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Copyright © 2016 Todos os direitos reservados a: Drago Editorial nome da obra:

O Herói Que Queria Ter Medo autor:

Anderson Câmara revisão:

Diego de Lima capa:

Eduardo Santos projeto gráfico

Eduardo Santos

& diagramação:

editores responsáveis:

Diego de Lima & Gustavo Drago

Câmara, Anderson O Herói Que Queria Ter Medo / Anderson Câmara 1ª edição - Rio de Janeiro, RJ - Drago Editorial, 2016. ISBN: 978-85-69030-17-1 1 - Ficção, 2 - Literatura Brasileira

Este livro é uma obra de ficção. Nomes e acontecimentos são frutos da imaginação do autor ou usados de modo ficcional. Ou seja: qualquer semelhança dos personagens com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes sem a autorização por escrito da editora.




Aos meus amigos J. Nilson Jr, Agathe Fernandes, e ao Jason; meus parceiros no compartilhar de contos.



i

a torre branca

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ii

krondarg

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iii

instruções

45

iv

a névoa e o abutre

61

v

halina

75

vi

a trilha que não estava no chão

91

vii

olhos de todas as cores

105

viii as encostas de galelstein

119

vx

a torre mais baixa

133

x

aliança

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xi

o fim da espera

163

xii

o martelador de espadas

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capítulo i

A TorRe braNca



Amanhecia. O sol surgia dourando os picos acentuados dos montes, fazendo reluzir essa linha ondulada que divida o céu da terra, e lançava nas nuvens suas cores quentes. A crescente claridade revelava as belas e ameaçadoras encostas pedregosas abaixo. Hendor sentiu na face branca o confortável calor que aquele alvorecer trazia e respirava o puro ar da manhã, aspirava-o abundantemente e sentia com prazer os pulmões cheios. A poucos centímetros da ponta de suas botas a terra era engolida por um colossal abismo que deixava seu observador pequeno como um inseto. Hendor era um homem grande, jovem, quase com três décadas de existência; começava todos os dias desde sua infância ali, dando as boas vindas ao sol ofuscante. Entre a beira do abismo e os montes de trás dos quais o sol se revelava, um vale negro e acidentado se estendia por longa distância em direção ao leste; seu centro era tão profundo que ninguém na vila jamais tinha visto o fundo, mesmo ao meio dia o sol não vencia aquelas trevas. O jovem homem olhou cada reentrância e saliência nas rochas, a pouca e pequena vegetação que escapava pelas brechas, antes de resolver voltar à vila; já conhecia cada uma daquelas rugas da terra e os ninhos dos pássaros que saíam na paisagem junto com ele para receber a primeira luz do dia. Deu um último sorriso ao sol e se virou.

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Diante dele uma barreira de ciprestes o esperava a alguns metros do precipício, embolou a longa capa de pele de bode e se pôs a correr contra o bosque. O ar frio lhe alisava as faces marcadas de algumas finas cicatrizes e lhe obrigava a semicerrar os olhos verdes. Os cabelos louros e cacheados, vencidos pela barreira do ar, se estendiam na direção da nuca. Hendor saltava sobre troncos caídos e de cima de rochas altas, seus pés feriam a turfa e sua silhueta volumosa se metia entre os troncos retos com agilidade. Em pouco tempo se viu subindo um aclive que o tirou de dentro do bosque. Quando alcançou o topo, a visão do vilarejo se abriu abaixo. Era construído num vale plano cercado por grandes rochas escuras e frias, um muro feito de troncos o cercava desenhando-lhe um contorno irregular e vários arvoredos se viam ao redor. Os telhados de barro ainda não tinham sido tocados pelo sol, e muito menos suas paredes cinzentas ou suas ruas de terra batida, mas a grande torre branca no centro reluzia. Era apoiada numa grande rocha pontiaguda e fina, que por si mesma já lembrara uma torre aos fundadores daquele povoado. Ali em cima, atrás das cortinas vermelhas, debaixo do telhado alaranjado, entre portas de cedro trazidas de muito longe, morava o governador da vila: detentor de um título de nobreza que não o tornava nada no palácio do rei mas o fazia ser tratado como rei no distante topo daquela montanha. Hendor fez com semelhante velocidade o trajeto do topo da colina até a planície diante dos portões, auxiliado pela gravidade, e ergueu o rosto para o guarda no alto da barreira. - Voltou bem rápido, jovem Hendor! – disse entusiasmado o guarda e em seguida deu ordem para abrir o portão. Hendor se viu numa rua que descia para dentro do vale e o som do início do dia do povo lhe alcançou os ouvidos. As residências se encostavam umas às outras e acompanhavam a rua numa curva aberta que mergulhava para dentro do vilarejo. A torre branca do governador era sempre visível.


O jovem desceu a rua, constantemente recebia cumprimentos animados dos moradores que ali transitavam e dos comerciantes que iniciavam sua jornada de trabalho. Umas crianças de pouco mais de cinco anos correram de dentro de uma casa e o cercaram, gritando e falando todas ao mesmo tempo. Ele parou e ria enquanto todas pediam que as erguesse nos braços, uns dois pequenos tentaram alcançar as duas espadas curtas que ele tinha embainhadas ao cinto largo de couro, cujos punhos negros despontavam de baixo da capa, mas ele logo as afastou. Pegava as crianças e as jogava no ar amparando-as logo em seguida, causando-lhes gargalhadas deliciosas de se ouvir. Em um minuto desvencilhou-se delas e prosseguiu em seu caminho. Fez alguns passos rindo, acenando para donzelas que respondiam com risadas tímidas e cobertas com as mãos pequenas, e logo em seguida um homem grande embarreirou seu caminho. Apesar do frio, os braços largos estavam nus sob a capa de peles. Encarava Hendor de cima dos seus dois metros com uma expressão fechada, a pele morena era riscada de três largas cicatrizes na testa e os longos cachos negros estavam amarrados atrás da cabeça. Apesar da aparência um tanto intimidadora, Hendor abriu seu primeiro bom sorriso do dia. - Bom dia, Blartos. – Hendor cumprimentou contrastando seu habitual bom humor com o ar de seriedade do grande homem. - Liwe mandou-me te chamar. – disse Blartos, sua voz era grave e arrastada, áspera. Algumas vezes sua fala lembrava um rosnado ou arroto, o que causava risadas em alguns homens e reações de aversão em algumas mulheres. - Liwe pensa que é líder... – disse Hendor com uma risada curta enquanto dava a volta em Blartos e seguida descendo a rua. O homem o seguiu. - Parece que alguma coisa foi vista nos picos do oeste. O tom harmonioso e despreocupado de Hendor desapareceu como se nunca tivesse existido. - O que foi? Alguma fogueira de sindrols outra vez?

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- Não, o vigia da torre disse que viu uma sombra descendo sobre o pico mais alto logo assim que o sol surgiu. – disse Blartos com voz monótona – O governador nos disse para verificar. - Ele paga soldados para que? - Não é para enfrentar sindrols, tenha certeza. - Certo... – Hendor andava pensativo. Aumentou o ritmo do caminhar sem perceber, enquanto olhava as facas apontadas para o céu que eram os montes que emparedavam a paisagem na direção do oeste. – Varkel já está lá? - Sim. - Ele não viu alguma coisa? - Não, mesmo assim o governador quer que olhemos de perto. Algumas esquinas, ruas, becos e uma praça depois, os dois estavam junto das bases da torre branca. A rocha que lhe servia de apoio era quase totalmente sua base, de modo que a rocha natural parecia se misturar com os tijolos e blocos dando o aspecto de a torre sair de dentro da rocha como se sai da lama. A entrada era enfeitada como os portões de um palácio: o umbral do grande portão era adornado com floreios em alto relevo, obra de um artista habilidoso. A porta, apesar de ser de madeira, era dourada: ouro derretido que a banhava. Um corredor de dezesseis guardas os conduzia até os portões dourados e não lhes ofereceu qualquer resistência. Atravessaram a porta e subiram por degraus dispostos em espiral, iluminados por castiçais nas paredes. Foram ignorando os acessos a todos os patamares e logo atingiram o alto da torre. A entrada daquele patamar era também protegida por soldados de armadura completa, elmo e lança. Ali eles pararam. - Avise que estamos aqui. – disse Hendor a um dos guardas. Este, com sua mão coberta de metal, bateu à porta três vezes. Alguns segundos depois outro guarda abriu uma pequena portinhola à altura dos olhos e observou os dois jovens de dentro do recinto. Ouviram-no dizer algo ininteligível e destrancar os vários ferrolhos da porta.


- Sejam bem vindos, meus senhores. – disse o guarda quando desbloqueou o caminho. Entraram, o lugar era aquecido e iluminado por um grande número de velas dispostas em três mesas distribuídas pela parede circular que envolvia uma escrivaninha. Havia vários armários e prateleiras repletas de volumes antigos e uma cama escondida atrás de uma cortina branca. Havia também janelas, mas estavam fechadas e acortinadas. - Aí está o destemido. – foram as primeiras palavras ditas ali, com profundo desdém. Liwe, quem dissera as palavras, era um homem sem qualquer fio de cabelo no rosto ou cabeça. Uma espada longa embainhada cruzava suas costas e ele vestia-se com lã e couro negros do pescoço até os pés, o que contrastava com sua pele pálida. Era o mais velho daquele grupo, e ainda assim era jovem. Diferente de todos os outros, não carregava nenhuma cicatriz na face. - Bom dia, Liwe, também é bom te ver. – Hendor respondeu sem olhar e se dirigiu ao homem que se sentava atrás da escrivaninha. – O que o perturba, meu senhor? - Creio que Blartos já o tenha posto a par da situação. – falou o governador. Ele se chamava Kenrick, mas era chamado de “senhor” com tanta frequência que alguns nem sabiam seu nome. Era um homem de pouco mais de cinquenta anos com os cabelos saudáveis e ainda negros, usava um cavanhaque no queixo e suas vestes eram largas e bordadas com fios de ouro; brancas como a torre. Passava a maior parte do tempo num tom de seriedade que ele praticara por muitos anos, e ali atrás daquela dureza facial ele já escondera desde o mais profundo pavor à mais prazerosa alegria; era inapropriado ser tão eloquente no círculo nobre que ele frequentava, e trazia esse instinto quando era o único nobre naquela vila longínqua. - Uma sombra pousando sobre os montes do oeste. – Hendor repetiu.

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- Felizmente, Hendor, eu já estou ciente e já decidi o que vamos fazer. – disse Liwe. Hendor sentiu a chama do orgulho se acendendo no peito e pedindo desesperadamente para não ser soprada, mas ignorou. - Quando Varkel retornar, vocês irão até lá. – disse o governador. – Vocês sabem bem como agir. Esta vila precisa de vocês e responderá com toda a gratidão que estiver ao nosso alcance.

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- Ele sempre diz isso. – Hendor falava rindo enquanto os quatro subiam a rua que levava aos portões do vilarejo. Liwe ia à frente, o peito cheio sob os olhos do povo. Hendor e Varkel, um rapaz de baixa estatura com os cabelos mais louros que os de Hendor e um arco às costas, iam lado a lado enquanto o grande Blartos arrastava no chão um enorme martelo à retaguarda. Ouvindo o som do enorme peso chiando na terra, Hendor se virou. - Está bem, meu amigo? - Estou com sono. – respondeu a voz bruta. – Ainda não comi nada. - Talvez quando matarmos, seja lá o que for, você possa comê-lo. – Varkel falou rindo. - Ou talvez eu... – mas foi interrompido por um bocejo. Sob os olhares curiosos, esperançosos e alegres dos habitantes da vila, o grupo passou pelos portões, que se fecharam atrás deles. O quarteto pôs-se a andar ladeando o muro de madeira, era preciso ainda circular a cidade para estar de frente para o oeste. - Escutem. – começou Liwe. – Enquanto estivermos lá ouçam o que eu disser, e sigam minhas ordens. - Sim, senhor. – disseram Hendor e Varkel em uníssono, num tom irônico que Liwe não notou. - Varkel irá na frente, pois tem os melhores olhos e Blartos... – calou-se quando um estridente grito feminino irrompeu de dentro dos muros.


- O que foi isso? – disse Varkel, todos se olharam confusos e espantados. Hendor se afastou correndo na direção da colina que havia entre o bosque e os portões da vila. Quando chegou no topo, os outros três o imitavam. Dali era possível ver todo o vale. - Ah, não. – Liwe exclamou. Algo voava na direção da vila, vinda dos picos do oeste. A distância não permitia que vissem mais que uma sombra bronzeada manchando o céu. - Tem asas... – disse Varkel apertando os olhos. – Lembra um morcego enorme. Rápido como o vento, a criatura se aproximou, voou sobre metade das casas e pousou na base da torre. - Vamos! – Liwe gritou pondo-se a correr colina abaixo. Varkel era o mais veloz e alcançou os portões antes de todos, logo deu a ordem para que o abrissem. Quando os demais chegaram, já podiam se esgueirar pela brecha que o portão abrira em seu lento movimento. - Aquilo esperou que nós saíssemos para entrar? – dizia Liwe enquanto corriam rua abaixo. Blartos pusera o enorme martelo no ombro e dava passadas tão largas que cada uma valia por quatro de seus companheiros. - Se sim, não é o tipo de inimigo que costumamos enfrentar. – Hendor respondeu. Depois de vencer todos os obstáculos, passando por pessoas assustadas que vinham da direção oposta, finalmente chegaram outra vez às bases da torre branca. Os dezesseis guardas não estavam mais ali, as portas douradas jaziam ao chão e um corpo mutilado sangrava sob o umbral. Os demais pararam de correr quando viram o guarda morto, mas Hendor prosseguiu enquanto Liwe exclamava alguma praga. Saltou sobre o corpo e parou ali. Imediatamente ouviu gritos de dor e o som das espadas em combate e pôs-se a subir as escadas. Saltava os degraus de três em três. Na primeira volta da escada espiralada viu uma cabeça humana

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rolando degraus abaixo, e logo em seguida um braço que segurava ainda uma espada repousava num degrau. No primeiro patamar viu o corpo a que pertencia o braço e outros dois guardas jazendo sobre poças de sangue, as armaduras rasgadas como se fossem feitas de pergaminho e os rostos abertos em cortes provenientes de garras afiadas. Continuou subindo, e as cenas da carnificina sempre o encontravam, todos os quinze guardas restantes estavam despedaçados e mutilados ao longo da escada. Ouviu as vozes de seus amigos gritando lá de baixo, chamando-o, mas ignorou. Atingiu, enfim, o último patamar. O guarda da esquerda ainda vivia, sangrava pelo pescoço numa ferida tão brutal que sua mão tremida ali não adiantava nada. O guarda da direita tinha a espada jogada ao chão e o ventre perfurado pelas garras da criatura. Ali sim, Hendor parou. Apesar dos guardas, a primeira coisa que viu foram as enormes asas que realmente lembravam as de um morcego. Era do tamanho de Blartos, aquelas asas se abriam das costas de uma silhueta humana, sua pele cinzenta e cor de terra era enrugada e coberta de pelos nos ombros e braços, cada um dos cinco dedos tinha uma garra curva de vinte centímetros e na cabeça havia duas grandes orelhas de morcego pontiagudas. - Você para aqui. – disse Hendor com firmeza imperiosa, as duas espadas curtas desembainhadas apontavam para o monstro numa postura de combate. Ele esperava qualquer reação, menos uma risada seca e áspera. - Vocês são rápidos. – disse ele virando-se lentamente de frente para Hendor e encarando seus desafiadores e destemidos olhos verdes. O guarda caiu para trás clamando por socorro com os olhos, seu sangue se derramou através dos dedos que cobriam o ferimento. - E você é terrivelmente feio. – Hendor provocou A criatura parecia um homem, era forte e seu rosto tinha um nariz um pouco aberto demais para um humano. Os


olhos vítreos eram de um bronzeado fechado e de pupilas grandes o bastante para torná-los totalmente escuros. Tinha sobrancelhas espessas que quase se misturavam ao volume de cabelos desgrenhados e grossos na cabeça. Apesar de parecer um monstro, vestia-se da cintura para baixo. - Onde estão seus amigos? Achei que eu teria um desafio! - Eles surgirão quando você não estiver esperando. - Claro, devem estar escondidos com medo de ter o mesmo fim destes guardas. – ele saboreou com os olhos o sofrimento de suas vítimas por um segundo e voltou-se outra vez para Hendor. – Mas você, meu rapaz, ouvi que havia um guerreiro nesta vila que não temia nada. Hendor nada respondeu, apenas continuou fitando a criatura com seriedade. - O que você quer? - Creio que seja óbvio, se vim até o alto da torre onde seu governador está defecando nas próprias vestes enquanto ouve minha voz. – disse ele com uma curta risada de deboche. – O governo daqui vai mudar, jovem guerreiro, seu novo senhor, se você sobreviver para ver, será muito maior que este. - Não enquanto eu estiver aqui! – Hendor bradou enquanto atacava. A criatura usou as garras para se defender das lâminas, Hendor investia alternando entre as armas, obrigando a criatura a bloquear ataques ao rosto e ao corpo simultaneamente. Hendor girava e fazia o vento assobiar quando era cortado pelas espadas, mas a criatura não deixava nada passar. O único ataque que o monstro empregou o derrubou: um chute no baixo ventre que o jogou contra a parede atrás e o fez rolar alguns degraus antes de conseguir parar. Hendor bufou com o esforço para se levantar rápido enquanto ouvia o estrondo da porta sendo arrombada. Encontrou apenas uma de suas espadas e subiu novamente. Parou sob o umbral e estacou quando viu.

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- O sangue humano é precioso, meu rapaz. – disse a criatura segurando o governador pelo pescoço com sua mão direita enquanto a esquerda deslizava as pontas das garras pela testa do homem. O sangue escorria-lhe pela face e ele estremecia sem ousar gritar. O pavor era evidente em seus olhos. A criatura era tão grande para ele que se encurvava sobre o nobre. - Solte-o agora! – ordenou. A criatura olhou, Hendor cobria uma boa parte da pequena porta e lhe apontava uma única espada curta e reta. A mesma valentia ainda estava em sua face mesmo que a têmpora estivesse enegrecida por uma pancada contra os degraus. - O que vai fazer, jovem guerreiro? De onde está, sua espada não chega a mim antes que minhas garras cheguem ao coração deste homem. – disse ele tocando o peito do governador com a ponta das garras. Subitamente Varkel surgiu por cima do ombro de Hendor e atirou uma flecha que atingiu o braço esquerdo da criatura. A flecha o atravessou e fez a criatura emitir um grito agudo e estridente que causou tontura em todos dentro da torre. Hendor saiu da porta e Varkel atirou outra flecha. O monstro tentava extrair de si a primeira flecha quando a segunda transpassou os dois membros unindo um braço ao outro. Varkel saiu da porta e por ali entrou Blartos. O quase gigante entrou fazendo o chão estremecer e dando um grito de batalha que estremeceria também os ânimos de seus inimigos. Seu martelo atingiu a criatura na cabeça derrubando-a. - Você então gosta de cortar as pessoas com essas garras? – disse Blartos olhando-o de cima. Em seguida desceu o enorme peso do martelo sobre as mãos da criatura. O monstro gritou outra vez e as garras se estilhaçaram. O governador se recolhera até o outro lado do recinto e observava dali, ainda tremendo e limpando o sangue do rosto. Liwe entrou rindo da criatura caída ao chão. - Você zomba antes da hora. – disse ele. – Mas confesso


que estou surpreso por ver uma aberração como você sendo mais inteligente que a maioria dos homens que conheço. – tinha nas mãos a espada longa, e a girava como se estivesse entediado. A criatura o olhava enfurecido. – Lembra-se daquele guarda que você decepou? Era meu vizinho. – dizendo isso depositou lenta e cuidadosamente a ponta da espada sobre o pescoço da criatura. – O que você quer aqui? - Nada que vocês fizerem vai impedir a glória do poderoso Krondarg. – disse ele. – Se ele não governar esta vila, vocês todos serão exterminados. Mate-me agora, e será sua derrota, meu senhor saberá que o fizeram. Se eu não levar a ele seu governador, se eu não voltar, ele destruirá esta vila. Vocês não tem escolha. - Eu acho que você não está em posição de conquistar qualquer coisa para seu senhor. Deixe que ele venha, ele terá o mesmo destino que você. - Será? Num movimento inesperado, a criatura girou no chão impulsionada pelas asas. Seus pés derrubaram Liwe e seus braços quebraram a flecha que os prendia. Levantou-se e correu na direção da janela. Hendor foi atrás. O monstro saltou arrebentando a madeira e o vidro e abriu as asas planando. - Hendor, não! – Varkel gritou, mas o jovem se empoleirou na janela, se inclinou para a frente e saltou. Liwe praguejou. - Ele vai acabar morrendo assim! Varkel correu para a janela e viu Hendor agarrado às costas da criatura que voava em direção ao leste. Hendor segurava firme os pelos compridos do monstro enquanto planavam sobre o vilarejo, o ar era barulhento e frio, a paisagem abaixo passava depressa. O peso o fazia perder altitude e a presença de Hendor nas costas da besta não permitiam que as asas se movimentassem para recuperar o

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voo. Com a única espada começou a golpear as costas do monstro, mas a lâmina pouco penetrava naquela pele grossa e carne dura. O monstro girou quando passaram por cima do muro e pela colina, tentando derrubar seu adversário, mas Hendor era forte nas mãos. Sobrevoaram o bosque e ali ele conseguiu fazer a espada entrar fundo no corpo da criatura e sentiu a ponta saindo no outro lado. A criatura se debateu, estremeceu e urrou estridentemente outra vez, e foi ouvido por todas as pessoas da vila. Os outros três, ajuntados em frente à janela, assistiram seu amigo, nesses curtos instantes, lutar com o monstro no ar e ambos caírem para trás do bosque, desaparecendo na enorme boca aberta do abismo. - Ah, não. – disse Liwe pela segunda vez naquele dia.

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capĂ­tulo ii

KrondaRg



De pé à beira do abismo, Liwe, Varkel e Blartos olhavam para as profundezas da garganta da montanha, ainda inquietos e um tanto estupefatos pelo que tinham visto pela janela da torre. Surpresos não estavam, já tinham passado por situações semelhantes tantas vezes que a sensação mais comum ali era a apreensão, e até uma confortável impaciência. Não diziam uma palavra, mas cada um sabia o que o outro pensava. A parte mais consciente de suas mentes, a que os permitia ser impacientes com o conforto da esperança, desejava e aguardava ouvir a sonora gargalhada de Hendor irrompendo de dentro do abismo, mas a parte mais profunda de seus pensamentos, a parte que quase se escondia da consciência, imaginava se aquele teria sido o último ato heroico do guerreiro que não tinha medo. Esperavam apreensivamente que ele surgisse escalando o paredão, e temiam profundamente que esperassem inutilmente. Sim, já tinham passado por aquilo muitas vezes. Hendor nem sequer hesitava diante dos desafios que lhe surgiam, nem mesmo aquele suave tremor que tenta preservar a vida dos valentes. Os quatro eram guerreiros corajosos, valentes e eficientes, razão pela qual encaravam as piores ameaças, aquelas que soldados comuns não seriam capazes de enfrentar, mas Hendor se metia nos mais fétidos e apertados

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buracos, provocava a ira dos maiores brutamontes, se pendurava das mais vertiginosas alturas e ria de cada uma dessas loucuras. Liwe detestava o modo como nada o impedia, e o modo como debochava das criaturas mais terríveis. E aquele modo de agir já o pusera em perigo mortal mais do que seus amigos eram capazes de lembrar. Na maioria das tarefas que o quarteto assumira, Hendor tinha sido o herói e Blartos, Varkel e Liwe, seus protetores. O tempo passava enquanto os olhos atentos vigiavam a escuridão ao sinal de movimento, todos os sentidos clamavam pela menor alteração dos fatos. Depois de pouco mais de uma hora de espera, Liwe disse com pesar: - Talvez... nosso amigo tenha ido para o Valhala. Depois que ele disse isso, ficaram ainda meia hora diante dos restos de esperança que se dissolviam gradativamente, até que Varkel foi o primeiro a levantar os olhos de volta para o céu. Sob o olhar condenatório e condescente dos amigos, pois pensavam como ele ousaria ser o primeiro a aceitar que Hendor não voltaria, apesar de Liwe ter dito primeiro, Varkel deu meia volta e se pôs a caminhar na direção do bosque. Liwe e Blartos entreolharam-se em silêncio e imitaram-no. O sol ainda não atingira aquela parte do abismo. Suas costas doíam como quando dormia torto, como depois das festas regadas a hidromel; estava caído sobre alguma coisa que não parecia ter sido feita para dormir. Hendor abriu os olhos lentamente e, com a vista embaçada, se viu aos pés de um imenso paredão ao topo do qual o céu brilhava ofuscante. A muralha de pedra estava iluminada até metade, a rocha emergia das sombras e brilhava sob o sol; minerais translúcidos nela incrustados reluziam. A escuridão em meio ao dia foi o que o fez concluir que tinha conseguido chegar tão fundo no precipício como nunca chegara. Abriu um largo sorriso ante a esta percepção. Depois o sorriso se deformou quando a dor se mostrou presente.


Em meio ao frio do fundo sentiu o joelho fisgado, uma dor forte e sufocante embaixo do braço esquerdo e ao longo do flanco. A cabeça doía tanto que ele não se decidia onde pôr a mão. Sentiu o gosto do sangue na boca e o seu calor empapando as vestes. - Como... ? – balbuciou, e o peito ardeu pelo esforço de falar. Então sua memória devolveu as lembranças dos últimos momentos. Lembrou-se de ter sido engolido pelo abismo voando nas costas da criatura, que perdeu a direção quando foi ferido pela espada e se jogou contra o paredão do precipício, onde ambos desceram se arrastando na rocha, sendo golpeados por galhos que cresciam na antiga face dura. Depois de rolar sobre as pedras e plantas que se projetavam do paredão, finalmente pararam quando a parede se encurvou para se tornar um chão plano, pedregoso e úmido. Subitamente percebeu que seu leito totalmente inapropriado era o corpo da criatura. Lentamente, com esforço, ganidos e suspiros doloridos, Hendor se pôs de pé e vislumbrou o monstro. Se não houvesse uma espada atravessando seu corpo, provavelmente a criatura estaria num estado melhor que ele. Hendor riu cuspindo gotículas de sangue. Não movia o braço esquerdo, pois a dor era lancinante quando o fazia. Olhou novamente para o alto do abismo. - Como vou chegar lá? Olhou as distâncias e viu que aquela era a face mais íngreme do abismo, havia encostas mais suaves e permeadas de pedras grandes, pontilhadas de galhos que se encurvavam para fora da rocha. Tendo ainda um braço e uma perna, concluiu que seria capaz de escalar por ali. Arrastando os pés e tendo dificuldades para se equilibrar, deixou para trás o cadáver e partiu na longa caminhada pelo fundo da garganta. *** Quem morria no abismo não podia ser sepultado.

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Ao fim daquele dia, a ofuscante luz do sol se entrecortava atrás das montanhas do oeste, Liwe fazia uma marcha contida e solene através de um corredor de pessoas; o ritmo lento de seus passos, a expressão dura e pesarosa e a cabeça baixa já denunciariam a qualquer estrangeiro do que se tratava aquele gesto. O vento lento e cada vez mais frio envolvia e fazia estremecer os soturnos observadores. Lá estavam o governador Kenrick, Blartos e Varkel, outras pessoas próximas de Hendor e outras muitas que o admiravam de longe e de ouvir dele falar. Não havia ali nenhum pai, mãe ou irmão. Era uma praça pequena e circular, no centro da qual havia um pedestal de pedra que já fora usado para diversos fins: discursos dos porta-vozes do governador, discursos de amotinados e revoltados, condenação pública de criminosos. Mas naquele dia comportava apenas um amontoamento de lenha coberta de óleo. A torre branca acompanhava o momento de perto. Liwe carregava nas mãos um objeto embrulhado num tecido vermelho e assumia uma postura séria e grave que combinava com o tom sombrio de sua face. Do corredor as pessoas formaram um círculo ao redor de Liwe quando este parou em frente ao pedestal e a lenha. Desembrulhou o objeto que sob a vista de todos se revelou sendo a espada que Hendor deixara cair. Disse umas poucas palavras rasas e enfiou a espada de ponta para baixo no meio da lenha. Os presentes na cerimônia fúnebre baixaram a cabeça em respeito, alguns em pranto, quando Varkel entrou no círculo com um archote inflamado; o sol era totalmente engolido pelas montanhas naquele momento e a luz fulgurante das chamas se deitou sobre a praça gerando longas sombras num formato radial. - Não ousem queimar minha espada! – ouviu-se uma voz potente e urgente. Todos olharam para a direção de onde ouviram e ali estava Hendor, fazendo o possível para andar apressado em meio aos ferimentos. Estava coberto de sujeira, sangue seco,


contusões e feridas abertas, os longos cabelos desarrumados, as vestes puídas e rasgadas. O joelho ferido fazendo-o mancar e a dor o contorcendo seu rosto. - Hendor! – Varkel largou a tocha e correu em sua direção. - Desgraçado... como ainda está vivo? – balbuciou Liwe, surpreso, ainda parado diante da lenha. O círculo se alvoroçou e algumas pessoas se afastaram irritadas enquanto outras envolviam o jovem guerreiro em exultante alegria, gritando seu nome em uníssono. Hendor foi deixado a noite inteira sob os cuidados dos médicos da vila: um casal de irmãos que já tratava as pessoas dali havia muito tempo, tanto tempo que tinham visto aquele herói crescer e tinham tratado cada ferimento que ele adquirira. Conheciam suas cicatrizes, lembravam suas poucas doenças e muito o tinham repreendido por se ferir tanto. Ainda se surpreendiam com sua capacidade de se recuperar mais rápido que todos os outros. Sob a lua daquela madrugada, os guardas mortos na torre foram queimados no lado de fora do muro por seus familiares. *** Aquela manhã foi uma das poucas em que ele não começara observando o sol nascente. O médico o proibira de usar o joelho com força e de mover o braço esquerdo por muito tempo, o restante dos ferimentos fora resolvido com algumas tiras de pano e água limpa. Ainda doía quando falava e foi alimentado com sopa. Enquanto Hendor se recuperava, no alto da torre branca Liwe relatava os fatos da véspera ao conselho do governador Kenrick. Estava de pé diante da mesa do nobre, que o fitava com seriedade. Tentava com a autoridade sobrepor a fraqueza que aqueles cortes frescos na testa evocavam. Junto a ele sentavam-se dois homens de mais idade. Um

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era cego do olho direito, sobre o qual passava uma faixa branca que escondia uma feia desfiguração, os cabelos brancos eram fortes e cacheados, volumosos. Conseguia, com um único olho saudável, transmitir um desconforto em quem olhasse com sua expressão fria e totalmente analítica. O outro tinha os mesmos cachos fortes, mas ainda via-se algum resquício de louro dourado entre os fios prateados. Este era o oposto do outro, passava ao interlocutor uma paz e tranquilidade que quase fazia um culpado se sentir inocente, e sempre parecia estar sorrindo. Não tinha a perna esquerda e na mão direita encontrava-se apenas o polegar e o indicador. Um velho punho de espada de duas mãos fora adaptado para a bengala que ele usava para se apoiar. Junto de seu grupo, Liwe exercia a autoridade que tinha por ser o mais velho, contudo diante de Lorthon e Gowlin ele sentia-se outra vez como um jovem recém saído da infância. - Espero que tenha um bom motivo para ter-me feito subir essas escadas, Liwe. – disse Lorthon, sem demonstrar nenhuma raiva, apesar da queixa. – Não entendo por que o ataque de um monstro sanguinário faminto seja motivo para convocar o conselho. - Meu senhor, a questão é exatamente isso. – disse Liwe, contido. – Não vos chamaria se não tivesse algo realmente importante a relatar. - Pois relate-o, meu jovem. – disse Gowlin, amigavelmente. - A criatura que invadiu a torre não queria apenas satisfazer sua fome, ou sede. Aquilo falava tão bem quanto um homem, pensava como um guerreiro e até zombava de nós. - Um animal inteligente, você diz? – Lorthon repetiu, com um leve sentido de incredulidade. - Não questione os olhos dos jovens nem a sabedoria dos velhos. – disse Gowlin, percebendo o tom de ironia que poucas pessoas conseguiam captar na voz inexpressiva de Lorthon. - Meu senhor, se não acredita em mim...


- Não disse que não acredito, Liwe. – Gowlin o tranquilizou. – Não vejo razão para duvidar do que diz. Afinal, nosso governador, se era o centro da ação da criatura, também o ouviu falar. Kenrick sentiu um temor lhe contaminando a posição autoritária ao perceber a atenção toda virando-se para ele. Fez força para não abaixar os olhos e respirou fundo algumas vezes antes de falar. - O que ele diz, por mais absurdo que pareça, é verdade. Acredito que, se a criatura não me quisesse vivo, eu teria sido morto antes que eles pudessem fazer algo... – disse ele. - Poucas vezes vimos uma criatura tão mortal. – disse Liwe, como completando as palavras do governador. - Você diz que a criatura que nos atacou era mais mortal que um gigante yotun? – falou Lorthon capciosamente. - Não, meu senhor... - Você por acaso já viu o Kraiken? – disse Lorthon, fitando Liwe sombriamente com seu único olho. Gowlin sorriu e lançou a Liwe um olhar de “tenha paciência”. Lorthon só demonstrava emoção em sua fala quando encontrava uma oportunidade de narrar seus antigos feitos. Antes que Liwe respondesse à pergunta, ele continuou. - Certa vez eu viajava com um grupo de piratas depois de ter sido traído por meus marinheiros, eles queriam os tesouros que eu tinha conquistado de um troll. – ele dizia empolgado. – Depois de uma tempestade, o navio perdeu o rumo e, quando amanheceu, vimos uma ilha. Navegamos apressadamente para atracar, pois as ondas tinham feito rachar o casco, e quando nos aproximamos, descobrimos que não era uma ilha. Os mil braços do Kraiken saíram da água e nos rodearam, não poderíamos fazer nada. Subi até o topo mais alto do mastro quando os braços da criatura ergueram o navio tirando-o da água e o torceram como minha mulher torcia roupas lavadas. – ele fez uma pausa para verificar o efeito do relato e continuou. – O navio se desfez em estilhaços e

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o topo do mastro foi atirado para longe. Flutuei por alguns dias agarrado no pedaço do mastro até ser encontrado por uns mercadores. Mas acredito que eram contrabandistas... - Mortal, Lorthon, por que a criatura pensava. – disse Gowlin interrompendo o amigo, era um dos poucos que tinham essa audácia. – Poderia até não ser a mais poderosa das criaturas, mas uma mente igual à de um homem que comanda um corpo tão poderoso é terrivelmente mortal. - De onde poderia ter vindo um ser tão estranho? – disse o governador. - Já enfrentamos seres terríveis, meu senhor, mas tudo o que vivemos não foi o bastante para conhecer todos os cantos do mundo. – disse Gowlin. – Podemos esperar por qualquer coisa. - O que esta criatura falou? – Lorthon indagou voltando ao tom impassível. - Disse que o governo desta vila iria mudar. – Liwe falou, não precisava se esforçar para lembrar. – Disse que o senhor a quem servia queria que nosso governador fosse levado até ele, e que se nós o matássemos, o senhor a quem ele servia saberia e viria nos destruir em vez de tomar o poder. - Ora, o que alguém poderia querer para cobiçar um povoado tão pequeno? – indagou Lorthon. - Que nome ele disse, Liwe, quando se referiu àquele a quem servia? – o governador perguntou. - O nome era Krondarg. Gowlin apertou o cabo de espada sobre o qual se apoiava e fechou os olhos numa reflexão, Lorthon sabia que ele passeava pelas lembranças de quando os dois eram jovens guerreiros. Sentiu um sobressalto ao ver a expressão do amigo se tornar padecente de alguma perturbação. Gowlin parecia preocupado, e isto estava à vista de todos; ele muito raramente se desfazia do sorriso. - Meu senhor? – chamou Liwe.


- Minhas memórias não são mais tão firmes como antigamente, por isso espero que eu esteja errado. - O nome Krondarg remete a que? – o governador perguntou compartilhando da preocupação. - Eu espero que minhas memórias estejam me traindo... – ele disse abrindo os olhos. – Me ajude a levantar, Liwe, preciso olhar nos livros. Liwe se aproximou e o ergueu pelo braço enquanto Gowlin se apoiava na bengala. Apesar da deficiência, se locomovia com agilidade e saiu da sala do governador indo descer as escadas em espiral. Liwe e Lorthon o seguiam de perto. Parou dois patamares abaixo, diante de uma porta pequena de madeira, a qual atravessaram sem que nada os contivesse, e, após esta, um curto corredor levava a uma porta de ferro pesada. Gowlin a destrancou com uma chave que tinha dentro das vestes e os três adentraram um recinto escuro e apertado. - Pegue uma das velas na escada. – Lorthon ordenou e Liwe obedeceu, saindo e voltando logo em seguida com uma vela grossa e calombosa. Logo que voltou, a luz âmbar revelou a pequena câmara quadrada onde estavam: paredes nas laterais, a porta de ferro atrás e logo à frente um portal em arco através do qual se vislumbrava uma velha prateleira com livros ainda mais velhos. A prateleira era curva, se ajustava no formato das paredes mais externas da torre, dando a volta na pequena câmara onde os três estavam. Ali ficavam posicionadas uma cadeira e uma mesa, sobre a qual um belo candelabro de prata exibia oito velas apagadas. Gowlin atravessou o arco batendo a bengala no chão e virou à direita, seguindo ao longo do corredor circular e Liwe o acompanhava duma distância que lhe dava espaço. À meia luz distinguiam-se volumes grandes e apenas uns poucos aparentavam ser mais novos, havia livros encadernados muito tempo antes de aquela vila existir, e uma prateleira mais

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alta comportava rolos de pergaminho amarelados. Quando completou metade da volta, parou e apontou com a bengala. - Aquele, Liwe, pegue-o. Liwe olhou para o livro que ele apontava no alto da prateleira mais alta. Esticou-se e o pegou, era pesado, quase tão largo quanto um palmo. Na capa escamada, feita de um couro esverdeado e quase negro, não havia qualquer letra inscrita. - Leve-o para a mesa. Voltaram para a câmara no centro da biblioteca e Liwe depositou o livro pesadamente sobre a mesa. Acendeu as velas do candelabro e uma luz firme cresceu ali. Gowlin, quase com a mesma dificuldade para se erguer, descansou sobre a cadeira e se encurvou sobre o livro. Abriu-o lançando no ar um odor incômodo, típico de objetos que ficam enfurnados por anos. - Qual o nome que você ouviu, Liwe? – pediu Gowlin. - Krondarg. – ele respondeu. Gowlin percorreu os olhos pelas páginas grossas e fragilizadas, a página era pintada com floreios nas bordas e as letras em que o livro fora escrito eram de uma caligrafia bela, cada palavra era uma obra de arte. Vez ou outra vislumbravam um desenho feito a tinta preta que tomava toda uma página. Após quase meia hora de busca, ele se empertigou na cadeira com uma expressão satisfatória. - Encontrou? – Lorthon perguntou. Liwe se encurvou para ver a página e se viu intrigado. Ali havia um nome desenhado, mas não era o de Krondarg. - Basthragg? – leu em tom de dúvida. - Sim... era este nome que eu procurava. - Leia, rapaz, e vai entender. – disse Lorthon. - Basthragg, a Chama do Gelo, rival dos Yotun, condenação dos homens. Rei das longínquas terras do distante oeste que hoje foi engolido pelo mar. Espalhou a destruição por séculos. Era capaz de liquidar hordas de guerreiros, conquistava dezenas de coroas, derretia castelos de pedra com o fogo de seu


sopro. Derretia o ouro que conquistava e nele se banhava. Os últimos homens que o viram o chamavam de Brilho da Morte. Liwe parou de falar e olhou para os dois anciãos um tanto estupefato. - Sim, Liwe, é disso que se trata. Continue. – disse Gowlin. - O bater de suas asas causava ondas no mar que engoliam os navios, seu rugido atemorizava os reis das duas bandas de sua vasta terra, cada qual em seu distante palácio. Desapareceu após enfrentar uma tropa enfurecida dos Yotun na sua última guerra contra os gigantes, entretanto jamais foi encontrado morto. Antes disso copulou com a terrível Yenatiengg e gerou cinco filhos: Basthron, Zierthorg, Brayorgg, Krondarg e Yendorsheim. - Aí está o senhor da criatura que procuramos, um dos filhos mais jovens de Basthragg, o antigo dragão da terra naufragada. – Gowlin falou. Liwe sentiu seu corpo ser tomado por um estado anestesiado, sua visão embaçou e os ouvidos pareceram tapados. Vacilou e se apoiou na mesa. - É terrível, eu sei. – falou Gowlin, compadecendo-se do jovem guerreiro. - Aquela criatura... disse que seremos destruídos por um dragão? – Liwe falou, recuperando-se. - Não um dragão qualquer, como aquelas bestas insanas que já foram domadas por reis audaciosos e usados como armas em batalha, não aquelas criaturas famintas e agressivas que atacam qualquer coisa que se aproxima de seu covil, não os devoradores de gado que são não muito dificilmente abatidos por uma balista operada por um guerreiro de boa mira. – Lorthon falou no tom de quando contava histórias. – Ele é um dos filhos de Basthragg. Seus filhos deram origem à raça de dragões que cobiçam poder, se aliam a reis enquanto dominam outros, que discutem com seus inimigos e a quem animais e até jovens moças já foram oferecidos como sacrifício.

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- Então o que Krondarg quer aqui nesta vila pequena? – Liwe repetiu a pergunta que Lorthon fizera antes. – Não temos rei, não temos um exército para servi-lo. - Me diga, jovem Liwe, o que há além do precipício do leste? – disse Gowlin em seu tom gentil. - Colinas, bosques e o oceano. - E o que domina sobre um grandioso rochedo que se pronuncia para o mar? Liwe sofreu um sobressalto. - O palácio do Rei. - Esta vila foi criada como base para os postos de vigilância, hoje abandonados, nos picos do oeste. – disse Lorthon. – É um dos primeiros bloqueios para proteger o reino, e também é de onde viriam os reforços caso o castelo fosse atacado pelo norte, pelo sul ou pelo mar. Se ele não tiver o apoio que oferecemos, estará sozinho quando o exército de Krondarg surgir. - Esta vila não tem capacidade para defender o reino. – contrapôs Liwe. - Mas já teve, um dia. – disse Gowlin. – Quando os inimigos eram mais próximos, e quando havia outras vilas como esta sobre essas montanhas. - Como vamos nos defender de um dragão? – disse Liwe quase num clamor desesperado. – O senhor já enfrentou dragões, nos oriente. – ele falou se dirigindo a Gowlin. - Já matei mais dragões do que os dedos que me sobraram nas mãos, Liwe. Lorthon matou ainda mais. Porém, nenhum de nós esteve perto de um desafio tão grande quanto um filho de Basthragg. – disse Gowlin. – Não temos o que fazer.




capítulo iii

InstRuçõeS



Liwe retornou à sala do governador ainda estupefato, incrédulo. Os dois velhos guerreiros reassumiram seus assentos à mesa do conselho e o jovem ficou de pé diante dos três. Foi só então que ele percebeu a presença de Hendor ali, de pé, recostado à parede ao lado da janela da qual tinha pulado. Olhou confuso, o jovem estava enfaixado em vários pontos do corpo e um de seus olhos verdes estava fechado por conta de um inchaço. - O que está fazendo aqui? - Soube que o conselho se reunia, quis estar aqui. - Eu já estou aqui. – disse Liwe enfatizando o “eu” sem conseguir impedir a voz de se elevar um pouco. - Também tenho acesso a esta sala. – falou sem paciência. O governador pigarreou, chamando a atenção de volta a si. Liwe e Hendor se voltaram para ele e se desculparam com uma suave reverência. - Eu gostaria de ser informado sobre as conclusões a que chegaram enquanto estavam na biblioteca. – falou como quem dizia algo óbvio. - É bom que esteja aqui, Hendor, por que assim fica sabendo da desgraça que você causou. – disse Liwe, assumindo a ofensiva para se livrar do desespero. - O que? – Hendor disse sem compreender a acusação. - Senhor governador, Hendor... – Gowlin começou, tanto

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Hendor quanto o governador notaram a perturbação na paz do homem. – A criatura que nos atacou servia a Krondarg, um antigo e poderoso dragão, filho de Basthragg, o rei da terra náufraga. - O que? – disse Hendor, surpreso. - Sua intenção era levar o governador até Krondarg... – as sobrancelhas de Hendor subiam mais a cada fato que Gowlin mencionava. – e anexar a vila aos domínios do dragão. Como seu enviado foi morto, segundo o que a criatura disse, o dragão trará sua destruição à nossa vila. Krondarg, é o que parece, está tomando terras para si, para engordar seu poder. Acreditamos que haja um exército de seres abomináveis a seu serviço. – quando Gowlin terminou percebeu que o governador estava lívido, paralisado, mas em Hendor ele encontrou a fascinação faiscando nos olhos. Viu o prazer do desafio em seus lábios que quase cediam a um sorriso. O governador Kenrick se levantou da cadeira, agitado. Estava muito mais pálido que o usual, suas mãos tremiam e sua respiração arfava enquanto começou a esmo, de um lado a outro atrás da mesa do conselho. - Meu senhor? – Liwe chamou. - Como vamos... – ele começou mas a voz se agarrou na garganta e não saiu. - Meu senhor, encontraremos uma solução. Talvez possamos... - Pedir ajuda? – vociferou, parando de repente. – E acha que algum daqueles fidalgos vai sacrificar seus homens e seu nome por esta vila esquecida? - Nós somos capazes de enfrentar Krondarg, meu senhor! – enfatizou Hendor, confiante e com voz firme. - Não seja ridículo! Ele queima esta vila com um único sopro. – Liwe contrapôs. - Vamos... ! – gritou o governador de repente, batendo o punho na própria mão. A face exibia um sorriso insano. – Vamos esvaziar a vila! Quando o dragão chegar ele vai queimar todas as casas, pode destruir esta torre! Não estaremos mais aqui.


- Meu senhor! – chamou Hendor com urgência. – Há velhos e doentes nesta vila que não são capazes de viajar, alguns nem são capazes de sair à rua! Não podemos movimentar todo o povo. - É verdade! – ele falou indo rápido da euforia ao profundo desespero. – Não podemos! O que vamos fazer? – voltou à cadeira e deixou o rosto cair sobre os braços na mesa. - Nós podemos enfrentá-lo, meu senhor. – disse Hendor. – Apenas compre o aço para... - Cale-se, Hendor! Estamos numa situação muito mais séria que esses feitos que te deram fama e dos quais você ri! – Liwe gritou em furiosa reprovação. - Está com medo, Liwe? – Hendor provocou, falando em voz baixa, e Liwe se calou imediatamente, contendo a fúria. – Nós já tivemos grandes desafios, e conseguimos vencer! - Já tivemos, mas Krondarg não é uma criatura qualquer! Os Drakuins por tradição são matadores de dragões, mas nenhum de nós quatro já o fez, o que dizer de uma besta como Krondarg? Me diga como quatro homens são capazes de vencer um dos mais poderosos e mais antigos temores dos homens, famoso por destruir exércitos inteiros? – Liwe estava claramente indignado com a autoconfiança de Hendor, em parte por não ser capaz de se sentir igual. - Você não se lembra do gigante yotun que nós quatro matamos? Ou do ataque de sindrols que conseguimos vencer atacando cada um por um lado? Sozinhos nós já repelimos ataques poderosos o bastante para ferir cem homens num exército! – Hendor falou, alterando-se também. - Sim, e em todas elas nós três tivemos que salvar sua vida por quê você não enxerga quando algo vai te matar! – Liwe berrou, apontando para Hendor em acusação, causando espanto em todos. – Guerreiro destemido... – desdenhou em voz baixa. - Muitas vezes nós só vencemos por que eu era o único que não teve medo de se aproximar das garras da criatura! –

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ele disse indignado, parecia-lhe que ouvia absurdos. Dessa vez Liwe se aproximou de Hendor e falou baixo, mas ainda agressivo. Seus olhos estavam sombreados embaixo da pronunciada testa sem sobrancelhas. - Sabe quantas vezes nós pensamos que você tinha morrido? Hendor, intrigado pela súbita mudança de sentimentos demonstrados pelo amigo, ficou calado, analisando aqueles olhos enegrecidos que brilhavam do fundo da escuridão como o metal polido que resgata o mais distante raio de luz. Nunca tinha pensado nisso. - Inúteis! – gritou de repente o governador erguendo a cabeça. – Se não conseguem encontrar uma solução, saiam da minha sala! Vocês só tiram minha paz e não resolvem nada! Saiam! Saiam! Os berros desesperados do nobre reverberaram nas pedras da câmara e deram lugar a um silêncio que também ficou sendo rebatido entre as paredes e os olhos dos que ali estavam. Era amargo o sabor da rejeição. Gowlin foi o primeiro a se mover para levantar da cadeira e Hendor correu para ajudá-lo. - Não mandei que saísse, Gowlin. – disse Kenrick, buscando corrigir o que dissera na raiva mas sem voltar atrás com a palavra. - Meu senhor, se Hendor e Liwe não são bem vindos, nós também não somos. Se vamos começar a romper nossos círculos, então Krondarg já iniciou a destruição a esta vila. Lorthon se levantou às palavras do amigo e o seguiu. Liwe saiu ao lado de Hendor e o governador continuou sentado, espantado, olhando cada um que passava pela porta e sentindo-se cada vez mais fraco e perdido. - Hendor, nos aguarde ao pé da escada. – disse Lorthon assim que saíram. Os jovens desceram os degraus lado a lado, sem dizer uma palavra, preservando-se de virar sequer um olhar de soslaio ao outro. Às bases da torre, Hendor esperou e Liwe se afastou sem olhar para trás.


- O que te preocupa? – dizia Gowlin enquanto era auxiliado por Lorthon a descer as escadas. - Hendor e Liwe. A dissensão entre os dois pode levar tudo a perder. – disse Lorthon, inexpressivo e sério. – Liwe inveja a falta de temor em Hendor e a maneira como ele recebe todos os louvores por se arriscar aos atos mais heroicos. Hendor se sente diminuído por este desprezo e pela reivindicação de autoridade que Liwe insiste em repetir. - Acha que devemos falar com Liwe? – Gowlin olhou viciosamente a porta da biblioteca quando passaram por lá. - Acho que devemos antes dar atenção a Hendor. – disse Lorthon. – Agbar o treinou desde pequeno para não temer nenhum desafio. Mas o garoto sempre foi altivo, e se acostumou em receber todas as atenções e toda a aclamação, e isso o incentiva ainda mais a não temer nada. Liwe tem medo de que seja ele a figura do líder, em seu lugar. Sem contar que... - Se Hendor continuar pulando de penhascos vai acabar morrendo. – Gowlin completou. - Exatamente. Hendor não pensa na melhor forma de lutar, sua falta de medo o torna impulsivo e imprudente. Mais de uma vez isso já pôs em risco a eficiência dos quatro. Até eu teria raiva, Liwe traça planos muito bem pensados, Hendor os ignora e ainda sai vitorioso e aclamado. Enquanto o problema for um lobo selvagem que ameaça os viajantes na estrada, isso ainda é tolerável. Mas não acredito que os quatro possam vencer Krondarg dessa forma. - Hendor não vai pensar nisso tudo quando estiver diante do dragão, vai agir impulsivamente como em todas as vezes anteriores e vai morrer... e em seguida todos nós. – Gowlin contrapôs enquanto davam a última volta para descer os degraus espiralados da torre. - Então vamos ensiná-lo a ter medo. A porta arqueada surgiu jogando para dentro a intensa claridade do dia, que golpeou os olhos acostumados à

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luz das velas. Em poucos segundos puderam distinguir os guardas em seus postos, a rua que subia para a praça onde ocorrera a enganosa cerimônia e os cabelos dourados e a pele com que Hendor se cobria. Quando os viu, recebeu-os com uma respeitosa curta reverência. - Meus senhores... - Acompanhe-nos, Hendor, temos algo a conversar. – disse Gowlin seguindo na direção da praça, se apoiando na bengala com cabo de espada. Os dois anciãos andavam entre as pessoas que obedeciam à rotina de cada dia e paravam alguns segundos para observar a passagem daqueles a quem muitos habitantes dali deviam suas vidas. Hendor achou curioso que tanto estivesse acontecendo e causando inquietude enquanto para outros era apenas um dia comum. Sentiu o peso da vida de cada um da vila em suas mãos, o dever que tinha de permitir que mantivessem sua rotina despreocupada de cada dia. Observou as risadas alegres dos comerciantes que recebiam notícias de seus compradores, as corridas das crianças inocentes que ainda se surpreendiam por qualquer elemento novo que era acrescentado às suas vidas, os velhos que conduziam seus leais animais para o trabalho. Por pouco não desejou ser um deles, ser um dos que viviam apenas esperando que as ameaças desaparecessem. Não demorou para que alcançassem a antiga casa de pedras grossas que servia às gerações dos guardiões da vila havia décadas, a taverna dos Drakuins. Houve um tempo em que aquela taverna de acesso restrito era cheia; quando os guerreiros bebiam e cantavam seus próprios feitos buscando aproveitar cada dia em caso de morrerem no seguinte. Ironicamente foi isso que acabou com a maioria: um deles bebeu tanto que dormiu e não acordou mais; outros três se desentenderam durante uma noite de festa e mataram-se um ao outro; e ainda um outro, embriagado, sequestrou uma dama e a levou para a taverna. Este foi morto pelo pai e pelo avô da moça no dia seguinte.


A fachada era uma parede inclinada para dentro de modo que os blocos formavam o aspecto de degraus. A entrada era funda, a porta ficava no fim de um curto corredor para dentro da parede inclinada. A taverna tinha sido construída num buraco, parecia uma casa enfiada no chão. A porta de metal foi destrancada por Lorthon e os três desceram uns seis degraus de madeira até o chão de pedras lisas. O ambiente era impregnado por um odor característico que já nem designava qualquer coisa, era uma mistura de tudo o que já entrara e acontecera ali por tantos anos. O interior tinha mesmo o aspecto do fundo de um buraco: nenhuma parede era reta, a aparência era quase circular, apesar de as paredes terem saliências grandes se projetando para dentro do recinto. Essas paredes exibiam uma peculiar coleção de armas. Intercalados com os archotes nas paredes havia espadas longas, espadas curtas cruzadas, pesados machados e escudos redondos, elmos foscos e martelos de cabo comprido. Com uma singularidade: cada uma dessas ferramentas de batalha estava gasta e danificada de alguma forma: um elmo tinha um violento furo na têmpora; as espadas estavam rachadas e com o fio quebradiço; um escudo estava partido em dois; um outro machado estava trincado. Sob cada uma dessas armas havia uma pequena placa de pedra com um nome incrustado. Candelabros de quatro velas iluminavam cada uma das dez mesas que enchiam o lugar e no fundo havia um balcão em semicírculo atrás do qual se via uma pequena porta de madeira. Era um lugar de luz baixa, repleto de pontos de penumbra, bem amplo... e vazio. Gowlin cumprimentou os três únicos ali presentes: um jovem que tocava uma flauta sentado ao balcão, um homem magro, velho e encurvado que o servia e um outro ainda mais velho sentado à mesa mais distante. Este era louco, dizia-se. De fato, falava constante e freneticamente sem que saísse som algum de seus lábios, os cabelos grisalhos e embola-

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dos pendiam em mechas grossas aos lados do rosto onde as cicatrizes se confundiam com as rugas. Nenhum desses singulares arquétipos chamou a atenção daqueles três frequentadores, que se dirigiram ao balcão. Não precisaram pedir, antes que chegassem a se sentar já havia três copos feitos de cornos de onde o odor do vinho lhes invadia as narinas. - O que desejam, senhores? – perguntou Hendor, sentando-se numa curva do balcão onde era possível ver os dois. - Hendor, estamos preocupados com o desempenho do seu grupo quando tivermos que enfrentar este dragão. – Gowlin disse o mais gentilmente possível. O jovem não conseguiu esconder o incômodo. - Sua atitude destemida já trouxe muita glória para esta taverna, Hendor, mesmo quando você era muito mais jovem... e este lugar era mais cheio. – Lorthon começou. – Mas muitas vezes essa falta de temor pôs em risco a sua vida e o sucesso do quarteto. Um grande exemplo é o último, nunca ninguém caiu naquele precipício e voltou para dizer como era o fundo. - Mais um grande feito! – gabou-se Hendor com seu sorriso e o copo erguido, mas encolheu-se outra vez quando viu o olhar severo de Lorthon e o condescente de Gowlin. - Não o culpo por sua ação, Hendor, mas o servo morto de Krondarg é o que condenou a vila. – disse Lorthon, fazendo um tremor correr pelo corpo do jovem que somente naquele momento percebeu ser o culpado pela fúria do dragão que viria. - O medo, Hendor, é o que nos mantém vivos. – disse Gowlin enfático. – É o que nos manteve vivos, diferente dos antigos amigos que hoje são apenas nomes sob suas armas exibidas em nossas paredes. – disse ele lançando um longo olhar para as paredes repletas de armas. – No dia em que desafiei meu maior medo, meu jovem, perdi minha perna e não obstante minha mulher morreu. Hendor se esforçou para não olhar o toco de perna que


restara ao antigo guerreiro. - Meu senhor, eu sempre fui incentivado a não temer e aprendi a não temer nada! Minhas vitórias se devem ao temor que eu não conheço, e também os louvores que recebemos. – ele disse tentando se justificar. - Mas, como seu amigo disse, isso já o fez estar à beira da morte inúmeras vezes, dando aos seus amigos a desagradável obrigação de salvá-lo ou viver sob a dúvida se você teria morrido ou não. – falou Lorthon, que não tinha dificuldades de ser um pouco mais rígido em suas repreensões, ao contrário de Gowlin. – Ser destemido te torna imprudente e arrogante, você não tem a natural distinção entre o que pode ou não fazer, entre o que deve ou não arriscar. Isso, diante de Krondarg, vai matar a você, seus amigos e levar à inevitável destruição do povo que tanto espera que vocês lhes tragam salvação. Hendor empertigou-se no banco, tenso e envergonhado, desviando os olhos para as armas. - Krondarg é apenas mais um desafio, vamos vencê-lo. – insistiu ele, convicto, mas ainda sem encarar os conselheiros. Gowlin olhou, entristecido, para o velho louco ali longe. - Sabe por que ele é assim, Hendor? – perguntou Lorthon. Hendor não soube responder, nunca pensara no que deixara o velho louco, ele já o via louco desde o primeiro dia em que fora admitido naquela taverna e já era velho desde aquele tempo. - Dizem que é o único homem ainda vivo nesta vila que já viu um dos filhos de Basthragg. – Gowlin falou, pesaroso. – Quando era pequeno, costumava navegar nas águas geladas mais ao norte com o pai, ele me disse num dia em que tive curiosidade de ouvi-lo. Dizem que viu a criatura voando sobre o navio e pousando numa enorme pedra de gelo que flutuava por ali. Seu fogo fez o gelo se tornar névoa e água, o bater de suas asas golpeou as velas e quase virou o navio. – Gowlin falava quase distraído, enquanto via os gestos irracionais do velho. – Foi demais para uma criança, mas ele ainda

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sobreviveu à loucura por muito tempo, tempo o bastante para ainda ter feitos registrados nos nossos livros. Mas finalmente a loucura o dominou por completo, ainda na juventude. Gowlin deixou um silêncio lamentoso, que foi quebrado por Lorthon, logo em seguida. - Para enfrentar esta besta, Hendor, é preciso saber exatamente como agir, e não correr destemidamente contra seus dentes, como você costuma fazer. Sem medo você não recua quando ele ataca, não se contém quando precisa correr por baixo de sua pata gigantesca. – disse Lorthon. – Se você enfrentar Krondarg desta forma, vai morrer, causar a morte de seus amigos e não haverá mais ninguém com capacidade para proteger a vila. Vocês quatro são os últimos desta taverna, não queira ser o causador do fim desta ordem. A ideia de decepcionar o povo, de falhar em seu dever, era inaceitável a Hendor, e ele se viu disposto a fazer o possível para não falhar. - Se ser destemido vai me levar ao fracasso, meus senhores, me ensinem. – disse Hendor, em seu rosto via-se que cada palavra que dizia lhe doía, enquanto bebia um longo gole do vinho. – Me ensinem a ter medo. Os dois velhos heróis se entreolharam, e Gowlin sorriu. - Nós não podemos. – disse o que sorria. – Mas há alguém mais velho e mais sábio que pode. Hendor olhou duvidoso para o homem louco que parecia lutar com um inseto invisível sobre sua mesa. - Não, não é ele. – disse Lorthon. – Ele não vive nesta vila. - Ele mora muito longe daqui, depois dos bosques e colinas do norte, além dos penhascos dos yotun e muito depois da floresta escura. – Gowlin completou. Hendor surpreendeu-se outra vez, já tinha chegado à orla daquela mata densa e negra onde nem a luz do sol penetrava e sempre tivera a curiosidade de se aventurar por ali, local carregado de histórias terríveis e tenebrosas, mas jamais ul-


trapassara aquele limiar. Diziam que era dali que saíam as bestas mais abomináveis que já tinham enfrentado. - No alto de um pico de encostas íngremes. Se chegar até lá, Hendor, vai aprender a encontrar seu medo e será um guerreiro muito mais valente e sábio do que é hoje. – falou Lorthon. – Galelstein é seu nome, costumava ser um dos nossos, mas rejeitava o modo de vida boêmio e agressivo que tínhamos, era mais amigo dos livros e poemas antigos que das pessoas. Já foi um guerreiro, hoje é apenas um homem que vive na companhia de livros, insetos da terra, objetos inúteis e as próprias velas. - Partirei hoje mesmo! – disse Hendor, obstinadamente. - Não seja apressado, Hendor. – disse Gowlin. – O caminho é perigoso e você não está em condições de fazer uma viagem longa ou lutar contra os perigos que vai encontrar pelo caminho. - Já enfrentei... - Será que não entendeu nada do que dissemos?! – disse Lorthon severamente. Hendor encolheu os ombros e olhou para os muitos novos ferimentos que recebera, mal conseguia mover o braço esquerdo e seu joelho o impedia de correr. - Perdoem-me, senhores. Vou esperar. - Hendor... – chamou Gowlin. – Preste atenção: saia sem que te vejam, passe pelos vales sem despertar os yotun, sozinho você não será desafio para eles. Não caia em suas ilusões. Coma e descanse quando o sol descer, pois as criaturas mais terríveis estão fora de suas tocas entre o pôr e o nascer do sol. Vá a pé, um cavalo iria se assustar e o denunciaria quando precisasse fazer silêncio. Leve comida e água para a ida, pois tudo o que a floresta escura gera é venenoso. - Até as flores. – disse Lorthon vagamente enquanto bebia. - Há uma antiga trilha que você deverá encontrar, siga-a e vai chegar ao outro lado. A trilha não está no chão e você deverá compreendê-la antes de segui-la. Não haverá dia ou noite lá dentro, descanse quando estiver cansado e coma

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quando tiver fome. Há uma bruxa lá dentro que, se resolver entrar no seu caminho, vai te oferecer coisas tentadoras. - Aquela vadia ainda deve ter meu olho dentro de uma taça de prata. – falou Lorthon outra vez. Gowlin o olhou de soslaio e continuou: - Não aceite nada, não saia do seu caminho ou se distraia com as ofertas da bruxa, ela é uma cega serva de seres das trevas. Mortos não falam com vivos e nada do que ela oferece, mesmo que seja bom naquele momento, tem um fim bom. Tudo o que esses seres a quem ela serve desejam e oferecem tem um propósito maligno, não se deixe enganar. Além da floresta ficam os vales e buracos dos sindrols. Seja pacífico, não os enfrente sob qualquer circunstância, você sabe que sua loucura os torna quase imbatíveis. Se chegar até aí, o restante do caminho te será claro. Qualquer um teria tremido ao ouvir estas instruções, mas Hendor sorriu. Esvaziou o copo e saiu da taverna.




capítulo iv

a nÉVoa E o Abutre



Os irmãos médicos eram profundos conhecedores dos meios medicinais encontrados nas ervas e plantas. Em poucos dias todas as feridas que Hendor tinha na pele já estavam cicatrizadas, e o suco de uma fruta que ele nunca tinha visto o dava forças para andar. Uma sopa saborosa, apesar de um pouco amarga, o fazia sentir o joelho se recompondo e os ossos das costelas se religando. No período em que esteve sendo tratado pelos médicos não se absteve de iniciar todas as manhãs dando as boas vindas à luz clara e confortável do sol, mas voltava caminhando pelo bosque em vez de correr. Em menos de uma semana após ter caído do precipício já voltara a se exercitar com suas espadas, voltar a se mover era como voltar a se sentir vivo. Desde a notícia da condenação que Krondarg lhes sentenciara, as reuniões na taverna dos guerreiros se tornaram sombrias e taciturnas, onde todos bebiam em silêncio e quando falavam era para lamentar. Liwe sugeriu a Gowlin e Lorthon uma defesa baseada em esconder as pessoas em câmaras subterrâneas que ainda seriam escavadas e em balistas poderosas que nunca tinham sido construídas. Ele nem percebeu que Hendor estivera calado e reservado, um contraste pesado se comparado às palavras pretensiosas e autoconfiantes que ele proferia quando o grupo se preocupava com alguma ameaça,

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mas Blartos, que sempre era o sujeito calado e observador, também o que melhor compreendia Hendor, percebeu que algo estava diferente. Chegou a cogitar em sua mente que talvez ele estivesse lidando com medo pela primeira vez, diante desta ameaça incomparável a tudo o que eles já tinham enfrentado, mas sabia analisar com perfeição o medo, além das outras sombras que são capazes de passar pela face humana. Concluiu assim que Hendor planejava algo. Apesar de não ser do feitio do espírito explosivo e impulsivo do amigo, acreditou mais nesta última hipótese. Depois que a taverna ficou vazia outra vez, os guerreiros se retiraram para suas camas, mas Hendor não dormiu. Preparou uma pequena bolsa com uma capa a mais, algumas frutas e pedaços de carne salgada, e dois pequenos odres com água. Ajustou o fio de suas espadas curtas, que já estava embotado pelos golpes inúteis na criatura, e retirou de um humilde arsenal que mantinha em casa um machado duplo de aço. Daquela vez, o sol o encontraria em outro lugar. Quando subia a rua curva que levava aos portões, a imagem forte e imponente de Blartos embarreirou seu caminho. - Aonde vai? – ele perguntou com sua constante expressão sóbria e amigável, que contrastava com seu tamanho. Hendor sentiu-se mal por esconder aquela viagem de seu amigo, mas permaneceu em silêncio. - Por que não disse nada? – indagou ele. - Blartos, me perdoe. Mas eu devo fazer isso só; é algo que apenas eu posso buscar e só eu farei uso. - Somos amigos, um grupo. Você não deve agir sozinho. - Não estou abandonando vocês, nem fugindo... – Hendor falou com um tom que demonstrava o quão absurdo era aquela ideia, tanto que não chegou a terminar a frase. - Eu acredito que não esteja fugindo. – disse Blartos. – Mas espero que esteja conosco quando precisarmos. - Eu vou estar, amigo. – disse ele retomando a caminhada.


Blartos saiu do caminho e o viu se afastar sob a deficiente claridade do fogo ainda aceso na madrugada. As estrelas brilhavam pouco, em meio às nuvens arroxeadas. Hendor passou pelos portões sem que os guardas lhe fizessem perguntas e virou para a esquerda, tomando o rumo do norte, andando pelo corredor feito pela orla do bosque e o muro de madeira da vila. Ao mesmo tempo em que cada passo era confiante, o mesmo era também relutante. Ora pensava nas pessoas que queria proteger, nos amigos que queria manter em segurança e nos hábitos que não queria mudar, ora pensava que não era nada confortável abrir mão daquilo que mais o caracterizava, do maior ensinamento de seu antigo mestre, Agbar, e a virtude da qual mais se orgulhava. Mas quando este último pensamento surgia, logo o primeiro o vencia, dando-lhe uma razão para prosseguir. Quando alcançou a face norte do muro da vila, adentrou o bosque sem sentir qualquer incômodo em deixar o vilarejo desaparecer às suas costas. Naquela área ele pouco andara, mas ainda recordava algumas árvores velhas e altas e algumas rochas grandes cobertas de musgo; entre a vegetação o terreno subiu tirando-o do vale onde o vilarejo jazia. Quando chegou ao outro lado, o sol já saíra e ele pouco notara enquanto estivera sob a cobertura da folhagem. Seguiu reto por um descampado onde a relva chegava aos seus joelhos e cuja planície era vasta. Somente no horizonte ele via uma faixa verde escura. Vez ou outra passava por alguma grande rocha largada no meio da pradaria, os restos das lutas entre os yotun, que arremessavam pedras enormes no ar enquanto pelejavam entre si por motivos banais e desconhecidos. Ali o jovem sentiu uma excitação no peito, eram os primeiros sinais da aventura que o aguardava. Sentiu fome enquanto atravessava aquele campo, travessia que lhe custou pouco mais de uma hora, até alcançar a orla do bosque que havia no outro lado. Decidiu procurar pelas

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frutas dali em vez de gastar seus poucos suprimentos, e não precisou procurar muito. O bosque dali parecia ser mais velho, e estava mais castigado. Via muitos antigos galhos quebrados no chão, a turfa revirada, e árvores saudáveis caídas atravessando seu caminho. Muitos troncos grossos estavam partidos no meio e via-se claramente que algo enorme tinha acidentalmente, talvez, aberto ali uma trilha enquanto passara. - Troll. – ele disse analisando um toco de árvore dilacerado ali. – Os yotun são mais discretos. Detestava viajar sozinho, e falar de suas curiosidades sem que ninguém ouvisse. Continuou seu caminho para o norte, sob as sombras daquele bosque ainda mais desconhecido e potencialmente mais perigoso. Um tempo depois o terreno não era mais tão plano, e ele se viu subindo e descendo colinas. Sempre que se deparava com a negra escuridão de uma gruta à frente, desviava. Até que o primeiro sinal de encontrar o caminho sobre o qual Gowlin o advertira surgiu: frio. Não demorou muito para que as árvores rareassem e subitamente ele saísse num chão de pedra nua e estéril, de cujas frestas umas mirradas e perseverantes plantas cresciam. O sol estava próximo do meio dia, mas ainda assim o frio ali era forte. De frente para ele havia a borda de um penhasco e depois dele um vale repleto de grandes e pontudas rochas que subiam desde o fundo e se elevavam a grandes alturas acima da borda do penhasco, feito colunas de rocha ou torres naturais; eram muitas, chegando a cobrir a visão do outro lado da depressão. Já estivera ali, e na primeira vez chamara aquilo de floresta de rochas, pois se assemelhava a tal. Ao redor das rochas mais finas havia passarelas circulares, das quais partiam pontes de cordas e tábuas, conectando as rochas umas às outras e criando uma rede de pontes, um caminho suspenso por entre a floresta de rochas.


- Agora ficou interessante. – ele disse com seu sorriso entusiasmado. Chegou até o início da primeira ponte e experimentou a sensação de pisar sobre o vazio. Este vazio era profundo, escuro, distante. O fim do enorme buraco não se via, estava encoberto por escuridão e por uma névoa branca, que algumas vezes assumia uma cor amarelada. Olhando para os lados via que a beira do precipício se estendia longamente até se perder de vista, indicando que aquele vale era uma ferida na montanha que ainda não tinha sido medida pelos homens que ali habitavam. Ele não se lembrava do quão largo era o vale, não podia, assim, calcular quanto tempo levaria naquela travessia pisando o instável; quando estivera ali fora perseguindo uma criatura e não prestara a atenção que lhe permitisse lembrar. Logo que começou a se afastar da borda do penhasco, sentiu que a ponte muito tremia e algumas vezes sacolejava a uma pisada mais forte. Por isso, decidiu avançar bem devagar. A madeira que pisava rangia e tricava sob seu peso. Conforme chegava mais longe da terra firme, a torre de pedra à sua frente o chamando como um amigo de agradável companhia, a ponte se arqueava para baixo, e a névoa começou a subir na sua direção. Tinha um cheiro azedo e desagradável, mas, paradoxal e incompreensivelmente, prazeroso. Chegou a interromper a travessia e ficou ali, olhando curioso para o fundo do vale. Julgou ter visto um grande braço anuviado se mover dentro da névoa, mas logo desapareceu. Ele riu. - Será que é aqui o vale dos yotun? – imaginou ele. Logo as palavras de Gowlin voltaram à mente: “não desperte os yotun”. Retomou a caminhada e sentiu um sobressalto quando viu as cordas à frente arrebentando num estalo como se fossem podres. Agarrou-se nas cordas ao lado e repentinamente sentiu-se patético; a ponte estava firme e quieta como antes e as cordas estavam inteiriças. Soltou uma exclamação e prosseguiu.

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Alcançou finalmente a plataforma de madeira que circulava a rocha, mas antes de deixar a ponte, ouviu passos pesados e apressados atrás de si. Imediatamente sacou as espadas e se virou pronto para o combate. Não havia nada. Ele ainda permaneceu um tempo ali, vasculhando os cantos das rochas mais distantes, o fundo do vale, mas não viu nada. Virou-se para pisar a plataforma e deu com os olhos negros e brilhantes da criatura sanguinária que atacara a torre do governador. Recuou dois passos apressadamente, golpeando o ar, e a ponte balançou com violência quase virando-o contra a morte no fundo nevoado. Mas não havia nada na plataforma. Hendor lançou um olhar desconfiado à volta, não compreendia o que estava acontecendo, mas em momento algum sequer pensou em deixar de prosseguir. Devagar, cauteloso, deu um passo à frente e ainda mais lento deu o seguinte. Correu e saiu da ponte, pisando na firme e bem afixada plataforma de madeira forte. Embainhou novamente as espadas e começou a dar a volta na pedra para chegar à outra ponte e continuar o caminho, sua mente procurava desvendar a explicação para o que acontecera, mas cada vez ficava mais confuso. Algo, lá no fundo, lhe dizia que ele já conhecia a razão. Na entrada da ponte viu uma ave enorme fechando o caminho. Nada excepcional, apenas um abutre feio e fedido que devorava a carcaça de algum animal indistinguível. A ave carniceira emitiu seu grito desprezível e bateu asas, indo subir até o topo da rocha, e Hendor o observava com o olhar intrigado. Passou por cima da carniça e se lançou em outra travessia por sobre o vazio distante e misterioso. Aquela ponte balançava ainda mais que a outra, e um volume de névoa a envolvia na metade, de modo que não podia enxergar o outro lado. O odor azedo ainda ocupava seu olfato. Desceu a ponte segurando pelas cordas velhas e cheias de fios rígidos soltos, até que inevitavelmente mergulhou outra vez na neblina.


Ali ele caminhou devagar, em estado de alerta. Sua audição receptível a qualquer sinal para compensar a falta de percepção dos olhos. Finalmente chegou ao outro lado do denso nevoeiro, e avistou a plataforma na outra torre de pedra, mais distante que a outra. Avançou satisfeito e a corda áspera começou a parecer lisa e escorregadia. Quando olhou, em vez da corda que sustentava a ponte, sua mão deslizava sobre o corpo frio de uma serpente, cuja triangular cabeça se erguia à frente e virava para ele. Ele recuou novamente e num único movimento sacou a espada e partiu a serpente em dois. Para sua maior confusão, um forte estalo seguido de um solavanco o desequilibrou e a superfície da madeira se inclinou bruscamente, ameaçando derrubá-lo. Com a outra mão segurou na corda do outro lado enquanto via a corda arrebentada pender na direção do abismo. Ainda mais intrigado, embainhou a espada; no lugar onde vira a cobra, estava nada mais que a corda cortada. Com esforço mediano se pendurou na corda ainda inteira e chegou ao outro lado, deitando-se aliviado na madeira do patamar. - O que é que está acontecendo? – ele disse em voz baixa. Ainda deitado na madeira, contemplando o céu repleto de nuvens pesadas que escondiam o sol, viu o abutre de asas abertas atravessar o espaço entre as duas rochas e o observar interessado de cima da coluna natural. - Já está esperando que eu morra, não é, criatura desprezível? Aquela afronta lhe fez se levantar de um pulo e se virar na direção da outra ponte, mas deu de cara com um homem. Era alto e tinha uma larga cicatriz que dividia a testa em dois e descia pelo nariz, os longos cabelos negros amarrados numa trança. Vestia-se com peles brancas e um largo machado de duas lâminas despontava de seu ombro. Encarava Hendor com solenidade e severidade. - Agbar? – disse alvoroçado. Estava diante de seu antigo mestre.

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- Eu o ensinei mas você aprendeu errado. Vai falhar. – disse ele. Hendor sentiu suas entranhas ferverem às palavras de Agbar, a mesma sensação que o desolava diante da reprovação de seu mestre enquanto era por ele treinado. Aquilo durou apenas três ou quatro segundos, no quinto, Hendor percebeu que o que via era impossível, Agbar estava morto. Havia tempo. - Você não está aqui. – ele disse encarando a imagem de seu mestre. – Os mortos não falam com os vivos. – as sobrancelhas de Agbar se juntaram e ele abriu a boca para dizer algo, mas Hendor foi mais rápido. – O sopro dos yotun traz ilusões! Você me ensinou isso! – berrou, mas a imagem nítida e quase palpável de Agbar permanecia diante dele. Era angustiante rejeitar a imagem de alguém cuja presença ele tanto desejava. – Saia da minha frente! – gritou ainda mais, sua voz ecoou e reverberou entre as rochas do vale, e então avançou. Por um segundo sentiu que iria se chocar com o homem, mas logo em seguida ele se desfez como um reflexo desmontado por uma mão que atinge as águas tranquilas. Hendor finalmente se viu diante da outra ponte, que mergulhava bem fundo no vale dos yotun, de modo que ele podia ver apenas a outra ponta subindo muito íngreme numa grande distância à frente. Pisou a ponte e escorregou. Foi deslizando pela madeira ganhando cada vez mais velocidade, entrando cada vez mais fundo na névoa branca. Ali embaixo ele ouviu as vozes desesperadas que ele reconheceu como as do povo que protegia: clamavam por socorro, gritavam em meio a dor, choravam, diziam seu nome. E no fundo deste burburinho, ouvia-se o bater de asas. Era como um trovão. Chegou ao fundo da ponte encurvada, ao ponto onde ela começava a subir, e sentado na madeira olhou em volta. Ali já conseguia distinguir as formas vagas das bases das torres


de pedra, o fundo negro do vale, e distantes silhuetas de homens altos como a torre branca do vilarejo que habitava. A escuridão parecia se esticar do fundo do vale e tomar a forma dos gigantes. Imediatamente os gritos e o bater de asas se tornou o som de passos pesados e retumbantes, e o rosnado grave e gutural dos yotun. Hendor se pôs de pé e agarrou nas cordas, escalando a ponte inclinada, que a cada etapa vencida se tornava mais difícil. O frio o castigava e a urgência por sobreviver o incentivava cada vez mais a escalar aquela madeira. Por fim, escapou da névoa e conseguiu pegar o patamar de tábuas espessas com uma mão. Pendurado ali descansou os outros membros e logo se esforçou para subir, pisando as frestas entre as tábuas da ponte. Mais uma vez largou-se no chão, os braços abertos, os cabelos louros espalhados na madeira, o peito subindo e descendo na respiração ofegante. E mais uma vez o abutre sobrevoou o buraco e foi pousar ao seu lado. O observava com os olhos sérios e cruéis sobre o bico curvo, a corcunda de penas brancas subiu quando ele esticou o pescoço na sua direção. Hendor o espantou com o braço e se colocou de pé. - Não passam de ilusões. Diante da ponte seguinte, viu com prazer a outra face rochosa que emparedava o comprido vale. A travessia terminava ali, e a ponte era a mais firme e reta de todas as que já tinha atravessado, do outro lado via colinas verdes que brilhavam ao sol, e muito além disso o horizonte era sombrio e cinzento. A névoa ainda estava ali, se deitava contra o paredão de pedra e subia para fora do vale em espirais. Quando estava prestes a deixar a plataforma, uma mão enorme emergiu da névoa e agarrou a ponte no meio. A mão era de um azul mais claro que o do céu, e veias negras enraizavam a pele. A mão puxou para baixo a ponte, as tábuas se

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desfizeram em estilhaços no ar e as cordas estouraram dos dois lados. Hendor viu com desgosto sua ponte ser engolida pela névoa e lhe restar apenas o profundo precipício. Antes de reclamar, lembrou-se das ilusões por que já passara. Lembrou-se da corda que cortou imaginado que fosse uma serpente, ou da imagem de seu mestre que bloqueava seu caminho mas não estava lá. Concluiu que para vencer a ilusão devia pisar no vazio. Esta ideia teria sido abominável para qualquer um, e todos pensariam várias vezes antes de correr este risco, mas Hendor não tinha medo. Confiante, ergueu o pé num resoluto passo. O pé afundou no ar e Hendor se arqueou para trás quando viu que ia cair. Conseguiu segurar na borda do patamar com as pontas dos dedos das duas mãos. Os braços estavam torcidos, ele pendia de costas para o patamar e a rocha, suas pernas balançavam perigosamente ameaçando derrubá-lo. - Não... – disse ele soltando uma das mãos para virar de frente para a plataforma. – Não era ilusão... – ele segurou firmemente com as duas mãos e começou a erguer seu corpo de volta para cima, e ali aquele rugido grave chegou aos seus ouvidos outra vez. Era diferente do rugido de um animal, soava mais como uma muito intensa voz de gente. – Não desperte os yotun! – ele disse se repreendendo quando conseguiu subir. – Eu não devia ter gritado tanto. De repente a mesma mão alcançou a plataforma de madeira estilhaçando-a bem ao lado de Hendor. Enquanto a mão recuava para verificar o que tinha apanhado, Hendor se lançou contra a rocha e começou a escalar. A mão era grande o bastante para apanhar o corpo de um cavalo, e a irmã desta mão surgiu junto com a outra nos dois lados da rocha, emergindo da névoa branca. Hendor se esforçava para subir enquanto as duas mãos agarravam a rocha e despedaçavam a coluna, arrancando pedras menores e poeira. Ele sentia que a torre rochosa começava a se tornar instá-


vel e cada ferida que o gigante abria fazia toda a pedra estremecer. Hendor pensara antes em apenas escapar do alcance do yotun, mas viu que não tinha muito o que fazer ali. - Não desperte os yotun! – repetiu para si mesmo, enraivecido. Terminando a escalada em meios aos estouros da rocha, ele conseguiu ficar de pé no alto da coluna de pedra. Ali ele sentiu que seu peso influenciava na estabilidade da rocha, e foi atingido por uma ideia. Viu a borda do precipício logo à frente, e percebeu que o gigante se posicionava entre aquela rocha e a borda. Andando repetidamente para frente e para trás conseguiu provocar um leve balanço da coluna, que a cada oscilação se dobrava num ângulo maior. Até que num último impulso, auxiliado por um golpe do gigante, a enorme torre de pedra caiu para não voltar mais. Dobrou-se sobre o abismo, na direção do vazio, para mergulhar para sempre na névoa, e foi ali que Hendor percebeu que a rocha não alcançaria a borda do precipício. A coluna caiu sobre o gigante, o que causou uma momentânea desaceleração na queda, e dali ele saltou na direção da beira do penhasco. A criatura urrou de dor enquanto Hendor batia de barriga contra a beira do precipício. Ganiu sem ar, suas mãos agarravam a terra buscando impedir que a dor o fizesse cair. Atordoado ele conseguiu puxar a metade do corpo que pendia para cima da terra firme, e largado no chão se dobrou sobre o próprio sofrimento.

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capĂ­tulo v

HalIna



Ficou um tempo ainda se recuperando da travessia, surpreso pela quantidade de ocasiões em que estivera perto de morrer. Levantou-se e virou os olhos para as verdes colinas arredondadas, suaves e amigáveis. Respirou o ar mais aquecido e puro e sentiu-se satisfeito por ter conseguido chegar àquele lado do vale. Olhou para trás, a floresta de pedra o encarava, derrotada, mas ainda ameaçadora. Viu o abutre bem distante, sobre uma das torres de pedra. Zombou dele e voltou-se para o caminho. Deixou a beira do penhasco e seguiu o caminho serpenteante entre as colinas. Se tivesse permanecido mais alguns instantes, teria sentido o chão tremer e um grito gutural sair de dentro da névoa. *** Entre as colinas ele se permitiu um pouco de água, caminhou no meio da paisagem sempre semelhante, guiando-se pela inclinação que o sol já assumia quando se dirigia para o oeste. Alguns arbustos começaram a ocupar os espaços entre as encostas das colinas e ele decidiu subir, buscando um caminho mais livre. Sobre o primeiro topo ele observou as terras que tinha pela frente. As colinas se estendiam a longa distância, ondulando a terra como o leito do mar, e além delas viu cam-

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pos planos e topos de construções de madeira. Além daqueles campos ele viu as orlas distantes da floresta escura arborizando o horizonte, e apertando os olhos julgou ver a tênue imagem de uma única montanha que se camuflava no céu cinzento. - Será que é ali? Desceu aquela encosta e prosseguiu no caminho. Quando se viu deixando para trás as colinas verdes, percebeu que os campos que vira eram as plantações de uma fazenda. Plantas pequenas cresciam enfileiradas e cercavam uma casa simples e alguns grandes celeiros. Mais à frente viu pastos onde cavalos corriam e cabras se alimentavam, cada qual em seu cercado. Sentiu o vento trazendo odor de comida bem preparada e imaginou que seria uma boa ideia pedir pela hospitalidade dos camponeses. Ali ouviu um ribombar, um som grave que parecia com um tremor distante e olhou para trás. Desconfiado, observou cada detalhe da paisagem de colinas, buscando ver a origem do som, mas concluiu que era ainda algum resto do efeito ilusório do vale dos yotun. Decidiu atravessar os campos e se aproximar das casas, um riacho corria separando duas plantações e ele parou ali para beber. Foi visto antes que chegasse à casa. Um homem vestindo uma capa de lã montou um cavalo e cavalgou ao seu encontro. Hendor acenou e ficou onde estava, esperando. - O que deseja? – disse o cavaleiro quando se juntou a ele à margem do riacho. Era um homem que já vivera bastante, dizia-se pelos cabelos e barba branca, e continuava vivendo, dizia-se pela postura e disposição com que montava. - Bom dia, meu senhor. – disse Hendor cumprimentando-o com uma respeitosa e leve reverência. – Meu nome é Hendor, venho do vilarejo que há mais ao sul. – ele disse apontando. – Preciso de comida para prosseguir em minha viagem. O homem o fitou com um olhar rígido. - Aquela vila no sul não é um lugar muito amigável, meu


rapaz. – disse ele. – Seu governador já me mandou mensageiros querendo ocupar minhas terras por alguma desprezível bolsa de moedas. – Hendor se surpreendeu ao ouvir aquilo, sentiu o rosto corando. – Não sei o que ele queria por aqui. - Os nobres nunca se satisfazem com o poder que já tem. – disse Hendor concordando com o homem. - Não vivo num lugar seguro, meu rapaz. – disse o homem sombriamente, aparentemente ignorando as palavras de Hendor. – Ao sul não posso me aproximar, pois o vale cheio de névoa é mortal, até meus cavalos sabem disso. A floresta ao norte é perigosa, apenas suas orlas já são traiçoeiras. Já perdi muitos animais para as feras terríveis que saem de lá para caçar... ou seja lá para o que quer que façam com cabeças de cavalos. - Cabeças de cavalos? - Sim, meu jovem. – disse ele. – Há um momento do ano em que meus cavalos aparecem mortos e decepados, o corpo é deixado para trás. É diferente de quando algum lobo arrasta minhas cabras sangrando pela grama e depois encontro suas carcaças, lobos comem e cabras até eu como. Mas meus cavalos! – o fazendeiro falou indignado, então pareceu se lembrar do que pretendia dizer a princípio. – E agora, rapaz, você vem do sul e vai para o norte. Como eu poderia lhe confiar minha hospitalidade? - Garanto, meu senhor, que não trago nenhum mal a suas terras. Peço apenas sua hospitalidade e ofereço minha gratidão e meu favor. O homem o observou de cima do cavalo, olhou para o machado duplo pendurado às costas de Hendor. - Você é um soldado? – ele perguntou rígido e desconfiado. - Não senhor. - Por que anda armado? - A viagem que faço é perigosa, meu senhor. O homem torceu o lábio. - Também não sou soldado, mas sei que não é qualquer um que tem a ousadia de ostentar um machado duplo, é uma

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arma que poucos sabem manejar. Hendor recebeu um olhar que dizia claramente “explique-se sem mentir”. - Não sou um soldado, mas sou um guerreiro. – disse ele. – Sou... um dos protetores da vila. - E não deveria estar na tua vila protegendo-a? – rebateu o homem. – O que o faz abandonar seus protegidos para invadir minhas terras? - Não os abandonei. Estou viajando por que... – Hendor se calou sem saber como dizer. – Faço uma jornada necessária para livrar meu vilarejo de uma ameaça. – o homem não respondeu, Hendor acrescentou. – Mais uma vez, senhor, lhe afirmo que não trarei nenhum mal. Preciso apenas de tua hospitalidade. O outro olhou pensativo e calado por um tempo, então disse: - Se você diz, rapaz... Talvez você possa me ajudar com um ou outro problema. Venha, deve estar cansado e faminto. Hendor acompanhou o dono das terras, caminhando pelos corredores entre as plantas cultivadas enquanto o outro ia a cavalo. - Chamo-me Vierg. – disse ele. – Estes campos pertencem à minha família há muito tempo, eu não os trocaria por nada, mesmo que toda a minha lavoura secasse e meus animais morressem. - Há alguém no topo desta montanha que coma da tua terra? – perguntou Hendor. Observava como era contrastante a pequena casa velha entre grandes e amplos celeiros, como um imponente senhor de baixa estatura cercado de guardas robustos e altos. - Há uma vila ao oeste que compra minhas uvas. – disse ele apontando para um canto distante onde via-se um arvoredo cercado. – E já vendi muita lã, mas minhas ovelhas foram todas devoradas pelos lobos, e até o cão que os guardava foi morto por alguma besta da floresta. - Lamentável. – disse Hendor compadecendo-se dos in-


fortúnios de seu anfitrião. Já podia distinguir os tijolos velhos e as janelas de madeira na casa pequena. - Sim... ainda tenho cinco ovelhas, que se escondem no meio das cabras. Minha filha cuida delas mais por afeição que por dever. - Tem família? - Minha filha é minha família... ah, como disse que se chama? - Hendor. - Hendor! – disse ele lembrando-se. – É... minha filha foi tudo o que me restou. Tenho alguns servos que trabalham nas colheitas e no trato da terra, mas pouco posso pagar por seus serviços, eles o fazem muito pela amizade que tenho com eles e que meu pai teve com os pais deles. – ele permaneceu em silêncio por alguns passos até que lembrou-se de outra coisa. – Também vendo para uma cidade que há ao leste, na descida da montanha. - A capital? - Acredito que sim, um carro puxado por belos cavalos vem comprar minhas uvas. Acredito que seja para o rei, pois pagam muito bem. – disse ele demonstrando o quanto aquilo o surpreendia. – Até mais do que eu pediria. - O senhor é um bom homem, senhor Vierg. – disse Hendor. - Obrigado, meu rapaz. Os dois alcançaram a casa, uma chaminé fumegava. Vierg desceu do cavalo e o amarrou numa trave ao lado da porta. Hendor aguardou a alguns passos enquanto o anfitrião ia até a porta e gritava para dentro. - Halina, temos visita. Então sinalizou para que entrasse após ele, e Hendor o seguiu. Pendurou a bolsa e o machado em ganchos ao lado da porta quando entrou. A casa era retangular, e apenas duas portas davam acesso a outros compartimentos. Onde estavam havia uma grande janela na parede de frente para a porta, e até lá uma mesa de madeira rústica exibia flores e dois

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jarros de água cobertos com pano. Dois armários montavam guarda aos lados da janela e uma lareira à esquerda, de frente para as duas portas, brilhava e aquecia o interior. Ali ele viu uma silhueta que prendeu seus olhos. Era uma moça cujo corpo esguio e formoso era coberto por um vestido simples e alaranjado. Sobre as costas finas uma cabeleira cacheada e dourada se derramava e a pele alva como as nuvens reluzia ao fogo. A moça tirava dali uma panela borbulhante com cheiro apetitoso. - Seja bem vindo. – ela disse se virando, um sorriso perfeito fazia parte de um rosto simétrico, de feições suaves e harmônicas, onde grandes olhos redondos e azuis fitavam o visitante. Seus cabelos dourados eram enfeitados com pequenas flores brancas. - Obrigado, senhorita. – ele disse. Olhou para Vierg, que o observava analisando seus gestos. - Chegou na hora certa. – ela falou em tom simpático e receptivo, a fala sempre acompanhada do sorriso. – Tem fome? - Muita. Vierg lhe indicou uma cadeira e ambos sentaram-se frente a frente à mesa. Halina encheu tigelas de cerâmica e serviu primeiro ao pai e depois ao visitante. Em seguida, pegando sua própria porção, sentou-se ao lado de Vierg. - Como se chama? – ela perguntou. - Hendor. – Vierg se adiantou. – Seu nome é Hendor, vem do vilarejo do sul. O sorriso da moça sumiu por um segundo, mas em seguida voltou. Aquilo assustou Hendor, era estranho saber que por pouco não era bem vindo. - Não tem família, Hendor? – perguntou Vierg. A primeira colherada do ensopado de carne estava a meio caminho e Hendor parou, ficou sério e seus olhos verdes sumiram num gesto soturno de seu rosto. - Nunca tive irmãos, meus pais eu também nunca vi. – disse ele. – Estão mortos, acredito. Só sei que sempre tive em meu


poder esta joia. – ele levou a mão ao pescoço e puxou de dentro das vestes uma corrente dourada de onde pendiam três pedras preciosas: uma vermelha como sangue, outra verde como seus olhos e uma transparente e brilhante. – São minhas peças mais valiosas, a única coisa que restou de meus pais. Não sei como chegaram a mim, nem o que significaram para eles, mas sempre soube que me pertenciam e que vinham deles. Os dois anfitriões se entreolharam fugazmente se voltaram ao alimento. - Sinto muito. – disse Halina com a voz de águas cristalinas. Como para se desculpar, Vierg comeu algumas porções do ensopado e disse: - Perdi minha esposa de um modo terrível. Halina o olhou incrédula. - Papai... – ela disse o repreendendo, mas Vierg a ignorou. Hendor, outra vez, interrompeu a refeição. - Era quase tão bela quanto hoje é nossa filha, graciosa como o voo dos passarinhos, bela como as flores da primavera, necessária para mim como minhas plantas precisam do sol. – ele disse num olhar vago, Halina comia de cabeça baixa, fingindo que não ouvia. – Consegue deduzir o que aconteceu? - Não me arrisco, senhor. - Foi um daqueles malditos gigantes de gelo. – ele falou entre os dentes. – Os yotun. Um deles saiu do vale enquanto minha esposa colhia as flores das colinas. Brincou com ela, fazia-a correr e saltava parando na frente dela. Eu observava de longe, e vi quando ele a pegou em sua mão e desapareceu na direção do vale. Não pude fazer nada. Halina subitamente ergueu o rosto com um sorriso simpático, mas que já tinha perdido muito do brilho de antes. - Você luta bem com este machado? – disse ela olhando para a arma pendurada atrás dele. Hendor teve dificuldades em se adaptar à súbita transição do lamento para a curiosidade da moça, compreendeu a

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pressa que tinha em não falar de sua mãe. - Eu... – ele falou sem ter palavra alguma na mente. Calou-se. Os três se abaixaram sobre a comida e não falaram até que terminassem. Qualquer palavra que dissessem buscando dar prosseguimento às cortesias seria desrespeito à lembrança dos mortos. Aí estava novamente o velho impasse, esquecer a dor da perda sem esquecer os mortos era uma tarefa possível apenas para os corações mais duros, e não havia nenhum destes àquela mesa. Halina retirou a mesa e serviu uma garrafa de vinho. Subitamente Hendor percebeu como se sentia bem acolhido, enquanto Vierg o via como um querido visitante. O sofrimento aproxima as pessoas. A primeira palavra dita depois daquele momento veio do dono da casa: - Está frio. – ele falou junto à porta, os campos começavam a se cobrir de uma camada fina de névoa branca, que vinha das colinas. – Eu sugiro que fique aqui esta noite, jovem Hendor. O frio à noite é cruel e perigoso. Hendor se aproximou de Vierg sob o umbral e seu rosto foi acariciado pelo ar gelado que vinha de fora. Achou surpreendente como o clima mudara em tão poucas horas. Sentiu outra vez o cheiro azedo do vale dos yotun, mas foi fugaz e distante, a memória parecia ter ficado marcada pela experiência e os sentidos se enganavam. - Já tive muito da sua hospitalidade, meu senhor. – disse ele voltando-se para a capa, a bolsa e as armas penduradas ao lado. - Então peço tua presença. Não estará em dívida comigo se ficar, esta noite vai ser mais fria que as últimas. Hendor decidiu ficar também porque se sentiria estranhamente solitário na viagem. A noite chegou e os três mantinham uma longa e agradável conversa. Hendor lhes contava sobre as aventuras que já


vivera, as situações que já enfrentara. A cada feito narrado ele se encantava com o brilho dos olhos de Halina e seu sorriso que lhe parecia trazer uma paz e satisfação únicas. O pai e a filha entraram cada qual em sua porta e Hendor se contentou em dormir no celeiro, onde, num patamar próximo ao teto, aos fundos do grande balcão, pernoitavam os dois pastores e três agricultores que cuidavam das posses de Vierg. De fato concordava com eles que a noite estava estranhamente mais fria que o de costume. - Parece que o velho fazendeiro realmente gosta de você. – disse o mais velho dos cinco servos, enquanto preparava para ele uma cama de feno coberta por uma manta de lã. – Ele não é muito hospitaleiro, os poucos viajantes que vi em suas terras comiam, bebiam e iam embora. - Eu desejaria esta sorte. – disse um outro mais jovem, que fumava um cachimbo sentado a um banco próximo à escada por onde desciam. Lá em baixo estavam amontoados os vários sacos de sementes que a lavoura gerara. – Nunca entrei na casa dele, o velho é louco pela filha. – ele disse com um vago olhar sonhador e lascivo. - A donzela Halina. – disse o mais velho no mesmo tom enquanto entregava a Hendor um cobertor. – Qualquer homem trabalharia metade da vida apenas para ter a oportunidade de cheirar seus cabelos. Hendor sentiu um fervor no peito ante aquele atrevimento, e teve de se conter para não afrontar aqueles homens. - Já quase toquei nela, um dia. – disse o que fumava o cachimbo. – Mas a moça é sagaz, é esperta como o pai. - Eu já quase a tomei. – disse um outro, que se deitava um pouco afastado, entre orgulhosas risadas. – Ela entrou no celeiro perseguindo uma cabra, eu estava aqui arrumando os sacos para a nova safra. Mas onde ela está, o pai está sempre perto. - Se o velho fazendeiro se ausentasse por apenas algumas horas, eu não levaria dois segundos para fazer aquele vestido

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em trapos. – disse o fumante, ao que todos os cinco se uniram a ele numa risada que soou nojenta e repugnante a Hendor. Este se deitou e virou-se de costas para os outros, que continuaram com suas insinuações. Tentou não ouvir, mas aquilo o atingia como a chuva se impregna nas roupas. Imaginou que a moça nem suspeitava o desrespeito que sofria ou o perigo que corria, sentiu a angústia de como aquilo era urgente. Era inaceitável. Por fim, ele dormiu. Sem perceber, viu-se subitamente correndo outra vez pelas pontes de cordas, que se transformaram em inúmeras serpentes se enroscando em seus braços e o impediam de se mover, ouviu o grito de seus conterrâneos, ouviu o bater de asas de dragão e o grito agudo da moça em desespero. Durante as poucas horas que dormiu, o tempo todo percebeu a palha farfalhando sob si, passou o período do descanso num estado de semi consciência, suspenso entre o sono e a realidade. Mesmo enquanto sonhava, sabia que poderia simplesmente se levantar quando bem quisesse, e por isso sentiu quando uma mão abriu suas vestes no pescoço e mexeu nas pedras que tinha penduradas pela corrente. Abriu os olhos só depois de lenta e silenciosamente sacar a espada, que dormia com ele ao lado. Segurou a mão do ladrão e deitou-lhe a lâmina no pulso; era um dos agricultores. Ele se espantou e exclamou o susto com a voz. - Se fizer isso outra vez, esta mão será o próximo pendente de minha corrente. – falou. Deixou-o voltar para sua cama e voltou a dormir. Dali para o dia, dormiu um sono pesado e sem sonhos. Começou a despertar com um ritmado som grave, que parecia o toque de um distante tambor. Sentia as tábuas do celeiro rangendo e estremecendo. Pensou ser outro de seus sonhos, até que ouviu bem nítido o grito agudo da moça. Saltou da cama espalhando cobertor, manta e palha, apanhou


o longo machado duplo no chão e saltou de cima do patamar. Correu para fora do celeiro e perdeu o ar, tamanha foi a surpresa. As cabras corriam espalhando-se, Halina e Vierg corriam desesperados na sua direção e atrás deles um yotun caminhava com um sorriso escarnecedor no rosto. Era alto como as mais velhas árvores que sobem na direção do céu constantemente enquanto vivem e sua silhueta enorme bloqueava grande parte da luz do sol que se erguia atrás dele. A casa de Vierg mal alcançava seus joelhos, sua cabeça se elevava até duas ou três vezes a altura do celeiro, dali os cabelos desciam como longas cordas negras. A pele era branca e azulada, sob ela as veias negras se estendiam. A face tinha olhos claros e cruéis, seu nariz torto indicava que conviver com a própria espécie era uma vida violenta, e os dentes tortos se exibiam num sorriso de escárnio e diversão. Vestia-se com um manto feito de grossos cipós trançados, a distância entre o pulso e a ponta dos dedos era quase o tamanho de um homem, e o ombro era desnivelado, de modo que ele tinha uma pronunciada corcunda. Era o yotun mais feio que já vira. Tudo isso ele percebeu em um curto instante, e no seguinte percebeu que um líquido espesso e negro lhe descia pelos cabelos, escorrendo pelo pescoço largo e pelo ombro, indo gotejar da estranha vestimenta enquanto ele andava; o gigante sangrava, era o mesmo yotun sobre o qual derrubara a torre de pedra. O terceiro instante foi ainda mais surpreendente, pois num movimento muito ágil para tanto tamanho, o braço mais baixo desceu e pegou Halina entre os dedos. - Não! – gritou Vierg num desespero terrível em ver seu maior pesadelo sendo reencenado. O quarto instante foi aquele em que Hendor ergueu o machado e pôs-se a correr. Passou veloz por Vierg, que lamentava com as mãos à cabeça, e começou a se aproximar do gigante. O yotun pareceu ouvir, virou para trás e trincou os dentes, rosnando seu rugido. Em seguida começou a andar

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numa passada mais larga, o que deu muito trabalho a Hendor para vencer a distância que ganhava do monstro. Apontava o machado para a frente e o peso auxiliava na corrida, as pontas dos pés mal tocavam na terra. Via os cabelos dourados de Halina agitando-se enquanto ela padecia sob o movimento constante da mão do yotun, seu grito se misturava ao estrondo dos passos poderosos. Ele ia em direção às colinas. - Deixe-a! – ordenou. O gigante se virou e pôs a outra mão ao chão, o que causou um tremor que quase fez Hendor cair, e imediatamente toda a vegetação morreu, o gelo começou a se formar sobre a terra mais rápido do que ele poderia evitá-lo. A perna esquerda de Hendor ficou presa no gelo até a coxa e ele perdeu preciosos segundos na tarefa de quebrá-lo com o machado enquanto o gigante retomou a caminhada. Ele já andava entre as colinas, cada passo vencia duas delas, e quando Hendor retornou à corrida, subiu bem rápido a encosta e do pico saltou na direção do gigante. Conseguiu alcançar a barra de suas vestes e prontamente pôs-se a escalar, mas um dos cipós que compunha seu manto desprendeu e ele caiu capotando sobre os arbustos. Não perdeu tempo, usou o cipó para pear o machado, enrolou a corda natural no braço e voltou à corrida. Subiu outra vez uma das colinas e do topo se lançou ao ar em grande distância, como fizera antes, mas dessa vez fazia o machado pendente girar. Quando soltou, a arma foi projetada na direção do gigante trazendo consigo o cipó amarrado. A lâmina dupla penetrou na pele do yotun e enganchou no ombro mais baixo, o que causou um espasmo involuntário e ele parou de andar e deu atenção à dor, emitindo grunhidos graves. Hendor se pendurava no cipó que balançava desordenado. O gigante se virou contra Hendor, tentando se livrar da arma com a mão desocupada. Esse intervalo foi o suficiente para que Hendor subisse rapidamente pelo


cipó e alcançasse o ombro da criatura, onde conseguiu ficar de pé. A orelha que vez ou outra surgia entre os cabelos embolados tinha metade de seu tamanho. Ele desprendeu o machado do ombro, e num pesado e amplo golpe, atingiu-lhe o olho direito. Atordoado, o gigante cambaleou, agitando na mão a moça desesperada com seus gritos de terror, e Hendor por pouco não caiu; teve de cravar outra vez o machado no ombro para se firmar. Segurou-se num dos cipós das vestes do gigante, adquirindo estabilidade, e descreveu outro arco com o machado, desta vez dirigido ao pescoço. A pesada lâmina penetrou fundo na carne e o sangue negro jorrou. O gigante urrava e o sangue derramava-se como uma bizarra cachoeira. O sangue que atingiu Hendor se mostrou gelado como as águas que rodeiam o gelo no mar. Em pouco tempo o gigante caiu de joelhos. Cuidadosamente ele esticou o braço e depositou a moça no topo de uma colina e foi dar atenção para o corte no pescoço. Hendor já estava pronto para emitir sua característica risada quando, no gesto de cobrir a ferida com a mão, o gigante acidentalmente o golpeou com um de seus enormes dedos. Hendor perdeu os sentidos antes de ser lançado ao ar.

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capítulo vi

a TrilHa quE nãO estaVa no chÃo



Começou sentindo a maciez dos lençóis sobre os quais jazia, e o reconfortante calor preservado pela manta de lã sobre si. Permanecer parado ali gerava um estado suave e relaxante de paz, evitava se mover, pois quebraria o prazer. Sentiu cada detalhe da superfície da pele, e os músculos renovados no descanso. Um vento fresco e puro lhe soprava a face, um cheiro forte de alguma erva estava armazenado debaixo do cobertor. Sentiu fome e sede. A claridade que atravessava as brechas do telhado e acendia suas pálpebras por dentro denunciou que estava ainda no dia, apesar de não ter certeza de ser o mesmo dia de que se lembrava. Na verdade, não se lembrava de ter dormido tão bem em muito tempo. Um pé nos sonhos, outro no mundo desperto; as lembranças eram quebradiças e inconstantes, vagas e confusas. Resolveu mexer o braço. Os músculos doeram tanto que pareciam estar se desfiando dentro da pele e ele se encurvou num movimento involuntário, o que causou dor semelhante em outras partes do corpo, não conteve um grunhido abafado que lhe escapou sem nem esperar que abrisse a boca para gritar. - Ei, calma. – ouviu uma voz masculina ali perto. Sentiu as mãos o depositando de volta no leito. – Está tudo bem, amigo. Reconheceu Vierg pelo gesto, não pela voz. Não queria abrir os olhos, ainda tentando recuperar o conforto e a paz

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de antes. Não queria falar, pois seria a última âncora fincada que o prenderia de volta à realidade. Mas queria saber o que significavam a imagem de um homem enorme recortada contra o céu azul, uma sensação de necessidade urgente de impedir algo, e a lembrança de um frio terrível e de estar envolto num líquido preto. Assim, abriu os olhos e a boca. - Vierg... – viu o velho fazendeiro sentado numa cadeira e recostado à mesa de sua casa, percebeu que a cama onde estava era dentro da casa do anfitrião, o que, lembrava-se bem da curta conversa com os servos, era inédito. – O que aconteceu? - Um yotun pegou Halina... – Vierg começou, mas Hendor exclamou “o que?” e se levantou, mas a dor o travou ali mesmo. – Calma, meu amigo... você já a salvou. Hendor respirou e deitou-se. Agora sim as lembranças se alinharam e começaram a fazer sentido. Vierg continuou: - Você deixou o gigante ferido e ele se foi deixando Halina. – disse ele. – Ela voltou para a fazenda e me encontrou, disse que você tinha caído. Chamei meus servos e procuramos entre as colinas até pouco antes do anoitecer, só então o encontramos caído entre os arbustos... – ele deu uma pausa onde montou uma expressão de surpresa e admiração. – muito ferido. Hendor se descobriu e olhou para si, quase toda a superfície dos braços e das pernas estava roxa e preta, havia inchaços em muitos lugares, e a velha dor no joelho de quando caíra do precipício voltava. - Obrigado, agora tenho a chance de dizer. Obrigado. Pensei que iria perder minha filha como... – ele se calou para conter os ânimos, Hendor sabia que ele estava para dizer “como perdi minha esposa”. Hendor achou aquilo estranho, a gratidão de Vierg era grande para com ele, mas agira mais por si próprio que pelo dono da casa. Sentiu que, apesar do tão pouco tempo, muito de sua paz era dependente do bem estar daquela jovem. - Onde ela está? – perguntou.


- Está perto das vinhas, lá crescem as ervas que estou usando para tratar de você. Hendor quis levantar, mas seria doloroso como antes. - Não a deixe perto dos servos. – disse Hendor, ao que Vierg juntou as sobrancelhas. – Eles não a respeitam, e têm intenções más. - Agradeço sua preocupação, Hendor, mas não me ocupo com eles. Já sei que a desejam, eu vejo como param o trabalho para vê-la passar, vejo como tentam se mostrar para ela. E já adverti Halina e ela anda com uma faca debaixo do vestido. Além disso, sua presença aqui os deixou menos ousados, já viram que você enfrenta um gigante por ela, que dirá simples homens. – dizendo aquilo, empertigou-se na cadeira, como se de repente algo o deixasse inquieto e soturno, e olhou vagamente pela porta. – Ela passava o dia aqui, esperando que você acordasse. De repente o coração bombeou o sangue rápido, e ele sentiu um ligeiro tremor percorrer o corpo, mas quis que Vierg não visse. - Quanto tempo passou desde que... - Não muito. Isso foi ontem, e já está anoitecendo. - Ah... – Hendor exclamou fechando os olhos. – Dois dias e uma noite! – Lembrou-se de que poderia já estar completando a jornada, e que não sabia quanto tempo levaria para que Krondarg decidisse voar contra a vila. – Preciso ir... – disse ele, de repente. - O que? Não! Não pode ir agora, precisa se curar. – Vierg disse opondo-se. - Eu já passei por isso há pouco tempo, e me curei rápido. - Se você se levantar agora, pode piorar. – disse Vierg com firmeza. – Espere até estar recuperado, você não vai chegar muito longe se viajar ferido dessa forma. Ele não queria admitir, mas Vierg estava certo. ***

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O dia seguinte chegou e ele não se sentiu melhor. Não saiu do leito em momento algum e o menor movimento lhe era um suplício. E os outros quatro intermináveis dias seguintes foram iguais. Era alimentado pela moça, ela se sentava diante da cama e o ajudava a se pôr sentado; punha o prato em suas mãos e o observava comer enquanto ele a observava; os lábios rosados repousando um sobre o outro numa seriedade graciosa, a pele alva e pura emoldurada pelos cabelos de fios de ouro. Hendor mal sentia o sabor da comida tamanha era a prisão que o olhar de Halina provocava, ele se lançava naquele olhar e dele bebia, sedento e insaciável como um moribundo saindo do deserto. Não suportava quando tinha que desviar daqueles olhos, e quando voltava para eles sentia que ficaria ali enquanto vivesse. Hendor percebeu, nesses dias, um aspecto naquele olhar não visto antes: uma gravidade, uma valentia, até mesmo uma dureza, que se escondia no meio da beleza. Os olhos azuis brilhantes eram serenos mas pesavam em quem os olhasse, assim como a beleza perigosa dos brilhos de uma tempestade, ou a poderosa serenidade disfarçada do oceano. Todos os dias ele esperava por aquele momento, era a paz de seu dia, era o que o curava mais que os cuidados médicos. Quando via que seu corpo estava quase destruído, que não conseguia nem se pôr de pé, pensamentos lhe diziam que ele não seria capaz de completar a jornada, diziam-lhe que ele não seria capaz de enfrentar Krondarg mesmo se encontrasse o que procurava, mas era Halina que dissipava aqueles pensamentos, que o fazia querer se erguer dali. E um dia ele se ergueu. Terminou o prato, o entregou a Halina e, enquanto esta virava as costas para depositá-lo na mesa, ele apoiou as mãos nos lados da cama e se impulsionou. Quando ela virou de volta, deu com ele sobre si, inclinado para a frente num erro de equilíbrio. Ela prontamente o segurou pelo ombro e pela


cintura, para ampará-lo, mas ele já tinha se recuperado, e pela primeira vez os dois se viram de perto. Era incrível como ela, pequena e bela, naquela aparência frágil, era capaz de vencê-lo apenas com aquele olhar poderoso e singelo. Ela se afastou, um tanto encabulada, pegou o prato de cima da mesa e saiu de perto. Hendor a observava andando pela casa semiescurecida, não conseguia desviar dela os olhos. Ela saiu e ele se deixou cair na cama outra vez. Então sentiu uma agitação no peito e no estômago quando percebeu que melhorava, e isso indicava que a hora de partir estava se aproximando. Surpreso, porém, percebeu que não queria. Devia, sabia, mas não queria. Viu que devia partir antes que não fosse mais capaz de ir, antes que se tornasse totalmente dependente do olhar de Halina. Levou mais dois dias até se sentir em condições de prosseguir, não estava totalmente curado, mas podia andar e evitar os perigos como Gowlin lhe prevenira. Nesses dois dias acontecia o que prevera, a cada vez precisava mais do olhar de Halina e devia ir. No último desses dois dias, quando a tarde começava, Vierg estava dando instruções aos seus servos e Halina entrava para dar de comer a Hendor. Ele já estava sentado à mesa, em vez de passar o dia deitado, e ocupou-se de observá-la o máximo que podia. Mantinha os olhos abertos na sua direção, desenhando com a percepção sua silhueta esguia e curva, os cabelos dourados avolumados às costas, o modo como a pele alva reluzia quando o sol entrava pelas janelas, os fugazes olhares que ela lhe retribuía. Estes olhares eram como raios, rápidos e devastadores. Ela se sentou à mesa e comeu com ele, pouco falavam. Ao fim da refeição ele se pôs de pé e andou até onde suas coisas estavam penduradas, ao lado da porta. Prendeu o cinto de onde pendiam as duas bainhas das espadas curtas – o machado se perdera – cobriu-se com a capa e

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voltou-se outra vez para Halina. Esperava encontrá-la à mesa, mas ela tinha se aproximado enquanto estava de costas. O olhava de baixo para cima, os olhos azuis, além da gravidade e do poder, carregavam um pesar. A tez branca avermelhava-se, os lábios rosados encurvavam-se levemente para baixo, e nenhuma marca ou linha pronunciada se formava no rosto. Aquele olhar era novo para ele, dizia tudo o que a boca não dissera. Os olhos eram mais fortes que a voz, falavam o que a última não seria capaz, mas nunca se podia com eles dissimular nada. Ela compreendera que ele partiria, e não obstante sua tristeza evidente, ela não o impediria. - Cuide-se, cuide de seu pai. Ele precisa de você mais do que você dele. – Hendor falou. – Não se aproxime das colinas e muito menos dos servos de teu pai. - Sei me cuidar, herói que não tem medo. – ela disse com sua melódica e limpa voz. – Estou preocupada é com você. - Eu sei me cuidar. - Não, você não sabe. - Eu desejaria ficar... – ele disse ousando acariciar o contorno de seu rosto por baixo da cortina de cabelos. - Mas não pode. – ela falou com os olhos marejando por um instante, mas secaram logo em seguida. – Sua casa não é esta, não somos nós a gente que você deve proteger, e sua jornada não acaba aqui. Ele passou dos olhos para os lábios, e quis deixar ali um beijo, mas deu as costas e saiu pela porta. Atravessava apressado os campos onde as cabras pastavam tranquilas pensando nas pessoas da vila. O tempo todo, a cada passo que dava, sentia que precisava voltar. A ausência da moça já lhe era dolorosa, e isso era pior sabendo que estava ainda próximo, que poderia apenas virar as costas e correr para a casa, e ali vê-la mais uma vez. Contudo, em nenhum instante considerou voltar realmente.


Os campos que pertenciam a Vierg eram vastos, e ele caminhou por muito tempo até que olhasse para trás e a casa e os celeiros estivessem bem pequenos e perto do horizonte. À frente, entretanto, a grama começava a brotar de um chão mais lamacento e aquela pradaria se estendia até o limiar da floresta escura, que já formava uma muralha de árvores antigas e ameaçadoras à frente. A copa da primeira árvore sob a qual passou já substituiu o calor do sol por um súbito frio angustiante, ali ainda se via fachos de luz amarela cortando a imagem sombria da mata, a grama e a lama estavam ali ainda também. Ele parou após se meter um pouco mais fundo na orla, de modo que olhando para trás ainda pudesse distinguir na distância os pontos pretos que eram as construções das terras de Vierg. Deu um último olhar para lá, como se estivesse se despedindo de Halina, que significava sua paz e sua serenidade, para dizer olá outra vez aos desafios e às ameaças. Mas quando se voltou para a boca aberta da floresta, estacou. Só conseguia ver até seis árvores à frente, dali em diante estava tudo mergulhado na escuridão, que ele achou surpreendente o quão densa era mesmo sob o sol da tarde. Era um negrume sólido e brusco, parecia marcar um limiar, parecia que a vida e a terra terminavam ali, e adiante estava o inexplorado e temido vazio. Ali dentro certamente se perderia, sem ter o sol para guiá-lo. Sentiu falta do bosque por que passava todas as manhãs em sua vila. Começou a caminhar outra vez, bem devagar, enquanto tentava se lembrar das instruções de Gowlin. O chão deixou de ser lamacento e passou a ser macio. Pisava uma quantidade enorme de galhos e folhas velhas que já tinham se tornado uma só substância. As árvores ao redor, que ele ainda conseguia ver, eram muito velhas e imensas, largas como cabanas, altas como montes. Seus troncos subiam reto, na maioria, com cascas rugosas que exibiam fendas profundas;

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a casca era negra e cinzenta. A base do tronco, onde ele se suavizava numa inclinação até se transformar nas raízes, era mais alta que Hendor. Outras árvores, uma espécie mais baixa porém grandiosa, tinha um tronco que subia encurvando-se para várias direções, formando galhos nodosos que apontavam para cima, de onde cipós verde musgo desciam como cabelos. As folhas dessas árvores eram cinzentas. Hendor não sabia se a angústia que sentia era pela falta de cor e vida na floresta, apesar de a floresta estar bem viva, ou pela falta de Halina que, ele sabia, perduraria dali para frente. Aproveitou enquanto ainda tinha um pouco de luz e apanhou um galho, rasgou um pedaço de pano grande que trazia dentro da bolsa e enrolou na ponta. Também dentro da bolsa, apanhou um par de pedras pequenas e um frasco de onde derramou óleo sobre a ponta do galho coberto de pano. Riscou as pedras e viu as fagulhas brotando. Continuou riscando as duas pedras até que o óleo queimasse e o toco se tornasse uma tocha. O fogo irrompeu dissipando as trevas e revelando tudo o que nelas se escondesse, e assim ele viu muitas criaturas rastejantes fugindo da luz para dentro da turfa cinzenta e vários insetos voadores se espalhando. Mesmo sob a claridade quente, a floresta ainda era sem cor. Com desgosto, foi deixando para trás a fresta de claridade por onde entrara, se afastando cada vez mais da luz solar, de Halina, de sua terra e indo se meter cada vez mais fundo no desconhecido. Não temia, mas todos sabem que é muito mais fácil ser atacado de dentro da escuridão. Buscou na memória as palavras de Gowlin e lembrou-se que não devia sair da trilha. - Que trilha? “A trilha não está no chão”. - Ele não poderia ter sido um pouco mais claro? Olhou para cima e se sentiu um idiota quando se deparou com escuridão tão densa quanto a que o cercava pelos lados. Decidiu se deslocar o mais reto que seu senso de direção lhe permitia.


Depois de muito saltar sobre raízes e passar por baixo de outras raízes tão grossas quanto as árvores de sua terra, escorregar por encostas que surgiam do nada, ouvir sons de criaturas que nunca ouvira antes, desde uivos de lobos a estranhos gorgolejos guturais, algo à frente chamou sua atenção. Todas as árvores eram escuras; raízes, casca, folhas, cipós e até a madeira viva dentro da casca tinham cores que iam de um cinza médio ao mais profundo negro, só não mais profundo que a escuridão que preenchia a floresta. Mas ali ele viu um tronco fino de uma árvore pequena que se destacou das demais já a grande distância, pois a luz da tocha a acendia, refletia unicamente em sua madeira clara como a pele humana, suas folhas verdes e saudáveis e as flores pequenas e brancas. Ele olhou fascinado para a árvore e respirou a alegria que ela lhe inspirava. Era como um gole de água doce depois de nadar no mar. Venceu raízes, buracos, um riacho de águas lentas e barrentas e sentiu galhos pontudos de arbustos agarrando sua capa até conseguir estar diante da árvore clara. Ficou ali um minuto deslizando a palma da mão em sua superfície lisa, pegando suas folhas e sentindo a maciez das pétalas de suas pequenas flores até que outra coisa chamou sua atenção: à direita uma árvore semelhante aparecera, também pequena e clara, um pouco mais longe. Foi correndo até ela, era a mesma espécie, a mesma maciez e leveza, e dava-lhe a mesma satisfação. Olhou para trás, o caminho de onde viera, e lá estava a primeira árvore, e quando olhou novamente à direita estava lá mais uma árvore se destacando no meio das velhas, feias e sombrias árvores escuras. - A trilha não está no chão... – ele disse rindo. Foi seguindo as árvores claras, somente quando alcançava uma árvore conseguia avistar a outra, e elas o levavam numa direção certa, lhe pareceu. Nunca havia mais de uma, e nunca faltava. Hendor estava entusiasmado com o progresso, cada árvore que via emergindo da escuridão tenebrosa era uma porção de

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alegria que o enchia. Subitamente as ilusões do vale dos yotun voltaram, ouviu novamente o grito de desespero dos seus protegidos, ouviu o terrível bater de asas que tocava como um prelúdio à morte, a voz de Agbar ecoou no nada, propagada pelo nada, e dizia-lhe constantemente e incessantemente “você vai falhar, você vai falhar”. Hendor forçou-se a rir. - Não passam de ilusões! – gritou bem alto e sua voz quebrou o dominante e antigo silêncio. Não ouviu mais nada dali para a frente. Andou muito e não viu a diferença de claridade quando o sol se pôs acima das copas negras, era como estar dentro de uma caverna. Julgou-se cansado o bastante para descansar, os ferimentos ainda não lhe permitiam caminhar no mesmo ritmo de antes. Teve fome quando parou, e sede quando terminou de comer dos suprimentos que carregava. Vierg lhe dera liberdade para levar o que precisasse na viagem, e como saiu sem se despedir do anfitrião, pois este insistiria que ficasse mais tempo, pegara pão, frutas e uma garrafa pequena de vinho. Ainda tinha água, mas deu-se um gole abundante de vinho, que lhe desceu quente e confortante. Transformou a tocha numa fogueira e recostou-se na árvore clara, dormiu sem dificuldades e sem pensar muito. Não percebeu que dormiu mais do que costumava e despertou pelo desconforto e pelo frio. Foi estranho acordar no meio da escuridão e saber que provavelmente dormiria outra vez sem ver o sol, sentiu falta da beira do abismo onde começava todas as manhãs. A fogueira estava apagada, tinham restado brasas sob as cinzas e dali ele acendeu outra tocha. Comeu mais, bebeu dois goles do vinho para reanimar os sentidos e a vontade e prosseguiu. Seguia a trilha das árvores, até que algo muito estranho ocorreu. Alcançou mais uma árvore clara e surgiram duas. Uma era como todas as outras, mas a segunda era linda: prateada e reluzente, estava mais distante que a árvore clara


e parecia emitir luz própria. Não tinha folhas e seus galhos eram formosos, harmoniosos. Era uma rachadura na triste escuridão. Hendor olhava fascinado para a árvore prateada e se sentia fortemente atraído por ela. Lançou um último olhar à árvore clara, comum como as outras que já seguira desde que entrara na floresta, e esta lhe pareceu apagada, sem valor, desinteressante. Quando olhou novamente para a árvore prateada, estava ainda mais linda que antes, como se fosse possível. Não decidiu nem ponderou, simplesmente andou até lá. No caminho sentiu teias se prendendo à roupa, galhos golpeando-lhe os joelhos e se partindo em estalidos, gravetos sendo esmagados por seus pés, e atravessou um curto charco, onde seus pés afundaram até os tornozelos. Mas só via a árvore prateada, o restante pouco importava, pouco valia. Ela estava bem ali, diante dele, à distância de uma mão estendida. Ele largou a tocha e estendeu as duas mãos para tocar a árvore. Sua claridade era tão forte que ofuscava a vista, mas ele forçava-se a manter os olhos abertos, não ousaria fechar os olhos diante de tanta beleza. Hesitou por um segundo e tocou a árvore. Mas não tocou. A luz prateada desapareceu, a árvore desapareceu. Tudo ao redor desapareceu. Estava sozinho no escuro outra vez.

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capítulo vii

OlHos de ToDaS As CoRes



Escuridão. Acima, abaixo, por todos os lados. Ansiava pelo brilho de uma estrela. Estava escuro onde quer que olhasse e até dentro dele mesmo, tamanho era o arrependimento por ter escolhido a árvore errada. Teria sido mais uma ilusão? Tateou com a ponta do pé procurando pela tocha e percebeu que pisava um chão lamacento e úmido, encontrou a tocha como um toco semi-imerso numa poça d’água. Ouviu, bem distante, uma voz que riu e sumiu. - Quem está aí? – ele disse desafiador sacando a espada que provocou uma nota aguda e comprida no meio daquele silêncio. A resposta foi outra risada, um pouco mais perto desta vez. Não ouvira passos, e não via absolutamente nada, por mais polido que fosse o metal de sua lâmina não havia um raio de luz ali para nela refletir. - Quem está aí? – ele gritou furioso contra as trevas. Riu a voz outra vez; forte, junto ao seu ombro esquerdo. Ele virou cortando o ar sem atingir nada. Percebeu que parecia uma voz de mulher. - O que você quer? – ele gritou. A escuridão se dissipou ao redor dele como se tivessem retirado de cima um cobertor. Viu-se em uma clareira iluminada pela lua cheia suspensa sobre sua cabeça. O chão era

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encharcado e as árvores ao redor eram negras, subindo longamente na direção do céu com suas copas coníferas de folhas cinzentas, causando a sensação de estar olhando a lua do fundo de um grande poço. A voz de mulher falou outra vez: - Agora sim está ficando interessante. – e seguiu-se a risada. Apesar da luz, ele não viu a mulher, e não conseguia seguir sua voz; ela parecia falar de todos os lugares em redor ao mesmo tempo. Hendor segurava a espada diante de si, esperando ter a que reagir, e rodava vigiando todas as direções. Todos os pontos pareciam iguais, as árvores eram tão semelhantes que as posições de galhos se repetiam de uma para a outra. Até a lua estava parada simetricamente no centro do círculo de céu que via e nenhuma estrela brilhava à sua volta; não sabia de onde tinha vindo e não saberia reencontrar a trilha outra vez. A voz riu outra vez. - Onde você está? – ele berrou até doer a garganta. - Aqui. – falou, e como num eco, a palavra “aqui” repetiu-se constantemente vinda de várias direções, parecido com o modo como a voz de Agbar lhe soara antes. - Apareça! - Palavra correta, finalmente. Vários galhos que havia no chão começaram a se mover, se arrastando sobre a lama, atraídos para o centro da clareira. Batiam em suas panturrilhas, davam a volta e continuavam. Outros galhos e uns poucos troncos surgiram rastejando como se algo os puxasse de dentre as árvores que cercavam a clareira, juntavam-se aos outros se amontoando no meio. Não exatamente se amontoando. Começaram a se sobrepor e a se encaixar, os troncos maiores formaram colunas e os galhos menores se montaram em paredes entre as colunas até gradativamente assumirem o aspecto de uma cabana no meio da clareira; tinha o teto inclinado para os dois lados e duas janelas entre as quais havia uma pequena porta. Até uma chaminé de barro escuro se ergueu despontan-


do no telhado de galhos. Hendor olhou espantado quando a porta da cabana se abriu e dali saiu uma mulher. - Entre, por favor. Deve estar com fome depois de tanto tempo nessa floresta venenosa. – ela disse. Estava coberta por uma capa e capuz negros, que não deixavam ver um pedaço de sua pele. A cintura estava marcada por um cinto feito de argolas de ouro. Por cima da clareira duas corujas brancas se aproximaram e permaneceram voando em círculos a baixa altura de sua cabeça. - Você é a bruxa. – ele disse em desprezo. Por baixo do capuz ele viu que ela fez um movimento com a cabeça, virando-a para o lado, exprimindo curiosidade. - Bruxa? – ela falou cínica. – Por que não irmã da natureza, conhecedora do que é oculto? Por que escolhe me chamar pelo nome menos nobre e mais injusto? Ele a encarava preparado para revidar qualquer súbito ataque, mantinha a espada em riste, entre ele e a mulher. Ela fechou a distância entre os dois com curtos passos leves que não faziam barulho quando pisava as poças d’água. Estendeu a mão, a manga da capa era maior que seu braço, e Hendor imediatamente reagiu. - Não tente nada... – ele disse levando a mão ao seu pescoço, ele pretendia dizer “velha maligna”, mas o gesto bruto fez o capuz cair para trás revelando seu rosto jovem e belo. Ela tinha olhos perversos de uma estranha cor alaranjada e um sorriso cruel nos lábios carnudos e vermelhos. Ele a soltou e recuou alguns passos, parecia que a beleza da mulher o perturbava. De longe, viu toda intenção de reação em si ser estranhamente apagada. Olhava entorpecido para seus cabelos negros e brilhantes como o azeviche que contrastavam violentamente com a alvura de sua pele, que suavemente reluzia como a lua. Ela notou, e seu sorriso se pronunciou ainda mais. Levou as mãos ao cinto de argolas douradas e o abriu, deixando a capa ceder e deslizar de sobre os ombros, caindo na terra úmida.

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De dentro da capa ela fez um passo com seu pé descalço branco e gracioso, que afundou na lama. Hendor recuou um passo maior que o dela pondo a espada diante de si outra vez, nem notara que a tinha abaixado. - Fique longe de mim. – a voz saiu baixa e um pouco trêmula. Ela se cobria com um vestido preto de um tecido fino e pesado que repousava justo e suave sobre o busto firme e sobre a curva acentuada entre sua cintura fina e seus quadris largos. A alça que o sustentava nos ombros era fina e feita de sementes trançadas em cipós finos, e os ombros e braços estavam nus, a despeito de alguns adornos feitos de elementos da floresta e algumas pedras preciosas penduradas ao pescoço. - O que houve, meu campeão? Não precisa ter medo de mim. – ela disse provocante e altiva. - Não tenho medo de nada, bruxa! – ele falou entre os dentes sentindo a raiva lhe aquecer o peito. - Não teme nada, meu campeão? – ela disse se aproximando outra vez, cada pé que tirava de dentro da lama voltava limpo e puro. – Nem a escuridão da floresta? - Não temo nada. – sentiu seu orgulho atiçar pelas palavras da bruxa e ao mesmo tempo se viu perdido nos olhos alaranjados; queria desviar os olhos, queria recuar e manter a bruxa longe de si, mas não conseguia. - Não teme as misteriosas e sanguinárias criaturas que habitam os cantos da terra ainda desconhecidos pelo homem? – ela falou se aproximando até a imagem de seu rosto ocupar quase toda a visão de Hendor. - Não temo nada. – ele disse percebendo um leve tremor perpassar seu corpo quando as mãos pequenas e cheias de anéis coloridos repousaram sobre seu peito. Ela aproximou dele os lábios vermelhos escuros como o vinho, ou o sangue. - Nem teme as vozes que vêm de lugar nenhum e são emitidas por gargantas ocultas e bocas que não se veem? Ele subitamente a afastou com a mão que não segurava a


espada. Lembrou-se das vozes do seu povo e a da voz de seu mestre, ocorreu-lhe que na floresta aquelas ilusões tivessem vindo dela, e isso o libertou do estupor de seus olhos. - Eu já disse, bruxa, fique longe de mim. Por um segundo sua boca fez uma expressão amarga e logo assumiu novamente a aparência atraente como a de uma fruta suculenta. Para espanto e admiração de Hendor, seus olhos passaram de alaranjados para o tom azul fechado do alto mar, a segunda cor surgiu no centro do laranja como uma gota de vinho dentro da água limpa e se espalhou subjugando a primeira por completo. - Não tem medo de nada? – ela disse em dissimulada surpresa. - Não... – ele tentava olhar para as árvores da clareira e buscar um lugar para onde correr, mas outra vez aqueles olhos o prendiam. - Entre comigo em minha cabana, lhe darei o que comer. Ele sentiu um desejo imenso de segui-la na direção da cabana de galhos que surgira ali, mas a voz de Gowlin advertindo-o em sua mente o fez despertar. - Não! – ele disse veementemente. Os olhos azuis imediatamente assumiram o tom do brilho prateado da lua e ele outra vez se viu preso naquele estupor. - Você é um grande guerreiro, o mais destemido. Preciso de alguém que me proteja contra os caçadores. – ela disse ainda se aproximando. - Você não precisa de proteção, é uma mulher poderosa. – ele disse admirando-a, mas uma parte dele repudiava o que acabara de dizer. - Ah, meu querido campeão, preciso sim. – disse ela. – Cada animal morto, cada árvore derrubada é um golpe que me fere, a floresta é minha vida. Fique aqui comigo. – ela pôs as mãos ao redor de seu pescoço. – Faz tanto tempo que não sou amada. A parte dele ainda consciente o obrigou a fechar os olhos, e na escuridão de suas pálpebras, quando olhou para dentro

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de si, viu Halina. Ela estava com a mesma expressão triste e amuada, porém forte, de quando ele a deixara. Abriu os olhos e empurrou a mulher com as duas mãos. - Não! – ele gritou. A mulher se desequilibrou e quase caiu. Seus dentes rangeram em fúria e ela logo em seguida se empertigou, assumindo outra vez a austeridade de antes. - Venha, meu querido campeão. – os olhos prateados foram preenchidos por uma cor rósea, que causava sabores adocicados na língua de Hendor. – Comigo você terá as riquezas que quiser, e o poder de que precisar. Ela se aproximou outra vez, em cada passo que dava ela se insinuava e exibia as formas simétricas de seu corpo, deslizando as mãos sobre os quadris e cintura. Mas a lembrança de Halina ainda era forte em sua mente, e lhe dava vigor. Ele olhou bem fundo naqueles olhos róseos, desejou-a imensamente, mas pôs entre eles a ponta de sua lâmina. Ela parou. - Não quero nada que você me oferece, bruxa desprezível. – uma parte dele ainda relutava para dizer aquilo. – Apenas me diga como voltar para a trilha. Do espanto pela ameaça a mulher voltou ao sorriso cínico. - Então, depois de tanto sondar, você mesmo me diz o que quer, meu campeão. – ela falou com uma risada baixa. As duas corujas pousaram em seus ombros nus, fincando em sua pele as garras curvas, mas dali não saiu sangue algum nem pareceu causar qualquer incômodo a ela. - Não quero nada de você, bruxa! - Mesmo? – ela disse cruzando os braços, seus olhos se tornaram cinzentos e brilhantes. – Olhe ao redor, herói destemido. Se puder me indicar a direção por onde você voltará à sua preciosa trilha de árvores puras, eu o deixarei ir. – Hendor relutou para não correr os olhos em volta. – Você está perdido, e sem


mim você vagará pela floresta até morrer de fome. - Eu cheguei até este ponto sem ajuda. – ele disse resistente à verdade daquelas palavras. - Sim, meu querido campeão. – ela agora falava ironicamente. – Contudo, não sairá daqui sem mim. Algo que ele não notara antes lhe chamou atenção, olhou outra vez os adornos que ela usava nos braços e percebeu que uma pulseira era feita de dentes, um dos colares tinha pendurados ossos pequenos manchados de sangue e de seu pulso direito um olho pendia amarrado em barbantes. Hendor sentiu um incômodo ante a ideia de aquele ser o olho de Lorthon. Não sabia dizer se tinha sido desatento ou se aquilo realmente não estava ali antes. - O que você quer de mim? – ele perguntou. - Não, não tão rápido. Está muito apressado, herói destemido, será que eu vejo uma ansiedade por sair de minha companhia? – ela disse com um sorriso perverso que foi respondido por um olhar transbordante de ódio. – Está arrependido de ter deixado sua preciosa trilha? – ela riu. Hendor por pouco não a golpeou com as espadas, tamanha foi a cólera que aquelas palavras zombeteiras lhe injetaram. - Não estou com paciência para jogar. – disse ele, ameaçador. – Se é o único meio, me diga como saio daqui, ou eu a matarei, mesmo que depois eu venha a morrer de fome nessa floresta. - Direi meu preço, guerreiro. – ela falou divertindo-se com a raiva de Hendor. – Mas não agora. Você recusou minha hospitalidade e meus presentes, os últimos que fizeram isso deixaram comigo um pouco de si. – ela falou acariciando a pulseira de dentes. – Mas acredito que esta ideia não lhe cause medo algum, estou certa? – ela riu. - Seu preço será minha misericórdia! – ele disse não podendo mais se conter onde estava, aproximou com as duas espadas em riste, o peito arfando de fúria. Imediatamente as duas corujas saltaram dos ombros da

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bruxa e investiram contra ele. Ele as atacou e as espadas, ao atingirem as penas das aves, foram repelidas como se batessem numa cota de malha. Ele tentava espantá-las com os braços, mas o bater de suas asas o cortava, suas penas eram afiadas como faca. Não conseguiu evitar as dolorosas bicadas em seus ombros e pescoço. Uma delas cravou suas garras no seu ombro, que atravessou a capa e as vestes e foi perfurar a pele, e o bicava no meio da nuca entre seus cabelos enquanto a bruxa gargalhava em sua postura elegante. Ela falou uma palavra numa língua desconhecida e as corujas voltaram, deixando para trás diversas feridas na pele de Hendor. - Engano seu, guerreiro. Eu sou a senhora desta floresta, eu sou Ikendra, eu é que cedo misericórdia aqui. – ela disse com gravidade e sem sorrir. Hendor deixara cair uma das espadas e tentava limpar o sangue que lhe escorria, ignorava a dor sem dificuldades. Percebeu que não sairia dali tão facilmente, então ficou calado, como vencido, mas seu interior fervilhava buscando uma solução. Sempre tivera más relações com a ideia da derrota. - Me diga, herói sem medo, o que é tão importante que o faça atravessar minha floresta. – ela soou como um juiz, pareceu a Hendor. - A floresta não é sua, você a tomou e a envenenou. – ele acusou sem encontrar nada que fazer a tempo. Ela pôs as mãos à cintura e dissimulou uma repreensão como se faz a uma criança. - Assim você não consegue o que quer, meu querido. Não posso ajudá-lo se não disser o que precisa. - Você não quer me ajudar, tudo o que faz tem propósitos malignos. - E devo entender que já ergueu suas mãos fortes contra mim duas vezes por cortesia? – ela falou rindo em escárnio. Hendor não queria dar a ela algo por que barganhar, mas não viu saída.


- Estou nesta jornada... – hesitou, ela o cobrava a continuação com o olhar. – para encontrar solução contra uma ameaça à minha vila. - Mais um grande feito do herói destemido para ser escrito e cantado. – ela disse. – E que ameaça seria? Hendor olhou no fundo daqueles olhos estranhos, que agora tinham um tom que parecia mais humano, um castanho claro comum. Viu ali a mesma altivez, a mesma autoconfiança de que padecem aqueles que experimentam o sucesso mais vezes que a maioria das pessoas. Achou que seria interessante testar a reação da bruxa diante do que o movia. - Krondarg... As mãos à cintura deslizaram pelos quadris, os olhos se abriram mais e o queixo da mulher desceu; pela primeira vez o espanto era dela. - A poderosa Ikendra, senhora da floresta escura, a perdição dos homens perdidos, tem medo do dragão? – ele disse debochando. Ela respondeu séria, sem debochar, sem provocar. - Somente os tolos não o temem. – Hendor ignorou o insulto. – O que você busca que acredita ser capaz de derrotá-lo? Ele crispou os lábios antes de responder, pensar em se desfazer do que mais lhe trazia orgulho foi outra vez desagradável. - Meu medo. Ikendra estreitou os olhos e o sorriso voltou aos seus lábios vermelhos. - Você busca a montanha de Galesltein. – ela deduziu. – Depois de tantos anos vendo guerreiros buscarem honra, riquezas, vingança... vejo o mais valoroso buscando ter medo. – ela retornou à pose de antes, pondo as mãos à cintura. – É a busca mais nobre que já vi aqui, meu querido campeão. Eu ficaria muito satisfeita se aquela fera horrível não mais voasse por aí e ameaçasse meus domínios. – os dois se encararam duramente, ele percebeu que não agradava em nada revelar uma

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vulnerabilidade. – Vou ajudá-lo, lhe darei um preço mais leve. Hendor observou outra vez o olho pendente em seu pulso e imaginou o que Lorthon pedira à bruxa para ter que dar seu olho. - Diga. – ele disse resoluto, disposto a enfrentar qualquer dor para sair dali. - Até lá você vai enfrentar um empecilho, a montanha de Galesltein está cercada pelas hordas dos sindrols. Te darei uma arma que o ajudará a passar por eles. - Não preciso de nenhum presente teu, apenas me diga o que quer e me mostre como chego lá. Ela riu. - A falta de medo o torna orgulhoso e arrogante. E isso o torna cego, se seguir teu orgulho sempre, um dia vai falhar. Suas espadas não servirão mais que dois gravetos contra os sindrols. Acredito que já tenha enfrentado um. - Sim... – disse Hendor lembrando-se. - Agora imagine todo um exército. - E que pedaço do meu corpo terei de arrancar para salvar meu povo? Ela riu deliciosamente ante aquela oferta. - Ah, o valor que os homens dão às coisas, sua vaidade, é o que é valioso para mim. Eu sempre peço um símbolo da vaidade dos homens, mas você não tem medo da dor, não tem medo que eu te peça tua língua. Você tem algo contigo que vale mais que a ponta de teu dedo. – ela falou. – Que vale mais para você, para o você que é você antes de ser o guerreiro destemido. Hendor imediatamente soube do que se tratava. A mulher não disse mais nada. Muito relutante mas pensando no que devia passar, puxou de dentro das vestes o colar de seus pais, usou a ponta da espada para desprender a gema vermelha. Olhou pela última vez o seu brilho carmesim sob a luz do luar, lembrou-se da sensação vazia que era não ter pai ou mãe, e a entregou à bruxa, que a recebeu com satisfação.


- Agora me mostre a saída. – ele falou soturno. - Vai antes precisar da arma. – ela falou. – E não vou pedir nada para lhe dar isto, apenas que mate Krondarg. Uma das poças que havia entre eles começou a borbulhar e dali um punho de espada começou a emergir. A guarda mão de bronze veio logo em seguida e uma longa lâmina reta de dois gumes subiu e ficou de pé sobre sua ponta. Ele se aproximou e pegou-a. Era pesada, a face de sua lâmina branca estava repleta de pequenas gotículas de água, e o punho gotejava constantemente, mais do que seria natural para uma espada saída de dentro da água. - Meu caminho. – ele exigiu. - Como se chama, guerreiro destemido? - Hendor. - Hendor... Por ali. – ela disse apontando para um ponto atrás dele. Hendor olhou e uma árvore negra partiu-se na base e tombou para fora da clareira, revelando um corredor de aparência tenebrosa, um caminho na terra venenosa ladeada por troncos negros, atravessada por galhos pontiagudos e tortos, e lá no fundo ele via a árvore pura. Virou-se de volta para a bruxa, mas ela e a cabana tinham desaparecido, e até o brilho da lua parecia mais fraco. Acendeu outra tocha e deixou a clareira. Satisfeito por ter saído e ainda pesaroso pela perda da joia ele segurou nos galhos da árvore clara como se pedindo perdão por tê-la traído.

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capĂ­tulo viii

As encostaS de GaleslTeiN



Cortou uma larga tira da capa de couro e com ela embrulhou a lâmina da espada. Seguiu viagem com a arma pendurada às costas. A trilha estava lá como antes, a claridade da chama sempre alcançava a árvore seguinte e assim ele seguia a direção. Chegou a contemplar de longe a velha ossada de uma grande criatura que ele não soube identificar, viu apenas seu crânio comprido e suas costelas formando um corredor de arcos, o osso branco sob a distante luz da tocha lhe chamou a atenção, mas não se permitiu sequer pensar em deixar a trilha outra vez. Ficou ali, andando entre as árvores negras, por mais um dia e meio. Já estava farto daquele ar carregado, dos estalidos e grunhidos emitidos de dentro da escuridão, da pouca claridade. Foi com alívio que ele percebeu que algo finalmente mudou ali: uma árvore, clara e pura como as anteriores, surgiu suspensa acima do chão. O tédio o deixou e ele avançou rápido naquela direção e constatou que a árvore brotara saindo de dentro de uma parede de terra e rochas. Ele esticava a mão para o alto e tocava suas raízes, o tronco fino e liso se encurvava para cima. Olhou para as maiores alturas, o rosto colado ao barranco íngreme, buscando as copas. As folhas cinzentas e densas eram iluminadas por uma fraca claridade vinda de cima. - É dia! – ele disse sentindo o ânimo retornar.

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Usou uma cabeleira de cipós que pendia ali ao lado para escalar, apoiava os pés na parede e içava-se com os braços pelo cipó. Permaneceu nesse exercício por muito tempo até que finalmente começasse a sentir o calor que era irradiado das copas, subira tendo ao seu redor os compridos troncos sem ter ainda alcançado nenhuma folha sequer. O calor dissipou a sensação de aprisionado que o assolava desde que entrara na floresta, vislumbrava a vida outra vez vendo a claridade translúcida se aproximando acima. Finalmente meteu-se entre a folhagem cinzenta e doente, onde pôde agarrar-se nos galhos. Escalou com maestria, apesar do cansaço da viagem e do desconforto dos ferimentos, e pôde encontrar um galho espesso por onde era possível caminhar; o conduzia na direção do barranco e já sobrepunha sua beirada. Andou pisando a madeira enegrecida, os gravetos arranhando suas faces e puxando seu cabelo, a folhagem farfalhando em seus ouvidos e raspando em sua pele, até que subitamente a luz o atingiu. Atordoado pela intensa claridade, ele se desequilibrou e caiu, atravessando ainda uma camada de folhas e galhos que se partiam sob seu peso, e caiu na terra. Rastejou debaixo da sombra da árvore e saiu outra vez sob a poderosa luz diurna. Ficou ali no chão, os olhos fechados e feridos, apreciando o odor da grama fresca, a pureza do orvalho que umedecia suas faces, o sol esquentando suas roupas e sua pele, o canto de pássaros alegres que passavam velozes à distância. Finalmente se colocou de pé e andou para a frente, tendo a floresta escura atrás de si. Abriu os olhos com dificuldade e viu logo a montanha aonde queria chegar. Era um pico cinzento e coberto de neve, de encostas suaves e íngremes. Entre o ponto em que estava e o início da subida a terra era ferida; repleta de rasgos largos e compridos, fendas negras e profundas de onde colunas de fumaça subiam. Não estava muito longe. Olhou para trás como fazia quando matava alguma besta


e contemplava seu corpo inerte. Viu a folhagem negra escapando por cima da beira do barranco que escalara, via algumas árvores imensas emergindo do mar cinzento de folhas que acabara de transpassar. Lembrando a joia perdida, daquela vez ele não sorriu. *** Levou um tempo caminhando pela grama, entre algumas árvores pequenas e verdes, até que gradativamente a relva foi rareando, sendo substituída pela terra nua e seca, e não demorou para que estivesse andando entre fendas no chão. Contemplava a visão das distâncias, as longínquas pradarias verdes que demarcavam os limites da terra e o alvo gelo sobre as maiores altitudes, que não estavam tão acima dele. Já estivera em muitos lugares escuros, alguns muito apertados, e outros por mais tempo que aquela floresta, mas sempre saía dando mais valor ao ar livre e à luz do sol. Algumas árvores mortas apontavam para o céu na terra plana entre as fendas, tinham seus galhos cortados e sua folhagem já não mais se via, alguns já eram meros tocos queimados. Naquela região, a grama já tinha ficado para trás. As fendas eram escuras e cobertas pela fumaça, algumas podiam ser transpostas com um passo mais largo enquanto outras o obrigavam a circulá-las; sabia que eram habitações dos sindrols, mas ladeava as beiradas dos buracos sem temer ou sem se preocupar em ser ou não visto. Sabia, pela experiência que tinha mesmo sendo jovem, que os sindrols, em sua maioria, eram uma raça de mercenários e que passavam horas enfiados em suas tocas sob a fumaça de uma erva que queimavam. Não se sabia se eram realmente monstros ou se era a fumaça que acabava com alguma humanidade, mas eram guerreiros obstinados e resistentes. Hendor já matara um sindrol que lhe aparecera com uma flecha atravessada no pescoço e três

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punhais fincados no peito. Já os encontrara em diversas situações: servindo como escudeiros de malfeitores, em roubos a viajantes nas estradas, em tentativas de assassinato ao governador da vila, mas nunca estivera entre tantos. Quando passava perto o bastante, via-os imersos na penumbra, embaçados pela fumaça, repousando dentro de cestos de cordas amarrados em estacas que ligavam as duas paredes da fenda, via-os com as cabeças jogadas para trás, os olhos fechados em transe. Das mesmas estacas pendiam braseiros de onde a fumaça era exalada. Os olhava com nojo e desprezo. Passava perto das fendas buscando não fazer barulho, sabia que tinham visão ruim mas uma audição altamente perceptiva e atenta. Sabia que aqueles que estivessem dentro das fendas não o incomodariam, muito pouco era capaz de despertá-los do estupor de sua fumaça, mas se encontrasse algum andando no mesmo chão que ele, teria problemas. Pensou e aconteceu. Depois de atravessar uma parede de fumaça, deu com dois deles agachados junto a uma fogueira, sobre a qual um animal quadrúpede e esfolado assava. Eram como homens normais, mas tinham a pele pálida e acinzentada, algumas erupções desagradáveis aos olhos cobriam seus ombros, os cabelos eram curtos, rígidos e pontiagudos. Hendor dizia que eles tinham longos espinhos no lugar dos cabelos, o que não era errado de se dizer. Apesar do frio que fazia naquelas terras altas, eles vestiam-se apenas com calças de couro, tendo os pés descalços. Hendor conteve o passo seguinte imediatamente e os dois continuaram atentos ao trabalho. Suspirou de alívio por ter sido ignorado e bruscamente os dois viraram as cabeças para ele. Um grito louco e palavras incompreensíveis precederam o ataque. Usavam punhais feitos de ossos e empregaram-nos com fúria. Hendor sacou as suas espadas curtas e se defendeu dos dois punhais, que se partiram no choque. Chutou um no baixo ventre, afastando-o, e cravou uma das lâminas no peito


do outro. O que se afastara retornou e Hendor se apoiou na espada fincada para saltar e afastá-lo novamente com o calcanhar, fazendo-o cair e rolar para dentro de uma das fendas. Enquanto puxava de volta a espada e se preparava para finalizar aquele, ouviu o grito agudo e insano do que caíra. Fechou os olhos e suspirou “ah, não”. A resposta foi uma centena de gritos loucos ecoando de dentro das fendas, como num canto agourento. Ele empurrou o que estava junto dele e pôs-se a correr na direção do pico. Passou pela carne que os dois assavam e o caminho se estreitou entre duas beiradas, onde ele teve de reduzir a velocidade para preservar o equilíbrio. Somente quando atravessou aquele ponto e o caminho se alargou outra vez foi que viu ao redor os corpos claros dos sindrols rastejando-se para fora de suas tocas, surgindo de dentro da fumaça. Imediatamente três embarreiraram o caminho; golpeou o primeiro no rosto, derrubou o segundo e decepou o terceiro sem parar de correr. Em seguida algo se chocou contra seu ombro e ele viu um punhal de osso que por sorte o atingira com o cabo. Olhou para a direita, de onde viera o punhal, e viu outros que corriam na sua direção e atiravam seus punhais, que foram esquivados e rebatidos com a espada. O grito da loucura preenchia o ambiente. Outros se puseram em seu caminho, mas nenhum deles foi capaz de fazê-lo parar. Muitas vezes apenas os desarmava e derrubava com o ombro, cortava-os no rosto, decepava mãos que o agarravam e os deixava para trás como obstáculos para os que o perseguiram. Como nas outras vezes em que enfrentara sindrols, nenhum deles sangrara. Hendor mergulhou correndo para dentro de um grande volume de fumaça que atravessava o caminho e quando saiu deparou-se com uma fenda enorme aberta no chão. Teve de se inclinar para trás, seus pés deslizaram na areia solta da terra e ele por pouco não se lançou para a morte; caiu sentado à beira da fenda e os ouviu se aproximando.

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Pôs-se de pé. Quando se virou, vários saíram de dento da fumaça como ele. Voltou-se para a fenda outra vez, avistou uma das estacas que a atravessava e saltou naquela direção. Alguns não conseguiram parar e caíram na fenda, já outros corriam obstinadamente na sua direção e saltaram atrás dele. Hendor os chutou com ambos os pés e se agarrou na estaca com os braços. Ainda segurava as espadas e teve de reembainhá-las. Aqueles que não tinham caído se amontoavam em ambos os lados da fenda, esperando por ele. Outros começaram a atirar seus punhais de osso. Ele se deslocou até um ponto de onde um braseiro pendia preso por uma corrente, a profundidade negra se alongava abaixo o ameaçando engolir, e o puxou para si. Podia sentir o cheiro adocicado e anestesiante da erva que queimava entre as brasas. Uma mão o mantinha preso à estaca e a outra fazia balançar o braseiro como a um pêndulo. Um arco de fumaça se formava seguindo o balanço. Quando o braseiro atingiu a altura dos sindrols à frente, ele puxou a corrente para trás, fazendo as brasas se agitarem no ar como uma chuva luminosa sobre aqueles. Hendor rapidamente se aproximou da borda e subiu, em meio aos sindrols que se debatiam e grunhiam sob suas queimaduras, e passou. Continuou a corrida e foi surpreendido por um que se lançou sobre ele, derrubando-o. Os dois caíram próximo a outra fenda e Hendor o chutou sobre si, fazendo-o cair por ali. Mas sua mão pálida agarrou a capa e o peso do sindrol o arrastava lentamente para dentro da fenda. Durante este instante, dois se aproximavam com suas lâminas de osso, um bem próximo e outro vindo de maior distância. Hendor prendeu o calcanhar do mais próximo entre seus dois pés e o derrubou no chão; o peso dos dois foi o bastante para parar o deslize buraco adentro. Sacou a espada, torceu o corpo para alcançar o que o puxava, e cortou seu pulso com três golpes apressados e mal empregados, separando a mão que o segurava do corpo que pesava. O sindrol foi engolido aos gritos pela escuridão. Quando


Hendor voltou, subiu atirando uma de suas espadas contra o que estava de pé e já a poucos passos de alcança-lo. Ergueu-se, matando o que derrubara e pegou de volta a outra espada de dentro do corpo do que caía de joelhos. Por um segundo procurou outra vez a direção para onde corria, o pico parecia chamá-lo com urgência, aos arredores da subida não havia mais fendas e sim algumas rochas que emergiam da terra criando corredores sinuosos e escuros entre elas. Estava a meio caminho de lá, quando vários inimigos irromperam dos volumes de fumaça e escalaram as bordas das fendas, se aproximando rapidamente em grandes grupos e logo Hendor se viu no meio de dezenas de sindrols furiosos e loucos, que formavam um arco cada vez mais se apertado ao seu redor. Atrás estava a queda para dentro das trevas. Não viu condições de passar por eles, e então se lembrou que carregava um peso a mais. Guardou suas duas lâminas pequenas e puxou das costas a longa espada que a bruxa Ikendra lhe dera, desamarrou-a e sua lâmina brilhou sob o sol. Inexplicavelmente, da guarda mão ainda gotejava água. Quando viram a espada, os sindrols pararam a poucos passos e os clamores insanos cessaram. Olhavam entre si e de volta para a espada que Hendor segurava com as duas mãos. Ele deu um passo à frente e eles se espantaram, recuando. Confiante ele andou na direção dos sindrols, que se afastaram abrindo caminho à sua passagem. Alguns não conseguiam sequer olhar a espada, a água escorria pelo punho e se derramava por sobre as mãos de Hendor, gotejando no caminho. Percebeu que não era o guerreiro ameaçador que temiam, tinham medo da espada. E assim ele atravessou centenas de sindrols, que o observavam tensos sem mover um dedo sequer; aqueles que ousavam observar, pois a maioria fugia e escondia o rosto, e finalmente adentrou o labirinto de rochas soltas. Havia muitos sindrols ali também, alguns, imersos na sua entorpecente fumaça, sequer tinham notado que seu território tinha sido invadido.

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Quando finalmente o último corredor revelou o chão subindo em aclive e a longa ladeira que levava ao pico gelado à frente, quando estava a poucos passos de subir as encostas de Galelstein, um sindrol maior e destemido se pôs no caminho. Hendor tinha os olhos na altura de seu estômago, os cabelos-espeto do sindrol apontavam para cima e os maiores cediam ao próprio peso deitando-se sobre os ombros e costas. Tinha uma pesada clava na mão; uma haste de madeira repleta de ossos pontiagudos. Aquele não hesitou um segundo quando o viu, nem quando avistou a espada. Aproximou-se a passadas largas e a clava desceu com peso sobre Hendor, que prontamente a bloqueou com a espada. O choque jogou para o alto gotas de água que pareciam surgir do nada, como se ele tivesse golpeado a superfície de um lago. O tremor foi intenso, a clava foi repelida de volta com a mesma força e uma dor terrível se esticou da mão de Hendor até seu ombro. A dor foi tão forte que ele grunhiu e se encurvou, deixando a ponta da lâmina tocar o chão. - Mas o que foi isso? – murmurou ofegante, olhando o chão. O sindrol voltou erguendo a clava, e tal qual na outra vez, bloqueou. A água se espalhou no ar, a clava retornou perdendo algumas pontas de osso e Hendor gritou quando teve a sensação do sangue nas veias ter fervido, deixando cair a espada. A dor o assolou por poucos instantes e logo desapareceu deixando para trás apenas a incompreensão. Recuperado dos dois golpes que pareciam ter se voltado contra ele, o sindrol mudou de estratégia. A clava veio por baixo, na direção das pernas de Hendor, que pulou para trás escapando. O movimento evadido fez a clava subir até a altura do rosto do brutamonte e esta voltou mirando no lado do guerreiro, Hendor escapou se abaixando e nesse curto ínterim conseguiu recuperar a espada. Quando se ergueu a clava descia outra vez, na direção da cintura. Não poderia abaixar ou pular sem ser rasgado pelos ossos, e bloqueou com a espada. Perce-


beu que quase não fazia esforço algum para se defender com aquela lâmina, e outra vez o sindrol viu seu ataque ser anulado. Hendor caiu de joelhos pela dor e, que foi mais intensa que antes obrigando-o a ofegar por mais tempo; quando olhou outra vez, o sindrol descia a clava rugindo e com o rosto tomado de fúria. Ele pôs a espada acima de sua cabeça e preparou-se para a dor que viria, de olhos fechados. Ouviu o estrondo, sentiu o tremor, a água caindo e a terrível e misteriosa dor. Ele ganiu e caiu de lado. Por um instante tudo começou a sumir... escurecer... calar... As palavras que ele tanto odiava ecoaram em sua mente, abafadas a princípio mas cada vez mais nítidas: você vai falhar, você vai falhar... Aquilo o fazia querer não se levantar mais, aquelas palavras o esmagavam, o acorrentavam ao chão. Não encontrava mais forças. E as palavras ecoavam na mente, mas como a distante onda de um barco que passa ao longe e se aproxima ganhando volume, junto das palavras devastadoras veio o grito de seu povo, o bater de asas. E como fazia sempre que aquela ideia repugnante se lhe apresentava, rejeitou-a com todo o resto de vigor que ainda tinha em si; conseguiu ouvir os gritos distantes dos sindrols, sentiu novamente seus membros estáticos largados no chão pedregoso, e lentamente afastou as pálpebras. A visão embaçada ainda percebeu que o grande sindrol caíra para trás, e se agitava outra vez para levantar. Hendor o imitou, tentou se reerguer, mas viu que os braços estavam vacilantes, trêmulos, a espada parecia pesada, ou estava ficando fraco. De pé, viu o sindrol se levantando lentamente, tonto e confuso. Apanhou a clava que caíra e olhou para Hendor, que o fitava de baixo, intrigado. Hendor ergueu a espada e atacou, correndo na sua direção, a espada apontada para o peito do sindrol. A clava fechou sua defesa e a ponta da lâmina penetrou na madeira com facilidade, fazendo-a explodir em estilhaços. A espada atravessou o peito do sindrol,

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jorrando a água que vinha do nada. Enquanto isso, enquanto segurava a espada, Hendor sentiu suas veias queimando, os músculos estremecendo e até o ar lhe faltando. Apressadamente puxou a espada de volta e a dor cessou. O grande sindrol caiu de joelhos e Hendor o finalizou com um golpe no pescoço, fazendo sua cabeça rolar pelo chão. A dor o feriu novamente e logo sumiu. Gemendo de dentes trincados, deixou o punho da espada deslizar de entre seus dedos e cair pesadamente no chão, espalhando poeira. As mãos padeciam sob um tremor leve, alguns dedos se moviam involuntariamente e os braços tinham espasmos súbitos. Os passos que fez vacilaram, a cabeça perdia a noção do equilíbrio e o foco da visão falhava no ritmo da respiração difícil. - Bruxa maldita... Estava desgastado, exausto, impaciente. Subia as encostas suaves de olhos fechados, sentindo o ar frio acariciar sua pele, como sempre fazia para acalmar os ânimos. Não quis olhar para trás, não riu sobre o corpo do último sindrol morto. A espada ficara lá em baixo e ele não ousaria tocar nela outra vez. Sentiu-se estúpido por ter desobedecido a maioria das instruções de Gowlin. Ele dissera para não despertar os yotun, dissera para não sair da trilha, não aceitar nenhum presente da bruxa, e quase morrera fazendo o oposto. Seus ânimos estavam estilhaçados, e grande parte disso se devia a ter deixado Halina. Não sabia se preferia não tê-la visto nunca, pois sentia-se assolado e torturado por se afastar dela. Encontrara na casa de Vierg, mesmo tendo estado lá por tão pouco tempo, algo que ele nunca conhecera. Encontrara ali a sensação de estar num lar, mesmo que não fosse seu lar. Não havia ninguém exigindo dele atos heroicos ou repreendendo-o por seus atos impensados. Sentia-se como uma pessoa normal, um homem comum, da maneira que as pessoas viam seus semelhantes. Cada vez que pensava nisso sentia que os pés se arrastavam em vez de fazer passos, sentia vontade de largar aquelas


espadas e nunca mais voltar para a vila. Então lembrava-se daqueles que esperavam por ele, dos seus amigos que contavam com ele para lutar. Em meio aos pensamentos, mal notou o tempo que passou enquanto esteve vencendo aquele aclive e nem que o frio se intensificava. Surpreendeu-se quando o chão duro ficou macio sob os pés, e olhou. O chão era branco e a neve serena descia do céu, ao redor a paisagem era ampla; conseguia ver muito além das encostas da grande cordilheira sobre a qual habitava, podia ver o mar e algumas ilhas perto do horizonte azul e cinza. À frente a cabeça da montanha não estava longe. Seus amigos... Nunca compreendera como eles se sentiam vendo-o quase morrer tantas vezes, prezava a vida de cada um dos três e sabia que sentiria o mesmo se fosse com eles. Percebeu o quanto tinha sido estúpido, agindo impensavelmente. Percebeu quantas vezes a situação poderia ter sido resolvida se tivesse esperado que os três lutassem com ele, em vez de se lançar sem deixar que a possibilidade de dar errado o fizesse hesitar. Lembrou-se de quantas vezes seus amigos tinham arriscado sua vida para salvá-lo da própria imprudência, viu como a falta de medo o tornava arrogante e desagradável e percebeu que era mais valorizado pelos amigos do que imaginava. Raramente se lembrava que cuidar de si mesmo era cuidar daqueles que o amavam. Quando lembrava que precisava corrigir esses erros para proteger a vila, começava a subir com vontade e vigor, mesmo quando a neve engolia seus calcanhares e adicionava mais peso à exaustiva caminhada. E assim, entre desânimos e ânimos, entre reflexões sobre o que havia dentro de si e contemplações do amplo mundo que se abria ao seu redor, ele atingiu o topo. O cume se revelou a ele quando a encosta suavizou e aplainou. Esperava ver uma casa, um castelo, uma cabana... mas não viu nada.

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capĂ­tulo vx

a ToRre mais baixA



Um dos sentimentos que mais marca a alma humana, dentre os mais leves, é a decepção. Hendor olhava diante de si o plano topo branco e vazio com um misto de consternação e princípio de fúria; não podia acreditar que transpassara aquilo tudo por nada, não acreditava que Gowlin o teria lançado naquela jornada inútil para que ele aprendesse alguma coisa pensando por conta própria. Não. Tamanho era o inconformismo, a raiva, a incredulidade, que avançou sobre o pico como se esperasse que alguma construção se revelasse a ele surgindo no meio do nada. E foi quase o que aconteceu em seguida. Hendor, quando se aproximou do centro da planície branca que havia no topo, sentiu o solo se inclinar para baixo gradativamente e se surpreendeu atingindo a beira de uma enorme cratera. Era um buraco quase perfeitamente redondo, suas encostas eram suaves e cobertas pela neve, e no raso fundo da cratera havia uma vila cercada por um muro redondo de pedras. Apesar de ser forte o bastante para abafar a decepção, o alívio costuma ser esquecido. Desceu as encostas brancas para dentro do buraco no topo do monte, vendo que as ruas daquela vila eram pavimentadas com pedras e a neve que caía era constantemente

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retirada. As paredes eram vermelhas e havia várias torres pequenas, tantas torres que ele mal podia contar, distribuídas numa espécie de espiral que ia da maior, ao centro, até a menor, que se fundia à muralha. Ladeadas por casas pequenas de dois patamares, as ruas passavam por entre as torres e iam ligar uma área à outra da vila. O vento frio que soprava no pico cessou quando desceu. Ao fim da encosta estava diante dos portões: eram portas duplas de ferro que se abriam para dentro da primeira e mais baixa das torres. Acima do portão, por uma janela pequena da torre, um guarda o fez parar. - Quem é e o que procura aqui, peregrino? – ele perguntou sem nenhum sinal de hostilidade ou medo. Ele parou a alguma distância do portão, de modo que podia falar ao guarda confortavelmente. - Sou Hendor, da vila da Torre Branca. - Está perdido? - Não, não estou perdido. – falar em alta voz lhe tomava o fôlego, percebeu que ainda estava cansado e ofegante. – Atravessei terras perigosas para chegar aqui. - O que deseja, se veio com tanta dedicação nessa jornada arriscada? – perguntou o guarda, Hendor notou que ele não usava armadura nem elmo, e não viu nem a ponta de alguma arma. - Preciso falar com o sábio. O guarda riu consigo. - Esta vila abriga as mentes mais singulares destas terras, meu jovem, os olhos mais astutos, as bocas mais sagazes e articuladas e as palavras mais sábias. – disse ele. – Terá de ser mais específico. - Procuro um homem que já serviu à ordem que hoje sirvo, e já habitou a vila da Torre Branca. – Hendor não se lembrava do nome. O guarda ficou um tempo parado, pensativo. - A qual ordem você serve, peregrino? - Os Drakuins.


Houve mais um momento de reflexão, Hendor se sentiu impaciente, o frio começava a incomodá-lo, fazendo-o tremer dentro da capa de pele de carneiro, os músculos desgastados doíam. - Um sábio dos Drakuins da Torre Branca? – ele disse. – Você busca Galelstein. - Sim! – ele disse lembrando-se. – Galelstein. - Espere, por favor. – e dizendo isso, sumiu da janela. Começou a imaginar todas as formas em que aquilo poderia dar errado, como de fato quase ocorrera quando alcançara o topo. Imaginou que o homem poderia estar morto, se recusar a ajudar algum membro da ordem que ele renegou, que poderia ser tomado como inimigo e ser morto ali. Mas o mesmo guarda retornou para a janela alguns longos minutos depois. - Ele está aqui. – anunciou. Hendor sentiu uma agitação dentro de si quando um homem de barba branca sob um capuz marrom o olhou de cima da janela, a satisfação de finalmente encontra-lo combateu o cansaço e ambos sofreram reduções. - Que antigo amigo vem chamar o nome deste resto de memória? - Senhor Galelstein, não creio que me conheça. – disse ele. – Me chamo Hendor, e sou de depois de sua partida, meu senhor, mas deve ter conhecido Lorthon e Gowlin. - Ah, sim. É claro que me lembro. – ele disse. – É aprendiz de algum deles? - Na verdade, meu senhor, fui ensinado por Agbar. - Lembro-me de Agbar com mais nitidez que de Lorthon e Gowlin. – disse o sábio. – Era um jovem sombrio, eu fui um dos poucos que o compreendeu. Hendor achou estranho ver a palavra “jovem” se referindo a Agbar, que já era envelhecido desde que se lembrava dele. - A notícia de sua morte chegou a mim. – disse Galelstein. – Acredito que tenha sido dolorosa para você também. Mas o que busca mandando chamar-me?

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- Preciso de orientação, meu senhor. – disse Hendor voltando a tremer de frio. – Seria melhor conversarmos em condições mais... confortáveis. – ele falou se encolhendo. - Claro, compreendo. – disse o sábio. – Mas preciso ter certeza de que sua vinda é pacífica, ou que ao menos seja um real membro dos Drakuins. Hendor sabia exatamente o que ele pedia sem pedir. Ergueu a voz e declamou:

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Das coroas da montanha viu-se a chuva de fogo. Diante de ameaça tamanha, ouviu-se da vila o choro. Mortos os soldados, pelo fogo engolidos. Correndo pelos prados, veio o destemido. De seu veloz cavalo, atirou sua lança. E o dragão sucumbiu, fugiu qual fera mansa. . - Ah... a vitória do primeiro Drakuin! – exclamou o sábio. – Há quanto tempo não ouço esses versos, sabes que... - Não podem ser recitados sem que seja aos ouvidos de outro Drakuin. – Hendor completou, entre o entusiasmo e a impaciência. - Seja bem vindo, Hendor. *** Imaginou que seria conduzido pelas ruas da bela cidade, olharia de baixo suas paredes vermelhas, mas o guarda que o recebeu no portão junto à base da torre e o guiou não passou da muralha. Ali dentro ele foi conduzido pelas escadas espiraladas da torre pela qual Galelstein lhe falara até uma câmara circular que ele percebeu que estava ainda bem abaixo do topo. Era um lugar muito bem iluminado, as velas brilhavam de trás de pedras de cristal transparente sob as várias mesas que cobriam toda parede. As mesas das velas formavam um


círculo externo, junto à parede, e havia outro círculo de mesas interno, sobre os quais livros grandes e antigos formavam pilhas altas que ameaçavam cair sob o primeiro sopro de vento que entrasse pela porta. Além dos livros, as mesas exibiam instrumentos e objetos curiosos: pedras de várias cores, lentes de vários tamanhos, jarros com pós coloridos e líquidos estranhos, pequenos ossos de criaturas que Hendor não conseguia imaginar, uma miniatura de navio, penas exóticas... - O que é tudo isso? – disse Hendor contemplando a infinidade de objetos que atulhava as mesas junto dos livros. Observou que havia apenas uma mesa limpa e desocupada, uma pequena e baixa, junto de uma cadeira, e esta mesa ficava no centro do círculo menor. - Eu levaria anos para explicar o que é tudo isso, meu jovem. – disse o velho homem, que o aguardava de pé no centro do círculo quando o guarda o conduziu para dentro. - Ah... – disse Hendor só então percebendo a presença do sábio. – Me perdoe, minha curiosidade... - Não se preocupe, é natural. O ser humano tem muitos hábitos naturais e instintivos, mas raramente a cortesia e a gentileza estão nesse grupo, são hábitos adquiridos e, na maioria das vezes, são sobrepostos pelos instintivos. Hendor sentiu o rosto avermelhar. Galelstein puxou a cadeira e se sentou de frente para ele, deixando-o de pé. Galelstein era um homem velho, porém saudável e vigoroso. A barba branca que lhe descia escondendo o pescoço era espessa e embaraçada, os cabelos compridos tinham ainda alguns restos de cor e eram amarrados atrás da cabeça. Ele vestia um manto marrom sobre vestes vermelhas, era tão branco que suas veias se desenhavam sob a pele, as unhas estavam compridas e tortuosas. Hendor imaginou que o hábito do estudo era tão primordial ali que se tomava a prioridade sobre o asseio corporal. - O senhor deve passar muito tempo aqui. – disse Hendor. - Os maiores sábios vivem nas torres, longe das agitações

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e distrações da vida cotidiana. - E quem vive na maior torre? - O menor de nós. – disse ele com uma conflitante mistura de humildade com orgulho. – Devo dizer que fico satisfeito em receber aqui um Drakuin, primeiro por que vejo que a ordem ainda não foi extinta. – Hendor ergueu uma sobrancelha ao “ainda”. – E segundo por que é muito raro ver um de meus antigos irmãos atravessar estas terras em busca da sabedoria. Todos só dão valor a glória, honra, fama, ouro. Mais uma vez Hendor sentiu o constrangimento lhe enrubescendo as faces, pois se sentia como sendo destes que o sábio descrevera. O velho, vendo que Hendor não encontrava o que dizer, continuou: - O que o traz aqui, jovem Hendor? - Eu preciso... – ele começou sem ter ainda as palavras. – A vila está ameaçada... - Uma ameaça? – ele repetiu. – Uma maior do que este vasto grupo de valentes guerreiros está habituado a confrontar? - Krondarg... - Ah, mas é típico! – disse o sábio, Hendor se surpreendeu pela falta do espanto ao nome do dragão. – Uma criatura das mais antigas surge e logo enviam um mensageiro a alguém que estuda coisas antigas esperando que haja algum pergaminho revelando em que ponto da armadura natural o dragão tem uma escama mais fraca. - Na verdade, meu senhor, não vim para falar de Krondarg. – os olhos de Galelstein se estreitaram como se fosse culpa de Hendor ele ter se equivocado, um mal que assombra aqueles que raramente erram. – Preciso aprender... para derrotar a fera... preciso aprender a ter medo. Galelstein se empertigou na cadeira e um sorriso moldou a barba desgrenhada. - Você disse que foi aprendiz de Agbar? - Sim...


- E ele lhe ensinou a não deixar o medo te fazer hesitar, pois um instante pensando enquanto se deveria agir pode significar a própria morte ou a morte alheia. – disse Galelstein. - Sim... – disse Hendor surpreso pela semelhança com o que seu mestre lhe dizia. - E... – disse o sábio, refletindo por dois segundos. – Você se tornou ainda mais destemido que Agbar, o que o trouxe fama entre os Drakuins e aclamação pelo povo. Mas isso prejudicou sua interação com os companheiros e os sábios da taverna lhe disseram que precisa reencontrar seu medo para que seja capaz de derrotar Krondarg. Hendor não respondeu, apenas fitava o velho homem com as sobrancelhas elevadas de espanto. - Você veio aqui para que eu te ensinasse a ter medo. – disse o sábio, rindo. – Você ganhou um parágrafo nas minhas anotações, meu jovem. Todos os valentes guerreiros se envergonham do medo e tentam escondê-lo, mas você o busca como a salvação de sua vida. - As vidas... o povo... - Claro... – disse ele. – Conte-me, Hendor. Como foi o caminho até aqui? - Difícil. - Eu esperava que você usasse mais palavras. – disse ele rindo outra vez, Hendor sentia-se desconfortável, Galesltein parecia se divertir explorando a pouca sabedoria do jovem. – Narre sua aventura, Hendor. Com detalhes. Hendor então o fez. Contou tudo o que podia se lembrar, o que era uma grande parte do que ocorrera. Narrou sua conversa com Lorthon e Gowlin, a partida e o caminho até o vale dos yotun, a névoa e as ilusões, os campos de Vierg depois das colinas, os servos do fazendeiro, Halina e o gigante de gelo que a tentara raptar, a floresta escura, a bruxa e seus olhos, o acordo que fizera com ela e a espada, a luta com os sindrols e a revoltante descoberta da desonestidade da bruxa Ikendra. Galesltein ouviu todo

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o relato e permaneceu em silêncio quando Hendor terminou. Então seu dedo que exibia uma unha feia e torta lhe apontou e ele perguntou: - Por que quer ter medo? Hendor não compreendeu, achou que a memória do velho estava já se comprometendo, pois tinham falado disso havia pouco. No entanto, respondeu normalmente: - Não posso morrer quando enfrentar Krondarg. A falta de medo anestesia minha atenção e prejudica meu raciocínio e meu julgamento. - Ah... – disse Galesltein, abriu tanto a boca que foi a primeira vez que Hendor conseguiu vê-la. – Então você tem medo de morrer. Aquela afirmação em tom de conclusão soou ridícula e confusa. - Não! – ele disse em tom de “óbvio”. – Mas se eu morrer ninguém mais pode vencer o dragão. - E por que isso é tão necessário? Hendor não acreditou quando ouviu isso, e ficou encarando o velho por um tempo antes de falar, a voz já um tanto alterada. Já estava pensando que aquela viagem tinha sido inútil e que Galesltein já era um velho louco com a sanidade variando. - Para que Krondarg não destrua a vila e mate as pessoas! - Então tem medo de que as pessoas da vila morram. Aquela pergunta o intrigou, não sabia como responder. - Não... – ele disse um pouco vacilante. – É claro que não tenho medo de que as pessoas morram, mas não... não acho justo. Galesltein riu, não debochadamente, uma risada curta de condescência. - Você está tão acostumado a repelir o medo, que quando se depara com ele, o nega cegamente. - O que? – disse Hendor ofendido. - Você sempre teve medo, Hendor. Teve medo de não ser um bom protetor de sua vila. – disse o velho. Deu um tempo


para Hendor falar, mas como ele apenas o fitava aturdido, prosseguiu. – Se você chegou até aqui, é porque teve medo. Se teve dificuldades para chegar aqui, é porque teve medo. Vários medos. Alguns te fizeram avançar, outros o feriram, enquanto outros medos te feriram enquanto você pensou que o fizeram avançar. Se você está aqui diante de mim, é porque já encontrou seu medo. Só não aprendeu a reconhecê-lo ainda. Você tem vários medos, alguns você apenas ignora com maestria, outros não vê. - Hã...? – Hendor não sabia se o chamava de louco, se tentava compreender, se não acreditava. Nada mais fazia sentido. – Como posso já ter encontrado meu medo, você é que devia me ensinar a ter medo! - Você veio até aqui buscar seu medo para que fosse um guerreiro bem sucedido, para não desonrar teu nome ou o nome de Agbar, teu mestre. Chegou até aqui para proteger seu povo, que espera por você. – disse o velho homem. – Você quer que sua vila permaneça em paz, que você continue sendo aclamado por seu povo. - Sim... – disse Hendor, apesar de não ter sido exatamente uma pergunta. - O medo, meu jovem, pode ser definido como não querer que as coisas mudem, serve para nos preservar. E essas coisas é um conceito bem amplo, pode ser um hábito ou simplesmente o fato de você estar vivo. – disse Galesltein gesticulando no ar enquanto falava. – Outro conceito é: medo é querer manter aquilo a que damos valor. No seu caso, meu jovem, a própria vida, a vida de outros, paz, reputação, conforto sentimental. Todos aqueles que dão valor a algo, têm medo. Um exemplo disso é um homem que perde tudo; riquezas, família. Assim ele perde tudo aquilo por que achava que valia a pena viver, e com isso a própria vida perde o valor; ele perde o medo da morte. Hendor ouvia aquilo pasmo, seu rosto lentamente se movia

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para uma expressão que misturava surpresa, incredulidade e confusão, apesar de ele compreender tudo o que o sábio lhe dizia. - Você saiu da vila porque tinha medo de fracassar contra o dragão, e assim você desonraria o próprio nome e o nome de Agbar, além, é claro, de todas as pessoas da vila serem injustamente condenadas. – disse ele. – Quando o gigante quase o matou, você teve medo de fracassar, quando percebeu que estava se apaixonando pela jovem e encantadora Halina, você teve medo de depender totalmente dela e por isso saiu antes de se recuperar por completo. Quando encontrou a bruxa Ikendra, aceitou dela a espada pois tinha medo de falhar quando enfrentasse os sindrols, e mesmo que aquela arma lhe causasse uma dor terrível, você continuou lutando com ela pois tinha medo de não ser capaz de passar pelo comandante dos sindrols com as próprias forças. Hendor ouvia e sabia que ele estava certo, mas não aceitava o medo já fazendo parte dele. - Então explique: como sou o único capaz de enfrentar todos os desafios que surgem? Se tenho medo, por que sou o único com coragem de saltar de um precipício? - Coragem? – riu outra vez o sábio. – Coragem nada mais é que um medo tão grande de não conquistar algo que o medo de se ferir no caminho para essa conquista acaba se tornando pequeno e insignificante. Hendor acreditou que aquele momento, quando finalmente encontraria seu medo, seria um momento que o traria satisfação. Mas sentia um terror lhe envolvendo, tudo o que o definia na verdade jamais existira. Galesltein deduziu os sentimentos do jovem, e não precisaria ser tão sábio para tal, pois Hendor andava de um lado a outro com os dedos entre os cabelos pressionando a cabeça. - Não se sinta assim, meu jovem. – disse ele. – Isso não significa que você foi enganado por si mesmo, apenas que não se compreendia. E também não pense que sua viagem foi


desnecessária, você nunca encontraria esta resposta sozinho. Ou pelo menos não antes do primeiro fio de cabelo branco. - Você me arruinou! – ele disse, perturbado. – Não serei capaz de levantar minha espada outra vez! Não serei mais capaz de enfrentar os desafios... - Não, meu rapaz, não faça isso. – disse Galesltein. – Não pense que agora o medo vai impedi-lo. Enquanto achava que era incapaz de temer, você sempre controlou seu medo de forma que não o impedisse de agir. Agora você só precisa controlá-lo para que não ignore a autopreservação. Você só precisa encontrar o ponto certo entre o hesitar e o agir impensavelmente. Foi isso que você veio buscar. Você precisa saber a qual medo deve ouvir e qual medo deve ignorar. Deve ser muito para uma mente tão jovem, mas um pouco de descanso vai ajudá-lo a acalmar os pensamentos. - Não... não posso descansar. Krondarg pode aparecer enquanto eu estiver aqui. - Krondarg é uma criatura que já vive há muito tempo e provavelmente vai continuar vivendo por muito tempo. Ele não tem pressa de conquistar seus objetivos antes que a morte da velhice chegue. E isso o torna tão tolo quanto um homem que só pensa na morte para a velhice quando pode sucumbir a qualquer momento pelo motivo mais insignificante. Não tenha pressa, meu jovem. Descanse. Hendor concordou. Decidiu passar ali a noite e prosseguir no dia seguinte. Os pensamentos eram tantos em sua mente que ele avançou várias horas dentro da noite com os olhos vidrados, depois dormiu com tanto peso que acordou na mesma posição em que dormiu.

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capítulo x

aLiança



Galesltein lhe deu um pequeno mapa que ele mesmo esboçara indicando uma passagem subterrânea que o permitiria evitar os sindrols. Ele finalmente partiu depois de uma refeição magra e quase sem sabor, comparado ao que estava acostumado a comer na taverna dos Drakuins. Saiu novamente sob o vento frio e forte, quando se viu fora da cratera. Percebeu a imensidão do lugar que o cercava, o vasto chão coberto de neve e a paisagem que se modificava constantemente até onde ele podia vê-la; percebeu como era pequeno no meio daquela grandiosidade. Desceu a encosta vendo diante de si as fendas semicobertas pela fumaça dos sindrols e muito à frente a negra floresta. No horizonte, se apertasse os olhos, ainda conseguia ver as colinas e as torres naturais de pedra camufladas na linha cinza que é o limiar entre a terra e o céu. Desceu diante da parede de pedras com várias portas abertas, a face do labirinto que separava o vale dos sindrols e a encosta da montanha de Galesltein, e buscou a referência no mapa, preocupado em não ser detectado pelos inimigos. Ali estava escrito apenas umas palavras apontando para um ponto aleatório no que seria a parte externa do labirinto: “a porta mais escura”. Olhou outra vez para os espaços abertos entre as rochas, aquilo que ele e o mapa chamavam de “portas”. Percorreu os

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olhos por toda a face do labirinto, eram inúmeras, e ainda se inclinavam para circular a montanha. - Grande ajuda! – disse ele em desgosto. Ficou horas perambulando por ali, indo e voltando para o mesmo lugar, tentando interpretar o significado daquilo. Parecia ridiculamente óbvio, mas não se aplicava ao que se via. Nada era escuro ali, não havia nada que bloqueasse a luz solar para que as entradas escurecessem, não havia nenhuma pedra mais escura que as demais. Percorreu aquela região tantas vezes que já reconhecia as formas das pedras e o solo. Cansado e faminto sentou-se no chão, o sol já estava a pino. Olhou diante de si, para o espaço entre rochas por que passara inúmeras vezes naquela manhã que se encerrava, e percebeu algo que não tinha visto antes. O sol iluminava toda a rocha, sombreava algumas reentrâncias e clareava outras que sol alcançava agora. Percebeu que tinha passado horas olhando para os espaços entre as rochas e nenhuma vez olhara para as rochas. De frente pra ele estava uma fenda na pedra, um rasgo estreito, que mesmo sob a luz do meio dia era negro e profundo. A excitação lhe percorreu do peito para os membros e ele se levantou rápido, indo analisar a fenda mais de perto. Era tão estreita que quase não se podia imaginar que alguém passaria por ali. Enfiou o braço para verificar a profundidade e seus dedos não tatearam nada, apenas as paredes laterais que continuavam estreitas como a entrada. Pôs o corpo de lado e se esgueirou para dentro. Entrou inteiro, fez alguns passos tendo a rocha resvalando ora a cabeça ora a ponta do nariz, o peito o tempo todo pressionado de modo que ele precisava se impulsionar com as mãos, e o chão arenoso se tornou liso e duro sob os pés. A claridade externa era uma fenda de luz branca e ofuscante dali de dentro. No passo seguinte o pé desceu até um chão alguns centímetros mais baixo, o terceiro passo revelou que ele pisava degraus. Começou a descer, confiante, e percebeu que as paredes se afastavam.


Ao fim da escada estava num grande corredor muito abaixo da superfície, à frente ele via vários fachos de luz solar penetrando o túnel. Era espaçoso e confortável, comparado à entrada. Pensando no tempo que perdera, começou a correr. Não demorou muito para encontrar a primeira abertura no teto da caverna. Conforme se aproximava, um cheiro forte e desagradável ia se intensificando, o solo sob a abertura era escuro e umedecido, repleto de restos de coisas indecifráveis, ossos de animais comidos e alguns velhos esqueletos humanos largados ali havia muito tempo. Uma caveira escurecida lhe fitava com olhos vazios do meio da lama fedida. Olhou para o alto e viu que estava sob uma das fendas da superfície, podia ver as paredes estreitas do buraco, as estacas que o atravessavam, e seus repugnantes inimigos pendurados nos cestos, imersos em sua fumaça. Era ali que os sindrols depositavam seus dejetos e tudo o que não lhes serviria mais. Passou por ali, sentindo a luz quente do sol do meio dia, e prosseguiu. Todos os buracos sob os quais passou eram iguais, fedidos e sujos. Permaneceu naquele túnel até o sol se inclinar e deixar de iluminar o fundo, foi quando teve de acender uma tocha. A luz do fogo revelou que estava a poucos passos do fim da travessia, o chão se inclinava e sumia dentro de uma água empossada e suja. Era rasa, mal cobria seus calcanhares, e quando atravessou, percebeu que se tratava de uma lagoa pequena que vinha da floresta escura e penetrava no túnel. Quando saiu pela fenda no rochedo da floresta, a água se tornou mais funda, mas não o bastante para ameaçá-lo. Ainda assim andou de costas contra a rocha até conseguir circular a lagoa. Olhou outra vez para as desagradáveis árvores negras e seus galhos escuros, era como uma doença agarrada à pele da qual é difícil se livrar e deve-se conviver. Não precisou de muito tempo para encontrar o que queria, havia uma pequena árvore clara logo em frente à saída do

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túnel, e seguiu a trilha como fizera na vinda. Andar debaixo da terra era menos repugnante que atravessar aquela floresta doente, era como se as trevas assumissem forma, buscando imitar a graça e a beleza das grandes florestas repletas de vida e paz. Ali havia apenas sombras, apenas cinzas, não havia a alegria dos pássaros a cantar ou o cheiro fresco do orvalho. Depois de um dia seguindo a trilha, a árvore seguinte não apareceu. Ele ficou ali parado, segurando com a mão um dos galhos baixos da árvore em que estava e com a outra mão direcionava a tocha buscando a outra árvore, era um náufrago se agarrando à única coisa que o impedia de se afogar na escuridão. Quando direcionou a luz para um lado e olhou à frente, os olhos distinguiram uma escuridão menos escura que se montava nos contornos de uma cabana. Imediatamente Hendor sentiu seu interior ser percorrido por uma sensação que ele não sabia dizer se seria medo ou raiva. - Não acredito nisso... – ele falou. A porta da cabana se abriu e a nítida imagem de uma mulher de cabelos negros e vestido branco surgiu. Estava distante e Hendor acompanhou cada passo que ela deu até estarem próximos, frente a frente. Ele ainda agarrado ao galho da árvore. - Meu querido campeão! Que alegria vê-lo outra vez, conseguiu o que queria? – seus olhos estavam dourados e brilhantes. - Por que eu não acredito nessa alegria, bruxa maldita? – ele disse rispidamente. - Parece que encontrou sim. – ela falou olhando a mão que não soltava o galho. – Por que não segue seu caminho? – ela falou com seu sorriso cruel e debochado. – Falta alguma coisa? - Deixe-me passar. – ele disse. - Passe, querido campeão. – ela falou se aproximando lentamente, entre os bizarros adornos e brilhantes tesouros que ela usava, ele viu sua pedra vermelha pendurada no pescoço junto de outras que ela conseguira antes. – Se souber para onde ir, é claro.


Ele tirou a mão do galho, sentia que tremia suavemente. Mais uma vez não sabia dizer se era raiva ou medo. - Está surpresa por me ver vivo, não é? – disse ele. – A espada que você me deu muito me ajudou... e quase me matou. Você é serva de Krondarg, não sua inimiga! - Ah... o destemido Hendor não poderia ter medo de um pouco de dor, não é? – ignorando a segunda acusação. - Eu já disse uma vez, bruxa, saia do meu caminho. - Não tão rápido... – ela falou pondo as mãos à cintura outra vez. – Primeiro terá de pagar o preço... Hendor não esperou. Largou a tocha, sacou as duas espadas e as fez atravessar o vestido branco, a pele, a carne, e novamente a pele e o vestido. O sangue carmesim jorrou e ela abriu os olhos espantada. Surpresa, ela olhou para baixo, as duas espadas entrando lado a lado abaixo das costelas e o vestido branco encharcando-se de sangue. - Não vou lhe dar nada, maldita. – ele recuou e puxou lentamente as duas lâminas. Ela olhou o próprio sangue nas mãos tremidas. Então os olhos dourados assumiram uma cor verde como o mar das águas quentes, e o sangue que dela saíra começou a voltar para dentro das feridas. A longa mancha vermelha no vestido regredia, enquanto ela fitava Hendor com um olhar cada vez mais cruel. Até mesmo o sangue que havia nas espadas atravessou o ar em várias gotas e voltou ao corpo de Ikendra. - Você pensa que é tão fácil vencer a senhora desta floresta? A perdição dos homens perdidos, como você mesmo me chamou? - Parece então... – ele disse embainhando as espadas outra vez. – que vou ter que mudar de tática. – apanhou a tocha que ainda flamejava no chão e se aproximou, o sangue ainda lhe entrava de volta nas feridas e ela lhe sorria com os lábios da mesma cor. – Você vai me deixar passar! – e lhe pressionou a ponta da tocha no rosto, contra os olhos. Ela gritou e tentou se afastar, mas ele a pegou pela nuca e pressionou com mais força.

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A bruxa emitia um grito estridente e agourento, fez as árvores estremecerem, agitando os galhos e provocando um farfalhar intenso que lembrou os ventos precedentes de uma tempestade. Ele a soltou e ela caiu sentada no chão, o sangue escorria da face queimada, o cabelo estava queimado. Hendor puxou uma das espadas, que saiu com seu som metálico e agudo. A bruxa tateava ao redor, os dentes rangendo em desespero diante da cegueira. - Saiba que Krondarg terá o mesmo fim. – ele falou enquanto lentamente introduzia a espada em seu peito, alcançando o coração e fazendo o sangue derramar-se outra vez. Ela tombou para trás, estremeceu e parou de se mover. Imediatamente a pele branca foi se tornando cinzenta e enrugada, a carne começava a se desfazer mais rápido do que o normal. Ele se abaixou, pegou de volta a pedra vermelha que lhe pertencia, e olhou adiante no caminho. Tendo a tocha de volta na mão, viu que a cabana de galhos se desmontava e revelava a imagem da árvore clara que escondia. Hendor prosseguiu enquanto o corpo da bruxa virava cinzas no chão da floresta. Seguiu a trilha confiante e determinado, satisfeito por ter se vingado da bruxa. Num momento ele viu uma fraca claridade acima dele. Curioso e desconfiado olhou para o distante alto, para a afastada folhagem suspensa nas gigantescas árvores e percebeu que a folhas cinzentas se tornavam verdes, e o sol as iluminava como nos bosques que cercavam sua vila. Aproximou-se de uma das árvores negras e quando a tocou a casca negra saiu em suas mãos, revelando uma madeira clara e viva. Lentamente, a floresta se libertava das sombras da bruxa. ***


Foi com imensa alegria que a luz do dia e a distante imagem dos campos de Vierg e as colinas do outro lado surgiram quando Hendor chegou ao fim da floresta. Saiu pela orla e viu a casa bem distante, sentindo um desejo imenso de correr para lá, de tomar Halina pelos braços e beber insaciavelmente da paz que ela lhe dava, mas atravessou os campos apressadamente e conteve-se a sequer olhar para lá. Meteu-se apressadamente entre as colinas e correu até estar afastado o bastante para não se sentir atraído a abandonar o caminho. Conforme avançava, sentia seu peito agitado. O coração batia mais forte e suas mãos começavam a tremer, a ansiedade o acompanhava e ficava evidente somente agora. Uma ideia passava por sua mente desde que descera as encostas de Galesltein, e agora que estava alcançando o vale dos yotun, a ideia o tornava inquieto. Quando finalmente viu as torres de pedra emergindo da névoa, parou de andar. Sabia que devia dar o próximo passo, mas seu corpo não permitia. A descoberta do próprio medo o fizera não confiar mais em si mesmo como antes, e teve de se lembrar do que Agbar lhe dizia anos antes. Lembrou-se do motivo para estar ali, sabia o que devia fazer, mas não podia hesitar, pois isso poderia significar o fracasso. Era averso ao fracasso mais do que à própria dor. O primeiro passo quase não foi um passo, nem chegou a levantar o pé do chão. Os demais foram se tornando mais convictos e ele conseguiu enfim chegar à borda do penhasco. A névoa envolvia as bases das torres de pedra como água, escondendo o fundo do vale e seus monstruosos habitantes. - Yotun! – ele gritou dali, e sua voz foi propagada para dentro do vale ecoando longamente em suas compridas paredes paralelas. – Sou Hendor, o destemido. O carrasco da bruxa e inimigo dos dragões. Escutem-me... Por um instante inicial ele apenas ouviu o eco da própria voz, e sentiu-se parcialmente aliviado por ser ignorado.

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Então um som grave e intenso foi emitido lá de baixo fazendo as pequenas rochas soltas se desprenderem do alto das colunas de pedra e da beirada do rochedo, sendo sentido por Hendor dentro do próprio peito. Uma série de tremores, passos pesados e brutos, foi seguido pela imagem assustadora de uma imensa mão emergindo da névoa cujos dedos engancharam na beira, rachando o chão e lançando pedras no ar. Hendor saltou para trás e outra mão surgiu em seguida segurando na beirada do rochedo. Lentamente fios prateados, longos e arrepiados despontaram dali e em seguida o rosto velho e enrugado do yotun surgiu. Tinha uma expressão severa e olhos de quem sabia julgar bem o que visse. - O que queres, Hendor, o destemido? – disse ele com sílabas compridas e uma voz grave e retumbante, que fazia vibrar as roupas. Enquanto aguardava a resposta, a névoa emanava de suas narinas, o hálito era gelado. Hendor encarou o rosto enorme do gigante, viu que facilmente caberia deitado dentro da boca da criatura. - Com quem tenho a honra de falar? – perguntou tentando não falhar a voz. - Sou Nagoblar, sou o primeiro deste vale. - Grande Nagoblar. – disse Hendor arrependendo-se de cometer a redundância de chamar um gigante de “grande”. – Nossos povos sempre viveram afastados, sempre tivemos medo da grandiosidade dos yotun e ensinamos nossas crianças a temê-los. Da mesma forma a grande quantidade dos pequenos humanos e a rapidez com que nos espalhamos sempre ameaçou seus territórios, as terras que vos pertencem a séculos sendo invadidas por criaturas de vida curta que inventam armas cruéis e dolorosas. – o yotun crispou os lábios. – Mas hoje estas montanhas sobre as quais vivemos são ameaçadas por um inimigo em comum. Basthragg desapareceu e deixou suas crianças para dar seguimento à sua destruição, e hoje Krondarg se dirige a estas regiões para


dominá-las. – Nagoblar ouvia com interesse a partir desse ponto. – Em nossos livros Basthragg é chamado “inimigo dos yotun”, e há relatos de vários conflitos entre o dragão e os antigos gigantes de gelo. Peço, Poderoso Nagoblar, humildemente, perdão por toda ofensa que minha raça fez à tua. – disse ele pondo-se de joelhos. – E imploro que se una a nós nesta batalha que somos fracos demais para travar. Nagoblar abriu a boca em uma tempestuosa gargalhada, jogando a cabeça para trás. - Pequeno insignificante! Você não é grande o bastante para ser absolvido pelos erros de toda a raça humana. – disse ele. – Sua raça é tão vil que é capaz de se humilhar para que os salvemos hoje e amanhã estarem de volta à nossa caça. Pensam que somos grandes, lentos e estúpidos, esquecem que o que seus antepassados vos ensinaram foi ensinado a eles por nós. Não foram os antigos yotun, eu mesmo lutei contra Basthragg. – Hendor sentiu-se tão humilhado como quando conversara com Galesltein. – Será um prazer dar a Krondarg o mesmo fim. – Hendor então se agitou e olhou surpreso para o gigante. – Não faço isso pelo teu líder, Hendor, o destemido. Nem pelos títulos que você mesmo se deu quando me chamou, nem pelo perdão que você pediu em nome de sua raça. Farei isso por meu povo, pelos meus irmãos, pois sei que vivendo tão próximos, a sua desgraça é também minha desgraça. Dizendo isso ele se impulsionou para trás e desapareceu dentro da névoa. Hendor pôs-se de pé em um salto quando ouviu o estrondo do gigante atingindo o fundo do vale. Mal acreditava que tinha dado certo. No mesmo entardecer o conselho se reunia no alto da torre branca, o governador Kenrick jazia largado em sua cadeira num estado de prostração e conformismo, diante dele os dois antigos Drakuins, Lorthon e Gowlin, sentavam-se com as mesmas atitudes de sempre, um fechado e o outro

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gentil. Olhavam para seu governador pensando em o quanto estariam perdidos se tivessem de esperar por resoluções vindas dele. Kenrick era um diplomata, um homem de selos e cumprimentos, não era capaz de se tornar aquela figura de refúgio para seu povo diante de ameaças. Os dois tinham chegado ali a chamado do governador, mas ele não dissera nada ainda. Gowlin decidiu quebrar o silêncio. - Talvez queira saber, meu senhor, que as escavações assumiram um ritmo mais eficiente... - Não importa... – disse Kenrick, pesaroso. – Se aquela fera soprar em nós, seu fogo penetra na terra, vamos todos cozinhar dentro destes túneis. - Não é um abrigo subterrâneo, meu senhor. É um caminho protegido para fugir. – disse Lorthon com sua impaciência. - Ah sim, claro... uma rota de fuga... estamos tão apavorados que até o destemido fugiu. – disse Kenrick. Os dois veteranos se entreolharam. - Hendor não fugiu... ele partiu para buscar... – Gowlin começou mas foi interrompido. - Você já disse... ele saiu em busca da solução para nossa condenação... bem justo, visto que foi ele mesmo que nos condenou. Mas não creio que ele vá retornar com esta salvação. – um guarda anunciou que havia alguém à porta, mas o governador fez um gesto de negação. - É apenas um dragão, meu senhor. – disse Lorthon. – Os Drakuins são matadores de dragões por tradição. - Apenas um dragão tão poderoso e antigo que viu estas montanhas se cobrirem de vegetação e provavelmente tem um exército para lutar por ele onde não pode estar. – contrapôs o governador. – Estas palavras parecem com as de Hendor. Ouviu-se uma pancada forte e a porta se abriu impetuosamente, Kenrick se levantou. Hendor adentrou a sala e se posicionou diante da mesa do governador. Tinha uma expressão dura.


- É libertador saber que pessoas a quem somos leais não têm mais confiança em nós. – disse Hendor. – Se eu protegesse apenas esta torre, estaria sozinho agora, governador Kenrick. Gowlin sorriu e Lorthon o imitou em silêncio. O governador se deixou cair sentado outra vez, tinha um sorriso estúpido enquanto fitava o jovem. - É bom tê-lo de volta, meu rapaz. – disse Gowlin apoiando-se na bengala com cabo de espada para pôr-se de pé e o cumprimentando, lançou um fugaz olhar para as marcas deixadas pelas feridas adquiridas na viagem. – Acredito que sua jornada tenha sido satisfatória. - Fiquei satisfeito de ter chegado e não ter encontrado apenas cinzas no lugar da vila. – disse ele. – Precisamos estar prontos para a chegada de Krondarg. - Já fizemos muitos avanços sem você, Hendor. – disse uma voz altiva e agressiva, Hendor se virou e viu Liwe entrando na sala, acompanhado por Blartos e Varkel. - Isto é bom. – disse Hendor virando-se para ele sem uma gota de recepção. – Que progressos seriam estes? Liwe estava prestes a falar, mas Blartos tomou a dianteira. - Usamos os nossos escassos tesouros para construir balistas de porte suficiente para nosso desafio, treinamos os jovens para manejar espadas e escudos, reforçamos o muro... - Esta última eu vi, mas vai segurar as tropas. Se Krondarg nos atacar pelo ar o muro será nossa prisão. – disse Hendor. - Pensamos nisso, e construímos túneis que passam por baixo do muro e conduzem a lugares seguros. – disse Varkel também falando antes de Liwe. – Também construímos catapultas para combater o que vier pelo ar. - Só temos um problema. – disse Lorthon, e Hendor se virou para ele. – Não há nada que nos proteja do fogo de Krondarg, e nada capaz de feri-lo. Hendor fez seu sorriso característico e autoconfiante, o que ele não fazia havia tempo.

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- Cuidei disso enquanto estive fora. - O que? – disse Liwe. – O que está dizendo? - Fiz uma aliança com guerreiros capazes de combater a fera. – disse ele. - Que guerreiros seriam estes? – perguntou Liwe ainda em tom hostil. Gowlin sorria e ria de Hendor por sua sagacidade. - Você verá quando a batalha começar, meu amigo. – disse ele. – É bom revê-lo... - Onde você esteve? – disse Liwe. - Estive muito além do que já fomos. Apostei com um abutre, escalei um gigante, matei o maior sindrol que eu já vi... – virou-se para Lorthon. – Viguei muitos heróis que estiveram diante da perdição dos homens perdidos, e clareei a floresta escura. – o único olho de Lorthon se fixou em Hendor, e seus lábios fizeram um sorriso de satisfação que lhe era raro. – Foi a maior aventura que vivi, e a principal dos meus livros. Mas todos os futuros Drakuins cantarão sobre como encontrei meu próprio medo e depois me juntei aos meus amigos e como fizemos um dragão fugir com o rabo entre as pernas. Liwe manteve a face rígida, mas os outros dois ao seu lado sorriram. - Estamos salvos... – exclamou insanamente o governador gesticulando nervosamente e com um sorriso abobalhado. Liwe olhou a reação de Kenrick com desprezo e deixou a sala pisando forte e bufando de raiva.




capítulo xi

O fiM da EspeRa



O governador e o conselho tinham conseguido manter aquele fato em segredo por algum tempo, mas ficou difícil esconder a verdade quando se via claramente que a vila se preparava para um ataque. Um pequeno descuido numa conversa entre o conselho e o capitão da guarda foi o bastante, um jovem soldado ouviu através da porta quando o governador se exaltou e acabou falando alto demais. Boatos se espalham como doenças, e este deixou a vila doente. Na apreensão pela chegada do ataque da fera uma sombra de consternação cobriu a vila. As pessoas raramente caminhavam pelas ruas, passavam o dia todo enfurnadas dentro de casa, não viam mais seus vizinhos. Apenas o padeiro e outros que prestavam serviços mais essenciais trabalhavam. Os velhos olhavam cada detalhe de suas vidas como se estivessem reconhecendo um momento para o qual se preparavam havia muito tempo, enquanto os mais jovens estavam ansiosos e desesperados. A população esperava pela morte, não acreditava na segunda camada de madeira que fora adicionada ao muro, nem nas torres com enormes atiradores de lanças que permeavam o ajuntamento de casas. Algumas mães proibiam seus filhos de comparecerem aos treinamentos militares e uns e outros de má índole começaram a saquear, matar e estuprar sob o pretexto de que todos iriam morrer assim que a fera surgisse.

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Hendor percebeu essa diferença desde quando entrou na vila em seu retorno, sentiu falta das crianças que o perseguiam, dos comerciantes animados com os dias de boa safra que o cumprimentavam e as moças que lhe acenavam timidamente. - Precisamos manter a vila pronta para reagir, não pronta para ser destruída. – disse ele ao conselho no dia seguinte ao que chegou. - Já nos preparamos, Hendor, mas não posso evitar que as pessoas sintam medo quando a fera pode surgir inesperadamente. – defendeu o governador. - Prepararam-se com pressa, correto. Mas se Krondarg vai demorar, temos tempo para reforçar o muro com pedras. - Ele pode chegar a qualquer momento. - Enquanto esperaram que ele chegasse a qualquer momento tiveram tempo de fazer muito mais do que fizeram. Uma semana depois do retorno de Hendor um muro de pedra começou a ser construído ao redor do de madeira. Vendo aquela proteção eficiente, o povo começou a encontrar ânimo. Sentiam-se mais seguras para andar nas ruas, apesar de saberem que um muro não impediria um dragão. Passou tempo o bastante para que as balistas perdessem o brilho do metal, se tornaram soturnos monumentos empoleirados em suas torres, e para que o musgo tomasse as pedras do muro. A vida voltou ao normal, mas os seis Drakuins sempre despertavam antes do sol e observavam o horizonte por várias horas. A população deixou de esperar o ataque, alguns ainda se lembravam e quando mencionavam o ocorrido ouviam piadas a respeito; comparar a chegada do dragão a eventos considerados impossíveis e ou muito demorados se tornou um estranho costume: - Senhor, acalme-se, eu vou pagar o que devo... - Quando o dragão chegar? Alguns já tinham se convencido de que toda aquela de-


manda de reforçar o vilarejo foi um ato impensado de um governador que já tinha fama de louco entre o povo, criticavam os gastos para construir as armas e transformar a vila numa fortaleza quando poderia ser investido em algo mais essencial para o povo, como melhorar o soldo dos soldados ou comprar melhores alimentos de terras que produziam melhor. E foi em um destes dias semelhantes aos vinte anteriores que Liwe olhou os picos do oeste de cima da torre branca logo após o amanhecer e avistou uma estranha figura empoleirada sobre o pico mais alto, pequena à distância: uma negra silhueta de grandes asas abertas em movimento. O espanto foi tão grande que ele saltou para trás. Em seguida pôs a cabeça para fora da janela e gritou para os guardas que cercavam a torre. - Toquem a trombeta! O guardas olharam para os lados procurando a voz. - Toquem a trombeta! – ele gritou com mais força, um dos guardas experimentou olhar para cima e gritou um longo e lento “o que” que fez Liwe estremecer de nervoso. - Inúteis! – disse saindo pela porta e quase derrubando o governador que acabava de subir as escadas. Liwe desceu a torre saltando os degraus o máximo que podia alcançar sem perder o equilíbrio e irrompeu na direção da praça onde uma enorme trombeta de chifres, que fora posta ali apenas para aquele fim, envolvia uma haste de madeira. Subiu o pequeno patamar onde alcançava e soprou. O clangor grave e belo soou por todas as ruas e praças, e foi recebido com terror por todos. O medo não foi mais forte que a decepção em alguns, de fato acreditavam que o dragão jamais viria. Mas antes do desespero veio a incredulidade, a dúvida. As pessoas interromperam seus afazeres e ergueram os olhos na direção da trombeta. Interpretaram como um ato de insanidade por algum bêbado. Então soou outra vez, mais forte, mais longo, com maior clamor.

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- Não pode ser... – alguns balbuciaram sem imaginar que a mesma fala era repetida em vários pontos da vila. O clamor voltou uma terceira vez, com mais urgência. Aí sim veio o desespero. As frutas rolaram pelo chão sujo, os cavalos derrubaram seus montadores, o grito foi uníssono. Algumas pessoas correram para dentro de suas casas, como fora a recomendação inicial, enquanto a maioria se apressou em se amontoar junto às entradas dos túneis de fuga. Felizmente, guardas e portões tinham sido estabelecidos para estas entradas; os desesperados nem imaginavam que era uma péssima hora para sair, se fossem para fora da muralha dariam de frente com as tropas sob comando do dragão. Os guardas tiveram de ameaça-las para que não invadissem os túneis e um soldado ergueu a voz para alertá-los da imprudência. Hendor saía do bosque, tinha acabado de receber o sol na alvorada, como sempre tivera o costume de fazer, e se deparou com os soldados guarnecendo os postos nas torres das balistas, que se podiam ver de fora da muralha, e os arqueiros se posicionando sobre o muro. - Ah, não... Ouviu o som de tambores à distância, saindo de dentro dos bosques que cercavam a vila, e uma marcha ribombava estremecendo o solo. Correu para os portões e teve de gritar várias vezes para que abrissem à sua entrada. Atravessou as ruas, correndo entre as pessoas que andavam de um lado a outro sem ter aonde ir, crianças agarradas no pescoço das mães, cavalos correndo soltos derrubavam desavisados. A praça estava lotada dos soldados que desordenadamente cercavam o comandante, ele gritava de cima do pedestal sem ser ouvido. Atravessou as tropas desorganizadas e subiu a torre, todos já estavam ali. - Ele está aqui? – perguntou. - O que estamos enfrentando? – perguntou Varkel.


- Como suspeitamos, há um exército que luta por ele. – disse Hendor. – Ele está aqui? – repetiu. - Olhe para os picos do oeste. – disse Liwe, estava pálido. O governador tremia sentado à cadeira. Hendor espiou pela janela e viu as grandes asas do dragão se agitando sobre os montes, sentiu o sangue fugindo do rosto e percebeu que odiava sentir medo. O dragão parecia ao menos três vezes maior do que os que se viam desenhados nos livros dos antigos feitos dos Drakuins. - Como vamos fazer isso? – perguntou Lorthon. – Os soldados estão com mais medo que o povo, metade não se apresentou. Acredito que estejamos em menor quantidade. - Ora, isso é óbvio. – disse Liwe. - Só precisamos impedir que entrem. – disse Gowlin. – Se o dragão atacar não acredito que seus servos vão querer ficar perto de suas chamas. - Está sugerindo que enfrentar Krondarg será mais fácil que seu exército? – disse Varkel. - Estou dizendo que temos mais chances concentrando todo o nosso poder apenas em um oponente. – corrigiu Gowlin. - Onde estão aqueles com quem você fez aliança, Hendor? – Liwe cobrou. - Estão aqui desde que cheguei. – ele respondeu, o que surpreendeu a todos. - Onde? – indagou o governador. - No abismo, prontos para atacar. - No abismo? – disse Liwe. - Estão esperando todo este tempo? – disse Gowlin rindo. – Que bela lição para nós. - Digamos que meus amigos têm tempo sobrando. Liwe ia dizer algo, mas foi interrompido por um grande estrondo metálico que propagou-se até o alto da torre. - Estão forçando os portões. – disse Blartos. – Vamos, já começou.

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Os seis Drakuins desceram as escadas e o governador ficou na torre, escondendo-se atrás de quatro guardas. Varkel subiu as muralhas e assumiu o comando dos arqueiros. Quando olhou para as tropas que cercavam o vilarejo se espantou. Não havia um ser humano ali, a maioria era sindrols raivosos e loucos. Um quarteto de trolls golpeava os portões de aço, eram corpulentos e de pele cinza escuro, cobertas de protuberâncias; vestiam-se com couro e lã, e tinham uma corcunda ossuda que jogava para frente a cabeça desproporcional com orelhas amplas e um nariz enorme. A pele nas mãos era grossa como pedra e seus punhos faziam estremecer o muro quando batiam contra o portão. Os sindrols aguardavam saltando no mesmo lugar, agitados e inquietos, com ossos compridos e afiados nas mãos. Vez ou outra algum deles ousava escalar as pedras do muro, habituados aos rochedos onde viviam, e eram facilmente abatidos pelas flechas. - Não deixem que arrebentem os portões, estaremos perdidos. – foi a primeira coisa que ele disse. Blartos tomou para si alguns jovens guerreiros que encarregou de arrastarem as catapultas de dentro dos galpões onde eram guardados, estes tinham sido construídos para tal e as máquinas já saiam apontando para o muro. Hendor escalou uma das torres de balista e manteve seus olhos sérios e desafiadores na distante imagem do dragão, que permanecia sobre o pico. Liwe e Lorthon tomaram voz diante dos soldados desorganizados e temerosos, os fizeram formar pelotões. Liwe distribuiu metade deles para guarnecerem a muralha por dentro, desta metade um pelotão inteiro ele posicionou diante dos portões, ao redor de uma catapulta de alcance mais curto que Blartos enviara. A primeira metade permaneceu junto de Lorthon e Gowlin no centro do vilarejo. - Gowlin, fique junto de Kenrick, me passe as ordens que ele decidir. – disse Lorthon.


- Isto é hora para tentar se enganar, Lorthon? Kenrick só pensa em se esconder, não tem condições de comandar a defesa de uma fortaleza. Os trolls continuavam a golpear os portões, as flechas não eram capazes de penetrar sua pele grossa. As dobradiças começavam a ceder e de dentro os soldados viam uma fenda comprida se alargando a cada golpe que fazia portões se encurvarem para dentro. - Eles vão entrar... – disse um dos soldados recuando. O rugido dos trolls gelava as entranhas Liwe surgiu ao seu lado e o puxou de volta para a posição no pelotão. - Afaste-se daqui e Varkel lhe meterá uma flecha nas costas. – disse ele alto o bastante para que os que estavam em volta pudessem ouvir, Varkel ouviu seu nome do alto da muralha, olhou e confirmou com um aceno de cabeça. – É melhor morrer lutando que morrer como um covarde desertor. - Por favor, senhor... – disse o jovem tremendo e suando, não devia ter ainda vinte anos. – Meus pais precisam de mim para comer. - Então defenda-os. De cima do muro, acima dos portões, Varkel gritou: - Tragam o óleo! Em poucos instantes um soldado surgiu de dentro de uma das torres anexas e veio andando sobre o muro carregando um grande caldeirão fumegante que andava sobre rodas. Os demais soldados se afastavam dele, que tinha fama entre os arqueiros de ser desastrado, mas sob os olhos de Varkel ele não falhou. Posicionou o caldeirão diante de um buraco acima dos portões e ali despejou seu conteúdo. O líquido viscoso e fervente correu por canaletas que o distribuíram ao longo da largura do portão e se derramou sobre os quatro trolls, os respingos afastaram os sindrols que os cercavam. O efeito sobre os trolls foi praticamente nulo, eles

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permaneceram destruindo o portão jogando óleo quente no ar a cada movimento brusco. - Fogo! Dois arqueiros acenderam a ponta de suas tochas e atiraram nos trolls. As flechas não entraram, mas o fogo pegou rápido e logo se alastrou por todo o óleo. - O que? – disse Varkel ao ver que os trolls perseveravam em sua tarefa sem diminuir o ritmo. - Preparem para atirar! – Liwe gritou para os operadores da catapulta pequena que estava a alguns metros do portão. Quando Liwe virou os olhos de volta, os portões foram arrancados e tombaram inertes e pesados no chão diante da tropa. Os trolls envoltos em chamas se abaixaram para passar por baixo do enorme umbral e rugiram desafiando os soldados. A frente do pelotão recuou deixando apenas dois valentes e Liwe destacados. - Atirem! – Liwe gritou. Ouviu o som da madeira cortando o ar e um grande bloco de pedra que sobrara da construção do muro passou poucos metros acima de sua cabeça e caiu sobre os dois primeiros trolls. As criaturas tombaram e foram arrastadas sob o poder da pedra e ali permaneceram. - Recarreguem e atirem! – ele gritou, mas os dois outros trolls entraram e os sindrols passaram ao redor de suas pernas, grossas como árvores. - Assumir posição de bloqueio! – Liwe ordenou e a retaguarda do pelotão avançou e cercou o caminho pelas laterais na tentativa de isolar a invasão. Neste momento a catapulta atirou outra vez e atingiu em cheio um dos trolls, mas o outro desviou sofrendo apenas um raspão no ombro que o fez cair para trás. Liwe viu que não haveria tempo para que a catapulta estivesse pronta outra vez e correu na direção do troll, o óleo em chamas terminava gradativamente mas ainda havia alguns pontos na pele


da criatura incendiados. Os soldados bloqueavam o avanço dos sindrols; os ossos que eles empunhavam se quebravam contra as espadas; os escudos os empurravam de volta; o pelotão formou três paredes ao redor do portão e os sindrols se acumulavam ali tentando entrar. Lutando bem protegidos e armados, não era difícil abatê-los, mas eram muitos e logo os homens estariam cansados. Liwe e o troll estavam no centro do combate e a criatura o confrontou com um rugido. Liwe sacou a longa espada que trazia na cintura e saltou contra o troll abrindo-lhe um corte no rosto enrugado e desproporcional. A criatura agitou o rosto incomodado pela dor e varreu a área com suas grandes mãos. Liwe saltou escapando e tomou impulso sobre seu braço. Agarrou a gorda porção de carne entre as grandes narinas do troll com a mão esquerda, e esperou apenas um segundo para que a bocarra se abrisse num rugido. Meteu a ponta da espada no céu da boca e forçou para cima. O troll estremeceu bruscamente e caiu para a frente. Liwe caiu no meio dos sindrols e ocupou-se de combatê-los, sabia que não havia muitos mais ali dentro por que Varkel e os arqueiros matavam uma grande parte dos que entravam. Junto da balista, Hendor mantinha os olhos em Krondarg. Imaginou se os olhos do dragão eram capazes de vê-lo também. Olhava para trás e via Varkel e Liwe com dificuldades para defender o portão. Blartos agora se encarregava de abrigar a população nas maiores construções de pedra ao centro da vila. A torre branca permanecia solene e nobre no meio do caos, inalcançável, sua altura a mantinha afastada do que acontecia lá em baixo. Olhou outra vez para o oeste e se espantou ao ver várias criaturas voando na direção deles. Eram bem menores que Krondarg, pareciam pássaros, mas quando se aproximaram revelaram-se criaturas semelhantes àquele que invadira a torre e dera início àquilo tudo. - Preparar as balistas. – ele gritou.

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Sua voz não alcançaria todas as torres, os que estavam próximos a ele ouviram e ergueram bandeiras verdes. As enormes atiradoras se moveram como pássaros que despertam e apontaram para o céu. Os monstros foram recebidos por uma chuva mortal que vinha de baixo. Alguns conseguiam desviar, mas muitos eram transpassados pelas grandes flechas e tombavam. A partir daquele primeiro ataque os que vinham atrás não repetiram o erro, desceram voando abaixo das balistas e subiam golpeando seus operadores. Os arqueiros sobre a muralha passaram a atirar para cima também, mas poucos conseguiam abater as criaturas. As asas de morcego faziam rasantes junto da terra e atacavam os homens que ocupavam as ruas, pegavam-nos pelos braços, subiam a grandes alturas e os lançavam dali. Desceram contra a defesa do portão desfalcando o bloqueio. Um deles reconheceu Varkel como um dos líderes e voou na sua direção, mas o Drakuin atirou uma flecha no último instante que entrou pelo olho da criatura e depois saltou ao lado para não ser atingido. A criatura atingiu o muro e caiu do lado de fora, no meio dos sindrols que ainda não tinham entrado. Liwe era um espadachim formidável, seus movimentos eram velozes e amplos de modo que nenhum inimigo chegara perto o bastante sem antes ser decepado ou derrubado. Quando viu as criaturas com asas de morcego pousando e rasgando a carne de seus homens lançou-se sobre elas e os matava mais rápido do que podiam reagir. Do alto Hendor viu que as coisas não iam bem, os sindrols tinham furado o bloqueio e corriam pelas ruas, matando quem estivesse no caminho. Alguns dos pelotões que tinham ficado na praça sob o comando de Lorthon e Gowlin avançaram para conter o avanço. - É muito cedo... – ele disse para si mesmo. Conseguia ver acima do muro e viu que os sindrols eram muitos mais do que havia na vila para defendê-la. Decidiu.


Amarrou um pedaço de pano vermelho na ponta da flecha de sua balista, apontou para o leste e atirou. A flecha carregou a bandeira acima do muro, acima do bosque, e foi cair dentro do abismo. Olhou para baixo, os sindrols já estavam chegando ao centro do vilarejo, se aproximando da praça e da torre. Liwe e o bloqueio do portão tinham recuado, os homens dali reduzidos à metade. As criaturas aladas desciam e jogavam no ar os arqueiros de cima da muralha, e os sindrols continuavam entrando. O espaço de campo entre o muro e os bosques que o circundavam estava totalmente tomado pelos inimigos. Em meio ao som lamurioso, do grito e choro, do tinir de espadas, do rugir de criaturas e berros de dor, ele distinguiu um som pelo qual seus ouvidos pediam. O som grave de um passo que tremia a terra. Hendor olhou na direção do leste e sorriu. O portão foi bloqueado por uma espessa camada de gelo, um vento frio soprou no ar, formando um redemoinho que flutuava acima de toda a vila, e os seres alados caíam endurecidos e se partiam quando atingiam o chão. Os homens que lutavam olharam espantados para o que acontecia acima de suas cabeças e os sindrols fugiram com medo, mas estavam presos dentro das muralhas e seu número foi facilmente ultrapassado. Liwe tinha acabado de matar os últimos cinco e olhava ainda surpreso para o espaço bloqueado pelo gelo. - Eu não acredito que ele fez isso... Nesse momento um gigantesco pé descalço passou por cima do muro e pisou esmagando um sindrol em frente a Liwe. O gigante entrou e caminhou pela rua principal, chutando os inimigos no caminho e fazendo-os atravessar janelas e cair com membros retorcidos, estremecendo a terra a cada passo. Se aproximou da torre onde Hendor o esperava entusiasmado, lentamente o turbilhão de ar gelado se dissipou.

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- Poderoso Nagoblar... – disse ele quando a enorme face do antigo gigante quando este parou olhando-o à mesma altura. – Obrigado por nos socorrer. - O dragão não atacou, e suas forças já foram reduzidas pela metade, Hendor, o destemido. – disse Nagoblar com sua fala comprida, então seus olhos voltaram-se para o oeste. – Mas parece que isso vai ainda mudar. Hendor se virou para trás e viu a asas abertas batendo e vencendo rapidamente a distância entre os picos e a vila.

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capĂ­tulo xii

O marteLaDor de EsPAdas



A conveniente ação de Nagoblar trouxe alegria e alívio, os homens erguiam suas espadas ao gigante e comemoravam as próprias vidas. Somente os que permaneciam sobre as torres das balistas e o muro viam que ainda não era tempo de comemorar. Todo este entusiasmo morreu no momento em que o impetuoso som das asas golpeando o vento chegou à vila. O rugido da fera foi poderoso, fez estremecer as vestes e foi ensurdecedor aos ouvidos dentro dos elmos. Enfim, ele surgiu à vista de todos, empinando para cima e pousando as duas patas traseiras sobre a muralha, as asas abertas abraçavam grande porção da vila. Suas escamas eram predominantemente escuras, da cor da terra, mas conforme se aproximavam do dorso iam passando para o alaranjado que se tornava vermelho. Suas garras eram do tamanho de um homem, a cabeça tinha dois pares de chifres que se encurvavam para cima e para trás, uma fileira de espinhos longos e curvos ia do alto da cabeça, dentre os chifres, e terminava na cauda, na ponta da qual um tridente rígido e pontiagudo se agitava. As asas eram como de morcego, mas espessas, a luz não atravessava. Os olhos pareciam escondidos dentro de um buraco de escamas, brilhavam dourados lá do fundo. O queixo pronunciado exibia um grande espinho semelhante aos chifres, que se enganchava para cima. A boca larga encur-

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vada para baixo e os olhos tenebrosos e sombrios olhavam as pessoas paralisadas abaixo dele com desprezo e ódio. - Insignificantes e altivos seres humanos, não entendem que o mundo não vos pertence? – disse ele com voz de avalanche. – Quando um ser superior lhes exigir que se curvem, só vos resta se curvar! Não há espada que possam empunhar capaz de me fazer temer. Liwe olhava de boca aberta. Com o corpo ereto, a cabeça do dragão se elevava muito acima da torre branca. - Nagoblar, você traz vergonha à sua raça por defendê-los. – continuou ele. – Merecem ser destruídos, a servidão é misericórdia. Destroem a terra que habitam e constroem habitações elevadas para erguer o próprio ego e compensar sua pequenez. – ele disse virando o longo e grosso pescoço na direção da torre branca. – Sua rebeldia em confrontar meus servos e se aliar aos meus antigos inimigos será paga com o mesmo valor. – o dragão encurvou o pescoço e respirou fundo, o som do ar canalizado pôde ser ouvido por todos, e abriu a boca causando terror nos que o viam. Um brilho intenso surgiu do fundo de sua garganta e uma potente labareda de chamas foi lançada contra a torre. - Não! – gritou Hendor. As chamas se deitaram pelas paredes da torre e desceram até o chão, onde os soldados que puderam escapar correram para longe. O calor foi tão forte que os que estavam do outro lado da praça tiveram a pele queimada dentro da armadura. Grande parte dos que estavam ali morreu, Lorthon e Gowlin não puderam escapar. Quando o sopro de destruição de Krondarg cessou, puderam ver a torre, antes branca, enegrecida e rachada. As paredes externas cederam e a torre se encurvou, indo cair sobre duas casas. - Tentem, seus vermes nojentos! Tentem me deter. Vocês são a praga deste mundo, se espalham feito uma doença contagiosa e destroem tudo o que tocam! Tentem! – ele disse.


- Atacar! – Hendor gritou enfurecido e apontou a balista. Nunca tinha matado um dragão, mas sabia, pela tradição dos Drakuins, que a couraça era menos dura na parte de baixo do pescoço e na barriga. A enorme flecha atravessou o ar mas foi desviada pela mão de Krondarg. Os outros atiradores de cima das torres o imitaram, mas ele se cobriu com as asas e as abriu rapidamente, jogando de volta uma forte lufada de ar que desviou as flechas e lançou algumas contra as casas da vila. Ouviram-se gritos vindos lá de baixo. Krondarg saltou de cima do muro e avançou sobre a vila num voo rasante, lançando-se contra as torres das balistas e derrubando todas em que tocava. Hendor percebeu que ele vinha em sua direção e seus profundos e brilhantes olhos se fixavam nele. O soldado que o auxiliava já recarregara a balista e Hendor apontou no mesmo instante em que a bocarra se abriu e o brilho dourado aqueceu sua face. Atirou e a flecha se perdeu entre as chamas, Hendor acreditou que morreria quando viu o brilho do fogo ofuscando tudo na vista e seu calor intenso, mas a mão de Nagoblar se ergueu entre ele e as chamas. O gigante de gelo extinguia o fogo e o dragão arremeteu. - Ele sabe que é você, Hendor. – disse Nagoblar. – Sabe que a afronta partiu de você e que os homens o seguem. Ele vai querer matá-lo antes de destruir a vila. Os atiradores que tinham restado apontaram e lançaram suas flechas para o alto e ele facilmente se esquivou delas, indo voar bruscamente para o outro lado e começou a descer novamente. Algumas outras flechas foram atiradas mas batiam em sua couraça e caíam inúteis, outras eram afastadas pelo bater de suas asas. Quando passou perto do muro, Varkel atirou uma flecha de seu arco e a viu se fixar no flanco direito. - É possível... – ele disse baixo. Krondarg voou baixo sobre a vila outra vez, sua sombra deslizando no chão, e cuspiu fogo sobre as casas, incendiando uma longa fileira de um lado a outro e subiu outra vez quan-

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do chegou à muralha. Revirou-se no ar e voltou pelo sentido contrário, lançando as chamas outra vez e destruindo outra comprida fileira de casas e pousou com as patas sobre duas casas, cujos telhados cederam mas as paredes o sustentaram. Com as mãos e a cauda ocupou-se de destruir todas as construções ao seu alcance, batia as asas vez ou outra provocando um vento forte que derrubava quem estivesse nas ruas. Lançava fogo de um lado para outro e sua cauda agitada eventualmente descia sobre pessoas nas ruas próximas. Em pouco tempo a vila já brilhava. Blartos correu descendo a rua principal, chovia pedra e telhas, o fogo brilhava nas janelas, despontava pelos telhados e aquecia todo o lugar. Via pessoas queimadas caídas pelo caminho e soldados que corriam em desespero na direção contrária. Ali perto, bem ao lado de onde o dragão se divertia, estava um galpão onde parte da população se abrigava. De cima do muro, Varkel, que era o que enxergava mais longe e nítido, viu o amigo correndo na direção de Krondarg, em um momento do trajeto passaria bem embaixo de sua cabeça. Viu outra coisa: Blartos passava por uma grande balista que caíra de uma das torres derrubadas. Imediatamente desceu do muro e correu veloz naquela direção, era o mais rápido dos quatro. Saltou por sobre entulho e corpos de inimigos e amigos e alcançou a balista antes que Blartos estivesse passando sob o dragão. Era um homem pequeno e teve dificuldades de mover a pesada arma, mas usou um pedaço de viga de madeira ali perto como alavanca e conseguiu colocá-la de pé. Uma das grandes flechas que a arma atirava estava presa nela e ele teve de esticar a corda. Era difícil mirar com uma arma tão grande, mas tentou direcionar a ponta da flecha para a parte mais vulnerável da couraça, conseguia ver um trecho da parte inferior do tronco que aparecia entre a beira do telhado e o braço direito do dragão que se esticava para alcançar as casas do outro lado da rua. Se ele retraísse o


braço, a chance estaria perdida, mas não tinha muito tempo a esperar, exatamente naquele instante Blartos passava por baixo do braço e da cabeça do dragão. - Só tenho uma flecha. – disse, suspirou, e atirou. A flecha voou zunindo, raspou no telhado e desviou o curso, indo apenas resvalar na pele espessa da fera sem causar mais que um inútil arranhão. Varkel fez uma careta diante da falha, mas o que pretendia a princípio serviu, Blartos passava por baixo de Krondarg sem ser notado, o problema é que a cabeça enorme e chifruda se voltava para o pequeno arqueiro. Varkel pensou em correr, mas a mão de Krondarg rapidamente o apanhou junto com a balista e ele jogou para longe como quem lança fora algo inútil e desprezível. Varkel foi atirado por sobre quatro ruas, destruiu um telhado e caiu morto no outro lado. Naquele momento Blartos nem sequer suspeitara o que acontecera e ficou satisfeito por passar tão perto do dragão sem ser percebido e alcançar o galpão. Abriu-o e viu as pessoas encolhidas na escuridão, tremendo e chorando. O calor ali dentro era intenso, fumaça proveniente da queima de uma casa vizinha invadia o lugar. Pediu a eles silêncio e os conduziu escondidos da vista do dragão até os túneis que passavam por baixo do muro. Sobre a torre de sua balista, Hendor vira a ação de Varkel e seu fim. Furioso apontou outra vez a balista contra Krondarg e atirou cego de fúria, berrando para que o soldado que o auxiliava se apressasse em recarregar a arma. O dragão sentiu outra vez as flechas atingindo suas duras escamas intermitentemente, e olhou para o lado. Bateu asas e alçou voo, descrevendo um círculo onde pôs fogo em tudo o que havia perto e se virou outra vez contra Hendor. Este apontou-lhe a balista como fizera na outra vez, então viu de relance algo que o fez hesitar no tiro. Havia um pequeno corte, apenas algumas escamas arrancadas, junto da base de um dos chifres e dali o escuro sangue cor de vinho escorria entre as

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escamas, a flecha que atirara no meio das chamas tinha encontrado seu alvo. Este segundo de distração o fez perder a chance de atirar outra vez e em vez de lançar chamas, Krondarg abriu os dentes para abocanhar todo o topo da torre. Nagoblar mais uma vez se pôs no caminho – o dragão era maior que ele – e deitou o pesado punho na fronte do dragão, fazendo-o perder a direção do voo. Acidentalmente a cauda se agitou enquanto passava por eles e atingiu o meio da torre, lançando pedras e entulho no ar, e a torre tombou. Nagoblar estendeu a mão e amparou Hendor e o soldado, pondo Hendor em seu ombro e o soldado no chão. - Segure-se. Hendor agarrou-se numa mecha de cabelo prateado do gigante enquanto este venceu a distância até o muro com três largas passadas. Passou por cima e pisou nos sindrols congelados que havia do lado de fora e se meteu no bosque indo para o abismo. As copas das árvores passavam abaixo do ombro de Nagoblar. Hendor olhou para trás e viu o dragão voando de cima para baixo na sua direção, vindo de grande altitude e em alta velocidade. Nagoblar ergueu a voz e emitiu seu rugido grave e retumbante, Hendor sentiu a pele do gigante vibrar. Atendendo ao chamado, outros três yotun surgiram no meio do bosque enquanto Nagoblar se abaixou, mergulhando na folhagem junto com Hendor. O dragão descia de boca aberta, os três yotun ergueram lanças maiores que as que eram lançadas pelas balistas, envolveram-nas com gelo, que tomou um formato pontiagudo na frente, e as atiraram. As três bizarras lanças voaram contra Krondarg, uma atrás da outra, e ele cuspiu suas chamas. Quando fechou a boca deparou-se com as três lanças libertas do gelo ainda voando contra ele, e ele contra elas. A primeira entrou no seu ombro esquerdo, a segunda se estilhaçou quando o atingiu na testa e a terceira se perdeu errando o alvo.


Krondarg teve o movimento da asa esquerda prejudicado e perdeu a noção do voo pelo golpe na cabeça. Caiu no bosque arrancando as árvores pela raiz e partindo os troncos no meio. Sua queda abriu uma comprida clareira e o som das árvores se partindo foi ouvido pelos que estavam próximos do portão e muitos viram o dragão ser atingido pelo ataque dos yotun e cair sobre as árvores. O líder dos yotun abaixou Hendor e o pôs no chão. - A partir de agora nós lutamos. – disse ele. - Me deixe lutar junto com vocês. – pediu Hendor. - Você nos deu a chance de lutar, Hendor, o destemido, a batalha agora é nossa. Fique longe. Dizendo isso, rapidamente se afastou na direção para onde Krondarg caíra e desapareceu da vista de Hendor. Havia outros seis gigantes ao redor quando ele chegou, cercavam o dragão caído e empunhavam lanças do tamanho de árvores e dois deles tinham nas mãos correntes feitas de elos maiores que bois. Krondarg jazia no semicírculo que os yotun formavam, uma de suas asas estava dobrada de uma forma estranha, mas os únicos ferimentos que tinha eram a lança fincada no ombro e as escamas perdidas na testa. - Krondarg... – disse gravemente Nagoblar quando se juntou aos seis. – Você sofrerá o mesmo que teu pai Basthragg. Sua ganância é a perdição para sua raça. Lentamente Krondarg firmou as patas no chão, ergueu a cabeça e tomou uma postura solene, sentado e com o pescoço reto. Olhava os gigantes de cima. - Eu passo por sobre estas águas e estas montanhas muito tempo antes de vocês encontrarem os buracos nas rochas onde habitam. – disse ele enfurecido. – Sou eu o verdadeiro rei deste lugar, é a mim que estes seres fracos devem lealdade. Se os yotun decidem fazer alianças com estas criaturas desprezíveis, tornaram-se tão patéticos quanto eles e merecem o mesmo fim!

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Dizendo isso saltou sobre o mais próximo e o abocanhou no pescoço arrancando com os dentes uma grande porção de carne. O yotun deixou a lança cair e tombou com estrondo. Os outros o atacaram com as lanças, mas com suas garras ele as quebrou e transpassou um deles com a ponta de sua cauda. Puxou-a de volta e recuou lentamente contra as árvores, os quatro remanescentes se aproximavam. - Vocês realmente acreditam que são capazes de me deter? – disse ele. Ergueu as patas dianteiras e abriu a boca, derramando sobre eles chamas tão intensas que as árvores ao redor dos gigantes se incendiaram, um vento quente foi soprado daquela direção e até Hendor, que ouvia os estrondos da luta à distância, sentiu o calor queimando a pele do rosto. Sem poder mais se conter, Hendor correu na direção da clareira ignorando o que Nagoblar lhe dissera e o fato de que não seria capaz de fazer nada. Encontrou Nagoblar e mais dois yotun protegidos atrás de três enormes paredes de gelo e avistou ao longe quatro grandes corpos tombados no chão do bosque em meio ao fogo. Viu Krondarg assomando mais à frente, envolto em fumaça e fogo, um cabo quebrado de lança dos yotun saía de seu ombro. Ele puxou o ar e atirou a longa labareda ardente contra Nagoblar e as chamas escaparam pelas beiradas do escudo, vindo na sua direção. Foi quando uma mão forte o puxou pelas vestes e o jogou no chão atrás de uma árvore. Sentiu o calor intenso das chamas pelos longos segundos em que duraram e após isso levantou-se aturdido. Viu Blartos de pé atrás da árvore, as orlas das vestes chamuscadas. Segurava ainda seu grande martelo numa das mãos e tinha recentes feridas de batalha. - Você está bem, amigo? – perguntou ele olhando para baixo. - Estou, obrigado.


- Quantas vezes teremos de salvar tua vida? – disse Liwe se juntando aos dois. Outra vez o fogo de Krondarg entremeou as árvores e os três se jogaram no chão para escapar. Quando o ataque cessou, o calor permaneceu e se tornou mais intenso. Se pondo de pé viram que o bosque à frente deles fora tomado pelo fogo, que se alastrava rapidamente. - Vamos embora daqui, não podemos entrar numa luta de gigantes e dragões. – Liwe falou e assim eles se afastaram do alcance das chamas. Correndo pelo bosque na direção oposta ao fogo, chegaram perto da boca do abismo, podiam ver suas beiras através das árvores. Ainda ouviam rugidos, árvores se partindo e sentiam o calor do fogo de Krondarg enquanto enfrentava os três gigantes. - Não encontrei Varkel. – disse Blartos a Liwe. Hendor sentiu o estômago revirando e um arrepio percorreu seu corpo. - Varkel está morto. – falou. Blartos se enrijeceu em espanto, Liwe fechou os olhos em pesar. Não tiveram nenhuma reação maior que aquilo, nem sequer lembraram-se de chorar; mesmo que cada amigo perdido fosse uma ferida a mais na alma, o grande número de vezes em que tinham visto amigos morrerem os tornara um tanto frios para isso. Hendor mudou de assunto: - Há uma chance de matar Krondarg com um único golpe. - Os gigantes estão cuidando disso. – falou Blartos. - Eu vi uma grande ferida ao lado dos chifres, uma falha na armadura, se eles pudessem meter uma lança ali... – disse Hendor. - Não os vi com lanças. – disse Blartos. - Temos espadas. – Liwe falou. - Não imagino um yotun manejando uma espada tão pequena para eles. – Hendor falou em tom sarcástico.

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- Não eles... nós. Hendor olhou contrariado para o amigo. - Você não acabou de dizer que... – então ele se calou. - Está ficando frio? – disse Blartos. Um vento impetuoso saiu de dentro do bosque, carregando folhas e galhos e flocos de gelo, tão forte que os derrubou no chão. Viram as árvores caindo uma após a outra enquanto Krondarg passava também lutando contra o vento. Atrás dele vinham os três gigantes, pisando a terra e estremecendo-a. A cada passo que davam o gelo branco cobria o chão, envolvendo as protuberâncias do terreno, os troncos caídos e as bases das árvores. Cada vez que o dragão soprava fogo, o vento o dissipava, sempre que se restabelecia e avançava vencendo o vento era golpeado pelas correntes dos yotun. No chão, os três se agarravam às raízes das árvores para não serem arrastados. E assim os três gigantes o empurraram até a beira do abismo e uma corrente fez sua pata traseira deslizar para dentro. Krondarg caiu pela borda do precipício e desapareceu. Os gigantes pararam e observaram, o vento cessou. - Acabou? – perguntou Hendor se reerguendo. - Eu não acredito que tenha acabado. – Liwe falou. E estava certo, as garras de Krondarg surgiram pela beira e o dragão se içou para cima outra vez; não podia voar com a asa quebrada. Mesmo para uma criatura tão grande o abismo era profundo. Os gigantes se aproximaram e lançaram suas correntes por sobre a cabeça de Krondarg, que lutava contra o próprio peso enfurecido, e os elos se prenderam aos chifres. Os dois yotun esticaram as correntes e forçaram a cabeça do dragão contra o chão. A cauda se debatia emergindo do abismo, mas a ferida no ombro tirava suas forças para vencer o poder dos gigantes. Nagoblar se colocou de frente para o dragão e fez o gelo subir do chão e envolver seus braços, descer pela beira e prender seu corpo contra o rochedo, mas Krodarg, tendo a boca forçadamente fechada, soltava fogo pelas narinas e não permitia que o gelo o cobrisse.


- É nossa chance. – disse Liwe tirando a espada da bainha. Hendor viu uma gota de suor descendo pela fronte careca do amigo, Liwe tinha medo. Hendor encontrara o medo, mas como Galesltein lhe dissera, ele sempre tivera medo, apenas sabia ignorar alguns com maestria. Aquela era uma situação em que o medo prenderia qualquer um no chão, mas Hendor sabia que se fosse ele com a espada longa na mão, já não estaria mais ali, já teria corrido contra o dragão antes que ele conseguisse se libertar do gelo. No curto instante em que Liwe hesitou, ele sacou suas duas espadas curtas e correu. - Hendor! – gritou Blartos. - Por que ele sempre faz isso? – disse Liwe indo atrás dele. Hendor chegou até onde Nagoblar estava e se postou atrás de seu calcanhar para se proteger das chamas, a enorme cabeça de Krondarg estava poucos metros à frente. Antes que Liwe o alcançasse esperou o breve momento certo e atirou a espada curta, fazendo-a girar no ar até a testa do dragão. A espada bateu no chifre e desapareceu. - Você é bom em não ter medo. – disse Liwe parando ao seu lado. – Deixe isso com quem sabe usar uma espada. Com um movimento amplo e preciso Liwe atirou sua própria espada, que atravessou o ar girando e assobiando no ar, até entrar de ponta na ferida que o dragão tinha entre os chifres. Krondarg reagiu com um brusco movimento que fez o gelo que o envolvia rachar. A espada não tinha penetrado nem metade do seu comprimento. - Blartos, me dê seu martelo. – gritou Hendor, e o amigo correu para atendê-lo. Quando ia pegar o martelo que Blartos lhe estendia, Liwe o tomou. - O que está fazendo? - Você não vai, Hendor. – disse ele. – Não posso deixar que corra o risco. Você é quem mais dá esperança a esse

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povo, não posso arriscar perdê-lo. - Não diga tolices, me dê o martelo. – falou indo tomá-lo de volta, mas quando se aproximou Liwe puxou a outra espada curta de Hendor e num movimento furtivo cortou-lhe a coxa na frente. Hendor soltou um ganido de dor e caiu sentado, o sangue brotava abundantemente. - Se você morrer, quem vai dar força a essa gente para reconstruir tudo? O governador está morto, e o povo só teve esperança de sobreviver a esta desgraça quando você chegou. E... – ele hesitou. – Não quero perder outro amigo. Deixou cair no chão a espada de Hendor e circulou os calcanhares do gigante, que ainda lutava com o fogo de Krondarg. - Liwe! Volte, seu tolo! – Hendor gritava sem conseguir se levantar. – Blartos, vá buscá-lo. – mas o amigo apenas obsevava sério e soturno, como sempre. Liwe pôs o pesado martelo no ombro e correu na direção do braço congelado do dragão e subiu no gelo, caminhando lentamente. Quando chegou próximo ao ombro já tinha passado da beira do abismo, qualquer vacilo seria a morte. Vendo que chegava, Krondarg se agitou e a rachadura que abrira no gelo se expandiu, abrindo outras fendas menores que se espalhavam aos poucos. Chegou ao pescoço, subiu agarrando-se nas escamas e por fim estava sobre a cabeça do dragão, uma mão segurando em um de seus chifres e outra empunhando o martelo. Subiu na corrente dos yotun, e viu sua espada fincada na sangrenta carne exposta do dragão. Sentia a fera se libertando do gelo aos poucos. Ergueu o machado acima da cabeça, olhou os amigos que o observavam de longe, e o deixou cair. O golpe foi certeiro e estilhaçou o pumo da espada, a lâmina penetrou até o guarda mão e todo o corpo da criatura estremeceu e fez um movimento tão violento que o gelo se partiu, as correntes foram arrancadas das mãos dos gigantes e juntos, Krondarg e Liwe, foram engolidos pelo abismo.


* * * A noite chegou fechando o dia em luto, as nuvens cobriram o céu amortalhando os caídos. O vento fresco soprou entre as ruas da vila, enxugando as lágrimas, acariciando as faces cansadas, espalhando as cinzas no ar. Em seguida desceu a chuva serena que amainou as agitações do povo. Ainda havia muitas casas onde o fogo não tinha sido extinto, e nestas nem a chuva foi suficiente, o fogo só acabou quando não havia mais o que queimar. Parte das ruas menores e becos foi obstruída por destroços, pedaços de telha, madeira e se deitavam nas ruas junto com os mortos. Eram tantos... * * * A destruição viera, e apesar de ainda ter restado uma pouca coisa que escapou da crueldade de Krondarg, as pessoas dali sentiam que a vila não podia mais sobreviver. Ao amanhecer, depois de uma torturante madrugada em que as pessoas recolhiam corpos das ruas, os mortos foram enterrados e pranteados à beira do abismo, houve um momento em que perceberam que os corpos apodreceriam antes que conseguissem sepultar o último, então os restantes foram queimados na clareira no meio do bosque, que também tinha sofrido muito na luta. Havia corpos tão queimados que não se podiam reconhecer, e havia mortos que não foram encontrados. Naquela noite muitos deixaram a vila e partiram em direção à grande cidade que havia à beira do mar, e estes levaram as notícias da salvação que viera para aquele povo que nem sequer souberam que tinham estado um dia condenados. Hendor e Blartos sepultaram Varkel num ponto no meio do bosque, onde ele ficou sozinho. Lamentaram não poder também sepultar Liwe, ao líder dos Drakuins o abismo servia de túmulo.

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Vendo que não havia mais condições de viver naquele lugar destruído, gradativamente as famílias incompletas e as pessoas que tinham ficado sozinhas desceram a montanha como outros tinham feito, e a vila da torre branca foi abandonada. Blartos foi um dos últimos a descer, despediu-se da antiga taverna dos Drakuins ao lado de Hendor. Os dois olhavam entristecidos para a porta queimada e o interior semidesmoronado. - Krondarg não conquistou estas terras, como pretendia, mas nos destruiu como prometeu. – disse ele. - Não vou com você, Blartos. – disse Hendor. O grande amigo o olhou, sério e soturno. - Se não há mais nada além de ruínas que o prendam aqui, Hendor, o que dizer de uma capital lotada de desconhecidos? – disse Blartos. – Eu não esperava que você fosse querer ir comigo. - Me perdoe por isso... – ele falava sem olhar o amigo, não tirava os olhos do lugar destruído. - Eu não te perdoaria se não fosse procurá-la... - O que quer dizer? – Hendor virou-se para o amigo. - Você só falou desta moça, a filha do fazendeiro, uma vez. – falou Blartos. – Mas vi que uma parte de você ficou lá. Grande parte morreu junto com esta vila, então tudo o que te resta está nesta fazenda. Hendor riu um pouco tímido. - Faça uma boa viagem, Blartos. - Você também, Hendor. O herói destemido ainda esperou que o amigo desaparecesse no bosque antes de voltar-se para o norte. Passou pacificamente pelo vale dos yotun e foi cumprimentado à distância por Nagoblar, que emergiu da névoa em sua forma enorme e lhe estendeu a mão. Atravessou a região das colinas sentindo o coração bater forte, e foi com alegria que viu a pequena casa de Vierg. Tomado pela excitação, correu saltando as fileiras do plantio de Vierg e logo chegou à porta. Não chegou a bater, a porta se abriu e lá estava ela.


Seu vestido moldado nas suas formas suaves, os cabelos amarelos lhe descendo sobre os ombros e reluzindo sob o sol, os olhos azuis e fortes lhe fitando com surpresa sobre a boca frĂĄgil que logo se montou num alegre sorriso. Mas ele se prendeu outra vez Ă queles olhos, aqueles olhos de que tanto necessitava.

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