Naran Ja (One Act Orange Dance) : Reflexões acerca de um experimento cinematográfico em dança
Erika Motta Cardoso1
Resumo
Este artigo toma como objeto ímpar de estudo a singularidade e a originalidade da obra Naran Ja (One Act Orange Dance), de Alejandro Iñárritu, um curta-metragem de coreografia de Benjamin Millepied. Inserido no âmbito da narrativa pós-clássica, parte-se de uma contextualização histórica e de uma análise fílmica da obra em questão para desvelar aspectos teórico-filosóficos por ela suscitada nos campos da Comunicação e das Artes. Palavras-chave : Narratologia; Narrativa; Estética; Cinema; Dança; Filosofia da Arte; Semiologia; Teoria Geral do Gesto; Teorias e Tecnologias da Comunicação.
1 Erika Motta Cardoso, aluna especial do Programa de Pós-Graduação da Faculdade Comunicação da Universidade de Brasília, cineasta, criadora-intérprete e produtora cultural E-mail: erikamc9@gmail.com
Naran Ja (One Act Orange Dance) : Reflexões acerca de um experimento cinematográfico em dança
Dance is a difficult subject to shoot. A lot is lost with just two dimensions. In dance everything is about rhythm, and rhythm is about flow2
Alejandro Iñárritu
Introdução
Trazendo à luz uma obra exclusiva da filmografia do diretor mexicano Alejandro González Iñárritu, Naran Ja (One Act Orange Dance)3 (2012) se configura aqui nosso corpus de análise e reflexão: a construção narrativa e o resultado estético desta experimentação envolvendo dança e filme, bem como as possíveis experiências decorrentes de sua fruição. O referido curta-metragem, cujo caráter narrativo se destaca e se difere das demais realizações cinematográficas do cineasta, é fruto do convite feito pelo bailarino e coreógrafo francês Benjamin Millepied, junto ao coletivo artístico de dança contemporânea L.A. Dance Project, e revela o viés experimental do diretor. A proposta consistiu em documentar os movimentos e a dança, coreografados por Millepied para a câmera, criando um fluxo de consciência narrativa por meio do dispositivo do cinema.
Interessa notar que a realização do filme Naran Ja intriga inicialmente pelo fato de romper com a lógica do mercado cinematográfico naquilo que se espera da carreira de um diretor de longas-metragens inserido no mainstream, tendo ele recebido recentemente o prêmio de melhor diretor pelo filme Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) no Oscar 2015, evento este de maior prestígio no âmbito do cinema prêt-à-porter Ainda que Naran Ja seja um filme dotado de um hermetismo que lhe é próprio, não o faz menos digno de ser objeto de relevância
2 “Naran Ja (One Act Orange Dance) – a short film by Iñárritu. The Creator’s Project Disponível em http://goo.gl/7xTZUS Acessado em 25 Nov 2015.
3 Disponível em < https://vimeo.com/53375446 > Acessado em 4 Dez 2015.
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acadêmica pelo simples fato de não ter sido um sucesso de grande público em meio à comunicação e cultura de massa Pelo contrário, o curta-metragem em questão, por meio de uma proposição de narrativa e experiências estéticas nada convencionais, instiga a pensar correlações e associações menos óbvias, sem subestimar o receptor que se dispõe a adquirir outro estatuto que não o de um mero recipiente indiferente aos “lixos” midiáticos
Neste sentido, a singularidade e a originalidade de Naran Ja, não apenas no que diz respeito à filmografia de Iñárritu, mas principalmente no que se refere à inovação narrativa e às escolhas estéticas, é o que justifica que o mesmo seja tido como objeto ímpar deste estudo. Para tanto, buscar-se-á, a partir de uma contextualização histórica e de uma análise fílmica da obra, desvelar aspectos teórico-filosóficos por ela suscitada nos campos da Comunicação e das Artes. Afinal, como se dá a relação entre dança e cinema no experimento cinematográfico coreografado em questão ?
Desenvolvimento
É possível traçar um panorama geral das temáticas abordadas de forma transversal na filmografia de Iñárritu em seus quatro primeiros filmes, a saber, Amores brutos (Amores perros, 2000), 21 gramas (21 grams, 2003), Babel (2006) e Biutiful (2010), cujos temas principais são: movimentos populacionais, multiculturalismo, desterritorialização, presença da mídia e da tecnociência no cotidiano (VIANA, 2015). Contudo, o curta-metragem Naran Ja (2012) revela uma originalidade do diretor não antes concebida dado seu experimentalismo mais radical. Por meio da interface com a dança contemporânea, Iñárritu criou uma obra extremamente emblemática de seu viés experimental, resultado de suas construções narrativas inovadoras e experimentações estéticas, em parceria com Millepied, revelando até mesmo seu caráter subversivo referente ao savoir-fair cinematográfico, em todas as suas convenções e dimensões.
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No tocante às relações profícuas entre dança e cinema, sabe-se que a relação entre estas linguagens se dá desde os primórdios da sétima arte, no final do século XIX. Já nas primeiras produções do cinema mudo, percebemos o interesse pela filmagem da dança. O registro da dança também surge como tema no cinema hollywoodiano por meio das produções musicais nos anos 30, 40 e 50 do século XX. Paralelamente, neste mesmo período, outras possibilidades desta interface são exploradas por uma vertente experimental.
Em meio à popularização da psicanálise e aos movimentos de vanguarda europeia dos anos de 1920, em especial o surrealismo e o dadaísmo, Maya Deren buscava o potencial poético de um cinema de narrativas não lineares. A partir da dança, da filmagem e da montagem cinematográfica, Deren propôs qualidades oníricas e deslocamentos de espaço e tempo particulares, como, por exemplo, em Meshes of the Afternoon (1943) e A Study in Choreography for Camera (1945).
Suas obras, de caráter autoral e experimental, inspiraram e continuam a inspirar a toda uma geração de artistas e intelectuais (BONITO; BRUM; CALDAS, 2012), inclusive ao próprio Iñárritu, o que é possível inferir, a partir de seu filme Naran Ja, na proposta de continuidade, ainda que fragmentada, em relação ao cinema coreografado impulsionado por Deren
É importante ressaltar que não se trata, neste trabalho, de abordar a dança como tema nem como acontecimento efêmero passível de registro, e sim a dança como linguagem e portadora de epistemologias próprias (KATZ, 2010) em diálogo com o cinema.
Neste sentido, pergunta-se: de que modo as relações não triviais dos saberes e técnicas entre estas linguagens artísticas se entrelaçam na criação de conteúdos singulares? Qual a contribuição da estética da dança contemporânea para a inovação nas narrativas e na narratologia? De que forma o movimento do corpo em quadro pode corroborar, ou não, na construção de narrativas inovadoras e na criação de significados múltiplos? Em que sentido o corpo pode ser tido como meio e mensagem?
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No que se concerne à obra Naran Ja4, especificamente, a escolha de uma câmera VHS para a captura de imagens rústicas e saturadas, aliada à caracterização estilística5 da protagonista (Julia Eichten) e dos demais intérpretes, em nítida referência às décadas de 70 e 80, conferem ao filme uma atmosfera vintage (Figuras 1, 2 e 3)6, deliberadamente buscada pelo cineasta. Por meio de tais escolhas estéticas, tange-se o paradoxo da dupla narrativa cinematográfica: enquanto os elementos narrativos do filme apresentam as ações como já ocorridas no passado, as imagens fílmicas se mostram sempre no presente (GAUDREAULT & JOST, 2009) No entanto, este “presente” das imagens fílmicas é automaticamente desatualizado pelo receptor por meio da utilização, da parte do emissor, de recursos tecnológicos de baixa definição e resolução. Revela-se, assim, o “pretérito” de tais imagens, como se denunciassem o dispositivo cinematográfico pelo uso de seus próprios mecanismos, evocando intencionalmente a consciência da narrativa do receptor ao longo da fruição da obra e desafiando a experiência do cinema em si.
O conjunto de acontecimentos que constroem a narrativa do filme, cujo discurso é uma evidente oposição à realidade, formam uma encadeamento de enunciados por meio do dispositivo cinematográfico da montagem e da mise en relation dos elementos que compõem a narrativa. Distante do realismo característico das narrativas cinematográficas clássicas, o surrealismo de Naran Ja
4 Intérprete-criadores do L.A. Dance Project: Amanda Wells; Charlie Hodges; Frances Chiaverini; Julia Eichten; Morgan Lugo; Nathan Makolandra.
5 Design de figurino: Erin Benach.
6 Fotografia: Greig Fraser.
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é evocado pelo desafio às leis da física e da natureza (Figuras 5 e 6)7 , considerando as leis da gravidade e o fato de que um mesmo corpo não ocupa dois lugares em um dado espaço, por meio da mostração fílmica não só da câmera, mas da montagem cinematográfica
Figuras 4, 5 e 6
O caráter surrealista da obra é enfatizado igualmente pelo recurso coreográfico da repetição, potencializado pela montagem. Assim, o que seria apenas uma mera sequência de acontecimentos descritivos e isolados, desprovidos de potencial discursivo em si, forma uma sequência de significantes dada às sucessões de planos que impõem não só uma temporalização, como também uma espacialização, inclusive simultânea, destes mesmos significantes (GAUDREAULT & JOST, 2009) Ainda que não haja o recurso da fala como forma usual de enunciação, a instância narrativa se cria via o circuito comunicacional que é estabelecido entre o emissor e o receptor: uma abstração inefável é inegável e necessariamente percebida por meio da fruição ao longo da experiência estética do receptor Longe de querer impor narrativas e significações exteriores à instância ontológica da obra em si, elementos narrativos são sistematicamente repetidos se autorreproduzem e se reapresentam, gerando múltiplos ou nenhum significado (FERNANDES, 2007) Tais quais fios condutores do discurso, esses elementos narrativos, como é o caso das laranjas flutuantes que desafiam as leis gravitacionais (Figuras 7, 8 e 9)8 , concretizam o enunciado abstrato imanente do filme, evocado no próprio título do mesmo
7 Fotografia: Greig Fraser.
8 Fotografia: Greig Fraser.
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Figuras 7, 8 e 9
Outro aspecto, não menos importante em Naran Ja, é o som, desenhado pelo próprio Iñárritu junto com Martin Hernandez. Tecnicamente, uma parte do som do filme fora elaborado artificialmente a posteriori, sendo que, no desenrolar do filme, percebe-se que outra parte do áudio fora captada in loco e in motion. Em termos diegésicos, o som, neste caso, ao invés de reduzir as ambiguidades dos enunciados, as potencializa, desencadeando uma não relação de causa e efeito entre imagem, som e ruídos Porém, essa aparente diegese independente não se faz menos integrada à totalidade da construção narrativa e não menos determinante desta, bem como o próprio Iñárritu explica: “Here, it is the audio that tells us a parallel story9” . Retoma-se então a questão em aberto colocada por Gaudreault e Jost: “será que os ruídos e não mais as palavras podem ser portadores de uma narrativa?” (GAUDREAULT & JOST, 2009, p. 45).
Na tentativa de buscar respostas à questão anteposta, é possível recorrer às elaborações de McLuhan em torno da ideia de espaço acústico, posteriormente por ele repensado como espaço áudio-tátil, para então revelar o potencial da experiência sensorial que pode emergir a partir do som e dos ruídos em uma obra cinematográfica Tais considerações abrem portas para a afirmação do caráter diegésico do som na construção da narrativa, em dissonância com as convenções no âmbito da realização cinematográfica Quando Iñárritu, em Naran Ja, explora, não quando de maneira assincrônica, as distintas instâncias narrativas entre o espaço visual e o espaço áudio-tátil, ele faz referência ao
9 “Naran Ja (One Act Orange Dance) – a short film by Iñárritu. The Creator’s Project Disponível em http://goo.gl/7xTZUS Acessado em 25 Nov 2015.
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espaço geográfico da coisa narrada, e torna material e concreto o seu discurso narrativo abstrato. De acordo com Martínez:
Los artistas, a diferencia de otras personas, ven esto claramente. De acuerdo a él, ellos son la única gente que domina las transiciones tecnológicas porque tienen un entendimiento innato de la mecánica de la percepción sensorial. (1964, 33). Para McLuhan, fue la imprenta – no el contenido impresso – lo que produjo una división entre el sentido auditivo y las experiencias visuales. Éste medio produjo un sentido de individuación y un sentido de continuidad entre espacio y tiempo (1964, 86-87) (SOUSA; CURVELLO; RUSSI, 2012, p. 14)
Se as construções narrativas no território experimental são, na maioria das vezes, tidas como dotadas de dispersão, fragmentação e não linearidade, em Naran Ja, o surgimento recorrente de alguns significantes colocam tal caracterização em xeque por meio de uma proposta estética minimalista. O minimalismo10 como uma escolha estética faz com que a repetição de tais elementos narrativos – a(s) laranja(s), a protagonista, os sons, os gestos e o espaço geográfico – seja mise en évidence, formando assim uma cadeia sequencial de significantes. Em especial, o som do atrito dos corpos no chão de terra e cascalho, em decorrência da movimentação geoespacial dos intérpretes em mise en scène para a câmera, proporciona, a partir da obra em questão, um sentido de continuidade entre imagem-tempo-espaço, bem como a sensação de tridimensionalidade em face à natureza bidimensional do cinema
Não obstante, em meio a um jogo de definições e indefinições dos significados dos significantes presentes na instância narrativa de Naran Ja, este estudo se insere no âmbito da narratologia, mais precisamente da narratologia pósclássica. Diferindo-se da ideia de que a narratividade se define pela natureza do
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significante, entende-se que a sequência de significantes pode ser tida como um esquema cognitivo articulador de uma dimensão temporal (BARONI, 2013) No concernente à narrativa pós-clássica, Baroni esclarece:
Elle appartient à un répertoire de transformations actualisables qui permettent de produire ou d’interpréter les productions culturelles de type narratif. En s’éloignant d’une conception de la séquence en tant que propriété formelle immanente à la représentation elle-même, une telle définition ouvre une voie pour l’analyse de récits iconiques qui ne représentent le plus souvent que des histoires potentielles ou implicites (BARONI, 2013, p. 100).
Sob a luz da proposta estruturalista de Barthes de uma gramática da narrativa, que diz respeito à categorização, à disposição e à relação lógica de palavras e frases em um dado enunciado (BARTHES, 1976), é possível afirmar que sua proposta se configura mais precisamente uma sintaxe da narrativa no âmbito da narratologia clássica. Já no que se refere à narratologia pós-clássica, esta se propõe uma semântica da narrativa na medida em que discute os processos de construção de sentidos e significados dos significantes presentes nas instâncias narrativas. Ou seja, uma dança metafísica imanente entre significante e significado.
Em Naran Ja, Iñárritu coloca o “expectador” em face a uma experiência estética singular, repleta de uma série de sequências de repetições, potencializações, multiplicações, quebras de sentidos e associações catalizadoras de processos de significação Por meio de tais construções narrativas de caráter abstrato e de um uso subversivo dos dispositivos cinematográficos (MACHADO, 2007; MACIEL, 2009), as expectativas do espectador de encerramento de sentido na e da obra são frustradas a todo instante ao longo da fruição Uma experiência estética que, aparentemente desprovida de razão visível (DIDI-HUBERMAN, 2013), revela não apenas os recursos tecnológicos do cinema e do grande imagista, como
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também a irracionalidade da dança contemporânea, desvelando, assim, uma dimensão hermética, conflituosa e paradoxal.
No que diz respeito à dança contemporânea, podemos elencar três tipos de movimentos: os não codificados, movimentos espontâneos e livres, e os movimentos codificados (GIL, 2001). Em Naran Ja, a coreografia elaborada por Millepied perpassa esses três tipos em suas variadas sequências de movimentos, mas não se trata aqui de realizar uma análise fenomenológica dos mesmos tendo em vista explicitar algum sentido ou significado implícito nas frases coreográficas. Pelo contrário, o que se pretende é atribuir aos gestos dançados uma liberdade subjetiva em recusa à qualquer tentativa de determinismo ou reducionismo. E, nesta liberdade subjetiva dos gestos, velar pelo mistério do sentido da dança e de sua fruição, criando para si um hermetismo próprio em resistência à imposição de uma interpretação, significação ou narratividade inerente.
Ao propor uma teoria geral dos gestos, como metateoria da teoria da comunicação, Flusser critica a definição que se tem do gesto como movimento explicável, defendendo a liberdade subjetiva do mesmo. Segundo ele: “gesto é o movimento no qual se articula uma liberdade, afim de se revelar ou de se velar para o outro” (FLUSSER, 2014, p. 16-17). Neste sentido, não se enquadrariam, nesta definição flusseriana de gesto, os movimentos satisfatoriamente explicáveis, justamente por não articularem tal liberdade. De acordo com Flusser:
Sentenças como “a expressão (o meio) é a mensagem” são fruto de confusão entre códigos, confusão evitável se a teoria da comunicação fosse subordinada a uma teoria geral dos gestos. Tal distinção permitiria ordenar os gestos comunicativos em série que teria por um extremo os gestos puramente expressivos, e por outro extremo, gestos puramente “impessoais” (informativos) (FLUSSER, 2014, p. 20-21)
Erika Motta Cardoso
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Dentre os critérios estruturais elaborados por Flusser em sua introdução à teoria geral dos gestos, algumas frases coreográficas de Millepied e dos intérpretes se enquadram no que a teoria flusseriana define como gestos sem rumo (Figuras 10, 11 e 12)11 L’artpourl’art Gestos vazios de sentidos que, embora possam suscitar excelentes análises e interpretações, a expressão de liberdade é o seu próprio propósito (FLUSSER, 2014) Outros gestos são categorizados como movimentos de transição (GIL, 2001), e outros ainda como apenas técnicos e, por isso, destituídos da liberdade para se constituir gesto. Mesmo que haja, em Naran Ja, movimentos técnicos provenientes do vocabulário do ballet, como na sequência de arabesques, pirouettes, port de bras, rond de jambe e pas de chat (Figuras 13, 14 e 15)12, tais movimentos são iniciados e executados com uma expressividade autêntica e qualidades próprias (VIANNA, 2005) que podem ser definidos, neste caso, como pseudogestos.
Neste sentido, o que nos interessa aqui é esse motus continuus, em sua plasticidade e poiesis visual, mediatizado pela câmera e coreografado também por meio da montagem cinematográfica, criando visualmente traços, fluxos, rupturas e
11 Fotografia: Greig Fraser.
12 Fotografia: Greig Fraser.
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raccords Por meio das corporeidades13 em mise en scène, se estabelece um jogo de equilíbrio e desequilíbrio, de peso e não-peso, de força e soltura, onde as ações do corpo já não se distinguem dos movimentos de pensamentos (GIL, 2001). A partir da variação da qualidade dos movimentos em suas variadas combinações possíveis de ritmo, forma, espaço, peso e fluência (LABAN, 1978), os bailarinos expressam pensamentos, devaneios, emoções e sensações (BEAUQUEL, 2015)
Por mais que seja possível fazer induções e deduções a respeito dos conteúdos dos gestos dançados em Naran Ja, as dimensões intangíveis (LABAN, 1978), inconscientes (DIDI-HUBERMAN, 2013) e intraduzíveis (GREINER, 2005) de tais movimentos se fazem presentes. São inefáveis, inclusive para os próprios bailarinos enquanto emissores. Porém, os gestos presentes na instância narrativa, por mais absurdos, confusos e abstratos que sejam, são passíveis de fruição devido às corporeidades dos intérpretes. Pois, se por um lado o conteúdo da mensagem não é de ordem puramente racional, o mesmo pode ser organizado sensorial e metaforicamente pelo receptor em um processo intersubjetivo (GREINER, 2005). Parafraseando Pina Bausch, se quiser entender, é preciso sentir.
É neste sentido que arte e corpo artista colaboram para com os estudos contemporâneos e a formulação de novas epistemologias: rompendo com padrões e formas decodificáveis, desestabilizando arranjos pré-estabelecidos e criando novas metáforas. (GREINER, 2005). Conforme conclui Greiner:
O corpo muda de estado cada vez que percebe o mundo [e opera simultaneidades]. E o corpo artista é aquele em que ocorre ocasionalmente como desestabilizador de todos os outros corpos (acionando o sistema límbico) vai perdurar. Não porque ganhará permanência nesse estado, o que seria uma impossibilidade, uma vez que sacrificaria a sua própria sobrevivência. Mas o motivo mais
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importante é que desta experiência, necessariamente arrebatadora, nascem metáforas imediatas e complexas que serão, por sua vez, operadores de outras experiências sucessivas, prontas a desestabilizar outros contextos (corpos e ambientes) mapeados instantaneamente de modo que o risco tornar-se-á inevitavelmente presente. Não à toa o sexo, a morte, o humor, a violência e todo tipo de emoção estão presentes durante estas experiências artístico-existenciais.
“Umedecendo silenciosamente a raiz do tempo”, como sugere o poeta Yoshimasu, percebe-se que sempre foi assim. O que muda é a possibilidade que a arte, a ciência e a filosofia têm nos mostrado nos últimos anos, mas poucos conseguiram enxergar com a clareza: é da experiência que emerge a conceituação e não o contrário. As fronteiras enre o corpo e as teorias do corpo estão definitivamente implodidas. Mas para testar essa hipótese não basta estar vivo. É preciso fazer da vida um exercício político de produção sígnica e partilhamento do saber (GREINER, 2005, p. 122-123).
Como poesia dos gestos, a dança é expressão de sentimentos humanos e cotidianos, potencialmente capaz de inspirar a imaginação a partir da contemplação dos movimentos e gestos do corpo artista. Na dança, palavras, frases e enunciados corporeificam sentimentos, desenham fluxos de pensamentos no espaço, fazem sonhar, inquietar e desesperar. Tal qual a poesia, a dança aproxima o leitor-observador de nossa humanidade comum em um ato de estender a mão, ajudando-nos a compreender o mundo, ajudando-nos a viver, convidandonos a dançar o paradoxo ontológico e as questões existenciais do ser (TODOROV, 2006). Como disse Pina: “dance, dance, do contrário estaremos perdidos”.
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Considerações finais
Longe de pretender involucrar os movimentos e gestos dançados presentes nos enquadramentos e fluxos visuais da obra de Iñárritu, impondo sentidos, significados e narratividades que não lhes são próprios, o que se pretendeu, neste estudo, foi justamente velar pela liberdade subjetiva dos significantes no plano de imanência da instância narrativa de Naran Ja
Por meio do dispositivo cinematográfico, a dança perde seu caráter efêmero para se deixar capturar pela câmera, permitindo-se eternizar e perdurar no tempo. Nesta interface com o cinema, a dança também perde sua tridimensionalidade, mas adquire novas espacialidades e temporalidades a partir do suporte bidimensional do cinema. Contudo, não se deixa revelar por completo, impondo limites interpretativos aos movimentos e gestos dançados presentes na instância narrativa da obra em questão, em contraste e justaposição ao realismo e à exigência de sentido da narrativa clássica do cinema. Em meio a esta negociação interlinguística, a dança não abre mão de sua liberdade subjetiva em face à objetividade e às objetivas do cinema. Em contrapartida, sugere possibilidades narrativas e estéticas inovadoras, propondo a superação de dicotomias tais quais corpo/mente, emoção/razão, pessoal/social, subjetividade/objetividade, abstrato/concreto, irracional/racional, sensação/pensamento.
O corpo artista em dança, em seus diferentes estados, se deixa enquadrar pela câmera em um jogo de mise en perspective, em uma aparente fragmentação possibilitada apenas, e somente, desde o ponto de vista da câmera e por meio dos mecanismos cinematográficos A perda de sua inteireza e historicidade, a desintegração de sua realidade, concretude e materialidade, e a virtualização de suas estruturas anatômicas indissociáveis é, pura e simplesmente, parte da ilusão do cinema e do grande imagista. Neste sentido, a dança afirma, em Naran Ja, sua unidade e totalidade por meio das corporeidades mediatizadas, em resistência às
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amarras dos discursos, interpretações e intermediações sígnicas (GREINER, 2005)
Por isso, este corpo artista vem lembrar que o conteúdo de sua expressão é velado, afirmando sua inefabilidade e intraduzibilidade, sob o risco de uma perda ontológica, a saber, de sua poiesis imanente. Nesta recusa não menos hermética, o “expectador” de Naran Ja se frustra em suas tentativas fracassadas de significação, ao mesmo tempo em que, por meio da experiência estética e fruição de uma obra narrativa pós-clássica, se vê diante de novas gramaticalidades e possibilidades sentipensantes.
É no contexto desta negociação interlinguística e intersubjetiva, de justaposições epistemológicas, que atualmente é mise en question a ideia de corpos semiológicos, em que o corpo é a condição radical dos processos de significação e de construção de sentidos (CONTRERAS, 2012), processos estes muito caros à narratologia Não se pretende aqui findar as discussões suscitadas, muito menos fornecer respostas prontas às questões levantadas, e sim trazer apontamentos para este novo campo que surge a partir da ideia de corpo semiológico: a semiologia do corpo como um campo possível de estudo das dimensões sensíveis da experiência cognitivo-sensório-cinética das corporeidades
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