sabê-lo o autor impublicável em tempos de censura,) e a novela O Físico Prodigioso (originalmente integrada em Novas Andanças do Demónio e publicada autonomamente em 1977). O catálogo de ficções senianas fica completo com o romance Sinais de Fogo, opus magnum publicado postumamente em 1979, mas, em larga medida, concebido entre 1964-65 e retomado, de modo intermitente em momentos posteriores, pelo autor. Trata-se do primeiro (e inconcluso) volume de um ambicioso ciclo romanesco, espécie de Comédie Humaine à portuguesa, que, desde os anos 40, o escritor vinha projectando e a que deu o nome de Monte Cativo, mas que, como explica Mécia de Sena, “a vida e os muitos afazeres dela não lhe permitiram que escrevesse” (“Introdução”, Sinais de Fogo). 47


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Percebe-se que Jorge de Sena tenha insistentemente regressado, em prefácios proverbialmente didácticos e a propósito da sua própria ficção, ao magno problema do realismo

Tendo pretendido, com a sua obra, construir um “registo e arquivo da experiência humana através da linguagem” (“Para um balanço do século XX– poesia europeia e outra”, Dialécticas Teóricas da Literatura), percebe-se que Jorge de Sena tenha insistentemente regressado, em prefácios proverbialmente didácticos e a propósito da sua própria ficção, ao magno problema do realismo, equacionando-o não tanto em termos de sincronia literária ou estilo de época, mas antes como verdadeira estética (e, mais do que isso, como política) de representação. Lembrando, num ensaio de 1976, que “um ‘realista’ é um ser humano que usa a sua imaginação para usar a realidade” e que “a ‘anti-realidade’, muitas vezes, longe de ser um deliberado escapismo, pode ser, pelo contrário, uma ferocíssima crítica da realidade social” (“Algumas palavras sobre o realismo, em especial o português e o brasileiro”, Colóquio/ Letras), o autor defende um realismo integrativo (absoluto, chamar-lhe-á no prefácio a Os Grão-Capitães), que admita tanto a deriva onírica e a liberdade imaginativa, como a figuração dos inomináveis horrores da História ou da mais repulsiva monstruosidade do homem, até porque “nenhum realismo o será, se recuar aflito, mas porque, aflito, não recua” (“Prefácio”, Os Grão-Capitães). É a este realismo que não recua, irrestrito e sem concessões, que Sena se esforçará por dar substância ficcional, em narrativas que, com notável desenvoltura, percorrem uma ampla escala de representação, que se estende da fantasiosa irrealidade da novela O Físico Prodigioso à veridicção (quase) autobiográfica do conto “Homenagem ao Papagaio Verde”. Este realismo de largo espectro 48


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declinar-se-á, esclarece Sena, tanto em narrativas onde prevalece um realismo “fantástico” ou “imaginoso” – como acontece nos contos de Novas Andanças do Demónio e, em particular, nessa diablerie anarcosexual intitulada O Físico Prodigioso –, como nas ficções alinhadas por um “realismo fenomenológico” de recorte contemporâneo, nas quais se procura “tornar mais reais que a realidade, e portanto tão monstruosas como o que os nossos olhos temem reconhecer na ‘realidade’, experiências vividas, testemunhadas ou adivinhadas” (ibid.). Estão neste caso, os contos sombrios de Os Grão-Capitães, colectânea que o autor, aludindo ao tenebroso quarto de século por eles recoberto, incisivamente descreveu como “crónica amarga e violenta dessa era de decomposição do mundo ocidental e desse tempo de uma tirania que castrava Portugal” (“PS 1974 ao Prefácio que se segue”, Os GrãoCapitães). Nesta defesa de uma impreterível ética da ficção, que mesmo quando transfigura ou magnifica o real nunca prescinde de o interpelar criticamente, não estamos, pois, assim tão distantes da célebre teoria seniana do testemunho poético e da sua infatigável celebração da dignidade humana, entendida como “fidelidade integral à responsabilidade de estarmos no mundo” (O Reino da Estupidez). Dessa responsabilidade, mas também da “força do amor que tudo manda” e do “ímpeto da liberdade que tudo arrasa” (“Pequena nota introdutória a uma edição isolada”, O Físico Prodigioso) nos fala a magnífica novela O Físico Prodigioso, cujo protagonista Sena não hesitou em descrever como “[seu] muito amado filho entre outros” e “como que um alter-ego” (ibid.), considerando ainda tratar-se da sua obra mais autobiográfica. Ambientada numa (pseudo)Idade Média fantástica, a narrativa é protagonizada por um cavaleiro andante que, depois de, com o seu sangue virgem, ter salvo a castelã, por ela se apaixona, dando livre curso aos seus poderes sobrenaturais, mas também a um “descarado pan-erotismo” (ibid). São estes que incendeiam a sanha persecutória dos inquisidores e o conduzirão, no termo de um martírio de reminiscências 49


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crísticas, à morte. Cruzando, num sofisticado jogo alusivo, esteios culturais sincréticos (mitológicos, folclóricos, cristãos) e inúmeras tradições literárias (cantiga de amigo, novela de cavalaria, hagiografia, exemplum), a novela apresenta ainda a não pequena singularidade de colocar em cena um Diabo lúbrico que virá, em devido tempo, a revelar um rosto inesperadamente humano. Personificando o disruptivo poder do amor e a inescapável lei do desejo, o Diabo seniano parece, como o seu criador, ensinar que nenhuma líbido será castigada, ao mesmo tempo que é por Não estamos distantes da ele indigitado como porta-voz célebre teoria seniana do do libelo acusatório que Senatestemunho poético e da ele-próprio não se cansou de dirigir à sexofobia cristã. Mesmo sua infatigável celebração subliminar, a mensagem política da dignidade humana, da novela tornava-se facilmente entendida como “fidelidade inteligível. A “distância ‘pseudointegral à responsabilidade histórica’” (ibid.) era também o álibi perfeito para Sena poder de estarmos no mundo» insinuar a revolucionária alegoria satírica que, num paralelismo de efeitos calculados, torna o bárbaro terrorismo da Inquisição evocativo da bem mais contemporânea repressão salazarista. É esse mesmo temor insidioso, alimentado pela cegueira autoritária ou pela brutalidade ditatorial, que alastra nos contos – “cruéis”, previne Sena – de Os Grão-Capitães. Abrindo com uma pungente evocação, de lastro confessadamente autobiográfico, do terrorismo doméstico infundido por um pater familias déspota, desenvolvida em Homenagem ao Papagaio Verde, a colectânea multiplica, com desassombro hiper-realista, os retratos grotescos do exercício prepotente e arbitrário do poder, em contexto familiar ou castrense, denunciando-o em contos como “As Ites e o Regulamento”, “O Bom Pastor”, “A Grã-Canária” ou “Capangala Não 50


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Responde”. Mesmo insistindo na obliquidade literária das experiências relatadas nestas narrativas, Sena assume-se como actor e testemunha do tempo de que, sob espécie ficcional, se propõe escrever a crónica. O mesmo se pode certamente afirmar de Sinais de Fogo. Enquadrando o relato, em primeira pessoa, de Jorge, o jovem narrador que, no decurso das férias de verão de 1936, na Figueira da Foz, se estreará na vida adulta – iniciação que se virá a revelar a um tempo erótica, política e poética – com o cenário da guerra civil espanhola e dos seus ecos em Portugal, Sena procede a uma ressignificação dos códigos convencionais do romance de aprendizagem, projectando a trajectória de maturação do protagonista no grande ecrã da História, dando a ver o tempo negro do alastramento do nazi-fascismo na Europa. O herói problemático de Sinais de Fogo servir-lhe-á para dar voz ficcional a vários mitos pessoais que, sendo os do protagonista do romance, eram irrecusavelmente também os seus: a defesa intransigente da liberdade individual e o dever ético de participação solidária na transformação do mundo, a celebração do desejo erótico e da fruição amoral do corpo, o papel insubstituível da poesia na redenção do mundo e do homem. Paulo Alexandre Pereira é Doutor em Literatura e exerce funções como professor auxiliar no Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, onde, desde 1991, tem leccionado várias disciplinas de licenciatura, mestrado e doutoramento na área da Literatura Portuguesa e desenvolvido actividade de investigação no domínio dos Estudos Literários. É investigador no Centro de Línguas, Literaturas e Culturas da Universidade de Aveiro, onde presentemente coordena o projecto de investigação Entregéneros: Literatura e Hibridismo.

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O poeta não é um fingidor Sena revela determinação em explorar o novo mundo aberto por Pessoa, aí se guiando pelo instinto e por uma intensa lucidez. Ensaio de: Fernando Cabral Martins

1. Fernando Pessoa e a busca do novo

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orge de Sena começa a existir literariamente num momento decisivo da literatura portuguesa moderna: o seu primeiro livro de poemas é de 1942, Perseguição, e é nesse preciso ano que começa a grande saga das publicações póstumas de Fernando Pessoa, com o aparecimento do ortónimo com muitos inéditos, e logo os heterónimos: Álvaro de Campos em 1944, Ricardo Reis em 1945 e Alberto Caeiro em 1946. Uma tão rápida profusão de publicações, em que se incluem livros capitais de toda a literatura portuguesa, desencadeia respostas diferentes das gerações novas. Quanto à geração de 27, ou da presença, que tem as maiores dúvidas em relação à poética do Modernismo mas não deixa de ser constituída por homens inteligentes, é quem começa por editar e comentar a obra de Pessoa, mesmo assumindo com reservas a sua genialidade. Em 1940, uma nova geração, a dos Cadernos de Poesia: Ruy Cinatti, Jorge de Sena e Sophia publicam os seus primeiros livros entre 1941 e 1944. Esta geração, tal como uma outra, que marca o final da década de 40, a dos surrealistas, choca, na força da idade, com um problema sem solução: o brilho excessivo de um poeta já morto, mas cuja obra completa lhes desaba em cima de uma vez, e com fragor. 52


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Mais nenhuma geração sentirá esse problema, na verdade, e, a partir dos anos 60, em casos tão centrais como Luiza Neto Jorge ou Gastão Cruz, a obra de Pessoa passa a ser recebida com o entusiasmo que merece a grande poesia, que no caso extraordinário de Pessoa se torna imediatamente clássica. Voltando a Jorge de Sena, a situação é particularmente instigante, dada a intensidade e complexidade da sua própria produção crítica, poética e ficcional. Para um escritor com a sua dimensão, não se trata apenas de ler e escrever depois de Pessoa, trata-se de pensar Pessoa. Mais do que reagir à “angústia da influência” (tema celebrizado por Harold Bloom: a sombra lançada pelo grande poeta anterior sobre o poeta novo), o que revela Sena é a determinação em explorar o novo mundo aberto por Pessoa, aí se guiando pelo instinto e por uma intensa lucidez. Por exemplo, a poética essencial da obra pessoana, “o poeta é um fingidor”, é elevada por Jorge de Sena a título de um dos seus primeiros livros de crítica (em 1961), onde a compreende e justifica com enorme clarividência e justeza – embora, no mesmo ano, no prefácio a Poesia I, se afirme devedor de uma poética que lhe é diametralmente oposta. E, no entanto, pode dizer-se que O Poeta é um Fingidor é o primeiro ensaio que reconhece a obra de Pessoa a uma altura teórica que escapa de vez à perspectiva presencista da sinceridade, e a coloca num patamar de relacionamento com a literatura e a filosofia em que se encontra com Baudelaire, Kierkegaard, Nietzsche, Mallarmé, Eliot ou Pound. Sem hesitação, sem resistência nem sombra de emulação. Além disso, Pessoa traz também uma exigência: encontrar o novo (na frase de Rimbaud: “É preciso ser absolutamente moderno”). Esse é o novo que Álvaro de Campos corporiza, que o ortónimo reencontra no simbolismo, que Ricardo Reis desencanta do classicismo ou que Alberto Caeiro funda nas raízes da sensação: é Caeiro quem fala da “eterna novidade do mundo”, pelo que nem sequer é necessário andar à procura do novo, trata-se só de perceber que tudo é constantemente 53


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novo. Em suma: a resposta de Jorge de Sena (como a de outros poetas fortes, Sophia, O’Neill ou Cesariny) tem de ser a divergência, ele não se pode nunca permitir a exibição de quaisquer marcas de influência, pela simples razão de que essa seria a infidelidade suprema a um pensamento que exige o novo. Toda a ulterior evolução da crítica de Jorge de Sena tem a ver com esta resposta. 2. Uma crítica pessoana decisiva A relação crítica que Jorge de Sena estabelece com Pessoa mantém-se coerente ao longo de quatro décadas. Logo no artigo “Carta a Fernando Pessoa”, de 1940, Sena define um entendimento da heteronímia baseado na intuição de que todo e qualquer escrito de Pessoa é heteronímico, a começar pelos que assina com o seu próprio nome. Daqui conclui que Pessoa é aquele que não quer viver, ou não pode, dado ficar sem nada, deixado vazio pelas figuras que cria para viverem por ele. Como ele mesmo se torna heterónimo de si mesmo, o seu é um mundo melancólico e, numa palavra terrível, virtual. Eis como formula, numa entrevista de 1977, essa visão deceptiva de Pessoa: “tudo se conjugou para Pessoa ser esta coisa rara: um inglês fictício, sem realidade alguma, criando em português uma série de poetas igualmente fictícios, com toda a realidade da grande poesia”. As suas posições finais são, aqui, especialmente elucidativas. O último ensaio de Sena sobre Pessoa (de 1978) é uma homenagem ao heterónimo que mais considera, Alberto Caeiro. Trata-o como núcleo e origem de toda a obra de Pessoa, assim tomando a sério a definição dele como “Mestre”, e caracteriza a sua criação, em 1914, como o “milagre epifânico” da “grande poesia”. É a apoteose de uma vida dedicada ao comentário de Pessoa – que também é dedicada à edição dela, desde a organização das Páginas de Doutrina Estética, de 1947, em que recolhe trechos críticos fundamentais, passando pelo projecto (frustrado) do Livro do 54


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Desassossego, caso a que voltaremos a seguir, até à tradução comentada dos Poemas Ingleses, de 1974. O seu penúltimo artigo sobre Pessoa é especialmente importante. Tem o título impressivo de “O Homem que Nunca Foi”, e é o seu momento mais claro de confrontação com a figura do poeta maior. Nele começa por se queixar: “eu tenho sido chamado um discípulo de Fernando Pessoa”. Ora, a ambição de renovar a geração modernista, de que Sena também fala, vê-se ofuscada pelo vulto avassalador que constitui a obra de Pessoa, que se foi vendo acrescentada com a sucessiva publicação de inéditos. Nesse ensaio de 1977, um ano antes de morrer, Sena propõe uma imagem de alta definição. Pessoa é um grande poeta, será até um génio, mas é-o à custa da sua própria vida, que recusa viver. Ele “era realmente um fantasma”, sublinha, e acrescenta: “ou, se quisermos, um cabide para a multidão de seres inexistentes muito mais reais do que ele mesmo queria ser”. Até o seu interesse pelo ocultismo é associado por Sena a um “inescapável desejo de morte”. Curiosíssimo é este modo de caracterizar Pessoa. Mesmo quando refere o tema fulcral do fingimento poético, que tantas vezes defende em artigos que contrariam a oposição ingénua de outros, dados ao culto mais ou menos romântico da sinceridade, logo recorda que se trata de um homem oco, que se sacrifica por inteiro “na cruz de ser palavras, palavras, palavras”. Esta ambivalência na consideração crítica de Pessoa deverá ser entendida como afirmação própria de Jorge de Sena contra a figura tutelar e dominante de Fernando Pessoa? Será um gesto equivalente à violência antagonística de que Mário Cesariny há-de fazer um livro na década seguinte, O Virgem Negra? De todo o modo, é esta mesma forte reserva que Sophia exprime a partir dos anos 70. Uma boa parte da animosidade que se sente neste penúltimo ensaio, que tinge de negro o entendimento crítico do grande modernista, residirá no facto de este ser cada vez mais contemporâneo, apesar de morto em 1935. A produtividade da arca dos inéditos, de onde vão 55


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regularmente saindo livros novos, é da ordem do pesadelo – e Jorge de Sena tem dela uma experiência directa. Convidado em 1960, pela editorial Ática, para preparar a edição do Livro do Desassossego, segue-se uma década inteira de trabalho – prejudicado pela distância a que Sena se encontra, ele que é professor nos Estados Unidos, mas, sobretudo, perturbado pela inesperada natureza textual dos materiais que de Lisboa lhe são enviados. Em 1962, recebe um primeiro conjunto de 200 originais – e, em 1964, depois já de muito estudo, decifração e organização deles, aparece, de repente, um novo conjunto de 100 originais, segundo o informa Georg Rudolf Lind por carta. Certo, é que Jorge de Sena desistirá, em 1969, de fazer a edição. O trabalho com o espólio de Pessoa escapa aos trâmites habituais da edição literária. A estranheza daquela obra deixada inédita, manuscrita, em folhas soltas, numa profusão ciclópica, indicia uma textualidade incontrolável, perigosa. A materialidade literária a que se chama Pessoa não se resolve apenas num dado conceito de heteronímia, ou numa dramaturgia de autores fictícios, mas abre um verdadeiro universo paralelo. Pelo que, aquele que seria um acontecimento de enorme dimensão – a edição do Livro do Desassossego de Fernando Pessoa realizada por Jorge de Sena – é tornado impossível pelas circunstâncias geográficas e históricas, mas também pela natureza do trabalho de escrita de um poeta sem par, aluvião recolhido numa arca fantástica. Mas Jorge de Sena não é menos, por isso, o poeta-crítico que mais contribuiu para o conhecimento e a valorização de Pessoa. Fernando Cabral Martins é Professor de literatura na Universidade Nova, publicou artigos e livros sobre poetas portugueses modernos e contemporâneos. Organizou edições, sobretudo de Sá-Carneiro e Pessoa, tendo coordenado um dicionário do Modernismo Português.

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O poeta em Sena Ensaio de: Joana Matos Frias

Espólio de Jorge de Sena na Biblioteca Nacional, em Lisboa ENRIC VIVES-RUBIO

De todas estas palavras não ficará, bem sei, um eco para depois da minha morte que as disse vagarosamente pela minha boca. Jorge de Sena, Ode à incompreensão 57


Jorge de Sena • O século de um intelectual indispensável

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orge de Sena é um dos escritores mais polígrafos e prolíficos da Literatura Portuguesa, mas a multiplicação do seu talento de escrita por domínios tão distintos quanto a ficção e o teatro, o ensaio teórico e o comentário crítico nunca diminuiu – terá até intensificado – o papel preponderante que a criação poética desempenhou no conjunto da sua obra. Claro que, tratando-se de campos de actuação diferentes que se intersectaram e mutuamente iluminaram no plano criador, uma tal contaminação não deixou de ser recebida amiúde como uma espécie de contágio, conforme registaria o próprio Sena num poema que viria a ser incluído no volume póstumo Visão Perpétua (1982): “Quando publiquei Pessoa/ passei a ser discípulo de Pessoa. Mas,/ logo que foi público que eu estudava o Camões,/ a crítica notou logo a camonidade dos meus versos”. Talvez não seja exagerado constatar que pertencem exactamente ao campo poético um conjunto de palavras e de expressões senianas que, como é próprio de alguma grande poesia, se destacaram já dos contextos originários para correrem livremente de boca em boca: seria o caso de versos como “Sento-me à mesa como se a mesa fosse o mundo inteiro”, “Das aves passam as sombras”, “Falareis de nós como de um sonho”, “Amo-te muito, meu amor, e tanto”, “Conheço o sal da tua pele”, “Estão podres as palavras”, “Podereis roubar-me tudo”, “De morte natural nunca ninguém morreu”, “nunca perdoarei o que me fez esta música”, ou “Não leiam delicados este livro”, entre tantos outros. Não significa isto, naturalmente, que a força da obra poética de Sena o tenha transformado numa espécie de poeta popular – menos ainda se pensarmos que chegou a ser acusado de hermetismo e eruditismo –, mas a verdade é que essa força pode também aferir-se por uma certa memória colectiva que tem reconhecido o poder epigramático de muitos dos seus versos. Poder esse que, de uma forma evidente, resulta também da perícia absolutamente espantosa com que sempre praticou o verso, nas suas formas mais fixas e mais livres, mais tradicionais e mais experimentais, ancorado num conhecimento muito sólido e 58


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aprofundado das expressões autorais mais significativas da tradição da poesia ocidental, de Safo até aos mais jovens coetâneos dele. Do papel decisivo da poesia na sua actividade foi o próprio Sena dando conta ao longo de dé-cadas, em diversos tipos de texto, sendo hoje possível reconstituirmos um arco de cerca de 40 anos (de servidão, de acordo com o título de uma das colectâneas póstumas), entre umas estreias sob pseudónimo datadas do final dos anos 30 e incluídas apenas em Post-Scriptum II (1985), passando pelo primeiro livro, Perseguição, de 1942 – no qual proclama já com toda a maturidade que “Tudo está feito, tudo está escrito, / tudo está murado, e bem, com alicerces nos nossos próprios defeitos/ – é só ouvir/ é só ler,/ é só pasmar sereno,/ é só ficar” –, até à publicação da plaquete Sobre esta Praia... – Oito Meditações à beira do Pacífico, espécie de testamento vindo a lume no ano imediatamente anterior ao seu falecimento. Foi a propósito da segunda composição desta notável sequência tutelada pelos amores de Ovídio que Joaquim Manuel Magalhães formulou um dos mais preci(o)sos comentários acerca de um poema de Jorge de Sena: “É um poema sobre todo o amor. Sobre, também, o olhar sem repressão”. O juízo é na verdade amplificável a toda a sequência, se não retrospectivamente a toda a obra poética, aproximando-se no essencial de uma conhecida síntese com que o escritor britânico Philip Larkin distinguiu a poesia de dois dos mais célebres war poets, Wilfred Owen e Siegfried Sassoon: “a guerra de Owen não é a guerra de Sassoon mas toda a guerra; não o sofrimento particular mas todo o sofrimento”. Aplicado à poesia de Sena, tal diagnóstico revela-se da maior importância, ao enfatizar um elemento do seu carácter inventivo nem sempre devidamente valorizado – a tematização do amor –, ao assinalar a variedade de planos em que esse amor soube exprimir-se, e, last but not least, ao destacar esse “olhar sem repressão” cuja dignidade, depois de um contexto sócio-político marcadamente castrador, o poeta de Fidelidade quis exaltar: em suma, um diagnóstico pelo qual se esboçam os contornos essenciais de uma poética da nudez total, como se lê na terceira dessas meditações inscritas na paisagem norte-americana. 59


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São mesmo da autoria de Jorge de Sena alguns dos textos de amor e de erotismo mais completos da literatura em língua portuguesa, aspecto que tem sido enfatizado por alguns leitores agudos, e que, de resto, o próprio não se eximiu de sublinhar bastante cedo, prezando-se orgulhosamente “de ter composto, bons ou maus, alguns dos poemas de amor mais rudemente sensuais” do seu tempo. Mas a verdade é que, aquém ou além da pulsão erótica responsável por poemas e versos admiráveis como “Conheço o sal da tua pele seca/ depois que o estio se volveu inverno/ da carne repousada em suor nocturno”, há nesta poesia a perseverante declaração de um amor que é de outra ordem, já que acolhe todas as dimensões do humano, sempre alicerçado na firme convicção de que “só os homens interessam”, como se pode ler num seu artigo dedicado a Rimbaud. Em boa medida, é este amor extremo (por vezes extremado) pelo Humano e sua dignidade – “Não desesperarei da Humanidade”, lemos em Fidelidade, “Por mais que o acaso, a Providência, tudo, / à minha volta afogue em lágrimas e bombas / os sonhos de liberdade e de justiça” – que alicerça o essencial de um dos factores mais característicos da atitude poética de Jorge de Sena, a sua finalidade testemunhal, princípio com que procurou unificar – no início dos anos 60 e com efeitos retroactivos actuando também sobre outro tipo de publicações pelas quais foi responsável, como os Cadernos de Poesia – o registo mais determinante da sua produção, decorrente daquilo que resumiu como “a São mesmo da autoria humildade expectante, a atenção de Jorge de Sena alguns discreta, a disponibilida de vigilante” materializadas numa dos textos de amor e de expressão poética responsável. erotismo mais completos Foi graças a esta atitude da literatura em língua testemunhal – fundada na portuguesa firme certeza de que “à poesia, 60


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melhor que a qualquer outra forma de comunicação, cabe, mais que compreender o mundo, transformá lo” – que Sena pôde temperar a sombra de Pessoa que sempre sobre si pairou, autor com cuja obra manteve uma continuada relação de enorme complexidade, oscilando entre a mais pura admiração deslumbrada pelo poeta que teria resgatado a lírica portuguesa de um tom sentimentalóide “suspiroso, modelo de amantes teimosos e inconsoláveis”, e um assumido e orgulhoso distanciamento face àquilo que ele – Sena – considerava ser uma certa soberba pouco convivial do fingimento pessoano, algo apartada do seu desígnio de autenticidade. Não se pense, contudo, que o cuidado testemunhal com a circunstancialidade da situação histórica se traduziu numa produção rotulável como engagée, pois não se trata de entender o acto poético como uma acção revolucionária pré-determinada por condições ou condicionamentos ideológico-partidários, conforme sintetizou a sua amiga Sophia ao sublinhar que a poesia de Sena “é uma poesia de resistência não apenas no sentido corrente e directamente político da palavra, mas uma poesia que resiste a tudo quanto deforma ou inverte ou desfigura a vida humana”. Em Sena, o testemunho é revolucionário na medida em que acontece na e pela linguagem do poema, não lhe é prévio, convicção que o levou mesmo a preconizar uma difícil aliança entre as intenções antagónicas da poesia social e da poesia pura, e que no início dos anos 40 se manifestou numa não menos difícil articulação entre o fascínio pelo surrealismo francês e o respeito pelo neo-realismo português então em destaque no panorama literário da época. E este é o principal motivo pelo qual, na sua obra poética, por tantas vezes encontramos textos veementemente indignados com o destino das palavras: com o seu aviltamento, por um lado, mas também com o seu embelezamento oco, alheado de um propósito ético. Desse “maternal cuidado” com a linguagem e o seu uso indevido ou asséptico dão conta versos como “Estão podres as palavras – de passarem/ 61


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por sórdidas mentiras de canalhas/ que as usam ao revés como o carácter deles”, ou como estes do segundo soneto de As Evidências: “Desta vergonha de existir ouvindo,/ amordaçado, as vãs pala-vras belas,/ por repetidas quanto mais traindo/ tornadas vácuas da beleza delas”. A uma tal atenção íntegra à boa ou má sorte das palavras devemos aquela que é porventura uma das maiores lições da poesia de Jorge de Sena para a posteridade, e que ele formulou na abertura dos seus Exorcismos, em 1972 – clarificando também o livro antecedente, Peregri-natio ad Loca Infecta –, ao denunciar “a abstracção, o inconcreto, a impossibilidade mental de escrever referencialmente” como um dos grandes problemas da poesia portuguesa sua contemporânea, a fim de defender a urgência de “escrever duramente e directamente”, e de permitir à poesia “chamar as coisas pelos seus nomes”. Legado crucial que, no seu caso específico, muito auxiliado terá sido pelo íntimo e informado contacto com a poesia moderna em língua inglesa, de Ezra Pound a Philip Larkin, passando por Auden e Spender, que tanto leu e traduziu (fiel à sua declarada crença nos benefícios de uma literatura universal), e que lhe terá assegurado – como a outros companheiros de geração – um valioso domínio da dicção precisa, mais concretizante do que sugestiva, mais contadora de histórias do que vazadora de expressões sentimentais egocêntricas. Não é certo – mas pode ser válido – que se relacione também com o estreito convívio com essa poesia em língua inglesa o aparecimento de duas das obras-primas da poesia de Jorge de Sena, Metamorfoses (1963) e Arte de Música (1968), livros pioneiros na literatura portuguesa do século XX, ao organizarem-se integralmente em torno do diálogo da poesia com outros campos artísticos, ou melhor, dos poemas com objectos artísticos de outras esferas. Mas ainda que Sena conhecesse, como seguramente conheceria, obras como Sonnets for Pictures, de Dante Gabriel Rossetti, The Schield of Achilles, de W. H. Auden, ou Pictures from Brueghel, de William Carlos Williams (publicado no ano imediatamente anterior a Metamorfoses), esse conhecimento por si só não explica a dimensão e o 62


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impacto destas suas duas obras de índole meditativa, e, sobretudo, não esclarece em que medida elas serão provavelmente os mais perfeitos exemplos daquilo que Sena sempre desejou que fosse “a poesia olhando a História”: “a alegria que sinto”, explicou, “ante as colecções onde palpita uma vida milenária, não provém de esta ser milenária, estranha, distante, bárbara ou requintada, mas sim de eu sentir em tudo, desde as estátuas aos pequeninos objectos domésticos, uma humanidade viva, gente viva, pessoas, sobretudo pessoas”. Sobretudo pessoas. Joana Matos Frias ensina na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde se doutorou com uma tese sobre Ruy Cinatti. Autora dos livros O Erro de Hamlet: Poesia e Dialética em Murilo Mendes (2001, Prémio de Ensaio Murilo Mendes), Repto, Rapto (2014), Cinefilia e Cinefobia no Modernismo Português (2015), e O Murmúrio das Imagens (2018, Grande Prémio de Ensaio Eduardo Prado Coelho/ APE). Responsável pela antologia de Ana Cristina Cesar Um Beijo que Tivesse um Blue (2005) e por Passagens: Poesia, Artes Plásticas (2016); co-responsável (com Rosa Maria Martelo e Luís Miguel Queirós) pela antologia Poemas com Cinema (2010), e (com Luís Adriano Carlos) pela edição fac-similada dos Cadernos de Poesia (2005).

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Jorge de Sena: o gigante indigesto da cultura portuguesa Depois de Fernando Pessoa, não se vê uma figura intelectual portuguesa que possa verdadeiramente ombrear com Jorge de Sena. A assustadora dimensão da sua obra abarca todos os géneros da criação literária, somando-lhes um trabalho teórico e crítico do qual uma só alínea, como a do pessoano ou a do camonista, bastariam para compor uma carreira. Cem anos após o seu nascimento, e a mais de 40 da sua morte, este truculento e humaníssimo Minotauro das letras portuguesas continua por domar. Ensaio de: Luís Miguel Queirós

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orge de Sena nasceu há exactamente cem anos, no dia 2 de Novembro de 1919, e a julgar pela pouca visibilidade que até este momento têm tido as comemorações do seu centenário, se de comemorações se pode falar, é possível que o seu amigo Eduardo Lourenço se tenha precipitado quando, em Abril de 1968, profetizava na revista O Tempo e o Modo: “E os tempos estão próximos, ou já chegaram, em que o urso mal lambido das nossas letras receberá as flores tardias da admiração com salário dobrado”. 64


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É verdade que a própria publicação em que Lourenço escrevia parecia dar-lhe razão: um número especial da prestigiadíssima revista O Tempo e O Modo inteiramente dedicado a Jorge de Sena, um autor que ainda não completara então 50 anos, era algo sem precedentes e que parecia desmentir cabalmente as proverbiais lamentações senianas de que o seu labor criativo e intelectual, sucessivamente exercido nos exílios brasileiro e americano, não era suficientemente reconhecido pelos seus compatriotas. Mas decorrido mais meio século, e apesar dos muitos estudos académicos que em Portugal e no Brasil lhe têm sido dedicados, mantém-se a sensação de que a sua obra poliédrica e colossal não encontrou ainda uma pacificada leitura global, e o lugar absolutamente cimeiro que ocupa na cultura portuguesa do século XX é uma evidência que não lhe tem assegurado, como estas comemorações parecem demonstrar, uma persistente visibilidade. O próprio Eduardo Lourenço, noutro texto, adianta algumas possíveis explicações. “Jorge de Sena não é um autor fácil. É um autor, e um autor nunca é fácil”, lembra, para depois reconhecer que “acresce (…) às vezes a escusada mas ardente afirmação da sua superioridade intelectual”, que “irrita ou fere a sempre sensível epiderme lusíada, coitada”. Mas se a arrogância de Jorge Sena – admitindo que o termo se aplica a uma justa consciência do seu próprio valor – e as constantes tiradas cáusticas que endereçava aos meios culturais portugueses, quer em entrevistas, quer nos prefácios e posfácios aos livros que ia publicando, não ajudaram decerto a assegurar-lhe a entusiástica veneração desses mesmos que ia zurzindo impiedosamente, talvez a mais funda explicação para essa dificuldade de assimilação resida, afinal, na própria monumentalidade e exigência de uma obra invulgarmente vasta e diversificada, mas na qual tudo anda ligado, e que por isso mesmo assusta o mais diligente dos investigadores, consciente de que dificilmente abarcará o autor na sua real dimensão se se limitar ao poeta, ou ao crítico, ou ao ficcionista. E qualquer deles por si só dá pano para compridíssimas mangas. 65


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Com notável acuidade, o poeta e tradutor José Bento, que nos deixou há dias, escrevia em 1968 no já referido número de homenagem de O Tempo e o Modo: “Situo Jorge de Sena entre os escritores, raros, que procuram a totalidade e não um ou outro dos seus aspectos. Esta procura o obrigou ao poema e à tragédia, ao conto e à farsa, à crítica e ao ensaio, e em cada uma destas formas a descobrir as diversas faces com que a totalidade o chama”. Decompondo essa totalidade e começando pelo poeta que quis ser acima de tudo, não restam quaisquer dúvidas de que Jorge de Sena é um dos autores centrais da poesia portuguesa do século XX. Avesso à muito lusa tradição do lirismo bucólico e sentimental, afastou-se também das principais correntes do seu tempo – do presencismo ao neo-realismo e ao surrealismo –, mas sem deixar de as integrar criticamente, e sem cair nos excessos formalistas a que o desejo de renovar o discurso poético levaria alguma poesia dos anos 60 e 70. Esta porra triste A dimensão cívica e política dos seus versos, a atenção ao quotidiano, a recusa do sentimentalismo, a violência declarativa, uma oficina que tanto atingia paroxismos de conseguida experimentação formal (leiam-se os célebres Sonetos a Afrodite Anadiómena) como se abria à contaminação da prosa, à intrusão de coloquialismos e a uma frequente dimensão narrativa, e ainda a sua abordagem da sexualidade, nos antípodas do languescente erotismo luso, são características que tornaram a poesia de Sena um tudo nada agreste para o gosto da época, mas que lhe asseguraram um impacto nos poetas portugueses das últimas décadas que se impunha começar a reconhecer. O ensaísta Carlos Mendes de Sousa vê, por exemplo, a marca daquilo que o próprio Sena assumia como uma “poética do testemunho” num autor como Manuel de Freitas, e lembra “a pioneira dimensão ecfrástica” 66


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da sua poesia, em particular no livro Metamorfoses (1963), para sugerir a provável influência que terá exercido num poeta como José Miguel Silva. O facto de Manuel de Freitas ter chamado a um dos seus livros Terra Sem Coroa (2007) e de nele ter incluído uma expressa homenagem ao autor de Coroa da Terra (1946), o segundo volume de poemas de Jorge de Sena, já abona em favor desta intuição, mas o próprio poeta a confirma: “Centraram-se obsessivamente na influência do Joaquim Manuel Magalhães e não falam do Sena, como não falam do João Miguel Fernandes Jorge, que também foi importante”, diz Freitas, lembrando que não é por acaso que o volume que escreveu a meias com José Miguel Silva, Walkmen (2007), abre com uma citação do poeta de Arte da Música: “Nada nos salva desta porra triste”. Mas nessa mesma geração que se revelou entre o final dos anos 90 e o início do novo milénio, a obra de Sena também ecoa num poeta tão distante de Freitas e Silva como Daniel Jonas, cujo poema Dos Fuzilamentos da Montanha do Príncipe Pio, incluído em Bisonte (2016) dialoga com a celebérrima Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya, incluído em Metamorfoses. Um poema que também Ana Luísa Amaral já evocara no seu poema Um pouco só de Goya: carta a minha filha:, onde regista o precedente desse “homem/ que um dia lembrou Goya numa carta a seus/ filhos”. Se fosse necessário eleger a obra-prima da poesia de Sena, Metamorfoses seria provavelmente o candidato mais consensual. Nada na poesia portuguesa do tempo abrira caminho para este livro extraordinário, onde Sena presta tributo a criações humanas de todos os tempos e geografias, da Cabecinha Romana de Milreu – “Essa cabeça evanescente e aguda,/ tão doce no seu ar decapitado,/ do Império portentoso nada tem:/ nos seus olhos vazios não se cruzam línguas,/ na sua boca as legiões não marcham,/ na curva do nariz não há os povos/ que foram massacrados e traídos (…)” – à Nave de Alcobaça ou à ‘Cadeira Amarela’ de Van Gogh. E é também aqui que se encontra um dos seus 67


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poemas mais citados, Camões dirige-se aos seus contemporâneos, no qual é difícil não sentirmos que Sena invectiva os seus próprios contemporâneos por interposto Camões, equivalendo os enxovalhos que este sofreu às ingratas perfídias de que ele, Sena, estaria a ser vítima. Mas não deixa de ser comovente verificar que o mesmo Jorge de Sena que ansiava genuína e intensamente por ver o seu talento confirmado e festejado pelas instâncias de reconhecimento do seu país de origem – da academia aos críticos de imprensa – foi sempre também visceralmente incapaz de se pôr a jeito para gostarem dele, ou de condescender em polir um bocadinho as arestas da sua própria obra. Nunca poderia fazêlo, porque lhe foi sempre estranha e repulsiva a ideia de uma poesia agradável, bonitinha, de consumo fácil. Um pacto de sangue Rosa Maria Martelo lembra, a este propósito, a resposta que Sena, numa entrevista recolhida em O Reino da Estupidez (1961), dá ao pedido para que identifique as correntes de maior destaque na cultura portuguesa. “Suponho que bastará, em linhas gerais, dizer que há, como em tudo, duas correntes: a do ar livre e a da estufa”, resume Sena. “Uma síntese muito seniana, acutilante, irónica, lapidar”, descreve a ensaísta, que todavia acha ainda mais significativo o que o poeta irá defender a seguir. “Sena considera que a corrente do ar livre ambiciona uma ‘integridade sem capitulações’, mas ao mesmo tempo recusa-se a pensá-la fora da ideia de comunidade”, observa Rosa Maria Martelo, para concluir: “Creio que esta perspectiva está sempre presente em tudo quanto ele escreve, quer como criador, quer como ensaísta e crítico. Toda a sua obra é expressão de uma exigência radical de liberdade cruzada com um desejo de comunidade tão intenso que chega a ser doloroso: o desejo de uma comunidade em que a verdadeira dimensão do humano não fosse rebaixada pelo protagonismo medíocre de incompetentes e arrivistas”. 68


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A isto, “a literatura deve responder fazendo um pacto de sangue com a dignidade humana”, acrescenta Rosa Martelo. “É por isso que Sena não pode esconder o quanto o irrita a sobrevalorização do lirismo sentimental por parte dos poetas seus contemporâneos”, e por isso lhe interessa “uma poesia que não dê sossego à mediocridade reinante, aos falsos moralismos e às hipocrisias, e que de modo algum contribua para distrair essa mediocridade daquilo que ela é”. A mesma intransigência marca a sua ficção, dos contos de Andanças do Demónio (1960) e Novas Andanças do Demónio (1966), aos do livro Os Grã-Capitães (1976), demasiado escandalosos para serem publicados antes do 25 de Abril, passando pela novela O Físico Prodigioso, que levou um crítico tão dotado como Óscar Lopes a confessar: “Li muitas vezes esta novela e não estou certo de já ter encontrado o seu essencial para os horizontes de hoje-em-dia”. E se Sinais de Fogo não for o grande romance português do século XX, e talvez seja, é pelo menos plausível admitir que o viria a ser se Sena tivesse podido completar o seu projecto megalómano de escrever um romance que ilustrasse o trajecto político e ético da sua geração, da Guerra Civil de Espanha ao final dos anos 50, e que fosse ainda o Bildungsroman de um rapaz que se politiza ao mesmo tempo que explora a sua sexualidade e se descobre poeta. “Acho que nos podemos atrever, com todas as limitações deste tipo de juízos, a dizer que Sinais de Fogo, mesmo no seu estado de inacabamento, é um dos romances fundamentais do século XX”, no qual “estão todas as grandes preocupações de Jorge de Sena, do diálogo com a História à importância fulcral da sexualidade”, arrisca a ensaísta Isabel Cristina Rodrigues. “Ele escreveu em todos os domínios possíveis e era bom em tudo, e quando olhamos para a sua obra interminável, ficamos a pensar no que não poderia ainda ter feito se tivesse morrido numa idade mais cristã”. Os quase dois mil poemas que escreveu, contando com os muitos inéditos que foram sendo revelados postumamente, e as largas centenas 69


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de páginas da sua obra ficcional e dramatúrgica, são ainda assim coisa breve, quando comparados com a desmesura da sua obra teórica e crítica em sentido lato, incluindo, a par dos seus muitos livros, prefácios e posfácios para obras suas e alheias, verbetes para enciclopédias, ou ainda, entre muitos outros textos de natureza diversa, as apresentações críticas de poetas que compôs para as várias antologias que organizou, dos dois volumes de Poesia de 26 Séculos e do subsequente Poesia do Século XX, que no conjunto fornecem um panorama de toda a história da lírica ocidental, com uma vastíssima escolha de poemas que ele próprio traduziu, à terceira série das Líricas Portuguesas, onde por vezes aproveitou as curtas notas introdutórias dedicadas a cada poeta para se desforrar da imparcialidade a que se sentiu obrigado, mas com resultados práticos algo irrelevantes face ao impulso canonizante que a mera presença na antologia veio a significar para muitos autores incluídos. Camonista e pessoano Sem de todo se reduzir a essas duas dimensões, a importância do Jorge de Sena crítico talvez possa aferir-se com a simples constatação de que é possivelmente o único autor simultaneamente considerado como camonista e pessoano pelos seus respectivos pares nestas duas especialidades máximas do ensaísmo literário português. Acerca do especialista de Camões, autor de livros como Uma Canção de Camões (1966), Os Sonetos de Camões e o Soneto Quinhentista Peninsular (1969), A Estrutura de Os Lusíadas (1970), ou Estudos sobre o Vocabulários de Os Lusíadas (1982), recomenda-se a obra que lhe dedicou Vítor Aguiar e Silva, Jorge de Sena e Camões: Trinta Anos de Amor e Melancolia (2009). Já do pessoano, o ensaísta António M. Feijó destaca as “intuições muito agudas” de Sena no prefácio às Páginas de Doutrina Estética, cuja edição organizou, ou ainda no ensaio que este redigiu para o malogrado projecto 70


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de organizar, em meados dos anos 60, aquela que teria sido, com quase vinte anos de avanço, a primeira edição do Livro do Desassossego. Feijó salienta ainda o seu extenso e menos conhecido estudo centrado no poema Ela canta, pobre ceifeira. Lembrando que o primeiro biógrafo de Pessoa, João Gaspar Simões, “que via na heteronímia uma espécie de dramaturgia falhada”, atribuía a este poema, em particular na sua versão revista de 1924, um significado “decisivo”, já que corresponderia ao momento em que o poeta se teria “libertado da charada heteronímica e reencontrado a tradição lírica portuguesa”, Feijó chama a atenção para o facto de Sena, “com a sua erudição”, ter percebido que esse “poema decisivo” tinha origem num poeta romântico inglês, já que dialogava com um poema de Wordsworth intitulado The Solitary Reaper (a ceifeira solitária). Se a todas estas parcelas, juntarmos o tradutor de ficção inglesa e americana, ou o especialista de estudos brasileiros, ou as extensas correspondências que manteve com Régio, Vergílio Ferreira, Sophia, Eugénio de Andrade, José-Augusto França ou Eduardo Lourenço, para citar apenas uma pequeníssima parte dos destinatários das suas cartas, torna-se francamente difícil perceber como lhe foi possível produzir a sua obra gigantesca ao mesmo tempo que cumpria, e de modo exemplar, ao que rezam os testemunhos, os seus deveres de professor universitário (e antes disso de engenheiro em serviços públicos), mesmo dando de barato que Mécia de Sena terá tomado bastante a seu cargo a criação dos nove filhos do casal. Quase toda a sua obra ficcional, por exemplo, foi escrita nos seis anos que passou no Brasil, onde se radicou em 1959, na sequência do seu envolvimento na frustrada intentona anti-salazarista conhecida como “golpe da Sé”, e de onde partiu para os Estados Unidos em 1965, pouco após a instauração da ditadura militar brasileira. Após um primeiro período na Universidade do Wisconsin, mudou-se em 1970 para a Universidade de Santa Barbara, a sua última paragem, 71


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onde veio a morrer no dia 4 de Junho de 1978, depois de ainda ter acalentado vagos sonhos de regresso a Portugal no pós-25 de Abril. Os seus restos mortais só foram trasladados para Lisboa trinta anos após a sua morte, em 2009, e parece que até ver ainda nenhum político se lembrou de o propor para o Panteão. Ele, já se sabe, preferia ter envelhecido a tomar café com o Minotauro, em Creta, como diz num poema de Peregrinatio ad Loca Infecta (1969): “(…)Nem eu, nem o Minotauro,/ teremos nenhuma pátria. Apenas o café,/ aromático e bem forte, não da Arábia ou do Brasil,/ da Fedecam, ou de Angola, ou parte alguma. Mas café/ contudo e que eu, com filial ternura,/ verei escorrer-lhe do queixo de boi/ até aos joelhos de homem que não sabe/ de quem herdou, se do pai, se da mãe,/ os cornos retorcidos que lhe ornam a/ nobre fronte anterior a Atenas, e, quem sabe,/ à Palestina, e outros lugares turísticos,/ imensamente patrióticos.// Em Creta, com o Minotauro,/ sem versos e sem vida,/ sem pátrias e sem espírito,/ sem nada, nem ninguém,/ que não o dedo sujo,/ hei-de tomar em paz o meu café.”

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