A EXECUÇÃO SIMULTÂNEA DE CONDENAÇÕES PENAIS SUJEITAS A REGIMES JURÍDICOS DIVERSOS

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Lucas César Costa Ferreira* A EXECUÇÃO SIMULTÂNEA DE CONDENAÇÕES PENAIS SUJEITAS A REGIMES JURÍDICOS DIVERSOS THE SIMULTANEOUS ENFORCEMENT OF SENTENCES SUBJECT TO DIFFERENT REGIMES LA EJECUCIÓN SIMULTÁNEA DE CONDENAS PENALES SUJETAS A DIFERENTES REGÍMENES JURÍDICOS

Resumo: Este trabalho científico tem por objetivo analisar, no contexto da execução penal, a repercussão da existência de condenações pela prática de crimes hediondos e assemelhados, sobretudo quando verificado o concurso com condenações por crimes comuns. Nesse sentido, constata-se a existência de um regime jurídico diferenciado que regula e informa a execução da pena de delitos hediondos e equiparados. A partir dessa constatação, na hipótese de execução simultânea de condenações penais sujeitas a regimes jurídicos diversos, a elaboração particularizada e diferenciada dos cálculos emerge como solução acertada para análise dos benefícios da progressão de regime e do livramento condicional. De outra parte, tendo em vista a vedação constitucional da concessão de indulto a condenados por crimes hediondos e equiparados, faz-se necessário o cumprimento da integralidade da pena referente a crimes hediondos e equiparados, o que sugere uma interpretação conforme o disposto no artigo 8º, parágrafo único, do Decreto Presidencial n. 8.615, de 23 de dezembro de 2015. Abstract: This scientific work aims to analyze in the context of criminal enforcement the impact of the convictions for heinous crimes and the like, especially when also verified simultaneous convictions for common crimes. In this regard, it is noted the existence of a different regime * Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília. Pós-graduado em Ministério Público e Ordem Jurídica pela Fundação Escola Superior do MP-DFT. Promotor de Justiça do MP-GO.

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that regulates and informs the enforcement of the penalty for heinous and similar offenses. Based on such statement, in the event of simultaneous enforcement of sentences subject to different regimes, the individualized and distinguished calculation emerges as the right solution for analysis of the benefits of regime progression and parole. On the other hand, considering the constitutional prohibition of clemency for heinous and similar crimes,the sentence relating to heinous and similar crimes should be fully enforced, which suggests an interpretation according to the Constitution of Article 8, sole paragraph, Presidential Decree n. 8.615, of December 23, 2015. Resumen: El objectivo deste trabajo científico es analizar, en el contexto de la ejecución penal, el impacto de la existencia de condenas por crímenes atroces y similares, especialmente cuando se comprobó el concurso con condenas por delitos comunes. En este sentido, observamos la existencia de un régimen jurídico distinto que regula e informa la ejecución de la sentencia de delitos atroces y similares. A partir de esta observación, en el supuesto de ejecución simultánea de condenas penales sujetas a diferentes regímenes jurídicos, los cálculos individualizados y diferenciados surgen como una solución adecuada para el análisis de los beneficios de la progresión de régimen y la libertad condicional. Por otro lado, en vista de la prohibición constitucional a concesión de indulto a condenado por crímenes atroces y similares, es necesario cumplir con la totalidad de la sentencia relativa a crímenes atroces y similares, lo que sugiere una interpretación conforme a la Constitución del artículo 8 , párrafo unico, del Decreto Presidencial n. 8615, de 23 de diciembre de 2015. Palavras-chave: Hediondez, progressão, livramento, indulto. Keywords: Constitutional protection, privacy, exploratory search, data access, interception. Palabras clave: Hideousness, progression, parole, pardon. 110


O REGIME JURÍDICO COMUM DE EXECUÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE O artigo 33, §2º1, do Código Penal, estabelece que a pena privativa de liberdade será cumprida em sistema progressivo, conforme o mérito do sentenciado. Para tanto, será necessário o preenchimento de determinadas condições e requisitos que, uma vez verificados, autorizarão o cumprimento da pena em regime mais benéfico. Regra geral, para a obtenção do benefício, exige-se que o sentenciado cumpra 1⁄6 da reprimenda no regime inicialmente fixado na sentença condenatória (requisito objetivo), bem como demonstre possuir bom comportamento carcerário (requisito subjetivo). Esse regime jurídico comum de cumprimento progressivo da pena está estabelecido no artigo 1122 da Lei de Execuções Penais e compreende regra no sistema de execução penal. Ademais, ainda no regime jurídico comum, tem-se que o livramento condicional, como estágio último de cumprimento da pena, é concedido nas hipóteses preconizadas no artigo 83, incisos I a IV, do Código Penal, a saber: Art. 83 - O juiz poderá conceder livramento condicional ao condenado a pena privativa de liberdade igual ou superior a 2 (dois) anos, desde que: I - cumprida mais de um terço da pena se o condenado não for reincidente em crime doloso e tiver bons antecedentes; II - cumprida mais da metade se o condenado for reincidente em crime doloso;

¹ § 2º - As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso: a) o condenado a pena superior a 8 (oito) anos deverá começar a cumpri-la em regime fechado; b) o condenado não reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a 8 (oito), poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semi-aberto; c) o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto. ² Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão.

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III - comprovado comportamento satisfatório durante a execução da pena, bom desempenho no trabalho que lhe foi atribuído e aptidão para prover à própria subsistência mediante trabalho honesto; IV - tenha reparado, salvo efetiva impossibilidade de fazê-lo, o dano causado pela infração;

Por fim, cabe mencionar, ainda no âmbito da execução penal sujeita ao regime jurídico comum, que o sentenciado poderá fazer jus ao indulto total ou parcial da pena, nos termos em que dispõe o artigo 84, inciso XII, do texto constitucional. Mais recentemente, o Decreto Presidencial n. 8.172, de 24 de dezembro de 2013, o Decreto Presidencial n. 8.380, de 24 de dezembro de 2014, e o Decreto Presidencial n. 8.615, de 23 de dezembro de 2015, contemplam hipóteses diversas de concessão da benesse indultória. Sucede que o legislador ordinário, inspirado pela discriminação estabelecida no texto constitucional (artigo 5º, XLIII3, da Constituição Federal) e em atenção ao princípio da vedação à proteção insuficiente (untermassverbot), estabelece disciplina específica no tocante ao sistema progressivo atinente aos delitos hediondos e equiparados, senão vejamos.

O REGIME JURÍDICO DIFERENCIADO DE EXECUÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE O artigo 2º, §2º4, da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990, com redação determinada pela Lei n. 11.464, de 28 de março de 2007, estabeleceu que, em caso de condenações por crimes hediondos e equiparados, a progressão ao regime mais benéfico de cumprimento de pena dar-se-á com o cumprimento de 2/5 da reprimenda, se o apenado for primário, ou de 3/5, se reincidente.

XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; 4 § 2o A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente. 3

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Somado ao requisito objetivo, foi mantida a exigência de demonstração de bom comportamento carcerário (requisito subjetivo). Do mesmo modo, com relação ao benefício do livramento condicional, o legislador infraconstitucional, por intermédio da Lei n. 8.072/90, inseriu disciplina diferenciada no artigo 83, inciso V, do Código Penal, no tocante às condenações por crimes hediondos e equiparados, ao exigir - como requisito objetivo -, o cumprimento de 2/3 da pena, sendo vedada a concessão da benesse ao reincidente específico. Ainda nesse contexto diferenciado, outra discriminação que merece destaque diz respeito à vedação constitucional de concessão de indulto a crimes hediondos e equiparados. O artigo 5º, XLIII, da Constituição Federal, ao estabelecer que a prática de delitos definidos como hediondos e equiparados é insuscetível de graça, veda, em interpretação extensiva, a concessão de indulto – espécie do gênero graça – na mesma hipótese, porquanto ambos os institutos revelam espécies de clemência soberana (Cf. STF, HC n. 90364, Min. Relator Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 31/10/2007, DJe 30.11.2007). A propósito, valem ser destacados os ensinamentos esposados pelo professor Juarez Cirino dos Santos, confira-se: A graça constitui ato de competência do Presidente da República, tem por objeto crimes comuns com sentença condenatória transitada em julgado, e por objetivo beneficiar pessoa determinada mediante a extinção ou a comutação da pena aplicada, corrigindo injustiças ou o rigor excessivo na aplicação da lei. O indulto constitui igualmente ato de competência do Presidente da República, tem por objeto crimes comuns e por objetivos beneficiar uma coletividade de condenados, selecionados pela natureza do crime realizado ou pela quantidade da pena aplicada, com exigências complementares facultativas, geralmente relacionadas ao cumprimento parcial da pena; finalmente, também tem por efeito extinguir ou comutar a pena aplicada – exceto no indulto sob condições, que possam ser recusadas pelo indultado (SANTOS, 2008, p.692).

Ainda nessa ordem de ideias, cumpre enaltecer a doutrina do professor Guilherme de Souza Nucci, senão vejamos:

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A graça e o indulto não diferem, na essência: são formas de clemência, concedidas pelo Poder Executivo, a condenados criminalmente. Logo, ao proibir a graça, por um lapso, deixou o constituinte de se referir ao indulto, mas cabe, neste caso, a aplicação da interpretação extensiva. Onde se lê indulto, leia-se igualmente graça. (...) De toda forma, preferimos sustentar que tanto o indulto quanto a graça são, na essência, o mesmo instituto. Proibida a aplicação de um aos crimes hediondos e equiparados, automaticamente está vedada a aplicação do outro (NUCCI, 2006, p.306).

No mesmo sentido, o artigo 2º, inciso I5, da Lei n. 8.072/90, e o artigo 446 da Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006, afastam, expressamente, o cabimento da benesse em seus respectivos âmbitos de incidência. Assim sendo, considerando esse conjunto/bloco de normas legais e infraconstitucionais que estabelece disciplina discriminatória afeta ao cumprimento da pena aplicada pela prática de crimes hediondos e equiparados, pode-se falar que há um regime jurídico diferenciado, excepcional e específico de progressão da pena em tais casos, que não se confunde com o regime comum e geral progressivo da pena.

A EXECUÇÃO SIMULTÂNEA DE CONDENAÇÕES PENAIS SUJEITAS A REGIMES JURÍDICOS DIVERSOS Delineados os regimes jurídicos de cumprimento da pena privativa de liberdade, torna-se tormentoso o tema do concurso de infrações, sobretudo quando cumuladas execuções penais relativas a crimes hediondos e equiparados e a delitos comuns, já que, conforme já ressaltado, submetem-se as respectivas execuções penais a regimes progressivos diversos.

5 Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: I - anistia, graça e indulto; 6Art. 44. Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos.

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Como é cediço, o artigo 1117 da Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984, preconiza que será efetuada a unificação de penas quando o sentenciado sofrer mais de uma condenação, a fim de que seja estabelecido o regime inicial de cumprimento de pena. Quando se tratar de condenações sujeitas ao mesmo regime jurídico, realiza-se a unificação da pena pela simples soma das reprimendas, computada eventual remição e detração. De outra parte, quando referentes a regimes jurídicos diversos, tem-se que a análise da percepção de eventuais benefícios afetos à execução penal não se realiza por mera soma aritmética, de modo que, a depender da benesse, a verificação será particularizada, conforme o regime jurídico aplicável. No contexto do benefício da progressão de regime, que exige o cumprimento de parcela da pena (requisito objetivo) estabelecido pelo legislador infraconstitucional, as condenações referentes aos delitos comuns serão submetidas ao implemento de 1/6, ao passo em que as condenações atinentes a delitos hediondos e equiparados serão sujeitas ao cumprimento de 2/5 ou 3/5, a depender se reincidente ou não. A propósito, torna-se oportuno destacar a doutrina ministrada por Rodrigo Duque Estrada Roig e Daniel Scharth, in verbis: Em outras palavras, a exigência do cumprimento de uma fração da pena correspondente a um crime hediondo jamais pode incidir sobre uma pena (ou acréscimo dela) decorrente de delitos não hediondos, sob pena de grave violação aos princípios da legalidade e proporcionalidade. O primeiro restaria vilipendiado pela exigência de cumprimento de uma fração de pena mais elevada do que a legalmente prevista. O segundo pela equiparação indevida de delitos normativamente díspares (ROIG; SCHARTH, 2014).

Desse modo, o benefício da progressão para regime mais benéfico de cumprimento de pena, no caso de concurso de execuções penais simultâneas e referentes a condenações sujeitas a regimes jurídicos diversos, é analisado de forma particularizada Art. 111. Quando houver condenação por mais de um crime, no mesmo processo ou em processos distintos, a determinação do regime de cumprimento será feita pelo resultado da soma ou unificação das penas, observada, quando for o caso, a detração ou remição.

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e diferenciada. Outro não é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, verbis: HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO AO RECURSO APROPRIADO. DESCABIMENTO. EXECUÇÃO DA PENA. CONTINUIDADE DELITIVA. INSTITUTO QUE VISA A BENEFICIAR O RÉU. TOTAL DA PENA. BASE DE CÁLCULO PARA A CONCESSÃO DE BENEFÍCIOS. CRIME HEDIONDO E CRIME COMUM. CÁLCULO DIFERENCIADO PARA FINS DE LIVRAMENTO CONDICIONAL E PROGRESSÃO DE REGIME MAIS BENÉFICO AO PACIENTE SE CONSIDERADAS AS PENAS PARA O CRIME HEDIONDO E COMUM ISOLADAMENTE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. 1. Os Tribunais Superiores restringiram o uso do habeas corpus e não mais o admitem como substitutivo de recursos, e nem sequer para as revisões criminais. 2. Esta Corte possui orientação no sentido de que "na execução simultânea de condenação por delito comum e outro hediondo, ainda que reconhecido o concurso material, formal ou mesmo a continuidade delitiva, é legítima a pretensão de elaboração de cálculo diferenciado para fins de verificação dos benefícios penais, não devendo ser aplicada qualquer outra interpretação que possa ser desfavorável ao paciente" (HC n. 134.868/RJ, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, DJe 4.5.12). 3. Habeas corpus concedido de ofício para restabelecer a decisão do Juízo das Execuções Criminais, mais benéfica para o paciente. (HC 272.405/RJ, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, QUINTA TURMA, julgado em 20/05/2014, DJe 23/05/2014, destacou-se). HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. CONCESSÃO DE LIVRAMENTO CONDICIONAL. CONDENAÇÃO A CRIMES HEDIONDOS E COMUNS. CONTINUIDADE DELITIVA. ELABORAÇÃO DE CÁLCULO DIFERENCIADO. PRETENSÃO LEGÍTIMA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO VERIFICADO NO CASO CONCRETO. ORDEM DENEGADA. 1. Na execução simultânea de condenação por delito comum e outro hediondo, ainda que reconhecido o concurso material, formal ou mesmo a continuidade delitiva, é legítima a pretensão de elaboração de cálculo diferenciado para fins de verificação dos benefícios penais, não devendo ser aplicada qualquer outra interpretação que possa ser desfavorável ao paciente. 2. No caso concreto, embora legítima a pretensão do impetrante, não se verifica o alegado constrangimento ilegal na elaboração do cálculo da pena sem a devida diferenciação das sanções aplicadas, por ser esta a situação mais favorável ao paciente. 3. Habeas corpus denegado.

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(HC 134.868/RJ, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 15/03/2012, DJe 04/05/2012, destacou-se).

Essa mesma solução jurisprudencial, que sugere o cálculo diferenciado para a obtenção de benefícios executórios, conforme se observa nos precedentes esposados, aplica-se à análise do livramento condicional. Com efeito, não havendo reincidência específica em crime hediondo e equiparado e observados os demais requisitos legais, serão exigidos o cumprimento de 2⁄3 da pena referente aos crimes hediondos e equiparados, bem assim de 1⁄3 ou 1⁄2 da reprimenda relacionada a delitos comuns. Essa solução, contudo, não deve ser aplicada à hipótese de concurso de condenações por delitos hediondos e comuns na análise de concessão do benefício do indulto parcial ou total da pena.

CONCURSO DE INFRAÇÕES E INDULTO Não obstante a edição do decreto indultório revele o exercício de competência discricionária do Presidente da República (artigo 84, XII8, da Constituição Federal), tem-se que o cumprimento dessa competência constitucional encontra limites no artigo 5º, XLIII, da Constituição Federal. Nessa senda, não pode o decreto indultório estabelecer disciplina distinta e agraciar os condenados por crimes hediondos e equiparados. Ocorre que, no âmbito do concurso de condenações pela prática de delitos impeditivos (hediondos e equiparados) e não impeditivos, as sucessivas edições de decretos de indulto têm autorizado a concessão do benefício mediante cálculo diferenciado, conforme se extrai do artigo 8º, parágrafo único, do Decreto Presidencial n. 8.615/15, verbis:

XII - conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei;

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Art. 8º As penas correspondentes a infrações diversas devem somarse, para efeito da declaração do indulto e da comutação de penas, até 25 de dezembro de 2015. Parágrafo único. Na hipótese de haver concurso com crime descrito no art. 9º, não será declarado o indulto ou a comutação da pena correspondente ao crime não impeditivo enquanto a pessoa condenada não cumprir dois terços da pena correspondente ao crime impeditivo dos benefícios.

Assim, observa-se que o decreto indultório autoriza a concessão da benesse à reprimenda referente ao crime comum, conquanto em concurso com execução por crime impeditivo, o que se afigura compatível, em tese, com a vedação estabelecida no texto constitucional. De outro lado, faz-se imperioso advertir que, mesmo em concurso com condenação por crime não impeditivo, a reprimenda fixada a partir de condenação por crime obstativo jamais admite a concessão de indulto, nos termos do que estabelece o artigo 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, que veda, em caráter absoluto, a concessão da benesse a execuções por crimes hediondos e equiparados. Sucede que o artigo 76 do Código Penal preconiza que “no concurso de infrações, executar-se-á primeiramente a pena mais grave”. Assim sendo, é preciso obtemperar que, em atenção à referida disposição, não se pode tolerar, no âmbito de análise do benefício do indulto, o cômputo simultâneo de execuções. Com efeito, o indulto/comutação de pena compreende, em verdade, perdão do todo ou de parte da reprimenda. De outra parte, os benefícios da progressão de regime ou do livramento condicional referem-se à concessão de regimes mais favoráveis de cumprimento de pena, de modo que o legislador infraconstitucional, ao estabelecer o requisito objetivo, faz uma conjectura em relação à aptidão do sentenciado, na perspectiva de ressocialização, de se amoldar a regime mais benéfico. Assim, iniciada a execução atinente ao delito hediondo, eventual comutação ou concessão de indulto total em favor do reeducando, mesmo sob o argumento de se relacionar à parcela não impeditiva, poderá ensejar indevida computação de cumprimento 118


de pena e concessão de benefícios da execução penal relacionadas ao delito impeditivo, o que revelaria ofensa à vedação peremptória estabelecida no texto constitucional. Nesse sentido, a execução referente ao crime impeditivo, se mais remota que a referente ao delito não impeditivo, deve ser contínua até atingir o seu termo final. Cumprida a integralidade daquela, procede-se à execução da reprimenda relacionada ao delito não impeditivo, quando será possível que o reeducando se beneficie pelo indulto, total ou parcial. Portanto, em uma interpretação conforme a Constituição Federal, tem-se que a disciplina do artigo 8º, parágrafo único, do Decreto n. 8.615/15, apenas alcança as hipóteses em que o sentenciado tenha iniciado o cumprimento da pena referente a um delito não impeditivo (comum) e lhe sobrevenha condenação por crime impeditivo. Nesse caso, preenchidas as demais condições estabelecidas no decreto indultório, o reeducando poderá ser beneficiado pelo indulto se cumprir a fração de 2/3 da reprimenda atinente ao delito hediondo impeditivo. No entanto, se superveniente a execução referente a delito não impeditivo a reeducando que já cumpre pena atinente a crime impeditivo, a referida disposição infralegal não se aplica. Nessa hipótese, para fazer jus à benesse do indulto, faz-se necessário que o reeducando cumpra a integralidade da reprimenda referente ao delito impeditivo, que deve ser executado em primeiro lugar e em sua integralidade, nos termos do que dispõe o artigo 76 do Código Penal e, ainda, a fração necessária do crime não impeditivo. Contudo, não obstante, o Superior Tribunal de Justiça, em recentes julgamentos9, tem veiculado o entendimento de que o artigo 76 do Código Penal impõe somente uma ordem cronológica para a execução das penas nas hipóteses de concurso de crimes, não possuindo o condão de disciplinar os critérios estabelecidos Cf. STJ, AgRg no AREsp 721.412/RJ, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 05/11/2015, DJe 23/11/2015; STJ, AgRg no AgRg no REsp 1396053/DF, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, QUINTA TURMA, julgado em 01/09/2015, DJe 18/09/2015; AgRg no REsp 1459395/DF, Rel. Ministro LEOPOLDO DE ARRUDA RAPOSO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/PE), QUINTA TURMA, julgado em 20/08/2015, DJe 01/09/2015.

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no decreto presidencial. Assim, a colenda Corte Superior de Justiça tem admitido a aplicação da benesse indultória aos condenados concomitantemente por delitos comuns e hediondos. No ponto, cumpre advertir que o entendimento esposado pelo Superior Tribunal de Justiça permite formular a ilação de que é indiferente, para fins de comutação ou indulto da pena, que o condenado por crime hediondo ou equiparado tenha praticado ou não cumulativamente crime comum. Com efeito, por ser insuscetível de indulto, a pena referente ao delito hediondo - executada em primeiro lugar por força do disposto no artigo 76 do Código Penal -, deve ser cumprida até o seu termo final, quando certamente a pena do delito comum eventualmente aplicada em cumulação, segundo o raciocínio da Corte Superior, já terá sido alcançada pelo indulto. Ao assim tolerar o gozo do benefício do indulto, o Superior Tribunal de Justiça agracia o sentenciado que nem sequer começou o cumprimento da pena privativa de liberdade relativa ao delito comum. Com efeito, o cumprimento da pena referente ao delito hediondo irá repercutir sobre a reprimenda que não teve o seu cumprimento iniciado, o que inegavelmente compreende ofensa ao princípio da proibição da proteção penal deficiente. Outro ponto que merece crítica diz respeito à afirmação de que os critérios estabelecidos pelo decreto indultório se sobrepõem à disciplina estabelecida pelo artigo 76 do Código Penal. A prevalecer esse entendimento, tem-se que a ordem cronológica de cumprimento da pena resta disciplinada, em verdade, pelo parágrafo único do artigo 8º do decreto indultório, na medida em que a reprimenda seria cumprida concomitantemente à proporção de 2/3 da pena de crimes hediondos e de 1/4, 1/3 ou 1/2, a depender do caso concreto, da pena relativa aos crimes comuns. As questões afetas à ordem cronológica de cumprimento de pena e à concessão do benefício do indulto não são indiferentes. Decerto, o indulto compreende espécie de perdão da pena, extinguindo-a, de modo que, na proporção em que o decreto exige parcela de cumprimento da reprimenda afeta ao delito hediondo em concomitância com o cumprimento da pena de delito comum, torna-se relevante se afigurar qual pena está sendo executada, o que viabilizaria, nos termos do decreto, a 120


concessão do benefício do indulto. Sucede que, nesse contexto, como se destacou, há disciplina expressa no artigo 76 do Código Penal, que regula a cronologia de cumprimento de pena, de modo que há como se aferir, em dado instante -, mesmo em caso de concurso de condenações sujeitas a regimes jurídicos diversos -, qual parcela da reprimenda está sendo cumprida pelo sentenciado. Não há como se tolerar que um ato normativo infralegal se sobreponha à legislação federal, contrariando-a. Para fins de progressão de regime de cumprimento de pena e de concessão de livramento condicional, consoante já registrado, faz-se possível o cálculo diferenciado quando se tratar de execução penal referente a condenações sujeitas a regimes jurídicos diversos. Isso porque, procedida a unificação (artigo 111 da Lei de Execução Penal), a fixação do regime inicial de cumprimento de pena já contempla as condenações sofridas pelo apenado como um todo, de modo que, ainda que não esgotado o cumprimento da condenação mais grave, torna-se possível a concessão do benefício da progressão de regime, já que semelhante benesse compreende a verificação de aptidão para cumprimento da pena em regime mais favorável. Não há perdão ou extinção de pena, como ocorre no gozo do indulto.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Definido o regime jurídico diferenciado que regula a execução da pena referente a delitos hediondos e equiparados, verificase que, em caso de concurso de condenações afetas a regimes jurídicos diversos, torna-se impositiva que a análise dos benefícios da progressão de regime e do livramento condicional seja realizada de forma particularizada a partir de cálculo diferenciado. De outra parte, contudo, à luz da vedação constitucional de concessão de indulto a delitos hediondos e equiparados e do disposto no artigo 76 do Código Penal, que estabelece a execução prioritária da pena mais grave, sugere-se que, em caso de concurso de condenações relativas a delitos impeditivos e não impeditivos, seja realizada uma interpretação conforme o disposto no artigo 8º, parágrafo único, do Decreto n. 8.615/15, a fim de que a disciplina estabelecida apenas alcance as hipóteses em que o sentenciado tenha iniciado o cumprimento da pena referente a um delito não impeditivo (comum) e lhe sobrevenha condenação por crime impeditivo. Nessa hipótese, preenchidas as demais condições estabelecidas no decreto indultório, o sentenciado poderá ser beneficiado pelo indulto se cumprir a fração de 2⁄3 da reprimenda atinente ao delito hediondo impeditivo.

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