A CONCEPÇÃO DE JUSTIÇA DISTRIBUTIVA ENTRE O LIBERALISMO E O LIBERTARISMO: APLICABILIDADE DAS

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Cássius Guimarães Chai Doutor e mestre em Direito constitucional com estudos pós-doutorais na central european university, universidad de salamanca, european university institute, the hague academy of international law, organização dos estados americanos (oea) Pesquisador visitante na chinese academy of social sciences Professor de Direito na normal university of shanghai, professor adjunto na universidade Federal do maranhão e professor visitante na northeast university of Political and law - Xi’an e Jiaotong university school of law shanghai membro designado unDoc e4J global initiative Program for criminal Justice membro das international association of constitutional law, european society of international law e international association of Prosecutors Promotor de Justiça do estado do maranhão

Ana Larissa Torres mestranda do programa de pós-graduação em Direito e instituições do sistema de Justiça da universidade Federal do maranhão - uFma graduada em Direito pela universidade Federal do maranhão servidora pública no ministério Público Federal - ma e assessora no tribunal de Justiça do maranhão

A CONCEPÇÃO DE JUSTIÇA DISTRIBUTIVA ENTRE O 131 LIBERALISMO E O LIBERTARISMO: APLICABILIDADE DAS DISTINTAS ABORDAGENS NA ESFERA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – UM ExERCÍCIO hERMENêUTICO POR UM MINISTéRIO PÚBLICO RESOLUTIVO the concePt oF DistriButiVe Justice BetWeen liBeralism anD liBertarianism: aPPlicaBilitY oF the DiFFerent aPProaches in the sPhere oF PuBlic Policies – a hermeneutical aPProach to a ProactiVe attorneY´s general oFFice

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Resumo: Este artigo aborda a justiça distributiva no âmbito de duas teorias da filosofia política: liberalismo e libertarismo. Busca-se compreender qual posicionamento essas vertentes concedem à atuação social do Estado e perquirir a aplicabilidade de seus postulados no contexto das políticas públicas. Inicialmente, refletir-se-á acerca dos contornos gerais referentes à justiça distributiva no liberalismo de John Rawls. Logo após, serão expostas as diretrizes do libertarismo e o papel do Estado por meio dos principais representantes libertários. Por fim, propõe-se um estudo acerca das políticas públicas no contexto hodierno e as perspectivas das teorias elencadas em torno desse tema. A pesquisa utilizará o método da abordagem qualitativa e compreenderá a revisão bibliográfica. Palavras-chaves: Justiça distributiva, liberalismo, libertarismo, políticas públicas.

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Abstract: This article aims to address the Distributive Justice in the scope of two political philosophy theories: Liberalism and Libertarianism. It seeks to understand what positioning these dimensions grant to the social action of the State and inquire the applicability of their postulates in the context of public policies. Initially, the research will reflect on the general contours of Distributive Justice in John Rawls’s Liberalism. Soon after, the guidelines of Libertarianism and the role of the State will be exposed through the main libertarian representatives. Finally, it is proposed a study about public policies in the current context and the perspectives of theories related to this theme. The research will use the method of qualitative approach and will comprise a bibliographic review. Keywords: Distributive justice, liberalism, libertarianism, public policies. Resumen: Este artículo aborda la justicia distributiva en el marco de dos teorías de la filosofía política: liberalismo y libertarismo. Se busca comprender qué posicionamiento esas vertientes conceden a la actuación social del Estado y examinar la aplicabilidad de sus postulados en el contexto de las políticas públicas. Inicialmente, se reflexionará sobre los contornos generales referentes a la justicia distributiva en el liberalismo de John Rawls. Luego, se expondrán las directrices del libertarismo y el papel del Estado por medio de los principales representantes libertarios. Por último, se propone un estudio sobre las políticas públicas en el contexto actual y las perspectivas de las teorías enumeradas en torno a ese tema. La investigación utilizará el método del abordaje cualitativo y comprenderá la revisión bibliográfica. Palabras clave: Justicia distributiva, liberalismo, libertarismo, políticas públicas.

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INTRODUÇÃO

são notórios os constantes questionamentos acerca do papel hodierno do estado no tocante à esfera social. essa indagação conduz à necessidade de refletir sobre a justiça distributiva e todo o seu arcabouço, haja vista as tensões críticas que surgem nos debates políticos e jurídicos. nesse sentido, a indagação, sob uma perspectiva ampla, está posta também quanto à operacionalidade das instituições e dos agentes públicos que as integram. a escolha dos mais adequados mecanismos de alocação dos recursos públicos pelos poderes está vinculada à justiça distributiva e ao conflito existente na vida em sociedade, em que os recursos escassos são frequentemente requeridos para satisfazer as inesgotáveis necessidades individuais e coletivas. na perspectiva histórica, os ensinamentos de aristóteles (1996) explanam que a justiça distributiva tinha por objeto unicamente a distribuição das dignidades políticas, nunca a dos bens materiais. no âmbito moderno, esse conceito tem sido reformulado ao invocar o estado como garantidor para que a propriedade seja distribuída por toda a sociedade a fim de que haja uma justa distribuição dos recursos materiais, discutindo-se qual seria esse mínimo existencial e o grau de intervenção estatal necessário para assegurá-lo (FleischacKer, 2006). nesse esteio, a obra Uma teoria da justiça, de John rawls, publicada em 1971, defende que a justiça deve repousar em um princípio igualitário que tenha o condão de remodelar a vida social. os seus postulados, além de almejarem uma renovação dos estudos sobre a justiça, obtiveram influência considerada no campo da justiça fiscal. o intuito dessa obra é uma interpretação da justiça social e política mais satisfatória do que as concepções tradicionais reconhecidas. apresenta dois princípios de justiça: o primeiro se vincula a um sistema plenamente adequado de liberdades fundamentais iguais; e o segundo, estabelece condições no viés das desigualdades sociais e econômicas (raWls, 2000, p. 64). Posteriormente, surge O liberalismo político, publicado em 1993, com o intuito de rebater as críticas destinadas à teoria e aplicar as concepções formuladas ao âmbito político. tem o propósito de discutir uma questão fundamental, que repousa na análise de qual é a concepção de justiça mais apta a especificar os termos equitativos de cooperação social entre cidadãos considerados livres e iguais e membros plenamente cooperativos da sociedade durante a vida toda, de uma geração até a seguinte (raWls, 2016, p. 3). Por sua vez, os libertários, como robert nozick (1991), sustentam uma defesa ao livre mercado e criticam a regulação do governo. somente um estado mínimo, limitado às funções restritas de proteção contra o uso da força, contra o roubo e a fraude, bem como de garantia do cumprimento dos contratos e coisas do gênero, seria justificado. todo estado com poderes mais abrangentes violaria os direitos dos indivíduos (raWls, 2016, p. 311). sua alegação principal repousa na concepção de que cada um possui o direito fundamental à liberdade e tem permissão para fazer qualquer coisa com aquilo que lhe pertence, desde que haja respeito às propriedades dos demais.

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o libertário rejeita três tipos de diretrizes e leis que o estado moderno normalmente promulga: (i) paternalismo. os libertários são contrários às leis que protegem as pessoas contra si mesmas; (ii) legislação acerca da moral. opõem-se ao uso da força coercitiva da lei para promover ações de virtude ou para expressar as convicções morais da maioria; (iii) redistribuição de renda ou riqueza. são contrários a qualquer lei que force algumas pessoas a ajudar outras, incluindo impostos utilizados na redistribuição de riqueza (sanDel, 2012, p. 79). ressalta-se, então, a importância dessa discussão e o surgimento de questões inquietantes, quais sejam: qual o papel do estado na esfera social? como se legitima a regulação estatal? Quais as críticas inerentes a uma atuação interventora? Quais as perspectivas das políticas públicas nesse âmbito? Dessa forma, utilizando-se de metodologias de abordagem qualitativa e de revisão bibliográfica, bem como a crítica adequada da perspectiva científica, almejar-se-á responder tais indagações e discorrer de modo eficaz acerca do tema da justiça distributiva.

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as obras de John rawls expressam a preocupação com a distribuição dos recursos públicos e marcam o retorno ao estudo dos valores e a reaproximação entre ética e direito. o autor demonstra que as críticas recebidas e as inconsistências em algumas expressões concernentes ao tema em Uma teoria de justiça permitiram um aperfeiçoamento de seus postulados nas obras posteriores.

Dois princípios de justiça a abordagem da temática na perspectiva de O liberalismo político pode ser explorada, inicialmente, pelas diretrizes dos dois princípios de justiça elencados a seguir: 1. cada pessoa tem um direito igual a um sistema plenamente adequado de liberdades fundamentais que seja compatível com um sistema similar de liberdades para todos. 2. as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições. a primeira é que devem estar vinculadas a cargos e posições abertos a todos, em condições de igualdade equitativa de oportunidades; a segunda é que devem redundar no maior benefício possível para os membros menos privilegiados da sociedade. (raWls, 2016, p. 345)

rawls explana que cada um desses princípios regula as instituições em relação aos direitos, liberdades e oportunidades básicas, bem como no que diz respeito às reivindicações de igualdade. Destaca-se que há prioridade do primeiro sobre o segundo, porquanto observam a ordem lexical, primeiro deve ser satisfeito integralmente um princípio para invocar-se o próximo. essa ordenação se vincula ao entendimento de que as violações das liberdades iguais não podem ser justificadas nem compensadas por maiores vantagens econômicas e sociais (raWls, 2000, p. 65).

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as liberdades fundamentais expostas no primeiro princípio podem ser descritas por: liberdade de pensamento e de consciência; liberdades políticas e liberdade de associação, assim como liberdades especificadas pela liberdade e integridade da pessoa; e, por fim, direitos e liberdades abraçadas pela noção de estado de direito (raWls, 2016, p. 345-346). Por sua vez, o segundo princípio se vincula à justiça distributiva. sua aplicabilidade recai sobre a tributação da renda e da propriedade, sobre as políticas econômica e fiscal, sobre o sistema proclamado de direito público e normas legais. não recai sobre transações ou distribuições específicas, nem sobre decisões de indivíduos e associações, mas está ligada ao contexto institucional no qual essas transações e decisões acontecem (raWls, 2016, p. 335). acrescenta-se que esses princípios seriam manifestações do conteúdo de uma concepção política liberal de justiça, e que ambos expressariam uma forma igualitária de liberalismo em virtude de alguns elementos: garantia do valor equitativo das liberdades políticas, de modo que não sejam puramente formais; igualdade equitativa de oportunidades; e o denominado princípio da diferença. esse último estabelece que as desigualdades sociais e econômicas associadas aos cargos e posições devem ser ajustadas de tal modo que, seja qual for o nível dessas desigualdades, grande ou pequeno, devem representar o maior benefício possível para os membros menos privilegiados da sociedade (raWls, 2016, p. 7). Portanto, almeja-se governar as desigualdades econômicas e sociais de forma que todos se beneficiem. a distribuição de renda e de bens não necessita ser igual, mas vantajosa para todos, levando à aceitação de desigualdades que maximizem as expectativas dos grupos menos afortunados da sociedade, desde que assegurado um mínimo social. além disso, o princípio da diferença possibilita a criação de instituições baseadas nas justiças social e econômica. elas seriam apropriadas aos cidadãos, em sua condição de livres e iguais, por não distinguir entre o que é adquirido pelos indivíduos enquanto membros da sociedade e o que teria sido adquirido por eles se não fossem membros dessa sociedade (raWls, 2016, p. 330). nesse sentido: o princípio da diferença exige que por maiores que sejam as desigualdades em termos de renda e riqueza, e por mais que as pessoas queiram trabalhar para ganhar uma parte maior da produção, as desigualdades existentes devem efetivamente beneficiar os menos favorecidos. caso contrário, as desigualdades não são permissíveis. o nível geral de riqueza da sociedade, incluindo o bem-estar dos menos favorecidos, depende das decisões que as pessoas tomam sobre como conduzir suas vidas. (raWls, 2003, p. 90-91)

Estrutura básica da justiça distributiva os princípios aplicam-se primeiramente à estrutura básica da sociedade. essa estrutura pode ser compreendida como a forma na qual as principais instituições sociais se encaixam num sistema e o modo pelo qual essas mesmas instituições distribuem os direitos e deveres fundamentais e moldam a divisão dos benefícios gerados pela cooperação social. a constituição política, as formas legalmente reconhecidas de propriedade e a organização da economia, bem como a natureza da família, constituem a estrutura básica. enfatiza-se:

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o objetivo inicial da teoria consiste em formular uma concepção cujos princípios primeiros ofereçam orientações razoáveis para tratar as questões clássicas e familiares de justiça social relacionadas a esse complexo de instituições. essas questões constituem os dados, por assim dizer, para os quais a teoria busca explicação. não há a pretensão de formular princípios primeiros que se apliquem de forma igual a todos os objetos. mais precisamente, nessa perspectiva, uma teoria deve desenvolver princípios para os objetos relevantes, passo a passo, em uma sequência apropriada. (raWls, 2016, p. 306)

na obra Justiça como equidade, John rawls indaga de que modo poderiam ser ordenadas essas instituições da estrutura básica, em um esquema unificado de instituições, para que um sistema de cooperação social equitativo, eficiente e produtivo pudesse se manter no transcurso do tempo, de uma geração para a outra (raWls, 2003, p. 70). nas sociedades bem ordenadas, em que estão garantidas tanto as liberdades básicas iguais como a igualdade equitativa de oportunidades, a distribuição de renda e riqueza ilustraria o que se denomina de justiça procedimental pura de fundo. segundo o autor, a estrutura básica estaria organizada de tal forma que, quando todos seguissem as normas publicamente reconhecidas de cooperação e honrassem as exigências que as normas especificam, as distribuições específicas de bens resultantes seriam consideradas justas. no âmbito dessa discussão, ressalta que “as normas das instituições de fundo impostas pelos dois princípios de justiça destinam-se a alcançar as metas e aspirações da cooperação social equitativa ao longo do tempo” (raWls, 2003, p. 73).

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nesse esteio, busca-se discorrer sobre por que a estrutura básica deve ser considerada o objeto primeiro da justiça, no viés da concepção contratualista de justiça. Duas razões para essa argumentação: primeira, o funcionamento das instituições sociais; e segunda, a natureza dos princípios necessários para regulá-las ao longo do tempo a fim de preservar a justiça de fundo (raWls, 2003, p. 74). a primeira razão está relacionada à ideia de que distribuições iniciais justas não garantem a justiça das distribuições posteriores, assim, seria necessário regular como os indivíduos adquirem propriedades com o intuito de propiciar uma igualdade equitativa de oportunidades. as normas de justiça de fundo possibilitariam a concretização dos valores referentes aos acordos livres e equitativos selados por indivíduos e associações no interior da estrutura básica. surge, então, a necessidade de uma divisão de trabalho que envolva dois princípios: Primeiro, aqueles que regulam a estrutura básica ao longo do tempo e destinam-se a preservar a justiça de fundo de uma geração para outra; e, em segundo lugar, aqueles que se aplicam diretamente às transações isoladas e livres entre indivíduos e associações. imperfeições em qualquer um dos dois tipos de princípios podem resultar num grave fracasso da concepção de justiça como um todo. (raWls, 2003, p. 76)

estabelecida essa divisão de trabalho, associações e indivíduos ficam livres para promover seus objetivos no âmbito da estrutura básica, cientes de que vigoram em todo o sistema social as regulamentações para preservar a justiça de fundo. o autor enfatiza que tornar a estrutura básica de fundo em objeto primário possibilita ver a justiça distributiva como um caso de justiça procedimental pura de fundo, uma vez que “quando todos seguem as regras publicamente reconhecidas de cooperação, a distribuição específica resultante é aceita como justa” (raWls, 2003, p. 76-77).

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a segunda razão para considerar a estrutura básica como objeto primeiro se vincula à intensa influência que essa estrutura exerce sobre os indivíduos que vivem sob suas instituições. a teoria de rawls trata das perspectivas de vida dos cidadãos considerando a presença de três contingências: (a) sua classe de origem: a classe em que nasceram e se desenvolveram antes de atingir a maturidade; (b) seus talentos naturais (em contraposição a seus talentos adquiridos); e as oportunidades que têm de desenvolver esses talentos em função de sua classe social de origem; (c) sua boa ou má sorte ao longo da vida (como são afetados pela doença ou por acidentes; e, digamos, por períodos de desemprego involuntário e declínio econômico regional). (raWls, 2003, p. 78)

a estrutura básica, do modo pelo qual dispõe as desigualdades, usa dessas contingências para cumprir metas sociais. consequentemente, é preciso compreender a necessidade de regular as desigualdades advindas dessas contingências a fim de levar a sério a ideia de sociedade como um sistema equitativo de cooperação entre cidadãos livres e iguais. enfatiza-se que: “a teoria da justiça deve regular as desigualdades nas perspectivas de vida dos cidadãos decorrentes de posição social inicial, vantagens naturais e contingências históricas” (raWls, 2016, p. 321). Por outro lado, as instituições básicas teriam a função pública de educar os indivíduos para o reconhecimento de sua própria liberdade e igualdade, fortalecendo o senso de que devem ser tratados equitativamente tendo em vista os princípios públicos. assim, as razões explanadas ratificam a ideia da justiça procedimental pura de fundo como processo social ideal e que justifica a estrutura básica como objeto primário. no campo da resolutividade, os instrumentais das audiências públicas e as recomendações são ferramentas que transportam tanto a força pedagógica quanto os pontos de legitimação a ulteriores ações processuais, eventualmente manejadas pelo ministério Público. Possibilitam uma convergência de ações estratégicas aos diagnósticos localizados do funcionamento ou desfuncionamento, da oferta ou não e do acesso ou da inacessibilidade aos serviços e aos equipamentos públicos disponibilizados para a sociedade local. Bens primários na concepção de rawls, três tipos de bens são relevantes para a teoria da justiça distributiva: bens que são passíveis de distribuição, tais como a renda e a riqueza; bens que não podem ser distribuídos diretamente, mas que são afetados pela distribuição dos primeiros, tal como o conhecimento; e bens que não podem ser afetados pela distribuição de outros bens, tais como as capacidades físicas e mentais de cada pessoa (elster, 1992, p. 186). os dois primeiros tipos de bens constituem os bens primários, os quais manifestam o problema prático de encontrar uma ideia compartilhada do bem dos cidadãos que seja apropriada aos propósitos políticos. assim, “o liberalismo político procura uma ideia de benefício racional no interior de uma concepção política que seja independente de qualquer doutrina abrangente” (raWls, 2016, p. 212).

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segundo o autor, a resposta ao problema elencado estaria na identificação de uma similaridade parcial na estrutura das concepções permissíveis do bem dos cidadãos. os bens primários seriam coisas que os indivíduos necessitam como pessoas livres e iguais, representam as necessidades dos cidadãos, em oposição a preferências, desejos e fins últimos. nesse sentido, rawls estabelece o seguinte: a lista básica de bens primários apresenta as cinco categorias que se seguem: a. os direitos e liberdades fundamentais, também especificados por uma lista; b. liberdade de movimento e livre escolha de ocupação, contra um pano de fundo de oportunidades diversificadas; c. capacidades e prerrogativas de cargos e posições de responsabilidade nas instituições políticas e econômicas da estrutura básica; d. renda e riqueza; e. as bases sociais do autorrespeito. (raWls, 2016, p. 213)

Desse modo, todos os bens sociais primários, liberdades, oportunidades, riqueza, rendimento e as bases sociais da autoestima deveriam ser distribuídos de maneira igual, a menos que uma distribuição desigual de alguns ou de todos esses bens beneficie os menos favorecidos. o cerne é compreender que tratar as pessoas como iguais não implica remover todas as desigualdades, mas apenas aquelas que trazem desvantagens para alguém. Buscase alcançar “uma base pública exequível de comparações interpessoais baseada nas características objetivas das circunstâncias sociais dos cidadãos” (raWls, 2016, p. 213- 214).

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assim, em uma primeira aproximação sobre a interpretação do papel do ministério Público, à luz dessa teoria da justiça, ele pode ser enxergado como um ator do sistema de justiça a quem outorgou o constituinte originário, premido pela abissal desigualdade social do período pré e imediatamente pós-1988, o poder-dever de defesa de direitos indisponíveis – coletivos ou não, homogêneos ou não, e mesmo daqueles que cristalizam a última fronteira de ação estatal, o individual; pois, que indivisível. e, para cumprir essa missão, que não é nem deve ser pressuposta redentora, concedeu-lhe uma arquitetura multifacetária, com capacidades processuais plasmáveis às diversas manifestações de proteção das necessidades humanas, não apenas dos chamados direitos humanos. surge a crítica advinda de amartya sen (1988) quanto à utilidade e à inflexibilidade do rol de bens primários elencados por rawls. argumenta acerca das muitas variações significativas entre as pessoas, no que diz respeito a suas capacidades e no que tange às suas concepções específicas do bem, assim como em suas preferências e gostos. nesse viés, os bens primários não constituiriam um parâmetro apropriado de distribuição equitativa, haja vista que não conferem atenção à liberdade substantiva das pessoas. rawls, ao rebater essa crítica, manifesta a percepção de que os cidadãos possuem, ao menos no grau mínimo essencial, as faculdades morais, intelectuais e físicas, apesar de não terem capacidades iguais. essa constatação possibilitaria aos membros serem cooperativos da sociedade ao longo de toda a vida e conduz ao entendimento de quatro tipos principais de variações: a) variações nas capacidades e habilidades morais e intelectuais; b) variações nas capacidades e habilidades físicas, inclusive os efeitos que enfermidades e contingências têm sobre as capacidades naturais;

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c) variações nas concepções do bem dos cidadãos (o fato do pluralismo razoável); d) bem como as variações nos gostos e preferências, embora estas últimas sejam menos fundamentais. (raWls, 2016, p. 216)

o autor, então, discorre em torno dessas variações para demonstrar que é possível elaborar um índice suficientemente flexível para conceder juízos de valor tão justos ou equitativos quanto os de qualquer concepção política que possa utilizar. assevera que “a utilização de bens primários supõe que, em virtude de suas faculdades morais, os cidadãos tomam parte da formação e do cultivo de seus fins e preferências” (raWls, 2016, p. 219). Destarte, a teoria de rawls na esfera da justiça distributiva, fundada na estrutura básica da sociedade imprescindível à justa distribuição dos bens primários, representou grande contribuição para a compreensão dos elementos decisórios das sociedades modernas, em especial aos que defendem a intervenção estatal na distribuição da riqueza.

O LIBERTARISMO E O PAPEL DO ESTADO

o libertarismo pode ser compreendido como uma teoria que requer um estado menos ambicioso que o preconizado por John rawls, uma vez que se defende um estado mínimo vinculado apenas ao dever de proteger as pessoas contra o uso ilegítimo da força e fiscalizador no cumprimento de contratos (gargarella, 2008, p. 33). argumenta-se que a dignidade de cada ser humano não é limitada em prol de nenhuma necessidade coletiva, porquanto não se cogita “aceitar a obrigação legal de fazer serviço militar, frequentar a escola, apertar o cinto de segurança, fazer parte de um júri e prestar socorro a uma pessoa em perigo. também não se cogita de proibir a eutanásia, a prostituição, a blasfêmia” (arnsPerger; Van PariJs, 2003, p. 37). Destarte, este tópico pretende abordar as principais diretrizes dessa teoria e seus representantes, os quais proporcionaram uma nova visão a respeito do papel do estado no âmbito da justiça distributiva, sendo eles: robert nozick, milton e rose Friedman e Friedrich hayek. Robert Nozick robert nozick era contemporâneo de John rawls em harvard, época em que este publicou Uma Teoria da Justiça. três anos após, em 1974, nozick publicou a obra intitulada Anarquia, Estado e utopia, na qual apresentava uma crítica à teoria utilitarista e à teoria da justiça de rawls e tinha como propósito central uma concepção de justiça que pudesse oferecer uma alternativa à moralidade utilitarista. argumentava em prol de uma ideia de nunca utilizar os indivíduos como simples meio, bem como a percepção de que o respeito aos direitos individuais merecia mais espaço nos argumentos morais. É notável que esse posicionamento está em consonância com as ideias preconizadas por rawls quanto ao utilitarismo, contudo a distinção encontra-se na escolha de quais direitos fundamentais constituem os direitos dos indivíduos a serem protegidos.

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a obra mencionada possui a preocupação de demonstrar que o direito à liberdade e o direito à vida seriam respeitados em um estado mínimo, bem como o arcabouço do direito à propriedade. os direitos não dizem o que deve ser feito, de modo individual ou coletivo, apenas estabelecem o que não se deve fazer (Vita, 2000, p. 51). além disso, são apresentadas a liberdade positiva e a liberdade negativa. nozick compreende que o estado deve assegurar a liberdade negativa das pessoas, ou seja, o estado deve garantir que ninguém interfira nos direitos básicos de cada cidadão, tais como a vida e a propriedade. Já com a liberdade positiva, o estado não deve se preocupar, pois não teria a obrigação de fornecer nada aos indivíduos para que possam levar adiante seus planos de vida (gargarella, 2008, p. 35-37). nozick busca formular um sistema coerente de direitos de propriedade que conduziria a uma sociedade livre, em que seria possível fazer o que se deseja e, para tanto, esses direitos seriam imprescindíveis. o autor introduz as suas concepções acerca da justiça distributiva e preleciona: a expressão “justiça distributiva” não é neutra. ouvindo a palavra distribuição, a maioria das pessoas supõe que alguma coisa ou mecanismo utiliza algum princípio ou critério para parcelar um suprimento de coisas. nesse processo de distribuir parcelas, algum erro deve ter-se insinuado. De modo que é pelo menos uma questão tão aberta, ao menos, se a redistribuição deveria acontecer; se nós deveríamos fazer novamente o que já foi feito uma vez, embora mediocramente. (noZicK, 1991, p. 170)

argumenta que não há uma distribuição central dos bens, em que possa considerar

140 um grupo ou pessoa que tenha o direito de controlar todos os recursos e que decida em conjunto como eles devem ser repartidos. entende que o que cada um ganha advém de outros, que o dão em troca de outra coisa, e o resultado total é produto de muitas decisões particulares que os indivíduos envolvidos têm o direito de tomar. nozick desenvolve, então, a teoria da propriedade (The entitlement theory), que consiste em três temas: primeiro, a aquisição original de propriedade das coisas soltas (princípio da justiça na aquisição). o segundo, a transferência de propriedade de uma pessoa para a outra (princípio da justiça na transferência). o terceiro, a retificação da justiça das propriedades. ressalta que a aquisição da propriedade deve ser feita pelos dois primeiros princípios, entretanto existem pessoas que roubam de outras, defraudam, escravizam, vendem seus produtos e impedem as outras de viver como escolheram. assim, surge a terceira forma de aquisição que usa de informações históricas sobre prévias situações e injustiças feitas. Por fim, a ideia central da teoria da justiça nas propriedades é que a propriedade de uma pessoa é justa se ela está em conformidade com os princípios de justiça, seja por aquisição, por transferência, ou pelo princípio da retificação de injustiça (noZicK, 1991, p. 174). outro ponto relevante é a crítica ao princípio de distribuição padronizado (patterning), o qual especifica que a distribuição é uma soma ponderada de dimensões naturais e varia com alguma dimensão natural ou com a ordenação lexográfica dessa dimensão. nozick ressalta que quase todos os princípios sugeridos de justiça distributiva são padronizados: para cada um, de acordo com o seu mérito moral, suas necessidades, seu produto marginal, ou a soma disso. alega que a distribuição de acordo com os benefícios aos demais seria um

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grande elemento padronizado numa sociedade capitalista livre, mas seria apenas um elemento e não constituiria todo o padrão de um sistema que confere direitos. compreende-se que na sociedade capitalista as pessoas frequentemente transferem propriedades para outras segundo o quanto acham que elas as estão beneficiando; a estrutura constituída pelas transações e transferências entre indivíduos é, na maior parte, razoável e compreensível. assim, no sistema de direitos à propriedade não há objetivos grandiosos e nem qualquer padrão distributivo, afirma: “de cada um segundo o que ele resolver fazer, a cada um segundo o que ele faz por si mesmo (talvez com a ajuda contratada dos outros)” (noZicK, 1991, p. 181). o autor enfatiza que a liberdade perturba os padrões, haja vista que não seria compreensível como se rejeita a concepção de justiça que confere direitos à propriedade. supõe que, a fim de manter o padrão, teriam que interferir continuamente para impedir que pessoas transferissem recursos como quisessem, ou para tomar delas recursos que outras pessoas decidiram, por alguma razão, transferir para elas. essas pressuposições conduzem a algumas conclusões: (i) todos desejarão ardentemente manter o padrão; (ii) todos podem reunir informações suficientes sobre seus próprios atos e as atividades correntes dos demais; (iii) pessoas diferentes e distantes coordenam os atos para manter o padrão. nozick entende que os princípios padronizados admitem que as pessoas resolvam gastar consigo mesmas, mas não com outrem, os recursos a que têm direito. manter um padrão distribuído é uma forma de individualismo com violência. os princípios distributivos padronizados não dão às pessoas o que lhes conferiram os princípios de direito a alguma coisa, porque não lhes concedem o direito de fazer o que se quer com aquilo que se tem (noZicK, 1991, p. 186). ressalta, ainda, que os proponentes de princípios padronizados de justiça distributiva concentram a atenção em critérios que determinam quem deve receber propriedades e pensam nas razões por que alguém deve receber alguma coisa, bem como no quadro total de propriedades. a redistribuição é um assunto que implicaria na violação dos direitos das pessoas. compara um sistema que retira cinco horas de salários sob a forma de impostos a outro que obriga alguém a trabalhar cinco horas. o último seria mais favorável, por oferecer uma faixa mais ampla de escolha em atividades do que a taxação em espécie, especificado o tipo particular de trabalho. assim, o fato de outros intervirem intencionalmente, ameaçando empregar a força para limitar as alternativas, transforma o sistema de tributação em um trabalho forçado. Por conseguinte, enfatiza que vários princípios padronizados dependem de ideias particulares sobre as fontes ou a ilegitimidade dos lucros, as quais podem ser equivocadas. Quando princípios de justiça distributiva de resultado são incorporados à estrutura judiciária de uma sociedade, surge um direito impositivo aos cidadãos. se pessoas o obrigam a realizar certo trabalho durante certo tempo, elas decidem o que você tem que fazer e a que finalidade seu trabalho deve atender, à parte de suas próprias decisões. os princípios de justiça distributiva de resultado e a maioria dos padronizados instituem a posse (parcial) das pessoas, dos atos e trabalho dos indivíduos por outrem.

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são notáveis que essas constatações derivam do apoio de nozick a uma justiça que se sustenta em transações voluntárias entre adultos. o professor gargarella (2008, p. 38) critica essa ideia, por utilizar-se de uma noção vaga de “transação voluntária”; nozick chamava de voluntário o que não deveria ser considerado de tal forma. elenca o exemplo de um indivíduo que precisa alimentar os filhos e se submete a um acordo misérrimo sem as condições adequadas de trabalho por conta de sua fragilidade em relação ao empregador. nozick considera que houve um “acordo voluntário”, uma vez que uma situação forçada só ocorreria mediante duas situações: caso as opções de alguém estejam restritas por outras; ou caso as ações derivadas violem os direitos das outras. nesse caso, ninguém o obrigou a celebrar tal contrato, e todo indivíduo seria responsável pelo que faz ou deixa de fazer.

Milton e Rose Friedman após a explanação concernente a robert nozick, será enfatizado o posicionamento de milton e rose Friedman na obra Livre para escolher, de 1980. De modo sucinto, o texto busca examinar o papel do capitalismo competitivo – a organização da maior parte da atividade econômica através de empresas privadas operando em um livre mercado – como um sistema de liberdade econômica e uma condição necessária para a liberdade. nesse processo, define-se o papel que o governo deve desempenhar em uma sociedade livre (FrieDman; FrieDman, 1980, p. iX). os autores questionam se igualdade e liberdade são consistentes um com o outro ou

142 se estariam em conflito. a tentativa de responder a essas questões concedeu uma forma

ao debate intelectual e produziu grandes mudanças na economia e instituições políticas. nesse sentido, a discussão vem sendo interpretada agora como “igualdade de oportunidades” no sentido que ninguém deve ser impedido por obstáculos arbitrários de usar suas capacidades para perseguir seus próprios objetivos. igualdade e liberdade representariam duas faces do mesmo básico valor – que todo indivíduo deve ser considerado como um fim em si mesmo. serão demonstrados, então, três tipos de igualdade: igualdade perante Deus (igualdade pessoal); igualdade de oportunidades; e igualdade de resultados. inicialmente, a igualdade perante Deus significa que toda pessoa tem direitos inalienáveis, é habilitado para servir ao seu próprio propósito e não deve ser tratado como instrumento para promover os propósitos de outra pessoa. esses valores tornam-se imprescindíveis porque as pessoas não são idênticas, seus diferentes gostos, suas diferentes capacidades as conduzirão no intuito de querer diferentes vidas. assim, “a igualdade pessoal requer respeito por seus direitos, não a imposição deles advinda dos valores e julgamentos de outra pessoa” (FrieDman; FrieDman, 1980, p. 129). Por sua vez, a igualdade de oportunidades surgiu após a guerra civil americana (18611865), a partir da abolição da escravidão e do conceito de igualdade pessoal. as crianças de diferentes nacionalidades não tinham oportunidades idênticas. Passou-se a argumentar que nascimento, nacionalidade, cor, religião, sexo ou outra característica irrelevante não deveria determinar as oportunidades que são abertas para uma pessoa. isso deveria ser determinado apenas por suas habilidades. haveria uma coerência dessa igualdade com a liberdade, mas, como todo ideal, seria incapaz de ser completamente realizada. enfatiza-se que na

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esfera econômica a prática nem sempre conformava com o ideal, uma vez que arranjos extralegais interferiam na liberdade de indivíduos em relação a profissões e negócios e se priorizavam determinadas pessoas (FrieDman; FrieDman, 1980, p. 134). o terceiro conceito, igualdade de resultados, emergiu no século XX. os autores argumentavam que igual não quer dizer literalmente idêntico. o objetivo era a equidade, uma noção mais vaga. Buscava-se possibilitar ações justas, mas haveria um conflito fundamental entre esse ideal e o ideal de liberdade pessoal. assim, seria impossível definir “ações justas” de forma que fosse aceitável genericamente, ou que satisfizesse aos membros de uma comunidade. a força da igualdade de resultados advinha da difundida crença de que não era justo que algumas crianças tivessem vantagem sobre outras simplesmente porque tinham pais ricos. os autores concluem que os problemas éticos envolvidos são sutis e complexos e não são resolvidos com uma fórmula de ações justas para todos, e asseveram: “a vida não é justa, é tentador acreditar que o governo pode retificar o que a natureza gerou. mas é importante reconhecer quanto nós nos beneficiamos das muitas injustiças que nós deploramos” (FrieDman; FrieDman, 1980, p. 137). no que tange às consequências de políticas igualitárias, menciona-se a grã-Bretanha, que se destacou no século XiX em direção à implementação de igualdade de oportunidades e no século XX à igualdade de resultados. houve uma grande distribuição de riqueza, porém o resultado não foi uma distribuição igualitária. Pelo contrário, novas classes privilegiadas teriam sido constituídas para substituir ou complementar as antigas. a unidade por igualdade falhou nesse país devido a uma razão fundamental ao ir contra um dos maiores instintos do ser humano: o esforço para melhorar sua condição. asseveram: Quando a lei interfere com os propósitos dos próprios valores das pessoas, elas tentarão encontrar uma forma paralela. elas se escusarão da lei, desobedecerão ou deixarão o país. Quando as pessoas começam a desobedecer a um conjunto de leis, a falta de respeito se espalha para outras leis, como as relacionadas à moral. (FrieDman ; FrieDman, 1980, p. 145)

Por fim, enfatiza-se que em nenhum lugar a diferença entre ricos e pobres é mais acentuada que nas sociedades que não permitem o livre mercado. nesse viés, uma sociedade que põe igualdade, no sentido de igualdade de resultados, à frente de liberdade, terminará sem nenhum dos dois. Por outro lado, as que põem liberdade em primeiro terão ambas. uma sociedade livre empenha suas energias e habilidades das pessoas para alcançar seus próprios objetivos. liberdade significaria diversidade, mas também mobilidade. ela preserva a oportunidade para as desvantagens de hoje a fim de tornar privilégios no futuro.

Friedrich hayek Passa-se ao terceiro autor: Friedrich hayek e a obra Os fundamentos da liberdade, de 1983. o livro almeja contrapor os benefícios do governo limitado aos custos do planejamento econômico central. Defende-se que limitar a ação do governo tem mais probabilidade de estimular a espontaneidade e criatividade individual, que é vital para o progresso do conhecimento e civilização. cássius guimarães chai / ana larissa torres

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o autor ressalta que a extensão do princípio de igualdade às normas de conduta moral e social é a expressão maior do que comumente se conhece por espírito democrático. entretanto, defende que a igualdade estabelecida pelas normas legais e de conduta gerais é, ainda, a única forma de igualdade que conduz à liberdade e a única que se pode obter sem destruir a liberdade. seria essencial a reivindicação de igualdade perante a lei a fim de que as pessoas fossem tratadas do mesmo modo, embora sejam diferentes umas das outras. nesse sentido, leciona: “não é por presumir que os indivíduos sejam, de fato, iguais, ou por pretender torná-los iguais, que nossa justificativa filosófica da liberdade exige que o estado trate todos da mesma maneira” (haYeK, 1983, p. 92-93). argumenta-se que a importância das diferenças individuais não é mitigada devido a criações em ambientes semelhantes. não seria correto afirmar que todos os homens nascem iguais. entretanto, hayek explica que para compreender o que esse ideal pode ou deve significar, deveria haver a libertação de crenças em qualquer igualdade factual. assim, do fato de que as pessoas são muito diferentes segue-se que, se fosse dispensado a todas tratamento igual, o resultado seria a desigualdade das suas posições reais, e que a única maneira de colocar essas pessoas em posição de igualdade seria dispensar-lhes tratamentos diferenciados. critica a tentativa de querer nivelar as pessoas em suas condições individuais, uma vez que não poderia ser aceita uma sociedade livre para justificar coerção adicional e discriminatória. “nós somos contrários a toda tentativa de impingir à sociedade qualquer modelo de distribuição preconcebido, quer ele implique uma ordem de igualdade ou de desigualdade” (haYeK, 1983, p. 94).

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no tocante à igualdade de oportunidades, argumenta-se que a melhor educação que hoje é oferecida a alguns deve ser gratuitamente estendida a todos. acredita-se que, se isso não for possível, não deve ser permitido que um indivíduo obtenha uma educação melhor que a dos outros apenas porque seus pais podem arcar com o ônus. contudo, é notável que não é possível evitar que certas vantagens, que somente alguns indivíduos podem ter, possam ser desfrutadas por pessoas que não as merecem nem as empregarão da maneira mais útil. as justificativas apresentadas em apoio a reivindicações igualitárias se originariam do descontentamento que o sucesso de algumas pessoas frequentemente suscita em outras. nesse contexto, o autor ironiza ao afirmar uma suposta responsabilidade do governo para que nenhum cidadão tenha mais saúde ou possua temperamento mais jovial e um cônjuge mais agradável ou filhos mais bem-sucedidos na vida do que outro (haYeK, 1983, p. 100). Discute-se, ainda, um conflito entre mérito e valor. a concepção de mérito é empregada pelo autor para denotar os atributos que tornam uma conduta merecedora de louvor, ou seja, o caráter moral da ação, e não o valor do seu resultado. enquanto que os dons inatos de uma pessoa, assim como os dons adquiridos, teriam um valor para os seus semelhantes que independe da consideração a ela devida por possuí-los. hayek afirma que o problema consiste em decidir se é certo que as pessoas desfrutem de vantagens proporcionais aos benefícios que os seus semelhantes colhem das suas atividades ou se a distribuição dessas vantagens deve depender da opinião de outros acerca de seus méritos. a recompensa proporcional ao mérito deveria significar recompensa de acordo

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com o mérito avaliável, mérito que os outros possam reconhecer, e quanto ao qual haja concordância de opinião; e não de acordo com o mérito determinado pela opinião de algum poder mais elevado. Portanto, “julgar o mérito pressupõe que podermos julgar se as pessoas fizeram o devido uso de suas oportunidades e quanto isto lhes custou em termos de força de vontade ou abnegação” (haYeK, 1983, p. 103). em relação à liberdade e justiça distributiva, discute-se que justiça, assim como liberdade e coerção, é um conceito que, a bem da clareza, deve ser restrito ao relacionamento intencional dos homens entre si. a justiça exigiria que as condições de vida dos indivíduos, que são determinadas pelo governo, sejam equitativamente oferecidas a todos. alega: “uma vez introduzido, o princípio de justiça distributiva não se realizaria até que toda sociedade fosse organizada de acordo com ele” (haYeK, 1983, p. 109).

PERSPECTIVAS NO ÂMBITO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

a discussão que envolve as políticas públicas parte da indagação acerca das perspectivas existentes no tema à luz das teorias expostas. inicialmente, conforme saravia (2006, p. 29), “a política pública é um sistema de decisões públicas que visa a ações ou omissões, preventivas ou corretivas, destinadas a manter ou modificar a realidade de setores da vida social”. nesse sentido, preleciona Bucci (2002, p. 241): Políticas públicas são programas de ação governamental visando a coordenar os meios à disposição do estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. Políticas públicas são “metas coletivamente conscientes” e, como tais, um problema de direito público, em sentido lato.

o estado passa a arrecadar fundos com a sociedade, mediante o seu poder de tributar, com o intuito de gerar receita para as atividades que desenvolve no campo social. conforme sunstein e holmes (1999, p. 204), “o estado ainda se revela como a única instância capaz de financiar os custos de serviços sociais e de proteção dos direitos e garantias fundamentais num ambiente de livre mercado”. Durante o processo que envolve a definição de políticas públicas, sociedades e estados complexos estão mais próximos da perspectiva teórica daqueles que defendem que existe uma “autonomia relativa do estado”, o que faz com que ele tenha um espaço próprio de atuação, embora permeável a influências externas e internas (eVans; rueschemeYer; sKocPol, 1985). a supramencionada autonomia teria o condão de gerar determinadas capacidades, as quais criariam condições para a implementação de objetivos de políticas públicas. surge, então, o questionamento acerca dos limites da intervenção do estado. segundo appio (2012), esses limites estariam concretizados na forma de direitos e garantias individuais, ou seja, espaços intangíveis à atuação do estado, os quais somente podem ser limitados pela própria constituição. nesse viés, asseveram morais e hermany (2003, p. 885): cássius guimarães chai / ana larissa torres

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É justamente o texto constitucional e seus princípios informativos fundamentais que constituem a base do relacionamento entre estado e comunidade subjacente. a efetivação de um direito social condensado, como ordem de integração social, está intrinsecamente relacionada à assunção pela sociedade de seu papel de sujeito ativo no processo de atribuição de sentido ao texto constitucional de um estado Democrático.

no contexto da teoria de justiça distributiva advinda de John rawls, é perceptível que os princípios de justiça elencados são coerentes com a esfera das políticas públicas, uma vez que buscam promover a equidade social e trabalham para que as desigualdades sociais, quaisquer que sejam elas, sejam vantajosas para os membros da sociedade, especialmente para os menos favorecidos. nesse esteio, a teoria também tem sido utilizada como fonte de justificação de políticas pelo supremo tribunal Federal. o ministro ricardo lewandowski cita rawls quando defende que a “intervenção estatal determinada e consciente para corrigir as desigualdades reais da sociedade realoca os bens e oportunidades existentes na sociedade em benefício da coletividade” (Brasil, 2012, p. 7). assim orientadas, as instituições e as políticas sociais são justas, haja vista que a equidade não demanda a eliminação de todas as desigualdades, mas que das desigualdades todos sejam beneficiados. rawls afirma (1992, p. 33):

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o objetivo da justiça como equidade como uma concepção política é prático, e não metafísico ou epistemológico. ou seja, apresenta-se não como uma concepção da justiça que é verdadeira, mas como uma concepção que pode servir de base a um acordo político informado e voluntário entre cidadãos vistos como pessoas livres e iguais. Quando firmemente fundado em atitudes políticas públicas e sociais, esse acordo sustenta os bens de todas as pessoas e associações num regime democrático justo. Para assegurar esse acordo, tentamos, tanto quanto possível, evitar questões filosóficas, bem como morais, religiosas e polêmicas.

no viés do libertarismo, robert nozick (1991), mediante sua concepção de justiça de abordagem histórica, retrospectiva e processual, compreende ser impossível analisar a justiça ou injustiça de uma situação qualquer (especialmente quando se refere à redistribuição de riquezas) apenas levando em consideração as consequências ou então analisando a estrutura do caso. seria necessário recorrer aos seus princípios de justiça, expostos no tópico anterior, a fim de alcançar uma aquisição de propriedade de modo justo. assim, Para determinar se uma situação é justa ou injusta, é necessário e suficiente voltar-se para o passado, investigar o seu pedigree, examinar se ela é o produto de um procedimento correto e de um desenvolvimento histórico justo, isto é, de um conjunto de ações e transações realizadas no pleno respeito dos direitos afirmados pelos três princípios. (arnsPerger; Van PariJs, 2003, p. 47)

nesse sentido, o filósofo libertário argumenta que seria violação ao valor intrínseco de cada um cobrar taxas ou impostos. Prevalece o entendimento de que o homem é proprietário de si, e de que tudo o que for derivado de seu labor pertence a ele por legitimidade. Destarte, rejeita qualquer tributação, redistribuição ou tentativa de remanejamento de recursos para minorar as diferenças sociais por serem consideradas atitudes violadoras dos direitos individuais. seria injusta a cobrança de qualquer parcela dos bens dos indivíduos para um projeto maior, público, tensionando um bem-estar social e coletivo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

conforme exposto, as teorias elencadas apresentam posicionamentos distintos no que tange às funções e aos limites do estado na esfera social. a busca da composição racional do conflito entre os recursos e as necessidades dos indivíduos mostra-se imanente ao estado Democrático de Direito, no qual inúmeros são os agentes intervenientes no processo alocativo e ilimitadas as exigências sociais. ao tratar do liberalismo decorrente de John rawls, o artigo destacou o novo tratamento concedido à justiça distributiva por meio dos dois princípios de justiça que conduzem as liberdades fundamentais e apresentam condições para minorar as desigualdades sociais e econômicas. nesse viés, tratou-se das noções de uma estrutura básica da sociedade e como suas instituições poderiam constituir um sistema de cooperação social equitativo, eficiente e produtivo. houve, ainda, a introdução do conceito de bens primários, os quais representariam as necessidades dos cidadãos, em oposição a preferências, desejos e fins últimos. Por sua vez, os principais representantes do libertarismo trazem um posicionamento de que o estado mínimo é o único que se legitima. robert nozick argumenta que o direito à liberdade, o direito à vida e o direito à propriedade seriam respeitados nessa forma de estado. milton e rose Friedman defendem o livre mercado por compreender que esse sistema econômico seria uma condição necessária para a liberdade e, além disso, as políticas igualitárias trariam diversas consequências. Friedrich hayek demonstra sua objeção a qualquer tentativa de impingir à sociedade modelos de distribuições preconcebidos. no âmbito das políticas públicas, os contornos gerais demonstraram que se constituem como programas de ação governamental voltadas para os objetivos sociais decorrentes dos meios à disposição do estado e das atividades privadas. a abordagem do liberalismo se coaduna com os propósitos desses programas, uma vez que possuem o objetivo comum de atenuar as desigualdades existentes na sociedade. Difere, portanto, da abordagem do libertarismo, que não atribuiu ao estado o papel de interventor na esfera social. Destarte, a justiça distributiva implica em um posicionamento ativo do estado a fim de gerir as diferenças existentes. esse dever de conceder aos membros da comunidade uma participação equitativa no bem comum demonstra que o estado, no exercício da função social, compreende que os menos favorecidos devem possuir meios suficientes para levar vidas razoáveis e dignas. assim, problematizam-se os postulados decorrentes de John rawls, que almejaram uma integração entre igualdade e liberdade, notadamente no seio de reformas de estado que desconhecem as insuficiências materiais, até mesmo no espectro das condições iniciais de se posicionarem no mundo. e ao rigor dos discursos de promoção de superávits primários aprofundam-se desigualdades sociais e fragilizam-se instrumentos de proteção jurídica a direitos indisponíveis, ao tempo em que se desnaturalizam dignidades no acesso a serviços públicos ou a serviços que devem ser qualitativamente fiscalizados pelo estado, dentre os quais educação emancipadora e saúde.

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no desenho de um ministério Público resolutivo, novas posturas e uma mentalidade alinhada à democracia constitucional necessitam ser conformadas. É dever da instituição pensar a democracia em favor daqueles que são silenciados na permanente luta pelo reconhecimento como livres e iguais.

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