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FICHA CATALOGRÁFICA




Aos meus amigos J. Nilson Jr, Agathe Fernandes, e ao Jason; meus parceiros no compartilhar de contos.



SUMÁRIO



capítulo i

A TorRe braNca



Amanhecia. O sol surgia dourando os picos acentuados dos montes, fazendo reluzir essa linha ondulada que divida o céu da terra, e lançava nas nuvens suas cores quentes. A crescente claridade revelava as belas e ameaçadoras encostas pedregosas abaixo. Hendor sentiu na face branca o confortável calor que aquele alvorecer trazia e respirava o puro ar da manhã, aspirava-o abundantemente e sentia com prazer os pulmões cheios. A poucos centímetros da ponta de suas botas a terra era engolida por um colossal abismo que deixava seu observador pequeno como um inseto. Hendor era um homem grande, jovem, quase com três décadas de existência; começava todos os dias desde sua infância ali, dando as boas vindas ao sol ofuscante. Entre a beira do abismo e os montes de trás dos quais o sol se revelava, um vale negro e acidentado se estendia por longa distância em direção ao leste; seu centro era tão profundo que ninguém na vila jamais tinha visto o fundo, mesmo ao meio dia o sol não vencia aquelas trevas. O jovem homem olhou cada reentrância e saliência nas rochas, a pouca e pequena vegetação que escapava pelas brechas, antes de resolver voltar à vila; já conhecia cada uma daquelas rugas da terra e os ninhos dos pássaros que saíam na paisagem junto com ele para receber a primeira luz do dia. Deu um último sorriso ao sol e se virou.

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Diante dele uma barreira de ciprestes o esperava a alguns metros do precipício, embolou a longa capa de pele de bode e se pôs a correr contra o bosque. O ar frio lhe alisava as faces marcadas de algumas finas cicatrizes e lhe obrigava a semicerrar os olhos verdes. Os cabelos louros e cacheados, vencidos pela barreira do ar, se estendiam na direção da nuca. Hendor saltava sobre troncos caídos e de cima de rochas altas, seus pés feriam a turfa e sua silhueta volumosa se metia entre os troncos retos com agilidade. Em pouco tempo se viu subindo um aclive que o tirou de dentro do bosque. Quando alcançou o topo, a visão do vilarejo se abriu abaixo. Era construído num vale plano cercado por grandes rochas escuras e frias, um muro feito de troncos o cercava desenhando-lhe um contorno irregular e vários arvoredos se viam ao redor. Os telhados de barro ainda não tinham sido tocados pelo sol, e muito menos suas paredes cinzentas ou suas ruas de terra batida, mas a grande torre branca no centro reluzia. Era apoiada numa grande rocha pontiaguda e fina, que por si mesma já lembrara uma torre aos fundadores daquele povoado. Ali em cima, atrás das cortinas vermelhas, debaixo do telhado alaranjado, entre portas de cedro trazidas de muito longe, morava o governador da vila: detentor de um título de nobreza que não o tornava nada no palácio do rei mas o fazia ser tratado como rei no distante topo daquela montanha. Hendor fez com semelhante velocidade o trajeto do topo da colina até a planície diante dos portões, auxiliado pela gravidade, e ergueu o rosto para o guarda no alto da barreira. - Voltou bem rápido, jovem Hendor! – disse entusiasmado o guarda e em seguida deu ordem para abrir o portão. Hendor se viu numa rua que descia para dentro do vale e o som do início do dia do povo lhe alcançou os ouvidos. As residências se encostavam umas às outras e acompanhavam a rua numa curva aberta que mergulhava para dentro do vilarejo. A torre branca do governador era sempre visível.


O jovem desceu a rua, constantemente recebia cumprimentos animados dos moradores que ali transitavam e dos comerciantes que iniciavam sua jornada de trabalho. Umas crianças de pouco mais de cinco anos correram de dentro de uma casa e o cercaram, gritando e falando todas ao mesmo tempo. Ele parou e ria enquanto todas pediam que as erguesse nos braços, uns dois pequenos tentaram alcançar as duas espadas curtas que ele tinha embainhadas ao cinto largo de couro, cujos punhos negros despontavam de baixo da capa, mas ele logo as afastou. Pegava as crianças e as jogava no ar amparando-as logo em seguida, causando-lhes gargalhadas deliciosas de se ouvir. Em um minuto desvencilhou-se delas e prosseguiu em seu caminho. Fez alguns passos rindo, acenando para donzelas que respondiam com risadas tímidas e cobertas com as mãos pequenas, e logo em seguida um homem grande embarreirou seu caminho. Apesar do frio, os braços largos estavam nus sob a capa de peles. Encarava Hendor de cima dos seus dois metros com uma expressão fechada, a pele morena era riscada de três largas cicatrizes na testa e os longos cachos negros estavam amarrados atrás da cabeça. Apesar da aparência um tanto intimidadora, Hendor abriu seu primeiro bom sorriso do dia. - Bom dia, Blartos. – Hendor cumprimentou contrastando seu habitual bom humor com o ar de seriedade do grande homem. - Liwe mandou-me te chamar. – disse Blartos, sua voz era grave e arrastada, áspera. Algumas vezes sua fala lembrava um rosnado ou arroto, o que causava risadas em alguns homens e reações de aversão em algumas mulheres. - Liwe pensa que é líder... – disse Hendor com uma risada curta enquanto dava a volta em Blartos e seguida descendo a rua. O homem o seguiu. - Parece que alguma coisa foi vista nos picos do oeste. O tom harmonioso e despreocupado de Hendor desapareceu como se nunca tivesse existido. - O que foi? Alguma fogueira de sindrols outra vez?

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- Não, o vigia da torre disse que viu uma sombra descendo sobre o pico mais alto logo assim que o sol surgiu. – disse Blartos com voz monótona – O governador nos disse para verificar. - Ele paga soldados para que? - Não é para enfrentar sindrols, tenha certeza. - Certo... – Hendor andava pensativo. Aumentou o ritmo do caminhar sem perceber, enquanto olhava as facas apontadas para o céu que eram os montes que emparedavam a paisagem na direção do oeste. – Varkel já está lá? - Sim. - Ele não viu alguma coisa? - Não, mesmo assim o governador quer que olhemos de perto. Algumas esquinas, ruas, becos e uma praça depois, os dois estavam junto das bases da torre branca. A rocha que lhe servia de apoio era quase totalmente sua base, de modo que a rocha natural parecia se misturar com os tijolos e blocos dando o aspecto de a torre sair de dentro da rocha como se sai da lama. A entrada era enfeitada como os portões de um palácio: o umbral do grande portão era adornado com floreios em alto relevo, obra de um artista habilidoso. A porta, apesar de ser de madeira, era dourada: ouro derretido que a banhava. Um corredor de dezesseis guardas os conduzia até os portões dourados e não lhes ofereceu qualquer resistência. Atravessaram a porta e subiram por degraus dispostos em espiral, iluminados por castiçais nas paredes. Foram ignorando os acessos a todos os patamares e logo atingiram o alto da torre. A entrada daquele patamar era também protegida por soldados de armadura completa, elmo e lança. Ali eles pararam. - Avise que estamos aqui. – disse Hendor a um dos guardas. Este, com sua mão coberta de metal, bateu à porta três vezes. Alguns segundos depois outro guarda abriu uma pequena portinhola à altura dos olhos e observou os dois jovens de dentro do recinto. Ouviram-no dizer algo ininteligível e destrancar os vários ferrolhos da porta.


- Sejam bem vindos, meus senhores. – disse o guarda quando desbloqueou o caminho. Entraram, o lugar era aquecido e iluminado por um grande número de velas dispostas em três mesas distribuídas pela parede circular que envolvia uma escrivaninha. Havia vários armários e prateleiras repletas de volumes antigos e uma cama escondida atrás de uma cortina branca. Havia também janelas, mas estavam fechadas e acortinadas. - Aí está o destemido. – foram as primeiras palavras ditas ali, com profundo desdém. Liwe, quem dissera as palavras, era um homem sem qualquer fio de cabelo no rosto ou cabeça. Uma espada longa embainhada cruzava suas costas e ele vestia-se com lã e couro negros do pescoço até os pés, o que contrastava com sua pele pálida. Era o mais velho daquele grupo, e ainda assim era jovem. Diferente de todos os outros, não carregava nenhuma cicatriz na face. - Bom dia, Liwe, também é bom te ver. – Hendor respondeu sem olhar e se dirigiu ao homem que se sentava atrás da escrivaninha. – O que o perturba, meu senhor? - Creio que Blartos já o tenha posto a par da situação. – falou o governador. Ele se chamava Kenrick, mas era chamado de “senhor” com tanta frequência que alguns nem sabiam seu nome. Era um homem de pouco mais de cinquenta anos com os cabelos saudáveis e ainda negros, usava um cavanhaque no queixo e suas vestes eram largas e bordadas com fios de ouro; brancas como a torre. Passava a maior parte do tempo num tom de seriedade que ele praticara por muitos anos, e ali atrás daquela dureza facial ele já escondera desde o mais profundo pavor à mais prazerosa alegria; era inapropriado ser tão eloquente no círculo nobre que ele frequentava, e trazia esse instinto quando era o único nobre naquela vila longínqua. - Uma sombra pousando sobre os montes do oeste. – Hendor repetiu.

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- Felizmente, Hendor, eu já estou ciente e já decidi o que vamos fazer. – disse Liwe. Hendor sentiu a chama do orgulho se acendendo no peito e pedindo desesperadamente para não ser soprada, mas ignorou. - Quando Varkel retornar, vocês irão até lá. – disse o governador. – Vocês sabem bem como agir. Esta vila precisa de vocês e responderá com toda a gratidão que estiver ao nosso alcance.

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- Ele sempre diz isso. – Hendor falava rindo enquanto os quatro subiam a rua que levava aos portões do vilarejo. Liwe ia à frente, o peito cheio sob os olhos do povo. Hendor e Varkel, um rapaz de baixa estatura com os cabelos mais louros que os de Hendor e um arco às costas, iam lado a lado enquanto o grande Blartos arrastava no chão um enorme martelo à retaguarda. Ouvindo o som do enorme peso chiando na terra, Hendor se virou. - Está bem, meu amigo? - Estou com sono. – respondeu a voz bruta. – Ainda não comi nada. - Talvez quando matarmos, seja lá o que for, você possa comê-lo. – Varkel falou rindo. - Ou talvez eu... – mas foi interrompido por um bocejo. Sob os olhares curiosos, esperançosos e alegres dos habitantes da vila, o grupo passou pelos portões, que se fecharam atrás deles. O quarteto pôs-se a andar ladeando o muro de madeira, era preciso ainda circular a cidade para estar de frente para o oeste. - Escutem. – começou Liwe. – Enquanto estivermos lá ouçam o que eu disser, e sigam minhas ordens. - Sim, senhor. – disseram Hendor e Varkel em uníssono, num tom irônico que Liwe não notou. - Varkel irá na frente, pois tem os melhores olhos e Blartos... – calou-se quando um estridente grito feminino irrompeu de dentro dos muros.


- O que foi isso? – disse Varkel, todos se olharam confusos e espantados. Hendor se afastou correndo na direção da colina que havia entre o bosque e os portões da vila. Quando chegou no topo, os outros três o imitavam. Dali era possível ver todo o vale. - Ah, não. – Liwe exclamou. Algo voava na direção da vila, vinda dos picos do oeste. A distância não permitia que vissem mais que uma sombra bronzeada manchando o céu. - Tem asas... – disse Varkel apertando os olhos. – Lembra um morcego enorme. Rápido como o vento, a criatura se aproximou, voou sobre metade das casas e pousou na base da torre. - Vamos! – Liwe gritou pondo-se a correr colina abaixo. Varkel era o mais veloz e alcançou os portões antes de todos, logo deu a ordem para que o abrissem. Quando os demais chegaram, já podiam se esgueirar pela brecha que o portão abrira em seu lento movimento. - Aquilo esperou que nós saíssemos para entrar? – dizia Liwe enquanto corriam rua abaixo. Blartos pusera o enorme martelo no ombro e dava passadas tão largas que cada uma valia por quatro de seus companheiros. - Se sim, não é o tipo de inimigo que costumamos enfrentar. – Hendor respondeu. Depois de vencer todos os obstáculos, passando por pessoas assustadas que vinham da direção oposta, finalmente chegaram outra vez às bases da torre branca. Os dezesseis guardas não estavam mais ali, as portas douradas jaziam ao chão e um corpo mutilado sangrava sob o umbral. Os demais pararam de correr quando viram o guarda morto, mas Hendor prosseguiu enquanto Liwe exclamava alguma praga. Saltou sobre o corpo e parou ali. Imediatamente ouviu gritos de dor e o som das espadas em combate e pôs-se a subir as escadas. Saltava os degraus de três em três. Na primeira volta da escada espiralada viu uma cabeça humana

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rolando degraus abaixo, e logo em seguida um braço que segurava ainda uma espada repousava num degrau. No primeiro patamar viu o corpo a que pertencia o braço e outros dois guardas jazendo sobre poças de sangue, as armaduras rasgadas como se fossem feitas de pergaminho e os rostos abertos em cortes provenientes de garras afiadas. Continuou subindo, e as cenas da carnificina sempre o encontravam, todos os quinze guardas restantes estavam despedaçados e mutilados ao longo da escada. Ouviu as vozes de seus amigos gritando lá de baixo, chamando-o, mas ignorou. Atingiu, enfim, o último patamar. O guarda da esquerda ainda vivia, sangrava pelo pescoço numa ferida tão brutal que sua mão tremida ali não adiantava nada. O guarda da direita tinha a espada jogada ao chão e o ventre perfurado pelas garras da criatura. Ali sim, Hendor parou. Apesar dos guardas, a primeira coisa que viu foram as enormes asas que realmente lembravam as de um morcego. Era do tamanho de Blartos, aquelas asas se abriam das costas de uma silhueta humana, sua pele cinzenta e cor de terra era enrugada e coberta de pelos nos ombros e braços, cada um dos cinco dedos tinha uma garra curva de vinte centímetros e na cabeça havia duas grandes orelhas de morcego pontiagudas. - Você para aqui. – disse Hendor com firmeza imperiosa, as duas espadas curtas desembainhadas apontavam para o monstro numa postura de combate. Ele esperava qualquer reação, menos uma risada seca e áspera. - Vocês são rápidos. – disse ele virando-se lentamente de frente para Hendor e encarando seus desafiadores e destemidos olhos verdes. O guarda caiu para trás clamando por socorro com os olhos, seu sangue se derramou através dos dedos que cobriam o ferimento. - E você é terrivelmente feio. – Hendor provocou A criatura parecia um homem, era forte e seu rosto tinha um nariz um pouco aberto demais para um humano. Os


olhos vítreos eram de um bronzeado fechado e de pupilas grandes o bastante para torná-los totalmente escuros. Tinha sobrancelhas espessas que quase se misturavam ao volume de cabelos desgrenhados e grossos na cabeça. Apesar de parecer um monstro, vestia-se da cintura para baixo. - Onde estão seus amigos? Achei que eu teria um desafio! - Eles surgirão quando você não estiver esperando. - Claro, devem estar escondidos com medo de ter o mesmo fim destes guardas. – ele saboreou com os olhos o sofrimento de suas vítimas por um segundo e voltou-se outra vez para Hendor. – Mas você, meu rapaz, ouvi que havia um guerreiro nesta vila que não temia nada. Hendor nada respondeu, apenas continuou fitando a criatura com seriedade. - O que você quer? - Creio que seja óbvio, se vim até o alto da torre onde seu governador está defecando nas próprias vestes enquanto ouve minha voz. – disse ele com uma curta risada de deboche. – O governo daqui vai mudar, jovem guerreiro, seu novo senhor, se você sobreviver para ver, será muito maior que este. - Não enquanto eu estiver aqui! – Hendor bradou enquanto atacava. A criatura usou as garras para se defender das lâminas, Hendor investia alternando entre as armas, obrigando a criatura a bloquear ataques ao rosto e ao corpo simultaneamente. Hendor girava e fazia o vento assobiar quando era cortado pelas espadas, mas a criatura não deixava nada passar. O único ataque que o monstro empregou o derrubou: um chute no baixo ventre que o jogou contra a parede atrás e o fez rolar alguns degraus antes de conseguir parar. Hendor bufou com o esforço para se levantar rápido enquanto ouvia o estrondo da porta sendo arrombada. Encontrou apenas uma de suas espadas e subiu novamente. Parou sob o umbral e estacou quando viu.

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- O sangue humano é precioso, meu rapaz. – disse a criatura segurando o governador pelo pescoço com sua mão direita enquanto a esquerda deslizava as pontas das garras pela testa do homem. O sangue escorria-lhe pela face e ele estremecia sem ousar gritar. O pavor era evidente em seus olhos. A criatura era tão grande para ele que se encurvava sobre o nobre. - Solte-o agora! – ordenou. A criatura olhou, Hendor cobria uma boa parte da pequena porta e lhe apontava uma única espada curta e reta. A mesma valentia ainda estava em sua face mesmo que a têmpora estivesse enegrecida por uma pancada contra os degraus. - O que vai fazer, jovem guerreiro? De onde está, sua espada não chega a mim antes que minhas garras cheguem ao coração deste homem. – disse ele tocando o peito do governador com a ponta das garras. Subitamente Varkel surgiu por cima do ombro de Hendor e atirou uma flecha que atingiu o braço esquerdo da criatura. A flecha o atravessou e fez a criatura emitir um grito agudo e estridente que causou tontura em todos dentro da torre. Hendor saiu da porta e Varkel atirou outra flecha. O monstro tentava extrair de si a primeira flecha quando a segunda transpassou os dois membros unindo um braço ao outro. Varkel saiu da porta e por ali entrou Blartos. O quase gigante entrou fazendo o chão estremecer e dando um grito de batalha que estremeceria também os ânimos de seus inimigos. Seu martelo atingiu a criatura na cabeça derrubando-a. - Você então gosta de cortar as pessoas com essas garras? – disse Blartos olhando-o de cima. Em seguida desceu o enorme peso do martelo sobre as mãos da criatura. O monstro gritou outra vez e as garras se estilhaçaram. O governador se recolhera até o outro lado do recinto e observava dali, ainda tremendo e limpando o sangue do rosto. Liwe entrou rindo da criatura caída ao chão. - Você zomba antes da hora. – disse ele. – Mas confesso


que estou surpreso por ver uma aberração como você sendo mais inteligente que a maioria dos homens que conheço. – tinha nas mãos a espada longa, e a girava como se estivesse entediado. A criatura o olhava enfurecido. – Lembra-se daquele guarda que você decepou? Era meu vizinho. – dizendo isso depositou lenta e cuidadosamente a ponta da espada sobre o pescoço da criatura. – O que você quer aqui? - Nada que vocês fizerem vai impedir a glória do poderoso Krondarg. – disse ele. – Se ele não governar esta vila, vocês todos serão exterminados. Mate-me agora, e será sua derrota, meu senhor saberá que o fizeram. Se eu não levar a ele seu governador, se eu não voltar, ele destruirá esta vila. Vocês não tem escolha. - Eu acho que você não está em posição de conquistar qualquer coisa para seu senhor. Deixe que ele venha, ele terá o mesmo destino que você. - Será? Num movimento inesperado, a criatura girou no chão impulsionada pelas asas. Seus pés derrubaram Liwe e seus braços quebraram a flecha que os prendia. Levantou-se e correu na direção da janela. Hendor foi atrás. O monstro saltou arrebentando a madeira e o vidro e abriu as asas planando. - Hendor, não! – Varkel gritou, mas o jovem se empoleirou na janela, se inclinou para a frente e saltou. Liwe praguejou. - Ele vai acabar morrendo assim! Varkel correu para a janela e viu Hendor agarrado às costas da criatura que voava em direção ao leste. Hendor segurava firme os pelos compridos do monstro enquanto planavam sobre o vilarejo, o ar era barulhento e frio, a paisagem abaixo passava depressa. O peso o fazia perder altitude e a presença de Hendor nas costas da besta não permitiam que as asas se movimentassem para recuperar o

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voo. Com a única espada começou a golpear as costas do monstro, mas a lâmina pouco penetrava naquela pele grossa e carne dura. O monstro girou quando passaram por cima do muro e pela colina, tentando derrubar seu adversário, mas Hendor era forte nas mãos. Sobrevoaram o bosque e ali ele conseguiu fazer a espada entrar fundo no corpo da criatura e sentiu a ponta saindo no outro lado. A criatura se debateu, estremeceu e urrou estridentemente outra vez, e foi ouvido por todas as pessoas da vila. Os outros três, ajuntados em frente à janela, assistiram seu amigo, nesses curtos instantes, lutar com o monstro no ar e ambos caírem para trás do bosque, desaparecendo na enorme boca aberta do abismo. - Ah, não. – disse Liwe pela segunda vez naquele dia.

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capĂ­tulo ii

KrondaRg



De pé à beira do abismo, Liwe, Varkel e Blartos olhavam para as profundezas da garganta da montanha, ainda inquietos e um tanto estupefatos pelo que tinham visto pela janela da torre. Surpresos não estavam, já tinham passado por situações semelhantes tantas vezes que a sensação mais comum ali era a apreensão, e até uma confortável impaciência. Não diziam uma palavra, mas cada um sabia o que o outro pensava. A parte mais consciente de suas mentes, a que os permitia ser impacientes com o conforto da esperança, desejava e aguardava ouvir a sonora gargalhada de Hendor irrompendo de dentro do abismo, mas a parte mais profunda de seus pensamentos, a parte que quase se escondia da consciência, imaginava se aquele teria sido o último ato heroico do guerreiro que não tinha medo. Esperavam apreensivamente que ele surgisse escalando o paredão, e temiam profundamente que esperassem inutilmente. Sim, já tinham passado por aquilo muitas vezes. Hendor nem sequer hesitava diante dos desafios que lhe surgiam, nem mesmo aquele suave tremor que tenta preservar a vida dos valentes. Os quatro eram guerreiros corajosos, valentes e eficientes, razão pela qual encaravam as piores ameaças, aquelas que soldados comuns não seriam capazes de enfrentar, mas Hendor se metia nos mais fétidos e apertados

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buracos, provocava a ira dos maiores brutamontes, se pendurava das mais vertiginosas alturas e ria de cada uma dessas loucuras. Liwe detestava o modo como nada o impedia, e o modo como debochava das criaturas mais terríveis. E aquele modo de agir já o pusera em perigo mortal mais do que seus amigos eram capazes de lembrar. Na maioria das tarefas que o quarteto assumira, Hendor tinha sido o herói e Blartos, Varkel e Liwe, seus protetores. O tempo passava enquanto os olhos atentos vigiavam a escuridão ao sinal de movimento, todos os sentidos clamavam pela menor alteração dos fatos. Depois de pouco mais de uma hora de espera, Liwe disse com pesar: - Talvez... nosso amigo tenha ido para o Valhala. Depois que ele disse isso, ficaram ainda meia hora diante dos restos de esperança que se dissolviam gradativamente, até que Varkel foi o primeiro a levantar os olhos de volta para o céu. Sob o olhar condenatório e condescente dos amigos, pois pensavam como ele ousaria ser o primeiro a aceitar que Hendor não voltaria, apesar de Liwe ter dito primeiro, Varkel deu meia volta e se pôs a caminhar na direção do bosque. Liwe e Blartos entreolharam-se em silêncio e imitaram-no. O sol ainda não atingira aquela parte do abismo. Suas costas doíam como quando dormia torto, como depois das festas regadas a hidromel; estava caído sobre alguma coisa que não parecia ter sido feita para dormir. Hendor abriu os olhos lentamente e, com a vista embaçada, se viu aos pés de um imenso paredão ao topo do qual o céu brilhava ofuscante. A muralha de pedra estava iluminada até metade, a rocha emergia das sombras e brilhava sob o sol; minerais translúcidos nela incrustados reluziam. A escuridão em meio ao dia foi o que o fez concluir que tinha conseguido chegar tão fundo no precipício como nunca chegara. Abriu um largo sorriso ante a esta percepção. Depois o sorriso se deformou quando a dor se mostrou presente.


Em meio ao frio do fundo sentiu o joelho fisgado, uma dor forte e sufocante embaixo do braço esquerdo e ao longo do flanco. A cabeça doía tanto que ele não se decidia onde pôr a mão. Sentiu o gosto do sangue na boca e o seu calor empapando as vestes. - Como... ? – balbuciou, e o peito ardeu pelo esforço de falar. Então sua memória devolveu as lembranças dos últimos momentos. Lembrou-se de ter sido engolido pelo abismo voando nas costas da criatura, que perdeu a direção quando foi ferido pela espada e se jogou contra o paredão do precipício, onde ambos desceram se arrastando na rocha, sendo golpeados por galhos que cresciam na antiga face dura. Depois de rolar sobre as pedras e plantas que se projetavam do paredão, finalmente pararam quando a parede se encurvou para se tornar um chão plano, pedregoso e úmido. Subitamente percebeu que seu leito totalmente inapropriado era o corpo da criatura. Lentamente, com esforço, ganidos e suspiros doloridos, Hendor se pôs de pé e vislumbrou o monstro. Se não houvesse uma espada atravessando seu corpo, provavelmente a criatura estaria num estado melhor que ele. Hendor riu cuspindo gotículas de sangue. Não movia o braço esquerdo, pois a dor era lancinante quando o fazia. Olhou novamente para o alto do abismo. - Como vou chegar lá? Olhou as distâncias e viu que aquela era a face mais íngreme do abismo, havia encostas mais suaves e permeadas de pedras grandes, pontilhadas de galhos que se encurvavam para fora da rocha. Tendo ainda um braço e uma perna, concluiu que seria capaz de escalar por ali. Arrastando os pés e tendo dificuldades para se equilibrar, deixou para trás o cadáver e partiu na longa caminhada pelo fundo da garganta. *** Quem morria no abismo não podia ser sepultado.

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Ao fim daquele dia, a ofuscante luz do sol se entrecortava atrás das montanhas do oeste, Liwe fazia uma marcha contida e solene através de um corredor de pessoas; o ritmo lento de seus passos, a expressão dura e pesarosa e a cabeça baixa já denunciariam a qualquer estrangeiro do que se tratava aquele gesto. O vento lento e cada vez mais frio envolvia e fazia estremecer os soturnos observadores. Lá estavam o governador Kenrick, Blartos e Varkel, outras pessoas próximas de Hendor e outras muitas que o admiravam de longe e de ouvir dele falar. Não havia ali nenhum pai, mãe ou irmão. Era uma praça pequena e circular, no centro da qual havia um pedestal de pedra que já fora usado para diversos fins: discursos dos porta-vozes do governador, discursos de amotinados e revoltados, condenação pública de criminosos. Mas naquele dia comportava apenas um amontoamento de lenha coberta de óleo. A torre branca acompanhava o momento de perto. Liwe carregava nas mãos um objeto embrulhado num tecido vermelho e assumia uma postura séria e grave que combinava com o tom sombrio de sua face. Do corredor as pessoas formaram um círculo ao redor de Liwe quando este parou em frente ao pedestal e a lenha. Desembrulhou o objeto que sob a vista de todos se revelou sendo a espada que Hendor deixara cair. Disse umas poucas palavras rasas e enfiou a espada de ponta para baixo no meio da lenha. Os presentes na cerimônia fúnebre baixaram a cabeça em respeito, alguns em pranto, quando Varkel entrou no círculo com um archote inflamado; o sol era totalmente engolido pelas montanhas naquele momento e a luz fulgurante das chamas se deitou sobre a praça gerando longas sombras num formato radial. - Não ousem queimar minha espada! – ouviu-se uma voz potente e urgente. Todos olharam para a direção de onde ouviram e ali estava Hendor, fazendo o possível para andar apressado em meio aos ferimentos. Estava coberto de sujeira, sangue seco,


contusões e feridas abertas, os longos cabelos desarrumados, as vestes puídas e rasgadas. O joelho ferido fazendo-o mancar e a dor o contorcendo seu rosto. - Hendor! – Varkel largou a tocha e correu em sua direção. - Desgraçado... como ainda está vivo? – balbuciou Liwe, surpreso, ainda parado diante da lenha. O círculo se alvoroçou e algumas pessoas se afastaram irritadas enquanto outras envolviam o jovem guerreiro em exultante alegria, gritando seu nome em uníssono. Hendor foi deixado a noite inteira sob os cuidados dos médicos da vila: um casal de irmãos que já tratava as pessoas dali havia muito tempo, tanto tempo que tinham visto aquele herói crescer e tinham tratado cada ferimento que ele adquirira. Conheciam suas cicatrizes, lembravam suas poucas doenças e muito o tinham repreendido por se ferir tanto. Ainda se surpreendiam com sua capacidade de se recuperar mais rápido que todos os outros. Sob a lua daquela madrugada, os guardas mortos na torre foram queimados no lado de fora do muro por seus familiares. *** Aquela manhã foi uma das poucas em que ele não começara observando o sol nascente. O médico o proibira de usar o joelho com força e de mover o braço esquerdo por muito tempo, o restante dos ferimentos fora resolvido com algumas tiras de pano e água limpa. Ainda doía quando falava e foi alimentado com sopa. Enquanto Hendor se recuperava, no alto da torre branca Liwe relatava os fatos da véspera ao conselho do governador Kenrick. Estava de pé diante da mesa do nobre, que o fitava com seriedade. Tentava com a autoridade sobrepor a fraqueza que aqueles cortes frescos na testa evocavam. Junto a ele sentavam-se dois homens de mais idade. Um

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era cego do olho direito, sobre o qual passava uma faixa branca que escondia uma feia desfiguração, os cabelos brancos eram fortes e cacheados, volumosos. Conseguia, com um único olho saudável, transmitir um desconforto em quem olhasse com sua expressão fria e totalmente analítica. O outro tinha os mesmos cachos fortes, mas ainda via-se algum resquício de louro dourado entre os fios prateados. Este era o oposto do outro, passava ao interlocutor uma paz e tranquilidade que quase fazia um culpado se sentir inocente, e sempre parecia estar sorrindo. Não tinha a perna esquerda e na mão direita encontrava-se apenas o polegar e o indicador. Um velho punho de espada de duas mãos fora adaptado para a bengala que ele usava para se apoiar. Junto de seu grupo, Liwe exercia a autoridade que tinha por ser o mais velho, contudo diante de Lorthon e Gowlin ele sentia-se outra vez como um jovem recém saído da infância. - Espero que tenha um bom motivo para ter-me feito subir essas escadas, Liwe. – disse Lorthon, sem demonstrar nenhuma raiva, apesar da queixa. – Não entendo por que o ataque de um monstro sanguinário faminto seja motivo para convocar o conselho. - Meu senhor, a questão é exatamente isso. – disse Liwe, contido. – Não vos chamaria se não tivesse algo realmente importante a relatar. - Pois relate-o, meu jovem. – disse Gowlin, amigavelmente. - A criatura que invadiu a torre não queria apenas satisfazer sua fome, ou sede. Aquilo falava tão bem quanto um homem, pensava como um guerreiro e até zombava de nós. - Um animal inteligente, você diz? – Lorthon repetiu, com um leve sentido de incredulidade. - Não questione os olhos dos jovens nem a sabedoria dos velhos. – disse Gowlin, percebendo o tom de ironia que poucas pessoas conseguiam captar na voz inexpressiva de Lorthon. - Meu senhor, se não acredita em mim...


- Não disse que não acredito, Liwe. – Gowlin o tranquilizou. – Não vejo razão para duvidar do que diz. Afinal, nosso governador, se era o centro da ação da criatura, também o ouviu falar. Kenrick sentiu um temor lhe contaminando a posição autoritária ao perceber a atenção toda virando-se para ele. Fez força para não abaixar os olhos e respirou fundo algumas vezes antes de falar. - O que ele diz, por mais absurdo que pareça, é verdade. Acredito que, se a criatura não me quisesse vivo, eu teria sido morto antes que eles pudessem fazer algo... – disse ele. - Poucas vezes vimos uma criatura tão mortal. – disse Liwe, como completando as palavras do governador. - Você diz que a criatura que nos atacou era mais mortal que um gigante yotun? – falou Lorthon capciosamente. - Não, meu senhor... - Você por acaso já viu o Kraiken? – disse Lorthon, fitando Liwe sombriamente com seu único olho. Gowlin sorriu e lançou a Liwe um olhar de “tenha paciência”. Lorthon só demonstrava emoção em sua fala quando encontrava uma oportunidade de narrar seus antigos feitos. Antes que Liwe respondesse à pergunta, ele continuou. - Certa vez eu viajava com um grupo de piratas depois de ter sido traído por meus marinheiros, eles queriam os tesouros que eu tinha conquistado de um troll. – ele dizia empolgado. – Depois de uma tempestade, o navio perdeu o rumo e, quando amanheceu, vimos uma ilha. Navegamos apressadamente para atracar, pois as ondas tinham feito rachar o casco, e quando nos aproximamos, descobrimos que não era uma ilha. Os mil braços do Kraiken saíram da água e nos rodearam, não poderíamos fazer nada. Subi até o topo mais alto do mastro quando os braços da criatura ergueram o navio tirando-o da água e o torceram como minha mulher torcia roupas lavadas. – ele fez uma pausa para verificar o efeito do relato e continuou. – O navio se desfez em estilhaços e

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o topo do mastro foi atirado para longe. Flutuei por alguns dias agarrado no pedaço do mastro até ser encontrado por uns mercadores. Mas acredito que eram contrabandistas... - Mortal, Lorthon, por que a criatura pensava. – disse Gowlin interrompendo o amigo, era um dos poucos que tinham essa audácia. – Poderia até não ser a mais poderosa das criaturas, mas uma mente igual à de um homem que comanda um corpo tão poderoso é terrivelmente mortal. - De onde poderia ter vindo um ser tão estranho? – disse o governador. - Já enfrentamos seres terríveis, meu senhor, mas tudo o que vivemos não foi o bastante para conhecer todos os cantos do mundo. – disse Gowlin. – Podemos esperar por qualquer coisa. - O que esta criatura falou? – Lorthon indagou voltando ao tom impassível. - Disse que o governo desta vila iria mudar. – Liwe falou, não precisava se esforçar para lembrar. – Disse que o senhor a quem servia queria que nosso governador fosse levado até ele, e que se nós o matássemos, o senhor a quem ele servia saberia e viria nos destruir em vez de tomar o poder. - Ora, o que alguém poderia querer para cobiçar um povoado tão pequeno? – indagou Lorthon. - Que nome ele disse, Liwe, quando se referiu àquele a quem servia? – o governador perguntou. - O nome era Krondarg. Gowlin apertou o cabo de espada sobre o qual se apoiava e fechou os olhos numa reflexão, Lorthon sabia que ele passeava pelas lembranças de quando os dois eram jovens guerreiros. Sentiu um sobressalto ao ver a expressão do amigo se tornar padecente de alguma perturbação. Gowlin parecia preocupado, e isto estava à vista de todos; ele muito raramente se desfazia do sorriso. - Meu senhor? – chamou Liwe.


- Minhas memórias não são mais tão firmes como antigamente, por isso espero que eu esteja errado. - O nome Krondarg remete a que? – o governador perguntou compartilhando da preocupação. - Eu espero que minhas memórias estejam me traindo... – ele disse abrindo os olhos. – Me ajude a levantar, Liwe, preciso olhar nos livros. Liwe se aproximou e o ergueu pelo braço enquanto Gowlin se apoiava na bengala. Apesar da deficiência, se locomovia com agilidade e saiu da sala do governador indo descer as escadas em espiral. Liwe e Lorthon o seguiam de perto. Parou dois patamares abaixo, diante de uma porta pequena de madeira, a qual atravessaram sem que nada os contivesse, e, após esta, um curto corredor levava a uma porta de ferro pesada. Gowlin a destrancou com uma chave que tinha dentro das vestes e os três adentraram um recinto escuro e apertado. - Pegue uma das velas na escada. – Lorthon ordenou e Liwe obedeceu, saindo e voltando logo em seguida com uma vela grossa e calombosa. Logo que voltou, a luz âmbar revelou a pequena câmara quadrada onde estavam: paredes nas laterais, a porta de ferro atrás e logo à frente um portal em arco através do qual se vislumbrava uma velha prateleira com livros ainda mais velhos. A prateleira era curva, se ajustava no formato das paredes mais externas da torre, dando a volta na pequena câmara onde os três estavam. Ali ficavam posicionadas uma cadeira e uma mesa, sobre a qual um belo candelabro de prata exibia oito velas apagadas. Gowlin atravessou o arco batendo a bengala no chão e virou à direita, seguindo ao longo do corredor circular e Liwe o acompanhava duma distância que lhe dava espaço. À meia luz distinguiam-se volumes grandes e apenas uns poucos aparentavam ser mais novos, havia livros encadernados muito tempo antes de aquela vila existir, e uma prateleira mais

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alta comportava rolos de pergaminho amarelados. Quando completou metade da volta, parou e apontou com a bengala. - Aquele, Liwe, pegue-o. Liwe olhou para o livro que ele apontava no alto da prateleira mais alta. Esticou-se e o pegou, era pesado, quase tão largo quanto um palmo. Na capa escamada, feita de um couro esverdeado e quase negro, não havia qualquer letra inscrita. - Leve-o para a mesa. Voltaram para a câmara no centro da biblioteca e Liwe depositou o livro pesadamente sobre a mesa. Acendeu as velas do candelabro e uma luz firme cresceu ali. Gowlin, quase com a mesma dificuldade para se erguer, descansou sobre a cadeira e se encurvou sobre o livro. Abriu-o lançando no ar um odor incômodo, típico de objetos que ficam enfurnados por anos. - Qual o nome que você ouviu, Liwe? – pediu Gowlin. - Krondarg. – ele respondeu. Gowlin percorreu os olhos pelas páginas grossas e fragilizadas, a página era pintada com floreios nas bordas e as letras em que o livro fora escrito eram de uma caligrafia bela, cada palavra era uma obra de arte. Vez ou outra vislumbravam um desenho feito a tinta preta que tomava toda uma página. Após quase meia hora de busca, ele se empertigou na cadeira com uma expressão satisfatória. - Encontrou? – Lorthon perguntou. Liwe se encurvou para ver a página e se viu intrigado. Ali havia um nome desenhado, mas não era o de Krondarg. - Basthragg? – leu em tom de dúvida. - Sim... era este nome que eu procurava. - Leia, rapaz, e vai entender. – disse Lorthon. - Basthragg, a Chama do Gelo, rival dos Yotun, condenação dos homens. Rei das longínquas terras do distante oeste que hoje foi engolido pelo mar. Espalhou a destruição por séculos. Era capaz de liquidar hordas de guerreiros, conquistava dezenas de coroas, derretia castelos de pedra com o fogo de seu


sopro. Derretia o ouro que conquistava e nele se banhava. Os últimos homens que o viram o chamavam de Brilho da Morte. Liwe parou de falar e olhou para os dois anciãos um tanto estupefato. - Sim, Liwe, é disso que se trata. Continue. – disse Gowlin. - O bater de suas asas causava ondas no mar que engoliam os navios, seu rugido atemorizava os reis das duas bandas de sua vasta terra, cada qual em seu distante palácio. Desapareceu após enfrentar uma tropa enfurecida dos Yotun na sua última guerra contra os gigantes, entretanto jamais foi encontrado morto. Antes disso copulou com a terrível Yenatiengg e gerou cinco filhos: Basthron, Zierthorg, Brayorgg, Krondarg e Yendorsheim. - Aí está o senhor da criatura que procuramos, um dos filhos mais jovens de Basthragg, o antigo dragão da terra naufragada. – Gowlin falou. Liwe sentiu seu corpo ser tomado por um estado anestesiado, sua visão embaçou e os ouvidos pareceram tapados. Vacilou e se apoiou na mesa. - É terrível, eu sei. – falou Gowlin, compadecendo-se do jovem guerreiro. - Aquela criatura... disse que seremos destruídos por um dragão? – Liwe falou, recuperando-se. - Não um dragão qualquer, como aquelas bestas insanas que já foram domadas por reis audaciosos e usados como armas em batalha, não aquelas criaturas famintas e agressivas que atacam qualquer coisa que se aproxima de seu covil, não os devoradores de gado que são não muito dificilmente abatidos por uma balista operada por um guerreiro de boa mira. – Lorthon falou no tom de quando contava histórias. – Ele é um dos filhos de Basthragg. Seus filhos deram origem à raça de dragões que cobiçam poder, se aliam a reis enquanto dominam outros, que discutem com seus inimigos e a quem animais e até jovens moças já foram oferecidos como sacrifício.

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- Então o que Krondarg quer aqui nesta vila pequena? – Liwe repetiu a pergunta que Lorthon fizera antes. – Não temos rei, não temos um exército para servi-lo. - Me diga, jovem Liwe, o que há além do precipício do leste? – disse Gowlin em seu tom gentil. - Colinas, bosques e o oceano. - E o que domina sobre um grandioso rochedo que se pronuncia para o mar? Liwe sofreu um sobressalto. - O palácio do Rei. - Esta vila foi criada como base para os postos de vigilância, hoje abandonados, nos picos do oeste. – disse Lorthon. – É um dos primeiros bloqueios para proteger o reino, e também é de onde viriam os reforços caso o castelo fosse atacado pelo norte, pelo sul ou pelo mar. Se ele não tiver o apoio que oferecemos, estará sozinho quando o exército de Krondarg surgir. - Esta vila não tem capacidade para defender o reino. – contrapôs Liwe. - Mas já teve, um dia. – disse Gowlin. – Quando os inimigos eram mais próximos, e quando havia outras vilas como esta sobre essas montanhas. - Como vamos nos defender de um dragão? – disse Liwe quase num clamor desesperado. – O senhor já enfrentou dragões, nos oriente. – ele falou se dirigindo a Gowlin. - Já matei mais dragões do que os dedos que me sobraram nas mãos, Liwe. Lorthon matou ainda mais. Porém, nenhum de nós esteve perto de um desafio tão grande quanto um filho de Basthragg. – disse Gowlin. – Não temos o que fazer.



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