DA POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO EXTRAJUDICIAL DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA

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Renata Medeiros da Cruz* Brenda Antunes de Paula** DA POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO EXTRAJUDICIAL DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA THE POSSIBILITY OF EXTRAJUDICIAL RECOGNITION OF THE SOCIO- AFFECTIVITY PATERNITY AGRAVIO DE RECONOCIMIENTO DE LA POSIBILIDAD DE PATERNIDAD SOCIAFETIVA

Resumo: É sabido que, com a constante evolução da sociedade, modificou-se a configuração do núcleo familiar, bem como os seus elementos constitutivos. Nesse espeque, tem-se que o conceito de filiação também sofreu transformação ao longo tempo, deixando de privilegiar os laços genéticos e consanguíneos e passando a aceitar os vínculos afetivos estabelecidos. Com o advento da Magna Carta de 1988, em que pese ser vedada qualquer designação discriminatória quanto à origem dos filhos, a lei civilista estabelece uma distinção quanto aos filhos havidos no casamento, os quais detêm presunção de paternidade, e os filhos advindos de relações extrajudiciais, os quais devem ser reconhecidos, seja por ato voluntário, seja por meio judicial. Nesse espeque, vislumbra-se que a legislação civil possibilita o reconhecimento de filho biológico por meio extrajudicial, não havendo vedação a essa facilidade para o reconhecimento de paternidade socioafetiva, a qual somente é conferida por meio judicial. Dessa forma, o presente estudo busca analisar a possibilidade desse reconhecimento em cartório, bem como estabelecer um contraponto entre esse instituto e o da adoção à brasileira, no que tange à manifestação de vontade proferida.

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Mestranda em Direito Agrário pela UFG. Assessora do MP-GO. Graduada em Direito pela PUC Goiás. Prestadora voluntária do MP-GO.

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Abstract: It is well known that with the constant evolution of society the configuration of the family nucleus has changed, as well as its constitutive elements. In this context, the concept of filiation has also undergone transformation through the time, failing to privilege the genetic and consanguineous bonds and starting to accept the affective bonds established. With the advent of the Constitution of 1988, despite the fact that any discriminatory designation regarding the origin of children is prohibited, the civil law distinguishes between children born in marriage who are presumed to have paternity and children born of extrajudicial relationships, which must be recognized, either voluntarily or by judicial means. In this context, it is envisaged that civil legislation allows for the recognition of biological child through an extrajudicial means, and there is no prohibition on this facility for the recognition of socio-affective paternity, which is only conferred by judicial means. Thus, the present study seeks to analyze the possibility of such recognition in the Notary's Office for the socio-affective paternity, as well as establish a counterpoint between this institute and the adoption of the Brazilian form, regarding the manifestation of will pronounced. Resumen: Se sabe que con la constante evolución de la sociedad, los cambios en la configuración del hogar, así como sus elementos constitutivos. Puntal de esto, se deduce que el concepto de pertenencia también ha sido objeto de transformación en el tiempo, dejando a favorecer los lazos de parentesco y genéticos y va a aceptar los lazos emocionales establecidos. Con el advenimiento de la Constitución de 1988, se prohibió la designación discriminatoria en cuanto al origen de los niños, sin embargo, la ley civil distingue los havidos hijos en el matrimonio, que tiene presunción de paternidad, y los niños derivados de las relaciones extrajudiciales, la cual debe ser reconocido, ya sea por acto voluntario, ya sea a través de los tribunales. Este montante, ve que la ley civil lo permite el reconocimiento de hijos biológicos por medios extrajudiciales, sin sellarse la instalación para el reconocimiento de la paternidad socioafectiva, que sólo se concede a través de los tribunales. Por lo tanto, este estudio tiene como objetivo analizar la posibilidad de tal reconocimiento 172


en el Registro de la paternidad socioafectiva y establecer un contrapunto entre el instituto y la adopción de Brasil, en lo que se refiere a la voluntad emitida por el estado. Palavras-chave: Filiação, reconhecimento de paternidade, socioafetividade, princípio da igualdade dos filhos, procedimento extrajudicial. Keywords: Filiation, recognition of paternity, socio-affectivity, principle of equality of children, extrajudicial procedure. Palabras clave: Afiliación, reconocimiento de paternidad, socioafetividade, principio de la igualdad de los niños, el procedimiento extrajudicial.

INTRODUÇÃO O presente artigo científico busca estudar a questão relativa à possibilidade de reconhecimento de paternidade socioafetiva por meio extrajudicial, uma vez que atualmente tal reconhecimento está condicionado à tutela jurisdicional. Inicialmente, apresentar-se-á o conceito de filiação, bem como os avanços históricos ocorridos em relação ao tema, haja vista que a configuração do núcleo familiar é alvo de constante mutação, deixando de lado o aspecto eminentemente biológico e passando a aceitar os laços de afeto como ponto norteador. Ressalta-se a importância da Constituição Federal de 1988 ao dispor acerca do princípio da igualdade dos filhos (artigo 227, §6º), uma vez que vedou expressamente a utilização de designações discriminatórias em relação à filiação, afastando, de vez, as classificações havidas entre os filhos. Posteriormente, passa-se à análise do reconhecimento dos filhos, matéria disciplinada no Código Civil nos artigos 1.607 ao 1.617. Salienta-se, na oportunidade, a distinção havida entre os filhos oriundos

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do casamento, os quais são detentores de presunção de paternidade, e os filhos havidos das relações extramatrimoniais, os quais precisam ser reconhecidos, seja por ato voluntário ou por meio judicial. Ultrapassadas tais questões, abordar-se-ão as relações estabelecidas em razão dos laços afetivos, destacando-se a paternidade socioafetiva e a posse de estado de filho. Nesse sentido, será demonstrado que, embora não haja previsão legal acerca da socioafetividade, tal instituto é amplamente reconhecido pela jurisprudência e pela doutrina, sendo caracterizado, inclusive, como fonte de filiação. Após, apresenta-se o reconhecimento da paternidade socioafetiva, a qual está intimamente ligada à necessidade de provimento jurisdicional. Ou seja, faz-se mister a provocação do Judiciário, o qual, por meio do juiz, proferirá sentença reconhecendo uma situação de fato já existente. Nesse sentido, ante a burocracia e a morosidade do Judiciário, a qual é de conhecimento comum, passa-se à análise do ponto nodal do presente estudo, ou seja, a possibilidade do reconhecimento extrajudicial da paternidade socioafetiva, abordando-se, na oportunidade, os provimentos elaborados por alguns estados brasileiros regulamentando tal situação, bem como a fundamentação utilizada para o deslinde da controvérsia. Por fim, ante a semelhança existente entre os institutos, passa-se a uma breve análise da distinção havida entre as manifestações de vontade exaradas no reconhecimento de paternidade socioafetiva e na adoção à brasileira. Cumpre ressaltar que o presente estudo está alicerçado nas principais bibliografias normativas, doutrinárias e jurisprudenciais, tendo por escopo demonstrar tanto a possibilidade quanto a viabilidade do reconhecimento extrajudicial da paternidade socioafetiva.

DO CONCEITO DE FILIAÇÃO E SUA BREVE SÍNTESE HISTÓRICA O conceito de filiação sofreu inúmeras modificações ao longo do tempo, principalmente em razão da evolução do instituto da família e suas configurações. Ou seja, a partir do momento em que foram consideradas formas diversas do que se entendia 174


por família, desassociando-a do caráter eminentemente matrimonial, modificou-se, também, a caracterização da filiação. Não se pode estabelecer um conceito único de filiação, entretanto, no intuito de exemplificar o que a doutrina entende acerca do referido instituto, citam-se os seguintes excertos: Sob o aspecto do Direito, a filiação é um fato jurídico do qual decorrem inúmeros efeitos. Sob a perspectiva ampla, a filiação compreende todas as relações, e respectivamente sua constituição, modificação e extinção, que têm como sujeitos os pais em relação aos filhos. (VENOSA, 2006, p. 227). Filiação é a relação social de parentesco entre genitor, ou genitora, e progenitura, e que é, ao menos em parte, a base da identidade dos novos membros da sociedade e de sua incorporação aos diversos grupos sociais. (FERREIRA, 2004).

Nesse mesmo sentido, infere-se da obra de WALD (2002) que filiação é decorrência da procriação, sendo que os filhos são os produtos do referido ato. Portanto, vislumbra-se que o aludido autor prestigia em seu conceito a relação consanguínea havida entre os pais e os filhos. Atualmente, a filiação está também intimamente relacionada à biologia, no que tange à utilização de técnicas de assistência à reprodução. Trata-se de um conceito de filiação biogenética. Noutro vértice, cumpre salientar que a designação “filho”, historicamente, foi associada a algum adjetivo, ou seja, havia qualificações/distinções entre os filhos. Segundo Nicodemos (2014), o Código Civil de 1916 classificava a filiação em quatro espécies, quais sejam, os filhos legítimos, ilegítimos, incestuosos ou adulterinos e os adotivos. A lei civilista de 1916 tinha caráter patrimonial e patriarcal, razão pela qual eram considerados filhos legítimos aqueles havidos de pessoas casadas, decorrentes, portanto, do enlace matrimonial. Quanto aos ilegítimos, havia uma subclassificação, sendo considerados naturais os filhos de pessoas sem impedimento para o casamento, ao passo que os espúrios decorriam das relações extraconjugais, sendo, nesse caso, chamados de adulterinos, ou, ainda, incestuosos, quando provenientes de relacionamentos entre pessoas de uma mesma família.

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No que tange à adoção, segundo Zeni (2009), tal instituto era alvo de inúmeras críticas doutrinárias, sendo considerada por alguns pensadores como fonte de reconhecimento de filhos incestuosos e adulterinos, burlando-se, portanto, a proibição legal havida acerca desse reconhecimento. No intuito de se evidenciarem as severas distinções instituídas pelo Código Civil de 1916 em relação aos filhos, transcrevem-se os seguintes artigos do referido diploma, in verbis: Art. 355. O filho ilegítimo pode ser reconhecido pelos pais, conjunta ou separadamente. Art. 358. Os filhos incestuosos e os adulterinos não podem ser reconhecidos. Art. 352. Os filhos legitimados são, em tudo, equiparados aos legítimos. Art. 359. O filho ilegítimo, reconhecido por um dos cônjuges, não poderá residir no lar conjugal sem o consentimento do outro.

Registra-se que a distinção havida entre os filhos foi definitivamente afastada com o advento da Constituição Federal de 1988, a qual previu no rol dos direitos fundamentais a isonomia entre a prole. Ressaltando o papel do direito frente às necessidades da sociedade, Dias (2013, p. 364) leciona que: Cabe ao direito identificar o vínculo de parentesco entre pai e filho como sendo o que confere a este a posse de estado de filho e ao genitor as responsabilidades decorrentes do poder familiar. O parentesco deixou de manter, necessariamente, correspondência com o vínculo consanguíneo. Basta lembrar a adoção, a fecundação heteróloga e a filiação socioafetiva. A disciplina da nova filiação há que se edificar sobre os três pilares constitucionalmente fixados: a plena igualdade entre filhos, a desvinculação do estado de filho do estado civil dos pais e a doutrina da proteção integral.

Por fim, numa tentativa de parafrasear os ensinamentos de Cristiano Chaves, a situação da filiação hoje no nosso ordenamento pode ser simplificada na seguinte expressão: filho é substantivo sem qualquer adjetivo. Trata-se de uma das formas de realização da personalidade humana.

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DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE DOS FILHOS O princípio da igualdade dos filhos está expressamente previsto na Constituição Federal de 1988, no artigo 227, § 6º, o qual dispõe nos seguintes termos: Artigo 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (...) § 6º. Os filhos havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Dessa forma, vislumbra-se que não há mais distinção entre os filhos legítimos, oriundos da relação matrimonial, e os filhos anteriormente designados como espúrios, ilegítimos, ou seja, aqueles provenientes de relações extramatrimoniais. Nesse sentido, vale trazer a lume os ensinamentos de Gagliano (2013, p. 618) que aduz ser filho de alguém independe de vínculo conjugal válido, união estável, concubinato ou mesmo relacionamento amoroso adulterino, devendo todos ser tratados da mesma forma.

Segundo Dias (2013), o posicionamento adotado pela Magna Carta, de proibição de tratamento discriminatório quanto à filiação, acarretou a revogação de dispositivo da lei civil que vedava o reconhecimento dos chamados filhos espúrios. Analisando o dispositivo constitucional relativo à filiação, Dias (2013, p. 362) leciona que: Com esta mudança de paradigma, a filiação é estabelecida pelo fato do nascimento. Pouco importa se a concepção foi lícita ou não, se decorreu de relacionamento ético ou não. Basta atentar que o filho incestuoso é filho.

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Portanto, sendo vedadas as designações discriminatórias em relação aos filhos e ao direito de filiação, não se permite, por conseguinte, nenhuma indicação nos registros de nascimentos acerca do estado civil dos genitores ou de qualquer outra nota que possa distinguir/diferenciar a prole. O princípio, ora em estudo, encontra-se inserido no Código Civil, no artigo 1596, o qual estabelece, em síntese, a igualdade de direitos entre os filhos havidos no matrimônio ou não e, ainda, aqueles oriundos de adoção. Observa-se a letra da referida lei: Art. 1.596. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Analisando as evoluções trazidas pela Constituição Federal quanto ao tema ora em análise, principalmente partindo-se da dignidade da pessoa humana, fundamento expresso no texto constitucional, Zeni (2009, p. 70) aduz: É a dignidade da pessoa humana que permite e determina que seja destinado tratamento igualitário aos filhos, independentemente de sua origem, se advêm ou não do casamento. Por ser princípio fundamental, dita um limite de atuação do Estado e garante que a partir dele se promova a dignidade da pessoa humana, valor espiritual e moral inerente à pessoa.

Isso posto, observa-se o apreço constitucional dado à filiação de modo a afastar qualquer conteúdo discriminatório relacionado à origem dos laços familiares. Trata-se de avanço legislativo rumo à concreção do conteúdo mínimo da dignidade humana aos vínculos familiares comuns na modernidade.

DO RECONHECIMENTO DA FILIAÇÃO O Código Civil de 2002 trouxe um capítulo destinado ao regramento do reconhecimento dos filhos, estando tal disciplina disposta dos artigos 1.607 ao 1.617.

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Cumpre salientar, inicialmente, que as grandes controvérsias existentes em relação à filiação, na visão de Simão e Tartuce (2013), referem-se à paternidade, haja vista o velho ditado de que a maternidade é sempre certa (mater semper certa est). Noutro vértice, ressalta-se que muitos doutrinadores estabelecem uma crítica à lei civilista, uma vez que, embora não apresente nenhuma designação discriminatória relativa aos filhos, estabelece uma distinção quanto aos filhos oriundos do matrimônio, - os quais carregam consigo uma presunção de paternidade e maternidade -, ao passo que a prole proveniente de relações extramatrimoniais depende de ato de reconhecimento. Consoante determina o artigo 1.607 do Código Civil, “o filho havido fora do casamento pode ser reconhecido pelos pais, conjunta ou separadamente”. Registra-se que o reconhecimento da filiação pode se dar por ato voluntário ou por meio judicial. Passa-se à análise pormenorizada das formas de reconhecimento de filiação. Do reconhecimento voluntário O artigo 1609 do Código Civil dispõe acerca das formas de reconhecimento, a qual pode se dar no registro de nascimento, por escritura pública ou escrito particular, por testamento ou por manifestação direta e expressa perante o juiz. Vejamos, in verbis: Art. 1.609. O reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável e será feito: I-no registro do nascimento; II-por escritura pública ou escrito particular, a ser arquivado em cartório; III-por testamento, ainda que incidentalmente manifestado; IV-por manifestação direta e expressa perante o juiz, ainda que o reconhecimento não haja sido o objeto único e principal do ato que o contém.

Cumpre salientar, consoante dispõe o parágrafo único do artigo supramencionado, que é possível o reconhecimento do nascituro, bem como do filho falecido, desde que este tenha deixado sucessores, no intuito de se evitarem fraudes, ou seja, o reconhecimento para meros fins econômicos. 179


Acerca das características do reconhecimento voluntário, Dias (2013, p. 388) esclarece: O reconhecimento voluntário da paternidade independe da prova da origem genética. É um ato espontâneo, solene, público e incondicional. Como gera o estado de filiação, é irretratável e indisponível. Não pode estar sujeito a termo, sendo descabido o estabelecimento de qualquer condição (CC 1.613). É ato livre, pessoal e irrevogável e de eficácia erga omnes. Não é um negócio jurídico, é um ato jurídico stricto sensu. Assim, inadmissível arrependimento. Não pode, ainda, ser impugnado, a não ser na hipótese de erro ou falsidade de registro. O pai é livre para manifestar sua vontade, mas seus efeitos são os estabelecidos na lei.

Registra-se que o reconhecimento de filho menor de 18 (dezoito) anos independe de seu consentimento, podendo ele, nos quatro anos que seguirem à sua maioridade ou emancipação, impugnar tal reconhecimento. Trata-se, na visão de Dias (2013) de um direito de não ter como pai aquele que efetuou o reconhecimento. Lado outro, em se tratando de filhos maiores, para o reconhecimento da filiação, é imprescindível a manifestação da sua vontade. É o que dispõe o artigo 1.614 da lei civilista. Ainda com relação ao tema em debate, cumpre asseverar que, havendo o reconhecimento da filiação por meio de testamento, ainda que este seja revogado ou declarado nulo, não haverá óbice ao reconhecimento. Nesse sentido, Dias (2013, p. 392) aduz: O testamento é mero suporte instrumental do reconhecimento, não ficando sujeito às suas vicissitudes. Em outras palavras, a validade do reconhecimento não depende da eficácia ou até mesmo da sobrevivência do instrumento. Possível o reconhecimento da parentalidade até por intermédio do chamado codicilo (CC 1.881): escrito particular datado e assinado, em que alguém faz deliberações sobre seus funerais ou doações de pouca monta. Mesmo que não se trate de um testamento, é um escrito particular e vale como tal (CC 1.609 II).

Por fim, salienta-se que a putatividade ou não do casamento não atinge os direitos da prole, consoante determina o artigo 1.617 do Código Civil. 180


Do reconhecimento judicial O reconhecimento judicial do vínculo paterno ou materno, também conhecido como reconhecimento coativo ou forçado, dáse, principalmente, por meio de ação de investigação, consoante ensinamentos de Gagliano (2013). Pinheiro (2012, p. 6) apresenta algumas noções introdutórias acerca do reconhecimento judicial de filiação. Vejamos: Por excelência, o reconhecimento judicial da filiação resulta da sentença proferida em ação intentada para este fim, pelo filho, sendo medida de caráter pessoal. A investigação pode ser ajuizada contra o pai ou mãe, ou ambos, desde que observados os pressupostos legais de admissibilidade de ação, considerados como presunções de fato. Quanto a sua contestação, poderá ser feita por qualquer pessoa que tenha justo interesse econômico ou moral, como exemplifica Maria Helena Diniz no caso da mulher do réu, dos seus filhos patrimoniais ou os reconhecidos anteriormente, os parentes sucessíveis ou qualquer entidade obrigada ao pagamento de pensão aos herdeiros dos supostos pais.

Cumpre salientar que, conforme o doutrinador acima mencionado, a ação de investigação de paternidade consiste no meio judicial para se obter, de forma forçada, o estado de filiação. Trata-se de uma ação de estado, de competência da vara de família, tendo natureza declaratória e imprescritível, ou seja, pode ser ajuizada a qualquer tempo. Registra-se que são admitidos todos os meio de prova aceitas pelo direito, entretanto, utiliza-se, preferencialmente, o exame de DNA, haja vista se tratar de prova pericial capaz de promover certeza quase absoluta do vínculo de parentesco. Ademais, a sentença proferida na ação de investigação de paternidade produz efeitos ex tunc, ou seja, retroagem ao momento do nascimento do filho. Possui eficácia erga omnes, sendo, portanto, oponível perante terceiros e, ainda, não se sujeita à termo ou condição. Acerca da sentença proferida em sede de ação de investigação de paternidade, bem como de seus efeitos, Diniz (2004, p. 463-464) leciona:

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Julgada procedente a ação de investigação de paternidade, esta tem o condão de produzir o efeito jurídico de estabelecer o liame de parentesco entre o filho e seus pais, atribuindo-lhe um status familiar, com a devida inscrição no Registro Civil, com menção dos pais e avós e sem referência a qualquer origem da filiação; dar ao filho o direito à assistência e alimentos; sujeitar o filho menor ao poder familiar do genitor que o reconheceu; equiparar para efeitos sucessórios os filhos de qualquer natureza; autorizar o filho reconhecido a propor a ação de petição de herança e de nulidade de partilha, devido a sua condição de herdeiro; equipar a prole reconhecida tanto para efeito de clausulação de legítima como para indignidade, ao descendente oriundo de relação matrimonial etc.

Por todo o exposto, verifica-se que o objetivo precípuo da ação de investigação de paternidade é declarar a verdade biológica, de modo que seja reconhecida a paternidade, sendo conferido ao filho todos os direitos inerentes à filiação.

DA AFETIVIDADE: A PATERNIDADE SOCIOAFETIVA E A POSSE DO ESTADO DE FILHO Inicialmente, cumpre salientar que o conceito de família sofreu inúmeras mudanças ao longo do tempo, deixando de lado o aspecto eminentemente matrimonial e biológico, passando a adotar os laços de afeto como ponto norteador e fundamental. Atualmente, pode-se conceituar família como “toda relação de afeto”, consoante destaca o artigo 5º da Lei n. 11.340/06 (Lei Maria da Penha). A família, portanto, passa a formar-se por meio de elementos subjetivos, afastando a necessidade da relação sanguínea. Estabelecendo um contraponto entre a relação biológica e a relação afetiva, Welter (2002, p. 136) explica: Enquanto a família biológica navega na cavidade sanguínea, a família afetiva transcende os mares de sangue, conectando o ideal da paternidade e maternidade responsável, hasteando o véu impenetrável que encobre as relações sociológicas, regozijando-se com o nascimento emocional e espiritual do filho, edificando a família pelo cordão umbilical do amor, do afeto, do desvelo, do coração e da emoção,

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(re)velando o mistério insondável da filiação, engedrando um verdadeiro reconhecimento do estado de filho afetivo.

Em uma análise acerca do princípio da afetividade no direito das famílias, Dias (2013, p. 72-73) aduz: O afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência familiar, não do sangue. Assim, a posse de estado de filho nada mais é do que o reconhecimento jurídico do afeto, com claro objetivo de garantir a felicidade, como um direito a ser alcançado. O afeto não é somente um laço que envolve os integrantes de uma família. Igualmente tem um viés externo, entre as famílias, pondo a humanidade em cada família, compondo, no dizer de Sérgio Resende de Barros, a família humana universal, cujo lar é a aldeia global, cuja base é o globo terrestre, mas cuja origem sempre será, como sempre foi, a família.

Segundo Gagliano (2013), a legislação brasileira destaca a importância da paternidade biológica, mas não a coloca em situação de superioridade em relação à verdade socioafetiva. Nesse sentido, o doutrinador supramencionado aduz (p. 639) que “independentemente do vínculo sanguíneo, o vínculo do coração é reconhecido pelo Estado com a consagração jurídica da ‘paternidade socioafetiva’”. De acordo com Gagliano (2013), a posse de estado de filho é o outro lado da moeda da paternidade socioafetiva. É a afetividade vista pelo ângulo do filho. Numa tentativa de se esclarecer o que é a chamada posse do estado de filho, leciona: A posse de estado de filiação constitui-se quando alguém assume o papel de filho em face daquele ou daqueles que assumem os papéis ou lugares de pai ou mãe ou de pais, tendo ou não entre si vínculos biológicos. A posse de estado é a exteriorização da convivência familiar e da afetividade, segundo as características adiante expostas, devendo ser contínua. (PAULO LÔBO apud GAGLIANO, 2013, p. 640).

Nesse mesmo sentido, Dias salienta: A noção de posse do estado de filho não se estabelece com o nascimento, mas num ato de vontade, que se sedimenta no terreno da afetividade, colocando em xeque tanto a verdade jurídica, quanto a certeza científica no estabelecimento da filiação. [...] A posse de estado é a expressão mais exuberante do parentesco psicológico, da filiação socioafetiva. (DIAS, 2013, p. 380-381).

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Consoante ensinamentos de Dias (2013), para que haja o reconhecimento da posse de estado de filho, são necessários três requisitos, quais sejam, o tratamento de filho (tractatus); o uso do nome da família (nominatio); o reconhecimento público de pertencimento àquela família (reputatio). Cumpre salientar que, consoante ensinamentos de Simão e Tartuce (2013), a verificação do vínculo de afetividade leva em consideração não só os aspectos quantitativos, com o tempo da posse de estado de filho, mas também critérios qualitativos. Pelo exposto, nota-se que os laços consanguíneos não são a única forma de haver relação paterno-filial, uma vez que o corpo jurídico brasileiro, tendo como referência o ditado popular de “pai é quem cria” e, ainda, no intuito de se alcançar uma sociedade mais humana e solidária, passou a reconhecer como genitor aquele que por seus atos revelem o desejo de sê-lo.

DO RECONHECIMENTO DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA Em uma breve análise da jurisprudência dos variados tribunais do país, verifica-se uma ampla aceitação ao reconhecimento da paternidade socioafetiva. Não por outra razão, o Superior Tribunal de Justiça se manifestou favorável ao reconhecimento da maternidade socioafetiva, conforme se infere da decisão contida no Informativo n. 436, de maio de 2010¹. Segundo Hahn e Salomão (2015), a situação descrita trata-se de um avanço na ordem jurídica, uma vez que confere segurança jurídica às situações de fato já existentes, preservando-se, assim, a entidade familiar, bem como o bem-estar e a proteção dos indivíduos. Registra-se que não há dispositivo legal que trate exclusivamente do reconhecimento da paternidade socioafetiva, sendo tal situação uma construção doutrinária e jurisprudencial. Dessa forma, para haver o reconhecimento dessa paternidade baseada na socioafetividade, faz-se necessário recorrer ao Judiciário. Informações adicionais em:STJ, REsp. 1000.356/SP, Rel. Min. Nancy Andrigui, j. 25.05.2010

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Em uma breve síntese da ação a ser promovida, esta tem como ponto nodal a comprovação da relação afetiva havida entre as partes, a socioafetividade ou a posse de estado de filho. Ao proferir a sentença reconhecendo o vínculo de afeto ali existente, o juiz mandará expedir um mandado de averbação para o cartório de registro civil das pessoas naturais, no qual se encontra o registro daquele que não possui o nome do pai no seu assento. Nota-se, portanto, que o reconhecimento da filiação socioafetiva demanda a necessidade de intervenção judicial, por meio do Estado na figura do juiz. Ocorre que, embora a questão ora em análise seja revestida de simplicidade, sendo mister, apenas, o consentimento da genitora e do filho, quando maior, o pedido tramitará junto aos inúmeros processos da vara de família, fato que ocasiona uma série de burocracias e maior lentidão ao reconhecimento de algo já existente entre as partes. Ademais, sendo necessário recorrer ao Judiciário, grande parte da população não tem conhecimento do procedimento ou opta por não formalizá-lo, deixando de reconhecer juridicamente a situação já existente de fato. Logo, estuda-se a possibilidade do reconhecimento da filiação socioafetiva em cartório, como forma de, além de afastar da prestação jurisdicional questões de fácil deslinde e já pacífica entre os envolvidos, proporcionar aos interessados maior praticidade, celeridade e economicidade. Ou seja, busca-se chegar a um consenso no qual esteja preservada a segurança jurídica das relações e, ao mesmo tempo, tornar-se mais acessível à população em geral.

DO RECONHECIMENTO EXTRAJUDICIAL DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA Conforme já analisado anteriormente, os filhos havidos das relações extramatrimoniais podem ser reconhecidos, por ato voluntário, de várias formas, como testamento, escritura pública ou escrito particular, no registro de nascimento ou, ainda, por manifestação direta e expressa perante o juiz, consoante determina 185


o artigo 1609 do Código Civil. Registra-se que em momento algum a lei civilista disciplinou que esse reconhecimento de filho seria cabível apenas aos filhos biológicos. Ademais, ainda que existente tal condição, podese entender que esta seria inconstitucional, uma vez que a Magna Carta veda qualquer designação discriminatória relativa à filiação, resguardando-se, assim, os mesmos direitos e qualificações. Sendo a socioafetividade fonte da filiação, consoante entendimento do Superior Tribunal de Justiça2, não se mostra plausível que ao reconhecimento da paternidade biológica sejam conferidos meios extrajudiciais - mais céleres e mais econômicos -, ao passo que para o reconhecimento da relação paterno-filial socioafetiva seja necessário recorrer exclusivamente à via judicial (Oliveira, 2014). Como forma de solucionar a controvérsia existente, a região nordeste foi pioneira ao possibilitar o reconhecimento da paternidade socioafetiva diretamente na via extrajudicial. Os estados de Pernambuco, Ceará e Maranhão, por meio de provimentos da Corregedoria-Geral de Justiça, previram a possibilidade de reconhecimento da paternidade socioafetiva diretamente ao oficial do cartório do registro civil das pessoas naturais, afastando-se, assim, os entraves burocráticos e jurídicos. Segundo Hanh e Salomão (2015), o procedimento extrajudicial consiste no comparecimento do pai socioafetivo em cartório, no qual ele fará uma declaração de que reconhece como seu filho a pessoa ali registrada, tendo como fundamento os laços de afeto havidos entre os dois. Logo após, a genitora será chamada para manifestar seu consentimento quanto ao pedido de reconhecimento, sendo que, caso o filho seja maior de idade, este também deverá consentir. Nessa perspectiva, Hanh e Salomão (2015, p. 139) aduzem que o procedimento extrajudicial em análise é uma forma de “desburocratização do reconhecimento da paternidade socioafetiva, confiando na fé pública do oficial registrador do cartório de

Informações adicionais em STJ - REsp: 709608 MS 2004/0174616-7, Relator: Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Data de Julgamento: 05/11/2009, T4 QUARTA TURMA, Data de Publicação: <!-- DTPB: 20091123<br> --> DJe 23/11/2009.

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Registro Civil das Pessoas Naturais”. Ademais, cumpre salientar que a medida ora em estudo pode ser entendida como uma forma de desjudicialização, sendo transferida a órgão não jurisdicional, questão na qual não se mostra imprescindível a atuação do Estado-Juiz. Destaca-se do Provimento n. 21/2013, da CorregedoriaGeral da Justiça do Estado do Maranhão, os seguintes fundamentos adotados para o reconhecimento extrajudicial da paternidade socioafetiva: Considerando que, segundo assente na doutrina e na jurisprudência pátrias, não há, a priori, hierarquia entre a paternidade biológica e socioafetiva, tendo esta como fundamento a afetividade, a convivência familiar e a vontade livre de ser pai; Considerando que é permitido o reconhecimento voluntário de paternidade perante o oficial de Registro Civil, devendo tal possibilidade ser estendida às hipóteses de reconhecimento voluntário de paternidade socioafetiva, já que ambos estabelecem relação de filiação, cujas espécies devem ser tratadas com igualdade jurídica; Considerando, por fim, a existência de grande número de crianças e de adultos sem paternidade registral estabelecida, embora tenham relação de paternidade socioafetiva já consolidada (...).

Vislumbra-se, portanto, uma preocupação em se regulamentar situações de fato já existentes, bem como prestigiar a livre vontade de ser pai e as relações de afeto. Oliveira (2015, p.3) apresenta as principais vantagens para o reconhecimento extrajudicial de paternidade socioafetiva, destacando que é um ato notarial importante, tal escritura de reconhecimento, tem baixo custo para o interessado e, regra geral, é fonte de grande satisfação pessoal para o declarante e também para o tabelião que lavra o ato.

Muitos pensadores vislumbram óbice ao reconhecimento extrajudicial da paternidade socioafetiva, alegando, em síntese, que o oficial do cartório não detém as condições necessárias para averiguar/emitir juízo de valor acerca da socioafetividade alegada. Nesse sentido, contrapondo a esse entendimento, Oliveira (2014, p. 2) esclarece:

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Poderia se argumentar que o serviço de registro civil não tem elementos para aferir, no caso concreto, se existe a relação de socioafetividade, no entanto, não se exige qualquer comprovação para a filiação biológica, logo o mesmo tratamento deverá ter a filiação socioafetiva.

Cumpre salientar que, uma vez reconhecido a paternidade socioafetiva, o filho passa a ser titular de todos os direitos decorrentes da filiação, principalmente em relação aos direitos sucessórios e aos alimentos. Analisando a importância da medida ora estudada, Oliveira (2014, p. 3) aduz: É inegável a importância da criança ter o nome do pai em seus documentos, pois a protege do arbítrio e instabilidade dos relacionamentos adultos. Não é raro acontecer daquele que por muitos anos se comporta como pai socioafetivo querer, posteriormente, abandonar essa paternidade. Se a paternidade está formalizada nos registros públicos, somente por meio de um provimento jurisdicional ela poderá ser negada, ou seja a criança contará com a proteção do poder judiciário nesse momento difícil em que o pai quer abandoná-la.

Noutro vértice, cumpre ressaltar que a medida extrajudicial em estudo já foi alvo de decisão do Superior Tribunal de Justiça3, na qual se privilegiou a relação de afeto havida entre as partes, afastando-se a alegação de erro ou falsidade no registro de nascimento de filho não biológico. Ademais, o Conselho Nacional de Justiça manifestou-se acerca do tema, tendo, por meio do Provimento n. 16/2012, facilitado ainda mais o reconhecimento da paternidade socioafetiva extrajudicial, uma vez que conferiu a possibilidade de o pai reconhecer a relação havida em qualquer cartório de registro civil do país, ou seja, não se faz mais necessário que a declaração de paternidade ocorra no cartório no qual o filho foi registrado. Salienta-se que o provimento acima mencionado do Conselho Nacional de Justiça estimula o reconhecimento extrajudicial da paternidade, asseverando em seu artigo 6º que (...) o reconhecimento espontâneo de filho poderá ser feito perante o Oficial de Registro de Pessoas Naturais, a qualquer tempo, por escrito particular, que será arquivado em cartório (...)”. 3

Informações adicionais em: REsp 709.608/MS, Rel Min. João Otávio de Noronha, 2009.

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Não há indicação expressa de que o reconhecimento no excerto aludido cinge-se à filiação biológica, possibilitando-se, assim, duplo entendimento, principalmente em razão da aceitação jurisprudencial e doutrinária acerca da socioafetividade. Atualmente, os estados do Maranhão (Provimento n. 21/2013), Amazonas (Provimento n. 234/2014), Ceará (Provimento n. 15/2013), Pernambuco (Provimento n. 09/2013), Santa Catarina (Circular n. 307/2014) e São Paulo (Provimento n. 36/2014), já expediram documentos atestando a possibilidade do reconhecimento da paternidade socioafetiva extrajudicial, bem como estabelecendo regras e procedimentos a serem observados pelo oficial do cartório de registro civil das pessoas naturais. No estado de Goiás, não há nenhuma regulamentação acerca do tema, entretanto, é sabido que as ações ajuizadas para o reconhecimento da paternidade socioafetiva ganham cada vez mais espaço nas varas de família. Dessa forma, espera-se que o Poder Judiciário goiano, em breve, seguindo os exemplos dos demais estados, expeça provimento desjudicializando o reconhecimento da relação paterno-filial socioafetiva. DA DISTINÇÃO HAVIDA NA MANIFESTAÇÃO DE VONTADE EMITIDA NO RECONHECIMENTO EXTRAJUDICIAL DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA E NA ADOÇÃO À BRASILEIRA Consoante os argumentos acima apresentados, verificase que ao se estabelecer a possibilidade de reconhecimento da relação paterno-filial socioafetiva em cartório, busca-se adotar meio mais rápido e menos gravoso, bem como conferir segurança jurídica às relações já existentes. É um ato de desjudicialização, uma vez que a atuação judicial por parte do Estado-Juiz mostrase prescindível. Dessa forma, no caso ora em análise, o pai socioafetivo vai ao cartório buscando ter reconhecida sua paternidade em razão do afeto que ele nutre pelo filho. Ou seja, a manifestação da vontade emitida pelo pai condiz com a realidade fática. Dessa forma, ciente da relação existente pautada exclusivamente nos laços de afeto, o pai requer que lhe seja declarada a paternidade do filho. 189


Noutro vértice, a denominada adoção à brasileira é caracterizada por muitos doutrinadores como ato ilícito, sendo comum essa prática nos casos em que o companheiro registra o filho da companheira como se fosse seu. Numa tentativa de esclarecer o que se entende pelo instituo ora analisado, Nicodemos (2014, p. 9) esclarece que configura-se a adoção à brasileira quando determinada pessoa registra filho biológico de outra pessoa como se fosse seu. Ocorre, na verdade, um adoção sem a observância dos trâmites legalmente exigidos.

O principal problema enfrentado pela adoção à brasileira é que, uma vez rompido o laço existente entre o casal, o pai busca a desconstituição do registro do filho por meio de ação anulatória ou negatória de paternidade. Nesse sentido, é cediço que não haverá relação biológica entre o pai e o filho reconhecido, entretanto, a jurisprudência brasileira, tendo como pressuposto a voluntariedade e espontaneidade do ato de reconhecimento, passou a não admitir a anulação do registro de nascimento, sendo este considerado irrevogável. Nesse sentido, Dias (2013, p. 509) esclarece que: Registrar filho alheio como próprio, sabendo não ser verdadeira a filiação, impede posterior pedido de anulação. O registro não revela nada mais do que aquilo que foi declarado – por conseguinte, corresponde à realidade do fato jurídico. Descabido falar em falsidade.

Nota-se, portanto, que a diferença havida entre o reconhecimento da paternidade socioafetiva extrajudicial e a adoção à brasileira cinge-se na declaração de vontade do pai, uma vez que neste último instituto há uma inconsistência entre a realidade fática e o registro público, ou seja, este não condiz com a verdade. Nesse sentido, sendo regulamentado o direito de reconhecimento de relação paterno-filial socioafetiva em cartório, busca-se, não somente desafogar o Judiciário, como também, acabar com as fraudes havidas no registro de nascimento. Devese privilegiar não só a segurança, mas também a verdade jurídica havida entre as relações.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS É sabido que as instituições familiares sofreram inúmeras alterações ao longo do tempo, deixando de lado o vínculo eminentemente matrimonial e consanguíneo, acolhendo os laços de afeto como norte das relações. A socioafetividade tem sua existência reconhecida no âmbito do núcleo familiar, tendo respaldo doutrinário e jurisprudencial, não havendo que se falar em superioridade ou hierarquia da paternidade biológica em relação à paternidade socioafetiva, até porque a Magna Carta veda a utilização de qualquer designação discriminatória quanto à origem da filiação. O Código Civil brasileiro estabelece o regramento para o reconhecimento dos filhos havidos das relações extramatrimoniais, haja vista que os filhos decorrentes do casamento são acometidos pela presunção de paternidade. Nesse sentido, verifica-se que, por força do artigo 1.609 da lei civilista, é possível o reconhecimento da filiação, de forma voluntária, por atos extrajudiciais, como por escritura pública ou particular ou, ainda, por testamento. Considerando que não há distinção entre filhos biológicos e os filhos socioafetivos, não há razão para que não seja possibilitado o reconhecimento da paternidade socioafetiva em cartório, uma vez que tal facilidade é conferida aos casos de paternidade biológica. Nesse espeque, por meio da pesquisa ora realizada, vislumbra-se que vários estados brasileiros, por meio de sua Corregedoria-Geral de Justiça, já regulamentaram o procedimento de reconhecimento da paternidade socioafetiva em cartório, tendo como fundamentos a necessidade de se conferir segurança jurídica às relações já existentes no campo fático, bem como promover uma maior desjudicialização, haja vista que a intervenção do Estado, na figura do juiz, não se mostra imprescindível. Dessa forma, conclui-se que não há unidade nas federações brasileiras acerca do tema, o qual ainda merece maior regulamentação por parte dos estados-membros, incluindo-se Goiás. Ademais, no intuito de se promover uma unidade de procedimentos, faz-se mister a elaboração de uma norma nacional, 191


a ser regulamentada pelo Conselho Nacional de Justiça, de modo que seja estabelecido um procedimento único a ser adotado pelos estados-membros no que se refere ao reconhecimento extrajudicial da paternidade socioafetiva. Tal regramento, além de facilitar o exercício dos oficiais dos cartórios, colocará fim à discussão estabelecida neste estudo.

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