Somos todos idolatras

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Somos todos idólatras Por Ermeson Vieira (Bruxelas, jan. 2018) As pessoas, principalmente aquelas educadas em uma tradição judaico-cristã-islâmica (monoteístas), usam o termo “idolatria” para referir-se a um excesso de valor dado a uma determinada pessoa ou “persona” (personalidade, seja ela viva ou morta). Este é um conceito de idolatria carregado de religiosidade e frágil por sua falta de pensamento crítico profundo.

contrário não é o ato de “abandonar” uma imagem pictórica que nos torna irrepreensíveis. É mais, a supervalorização do texto é em si uma forma de alienação da realidade ou alucinação. Diante da problemática da representação escrita, o homem passou outra vez a fazer uso de imagens pictóricas para representar os conceitos e ajudar na transmissão de ideias. Assim surgem o que Flusser chama de “imagens técnicas” (imagens de reprodução mecânica ou eletrônica). Essas imagens têm o papel de resgatar o caráter mágico de outrora e proliferam no nosso mundo desde as fotos dos jornais escritos às missas ou cultos televisados.

Segundo vários teóricos, incluindo Vilém Flusser, afirmam que as imagens que representavam o imaginário místico do antigo mundo começaram a serem substituídas por um novo código devido à emergente consciência histórica que tomava mais e mais espaço. Assim reprimiram-se as imagens pictóricas por “imagens” literárias, ou seja se passou das imagens esculpidas ou pintadas à aquelas descritas com o uso de uma linguagem composta de signos gráficos. A invenção da escrita e o advento do monoteísmo compartem o mesmo período da história, o que não é uma coincidência. A escrita foi o maior instrumento de guerra contra as outras religiões inclusive durante a idade média onde a Igreja Católica lutou contra as chamadas religiões “pagãs”. No entanto, Flusser detecta que o uso do texto para mediar entre as imagens e homens também tem um problema, para ele: Assim que o texto não está isento de “pecados”, pelo

É interessante perceber que não importa a mídia (meio) que usamos. Elas sempre têm a mesma função: transmitir conceitos culturais de seres humanos a seres humanos. Mas ao mesmo tempo essas mídias apresentam o mesmo problema que é representar uma realidade subjetiva (do “subjecto” – sujeito) de forma objetiva (referente objeto), o mundo tal como ele é, o que é sempre uma interpretação do sujeito a partir das suas ideologias, conjunto de valores e vivências pessoais. Desde que o homem adquiriu sua capacidade de pensar, ou seja, de imaginar o mundo (criar imagens do mundo), essa contradição existe. Yuval Harari vai mais longe e propõe que existem “realidades” subjetivas compartilhadas entre vários grupos sociais. A esta realidade ele se refere como “intersubjetividade”, que segundo ele, é importante para a organização social entre indivíduos em grupos numerosos. Assim que o homem tem criado objetos ficcionais, ídolos, mitos, religiões, nações, etc. como forma de unir diferentes indivíduos em torno de uma narrativa unificadora. A ideia de um Brasil, ou umas Nações Unidas ou União Europeia não passa de um conjunto de símbolos, ideologias e histórias compartilhados entre seus membros. O mesmo passa com as ideias relativas às religiões e às ideologias políticas. Benedict Anderson se refere à


nação como uma realidade imaginária – “Comunidades imaginadas”.

quase que integralmente às agências de publicidade e aos departamentos de marketing das empresas.

Há ainda um elemento importante a ser tomado em consideração nesse debate sobre a idolatria, a textolatria e as realidades intersubjetivas que é o valor simbólico da mercadoria.

A sociedade do consumo nada mais é do que a sociedade da consumição de signos (imagens), onde o seres humanos creem estar consumindo produtos, mas que na maioria dos casos não os precisam. O mais importante é o sentimento e o status que o objeto lhes confere. Por exemplo: o custo de produção de um par de sapatos Nike de $100 é de $25 e o custo de marketing (venda da imagem) gira em torno dos 50% . Mas um jovem influenciado pela imagem criada pela marca é capaz de fazer um grande esforço para possuir tal mercadoria porque a possessão desse objeto lhe confere um status dentro do seu grupo de amigos. Ou melhor, põe-lhe dentro do grupo dos que possuem tal mercadoria, conferindo-lhe distinção.

No final do século XIX, o filósofo alemão e precursor das ciências sociais, Karl Marx apresentou no seu famoso tratado sobre a economia moderna (O Capital) duas noções de valor: (1) o valor de uso e (2) o valor de troca. Para ele o valor de uso refere-se à utilidade mesma de um produto para suprir uma necessidade humana. Assim que quando faz frio, um casaco só pode ser trocado por outro casaco e não por uma camiseta de verão. O valor de troca se refere ao valor do trabalho humano utilizado para produzir uma determinada mercadoria (produto destinado ao mercado) em um determinado espaço de tempo. Assim uma mercadoria na qual o trabalho humano está presente um número de horas deveria valer mais que uma mercadoria onde o trabalho humano é mais rápido, ou está menos presente. Infelizmente essa última hipótese não corresponde à realidade dos nossos tempos. O filósofo francês, Jean Braudrillard, usando dos conhecimentos relativos à semiótica (o estudo dos signos e da semiose, que estuda todos os fenômenos culturais como se fossem sistemas sígnicos, isto é, sistemas de significação ), mostra que além dos dois valores mostrados anteriormente ainda há um último que é o valor da mercadoria como símbolo (signo). Para ele não basta que o objeto tenha uma utilidade, ou um valor meramente de troca; para que um objeto seja vendido é preciso que ele se transforme em um signo, ou seja, que ele entre dentro do universo simbólico das pessoas afim de que elas acreditem que ele pode lhes fazer mais felizes, mais prósperas, mais interessantes, mais sexies, etc. Dessa forma a missão comercial da indústria e do comércio não é a de oferecer mercadorias para suprir as necessidades humanas, mais a de produzir objetos-símbolos para serem consumidos pelas pessoas. Esse papel é dado

É mais, no sistema dos objetos, os objetos se tornam mais importantes que os seres humanos mesmo. Assim que há uma inversão: humanos são objetivados e objetos são subjetivados. Observe o caso do telefone celular. Muitas pessoas dedicam muito mais tempo e atenção aos seus aparelhos que as seus próprios camaradas. O trabalho do filósofo seria segundo Platão (427-428 a.C) o de mostrar a realidade aos escravos que estão na caverna que tudo o que conhecem são apenas imagens projetadas na parede da mesma; mas Platão também reconhece que esse é um trabalho árduo e perigoso pois os escravos estão tão acostumados com as imagens projetadas que podem repudiar o filósofo que outrora conseguiu escapar ele mesmo da caverna. O certo é que as imagens sejam elas pintadas, esculpidas, escritas, fotografadas, montadas, desconstruídas, filmadas, imaginadas (valha a redundância)..., são a única forma de mediação que temos com o mundo. Tudo é mediado. Tudo é imagem. Tudo é imaginado.


Imagens: https://en.wikipedia.org/wiki/Prehistoric_art#/media/File:Lascaux2.jpg https://en.wikipedia.org/wiki/The_Human_Condition_(Magritte) https://www.infoescola.com/filosofos/platao/

Livros: (citados ou apresentados como referência) Anderson, Benedict. Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism. Verso, 2006. Baudrillard, Jean, and Francisco González Aramburu. El sistema de los objetos. Siglo XXI, 2012. Flusser, Vilém. Filosofia da caixa preta Ensaios para uma future filosofia da fotografia (1985) https://monoskop.org/images/6/6f/Flusser_Vilem_A_Filosofia_da_caixa_pret_Ensaios_para_ uma_futura_filosofia_da_fotografia.pdf Harari, Yuval Noah. Homo Deus: Uma breve história do amanhã. Companhia das Letras, 2016. Marx, Karl. O CAPITAL - Karl Marx: Mercadoria, Valor e Mais valia. LeBooks Editora, 2017.


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